0286/2025 - Desigualdades raciais e de gênero na insegurança alimentar no estado do Rio de Janeiro.
Racial and gender inequalities in food insecurity in the state of Rio de Janeiro.
Autor:
• Louine Carneiro Ferreira dos Santos - Santos, LCF - <louine.f@hotmail.com>ORCID: https://orcid.org/0009-0001-6389-3665
Coautor(es):
• Célia Maria Patriarca Lisbôa - Lisbôa, CMP - <celiapatriarca@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9618-1093
• Juliana Pereira Casemiro - Casemiro, JP - <julianacasemiro@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6940-2479
• Luana Silva Monteiro - Monteiro, LS - <luananutrir@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3599-6947
• Rute Ramos da Silva Costa - Costa, RRS - <ruteatsoc@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3865-5956
• Naiara Sperandio - Sperandio, N - <naiarasperandio@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9015-3849
Resumo:
Analisar a influência das desigualdades raciais e de gênero na insegurança alimentar em domicílios do estado do Rio de Janeiro. Estudo transversal desenvolvido com a Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2017. Utilizaram-se informações sobre as características dos domicílios, moradores, e de insegurança alimentar. Para análise das desigualdades raciais e gênero utilizou-se as perguntas sobre sexo e cor da pele autorreferidas. Realizou-se regressão logística com estimativas de odds ratio (OR) e intervalo de 95% de confiança para investigar a associação dos perfis de raça com a insegurança alimentar moderada/grave. Foram avaliados um total de 3180 domicílios. A maior escolaridade foi observada nos perfis mulher branca (39%; IC95%: 34,3-44,0), assim como o maior rendimento per capita (46%; IC95%: 41,0-51,1). Domicílios chefiados por mulheres negras foi mais associado (OR:2,75; IC95%:1,72-4,4) à insegurança alimentar moderada/grave mesmo após os ajustes por escolaridade, renda familiar per capita e presença de menores de 18 anos. A interação entre os marcadores de gênero e raça/cor mostra-se intimamente envolvida na insegurança alimentar além de evidenciar a situação das desigualdades em que as mulheres negras estão submetidas.Palavras-chave:
Insegurança Alimentar; Análise de Gênero; Raça.Abstract:
Analyze the influence of racial and gender inequalities on food insecurity in households in the state of Rio de Janeiro. A cross-sectional study was developed using the 2017 Household Budget Survey. Information on household characteristics, residents, and food insecurity were used. For the analysis of racial and gender inequalities, self-reported sex and skin color questions were used. Logistic regression with odds ratio (OR) estimates and a 95% confidence interval was conducted to investigate the association between racial profiles and moderate/severe food insecurity. A total of 3,180 households were evaluated. The highest level of education was observed in white women profiles (39%; 95% CI: 34.3-44.0), as well as the highest per capita income (46%; 95% CI: 41.0-51.1). Households headed by black women were more strongly associated (OR: 2.75; 95% CI: 1.72-4.4) with moderate/severe food insecurity, even after adjusting for education, per capita family income, and the presence of children under 18. The interaction between gender and race/color markers is closely related to food insecurity, highlighting the inequalities faced by black womenKeywords:
Food Insecurity; Gender Analysis; Race.Conteúdo:
A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todas as pessoas ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais e a violação desse direito humano se configura como Insegurança Alimentar (IA), que, no contexto familiar, manifesta-se de forma progressiva, desde a apreensão quanto à disponibilidade futura de comida até a ocorrência da fome1,2.
O reconhecimento da insegurança alimentar e seus determinantes como um problema que atinge desproporcionalmente certos grupos sociais, acarreta a necessidade de políticas públicas inclusivas para seu enfrentamento. Nesse contexto, além de variantes demográficas e econômicas que afetam o acesso dos indivíduos a uma alimentação contínua e segura, também se fez necessário a consideração de fatores como gênero, classe e raça/cor como determinantes para a ocorrência da fome em seus mais variados graus3,4.
Categorias sociais, como raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária se entrelaçam, se sobrepõem e se manifestam nas vivências individuais, refletindo também no convívio social5 . Dessa forma, é possível afirmar que esses fatores e suas interações, desempenham um papel crucial na manifestação da insegurança alimentar em uma população6.
