0249/2025 - Efeito da Sazonalidade na mortalidade por queimaduras no Brasil: estudo de base populacional
The Effect of Seasonality on Burn Mortality in Brazil: A Population-Based Study
Autor:
• Sérgio Eduardo Soares Fernandes - Fernandes, SES - <sergioesf001@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2511-400X
Coautor(es):
• Derek Chaves Lopes - Lopes, DC - <derek.lopes5@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4382-2528
• Erik Teixeira Lopes - Lopes, ET - <erik.lopes@algoritmi.uminho.pt>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5034-8433
• Fábio Ferreira Amorim - Amorim, FF - <ffamorim@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0929-5733
• Jose Adorno - Adorno, J - <adornog@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4966-8859
• Luiz Philipe Molina Vana - Vana, LPM - <philipe@uol.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7305-8399
• Edgar Merchan-Hamann - Merchan-Hamann, E - <merchan.hamann@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6775-9466
Resumo:
INTRODUÇÃO: Queimaduras são um trauma complexo, sendo causadas por diversos agentes e com múltiplas implicações. Ainda que existam dados disponíveis acerca de sua mortalidade, carecem estudos sobre seu comportamento sazonal. OBJETIVO: Esse estudo tem como objetivo descrever o padrão sazonal da mortalidade por queimaduras no Brasil entre os anos de 2000 e 2022, utilizando dados do SIM. Ainda, foram estudados o local de ocorrência e a comparação da sazonalidade entre diferentes etiologias, meses e dias da semana, com avaliação do risco de óbito por etiologia e o risco atribuível a sazonalidade nas diferentes regiões do país. MÉTODO: Trata-se de um estudo observacional longitudinal descritivo a partir da análise de dados de óbitos 2000 a 2022. RESULTADOS: Há aumento da mortalidade por queimaduras em períodos chuvosos, com impacto maior nas regiões sudeste e nordeste. O risco diário de morte por queimaduras térmicas é substancialmente maior na região sudeste. A maior mortalidade ocorre em janeiro e fevereiro, com declínio em junho. Queimaduras térmicas e elétricas diferem na análise sazonal anual e semanal. Infraestrutura elétrica, atividades laborais e indicadores demográficos são fatores que podem explicar esse comportamento. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Esse estudo tem potencial de aumentar oportunidades de prevenção e alocação de recursos para o tratamento de queimaduras e fomentar trabalhos que explorem outros fatores associados a mortalidade por queimaduras.Palavras-chave:
Queimaduras; Sistemas de Informação em Saúde; Estações do ano; Mortalidade.Abstract:
INTRODUCTION: Burns are a complex trauma, caused by various agents and associated with multiple implications. Although mortality data are available, studies examining their seasonal patterns are lacking. OBJECTIVE: This study aims to describe the seasonal pattern of burn-related mortality in Brazil between the years 2000 and 2022, using data from the Mortality Information System (SIM). Additionally, the study examines the place of occurrence and compares seasonality across different etiologies, months, and days of the week. It also evaluates the risk of death by etiology and the attributable risk of seasonality across the different regions of the country. RESULTS: An increase in burn-related mortality is observed during rainy periods, with the most significant impact in the Southeast and Northeast regions. The daily risk of death from thermal burns is substantially higher in the Southeast. Mortality peaks in January and February, with a decline in June. Thermal and electrical burns display distinct seasonal patterns at both annual and weekly levels. Factors such as electrical infrastructure, occupational activities, and demographic indicators may help explain these trends. CONCLUSION: This study has the potential to enhance prevention strategies and guide the allocation of resources for burn treatment, as well as to encourage further research into other factors associated with burn mortality.Keywords:
Burns; Health Information Systems; Seasons; MortalityConteúdo:
As queimaduras são um trauma de grande importância mundial, predominando em países de baixa e média renda 1,2. Podem ser causadas por chama, líquidos quentes, eletricidade, produtos químicos, radiação ou geladura, com diversas implicações a curto e longo prazo, gerando sequelas, dificuldade de reinserção na sociedade e custos para o sistema de saúde 3–5.
Atualmente o Brasil dispõe de diversas bases da dados nacionais com informações sobre lesões por causas externas, através do DataSUS, com objetivos e limitações particulares. Dentre elas estão o Sistema de Informações Hospitalares (SIH)6, o Sistema de informações sobre Mortalidade (SIM)7 e o inquérito de Vigilância de Violência e Acidentes (VIVA)8. Tanto o SIH quanto o VIVA são bases construídas a partir de dados específicos de unidades de saúde, o primeiro de unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e pacientes que necessitaram de internação e o segundo de serviços de urgência/emergência de capitais e municípios selecionados6,9. Apesar de contribuírem para a tomada de decisões relacionadas a saúde, nos casos de queimaduras graves, que não chegam a receber atendimento médico, pode haver subnotificação dos incidentes6,8.
O SIM7, por outro lado, é uma base de abrangência nacional alimentada pela declaração de óbito, já validada e considerada segura. Além da causa principal do óbito, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID 10), esse documento fornece informações sobre a data e o local do acontecimento e outras pertinentes a investigação do óbito 7.
Na literatura científica observa-se que grande parte das análises epidemiológicas relacionadas a queimaduras concentra-se em dados locais, realizando-se o levantamento de informações a partir dos prontuários médicos 10–12. Apesar de sua importância, essa análise pode limitar a adoção dos resultados para a decisões em maior escala, como políticas públicas nacionais. No caso de um país com dimensões continentais e grandes diferenças socioeconômicas regionais, como o Brasil, isso torna-se ainda mais relevante 13.