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018, mais da metade dos domicílios em insegurança alimentar grave no Brasil são chefiados por mulheres, e em 73,9% deles a cor da pele da pessoa que chefia o domicílio é preta ou parda. Em outro levantamento com dados estratificados por estados e macrorregiões brasileiras, observa-se que o estado do Rio de Janeiro é o que apresenta os maiores percentuais de domicílios em insegurança alimentar, em comparação com todos os outros estados da região Sudeste, totalizando 2,7 milhões de indivíduos em situação de fome. Do total de 504 domicílios pesquisados, quase 70% possuíam a pessoa de referência de cor de pele preta ou parda, e mais de 50% tinham a mulher como chefe do domicílio8.
As várias formas de manifestação da insegurança alimentar representam uma violação do direito humano à alimentação adequada, direito esse que não é assegurado de maneira equitativa em nossa sociedade9,10. Os fatores sociais associados a insegurança alimentar, são frequentemente apresentados de maneira unidimensional na literatura, e há uma escassez de dados que explorem a interação entre esses fatores7,11. Sendo assim, este estudo apresenta uma contribuição original, a medida que amplia o conhecimento sobre a relação das desigualdades raciais e de gênero na insegurança alimentar, no estado do Rio de Janeiro, preenchendo lacunas na literatura e oferecendo novas perspectivas para políticas públicas e ações de saúde.
Diante desse contexto, o presente estudo tem como objetivo analisar a influência das desigualdades raciais e de gênero na insegurança alimentar em domicílios do estado do Rio de Janeiro.
Métodos
Estudo transversal desenvolvido com a base de dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre junho de 2017 a julho de 2018. O tamanho amostral dessa pesquisa foi 57.920 domicílios. Trata-se de uma pesquisa com amostra representativa da população brasileira e grandes regiões (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste) abrangendo áreas urbanas e rurais; para as regiões metropolitanas e Capitais das Unidades da Federação, os resultados abrangem à situação urbana. Para realização do presente estudo utilizou-se os dados referentes ao estado do Rio de Janeiro (3180 domicílios)12.
A amostragem da POF foi probabilística e estratificada em dois estágios. O primeiro estágio consistiu da estratificação geográfica e econômica dos setores censitários que foram selecionados proporcionalmente ao número de domicílios no setor. O segundo estágio consistiu da seleção dos domicílios, selecionados aleatoriamente por amostragem sistemática. Os setores foram distribuídos ao longo de 12 meses para garantir representatividade durante os quatro trimestres do ano12.
Para análise da relação do gênero com raça/cor da pessoa de referência do domicílio utilizou-se as perguntas sobre sexo (seguindo as classificações biológicas feminino e masculino) e cor da pele (branca, parda e preta) autorreferidas. A raça negra foi composta pela junção das categorias pretos e pardos.
Para avaliação da insegurança alimentar a POF utilizou, de maneira inédita, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). Essa escala é composta por 14 perguntas com referência ao período de 3 meses anteriores a entrevista. As respostas afirmativas as perguntas geram uma pontuação que analisada a partir de pontos de corte específicos classificam o domicílio em segurança alimentar, insegurança alimentar leve, moderada ou grave7. Para esse estudo, realizou-se o agrupamento dessa classificação em três categorias: (i) segurança alimentar; (ii) insegurança alimentar leve; (iii) insegurança alimentar moderada e grave.
Os perfis de gênero e cor da pele da pessoa de referência do domicílio foram estimados e estratificados segundo características socioeconômicas, sendo elas: escolaridade (categorizada em anos de estudo: sem instrução; 1 a 5 anos; 6 a 9 anos; 10 a 12 anos; 13 anos ou mais), idade (categorizada em: até 25 anos; 26 a 35 anos; 36 a 45 anos; 46 a 55 anos; 56 ou mais), tipo do domicílio (rural ou urbano), presença de menores de 18 anos (sim ou não), número de pessoas (categorizada em: mora sozinho; 2 pessoas; 3 pessoas; 4 pessoas; 5 ou mais), e renda per capita mensal estimada dividindo a renda familiar total pelo número de indivíduos na família. A renda foi categorizada em quatro categorias com base em múltiplos do salário mínimo mensal oficial brasileiro vigente em janeiro de 2018 (R$ 954,00): <0,5 salários mínimos per capita; 0,5 a 1,0 salários mínimos per capita; 1,0 a 2,0 salários mínimos per capita; e ?2,0 salários mínimos per capita.
A análise regional envolveu a comparação do estado do Rio de Janeiro com outros da região Sudeste (Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo) e Brasil. A análise dos níveis de insegurança alimentar segundo perfis de gênero e cor da pele foram analisados pela comparação do Rio de Janeiro com demais estados da região Sudeste e Brasil. As diferenças foram determinadas através dos Intervalos de Confiança de 95%.
A análise múltipla foi realizada mediante regressão logística com estimativas de odds ratio (OR) e intervalo de 95% de confiança (IC95%) para investigar a associação dos perfis de raça com a insegurança alimentar moderada/grave, estratificados por Brasil e Rio de Janeiro. A categoria de referência considerada foi o homem branco e a junção da segurança alimentar com a insegurança alimentar leve. As variáveis de ajuste foram: escolaridade, renda familiar per capita, e presença de moradores menores de 18 anos. A escolha dessas variáveis se baseou na disponibilidade de informações da POF, e na literatura científica que retrata essas variáveis como comumente relacionadas a insegurança alimentar2,8.
A análise estatística foi realizada considerando o desenho amostral complexo e nível de 95% de confiança (IC95%), utilizando o software Statistical Package for the Social Sciences –SPSS, versão 21.
Resultados
Foram avaliados um total de 3180 domicílios no estado do Rio de Janeiro. Em relação as características demográficas e socioeconômicas a maior escolaridade foi observada nos perfis mulher branca (39%; IC95%: 34,3-44,0), assim como o maior rendimento per capita (46%; IC95%: 41,0-51,1). Em contrapartida, os indicadores de vulnerabilidade social como baixa escolaridade, presença de menores de 18 anos, maior número de pessoas no domicílio e menores rendimentos foram mais prevalentes em domicílios chefiados por mulheres pretas e pardas (Tabela 1).
No estado do Rio de Janeiro a segurança alimentar foi mais prevalente nos domicílios chefiados por homens e mulheres brancas (77,2%; IC95%: 73,0-80,9 vs 71,9%; IC95%: 67,6-75,8). A insegurança alimentar, em todas suas manifestações (leve, moderada e grave) foi mais prevalente nos domicílios chefiados por mulheres pretas e pardas. Esse cenário se repete para os demais estados da região Sudeste (Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo) e para o Brasil (Tabela 2).
Domicílios chefiados por mulheres negras foi mais associado à insegurança alimentar moderada/grave, no Brasil e Rio de Janeiro, mesmo após os ajustes por escolaridade, renda familiar per capita e presença de menores de 18 anos. No estado no Rio de Janeiro domicílios chefiados por mulheres negras têm quase três vezes mais chance (OR = 2,75; IC95%: 1,72-4,40) de apresentar insegurança alimentar quando comparado aos domicílios chefiados por homens brancos. No cenário nacional, as chances são 2,5 vezes superiores (OR = 2,49; IC95%: 2,23-2,79).
Discussão
Os achados desse estudo retratam que, no estado do Rio de Janeiro, os domicílios chefiados por mulheres pretas e pardas apresentam menor escolaridade, renda mais baixa, maior presença de menores de 18 anos e maior número de moradores. Múltiplas vulnerabilidades que se somatizam e podem contribuir para a maior insegurança alimentar moderada e grave observada nesse perfil, quando comparado aos demais (mulher branca; homem branco; homem pardo; e homem preto).
A relação da insegurança alimentar com desigualdades de raça e gênero também é evidenciada no contexto global pela literatura internacional. Segundo a Organização das Nações Uni¬das para a Alimentação e a Agricultura (FAO), no mundo, a insegurança alimentar moderada e grave é mais prevalente entre mulheres do que entre homens13. Graham et al. (2019) a partir de dados transversais de 142 países, retrataram que, globalmente, as mulheres apresentaram maiores chances de IA do que os homens. A magnitude dessa diferença de gênero varia entre regiões e de acordo com o nível de gravidade da insegurança alimentar14. Outro estudo com países desenvolvidos da União Europeia, revelou que as mulheres têm 4,7 pontos percentuais a mais, de probabilidade de vivenciar algum grau de insegurança alimentar em relação aos homens. Já nos países pobres do Sul da Ásia e da África Subsaariana, as mulheres têm dois pontos percentuais a mais de probabilidade de enfrentar insegurança alimentar severa. A falta de oportunidades de emprego e educação aumentam a probabilidade de mulheres enfrentarem insegurança alimentar15.
No contexto brasileiro, o cenário não é diferente. Em 2021, Hoffman realizou uma análise de determinantes mais associados com a insegurança alimentar na POF 2017-2018 e comprovou que o aumento da renda e da escolaridade são instrumentos básicos para reduzir a ocorrência de vulnerabilidades na alimentação16,17.
Em relação a escolaridade, a pesquisa mostrou que mulheres brancas representam maioria nas faixas com mais anos de estudo. Em 2009, 23,8% era a parcela de mulheres brancas brasileiras matriculadas no ensino superior, enquanto esta taxa era reduzida a 9,9% entre as mulheres negras18. Maior escolaridade representa maiores chances de emprego com melhores remuneração. Portanto, a baixa escolaridade tem uma relação direta com os rendimentos familiares.
Menor escolaridade acarreta em menor taxa de qualificação profissional que repercute em falta de oportunidades e baixa renda. Como resultado, para as mulheres negras destina-se a menor qualidade de vida social, condições mais precárias no mercado de trabalho e majoritária ocupação em cargos inferiores, subalternos e desvalorizados devido a pouca qualificação profissional, com ínfimas chances de chegar a cargos de direção e chefia19.
As mulheres negras vivenciam um tipo de discriminação específica, configurada pela raça, gênero e classe, combinadas com opressões correspondentes dentro de uma matriz de subordinação estrutural. Isso significa que o intenso projeto político de precarização da vida das mulheres negras vem sendo bem executado, visto que os índices apresentam que elas terão a vida atravessada pela fome e insegurança alimentar, violência, insalubridade trabalhista e baixa concentração de renda20.
No suplemento publicado pelo II VIGISAN com estratificação por estados, foi observado que o Rio de Janeiro foi a localidade federativa que apresentou maior percentual de domicílios com presença de mais de 4 moradores (12,4%) e menores de 10 anos (27,4%)8. A POF 2017-2018 já vinha evidenciando essa ocorrência, principalmente nos lares de mulheres pardas e pretas em que, respetivamente, 14,4% e 16,6% contavam com 5 ou mais pessoas morando sob o mesmo teto7.
Há uma forte associação entre a insegurança alimentar moderada/grave e a presença de maior número de indivíduos e menores de 18 anos. É comum que nos lares chefiados por mulheres negras, os arranjos familiares contem com um maior número de moradores, seja do arranjo “casal com filhos” ou da “mulher com filhos”21.
Em estudo conduzido por Sousa et al. (2019)22, a chance do domicílio com 5 ou mais moradores estar em situação de insegurança alimentar correspondia a 35%. Por outro lado, as mulheres brancas na chefia do lar sem filhos ou que viviam sozinhas, apresentaram maior disponibilidade de renda e consequentemente maior suscetibilidade à segurança alimentar. Isso foi observado em uma análise de tendência temporal realizada no extremo Sul do Brasil em 2020, em que a insegurança alimentar se atenuava nos domicílios com no máximo dois residentes21.
Em todos os estados da região Sudeste, a proporção de domicílios chefiados por pessoas negras (mulher parda; mulher preta; homem pardo; homem preto) em situação de insegurança alimentar moderada/grave foi maior quando comparado aos chefes dos domicílios autodeclarados brancos (mulher branca; homem branco). Do mesmo modo, a prevalência de insegurança alimentar moderada/grave se revelou maior nos domicílios chefiados pelas mulheres quando comparado àqueles chefiados por homens da mesma cor.
Ao realizar os ajustes referentes aos indicadores associados com a ocorrência da insegurança alimentar, observou-se que, no Rio de Janeiro, no perfil mulheres negras (pardas e pretas), chefes de família, a insegurança foi quase três vezes maior. Esse indicativo confirma a hipótese de que há uma conjuntura em que as complexidades e intersecções das disparidades de gênero, raça/cor e classe se associam de forma aguda23,24.
O Rio de Janeiro (região sudeste) juntamente com a Bahia (região nordeste) detêm a maior autodeclaração de pessoas pretas no país, sendo 16,2% da população no estado fluminense e 22,4% na Bahia25.
Silva et al. (2022)26 publicam um estudo de caráter transversal a respeito da situação de insegurança alimentar na cidade de Salvador com achados semelhantes, ao observados no I Inquérito sobre a Insegurança Alimentar no município do Rio de Janeiro26. Os resultados foram: 25,6% dos domicílios chefiados por mulheres negras em insegurança alimentar leve; 21,2% moderada e grave em Salvador. No município do Rio de Janeiro, 17,2% de insegurança leve; 18,9% em IA moderada e grave26,27.
As iniquidades relacionadas às maiores proporções de insegurança alimentar nos lares chefiados por mulheres negras se reproduzem em ambas as cidades, além dos mesmos marcadores sociais, como maior prevalência nos trabalhos informais, menores níveis de escolaridade e renda, menor acesso a serviços de saúde e constante propensão à violência em suas mais variáveis formas26,27.
Gomes et al. (2017)28, averiguaram o processo de implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) no estado da Bahia e constataram que, para a consolidação das ações voltadas para a diminuição das desigualdades étnico-raciais, há a necessidade de ajustes e investimentos para que se feche o ciclo, sendo de extrema relevância atualizar os indicadores de saúde, especificamente os desagregados por raça/cor.
No Rio de Janeiro, a esfera é similar, onde em dezembro de 2022 foi aprovada a Política Municipal de Saúde Integral da População Negra, que segue, nesse entretempo, sem previsões para a implementação. Concomitantemente, há uma mobilização promovida pela Comissão Especial de Combate ao Racismo (CECOR, 2023) em que, o relatório produzido pela frente, reivindica quanto ao cumprimento das submetas contidas na PNSIPN que ainda não foram completamente instauradas29.
Ao trazer luz a essas constatações, vamos de encontro à ponderação de que as concepções de raça e gênero são duas categorias que não podem ser separadas, pois “[...] Construções racistas baseiam-se em papéis de gênero e vice-versa e o gênero tem um impacto na construção da raça e na experiência do racismo”30. O entrelaçamento de gênero e raça trazem uma experenciação única para mulheres negras, em que o impacto do binômio racismo/sexismo perpassará por toda a sua vida e principalmente quando envolver o cenário de vulnerabilidades socioeconômicas31.
Conclusão
A insegurança alimentar é um quadro de casuística multifatorial, complexa, que se manifesta de forma progressiva, representando uma ameaça para as condições físicas, mentais e nutricionais de uma população. A forte relação entre a ocorrência da vulnerabilidade alimentar com o gênero, classe e raça/cor, denuncia não apenas o abismo da desigualdade socioeconômica no Brasil, como também escancara a perpetuação da dinâmica sexista e racista entranhadas nos pilares e instituições de todo o país.
Analisar as interações de opressões, iniquidades, e violências contra as mulheres negras é o primeiro passo para compreender os agravantes aos quais esta parcela da população está submetida. E, ao mesmo passo, desenvolver soluções interseccionais que busquem equiparar tais resultâncias.
Embora este estudo tenha priorizado os dados em instância estadual, foi atingido o objetivo de evidenciar, a partir de uma análise da relação entre gênero e raça, com a insegurança alimentar, as desigualdades sociais de uma das localidades que desempenha importante papel no desenvolvimento econômico, não só na região sudeste, como também, em todo o país, e que ainda carece de políticas públicas direcionadas a população negra.
Vale ressaltar que se faz imperativo a implementação de políticas públicas que busquem atenuar as disparidades de gênero, promover a igualdade racial a nível institucional, incentivar a educação, profissionalização e igualdade de renda para a população negra, sobretudo para mulheres pretas e pardas. E, por fim, fomentar as ações de combate à fome e fortalecer as frentes de segurança alimentar e nutricional já existentes.
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29. CECOR. Relatório de Trabalho: Comissão Especial de Combate ao Racismo 2023. Rio de Janeiro: CECOR, 2023. Disponível em: https://combateaoracismorio.com/wp- content/uploads/2023/12/cecor-relatorio-2023.pdf. Acesso em: 01 jul. 2024.
30. KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019.
31. CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.