Caracterizar a ocorrência de fenômenos de saúde quanto a sua sazonalidade pode contribuir para um melhor entendimento da doença e planejamento dos recursos, principalmente em países subdesenvolvidos, aumentando a capacidade de resposta do sistema. Essa avaliação já foi realizada em outras doenças, como acidente vascular cerebral (AVC) e parada cardiorrespiratória 14–16. Quanto às queimaduras, nos últimos anos, alguns estudos fizeram caracterizações por estações ou meses do ano, obtendo-se resultados diversos 10,17–19. Contudo, no Brasil, os autores identificaram apenas duas publicações, antigas e de análises locais 12,20, e uma de caráter nacional que analisou os dados da Associação Brasileira de Conscientização para os Perigos da Eletricidade (ABRACOPEL), e não os dados oriundos do Sistema de Informação de Mortalidade 21. Isso demonstra uma lacuna no tema, com a oportunidade de estudo que orientem o desenvolvimento de políticas públicas.
OBJETIVOS
Esse estudo tem como objetivo descrever o padrão sazonal da mortalidade por queimaduras no Brasil entre os anos de 2000 e 2022, utilizando dados do SIM. Ainda, foram estudados o local de ocorrência e a comparação da sazonalidade entre diferentes etiologias, meses e dias da semana, com avaliação do risco de óbito por etiologia e o risco atribuível a sazonalidade nas diferentes regiões do país.
MÉTODO
Trata-se de um estudo observacional longitudinal descritivo acerca da sazonalidade dos óbitos por queimaduras no Brasil. Foram obtidos os microdados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do DataSUS entre primeiro de janeiro de 2000 e 31 de dezembro de 2022 22, que foram convertidos do formato original, ‘.DBC’ em formato ‘.csv’ pelo programa Tab para Windows/TABWIN versão 4.15. Os arquivos em formato ‘.csv’ foram preparados com o programa Microsoft Excel 2019 e foram extraídos os campos: data do óbito; código do município da residência; código do município de ocorrência do óbito; e causa básica de óbito de cada ano e posteriormente foram extraídos apenas os registros cuja causa básica de morte caracterizava um evento compatível com queimaduras conforme a tabela de códigos da Classificação Internacional de Doenças, CID-10, construída pela Sociedade Brasileira de Queimaduras23 conforme a lista abaixo:
? Queimaduras térmicas: W35; W36; W38; W39; W40; W92; X00; X01; X02; X03; X04; X05; X06; X08; X09; X10; X11; X12; X13; X14; X15; X16; X17; X18; X19; X30; X75; X76; X77; X88; X96; X97; X98; Y25; Y26; e Y27
? Queimaduras elétricas: W85; W86; W87; e X33
? Queimaduras químicas: X86
? Queimaduras por radiação: W88; W89; W90; W91; X32
? Queimaduras por frio: W93; X31
Para os cálculos de mortalidade foram utilizadas as populações de cada município brasileiro dos censos de 2000, 2010 e 2022 com projeções diárias e mensais calculadas nos anos intercensitários por interpolação linear 24 e padronização das taxas por idade e sexo. A análise incluiu a comparação entre o local de residência e o local de ocorrência do óbito, a nível de município e de Unidade da Federação (UF), bem como o cenário (óbito em estabelecimento de saúde ou não) a relação com acidente de trabalho.
Foram calculadas as taxas de mortalidade diária por 10 milhões de habitantes para cada tipo de queimadura e total por região brasileira, de forma que os resultados fossem expressos em duas casas decimais, para facilitar a comparação e o entendimento. Foram estimadas as médias e desvios padrão para cada mês e dia da semana por região e os resultados foram usados para a construção de gráficos ilustrativos com os intervalos de confiança de 95% (IC95%) para cada valor, além de cálculos de 1º quartil, mediana e 3º quartil. Os intervalos de confiança foram estimados a partir do erro amostral obtido para populações infinitas (E = z * (? / ?n, sendo: E: é o erro amostral; z: é o valor crítico da distribuição normal padrão, correspondente ao nível de confiança; ?: é o desvio padrão da população; n: é o tamanho da amostra)25.
Foi construída uma tabela com os seguintes indicadores para as mortalidades por queimaduras térmicas e elétricas para cada região do país: mediana; média; amplitude; coeficiente de variação (calculado pela relação desvio padrão/média); risco relativo do efeito da sazonalidade (risco médio anual de mortalidade/mês de menor mortalidade); risco relativo entre as regiões; risco atribuível à sazonalidade – calculado pela fórmula (risco relativo-1)/risco relativo; e os meses com resultados médios e intervalos de confiança acima e abaixo da mediana da região26.
Esta pesquisa utilizou apenas dados de acesso público e, portanto, é dispensada de registro na Plataforma Brasil e apreciação ética pelo artigo 26 da Resolução Nº 674, de 6 de maio de 2022.
RESULTADOS
Ocorreram no período estudado, de janeiro de 2000 a 31 de dezembro de 2022, 76.112 óbitos por queimadura, destes, 41.055 foram por mecanismos térmicos, 34.567 por mecanismos elétricos e apenas 490 tiveram outros mecanismos: radiação; geladuras; e químico. Os óbitos por estas causas não foram analisados neste estudo por representarem menos de 0,01% do total. (Dados não mostrados em tabelas)
A mortalidade por queimaduras no Brasil foi significativamente maior nos meses de janeiro e fevereiro do que em qualquer outro mês do ano (Figura 1). O menor registro médio ocorreu no mês de junho e, conforme pode ser visto na Figura 1, embora participe com um número um pouco menor de casos, as mortes relacionadas a mecanismos elétricos possuem uma participação maior na formação da curva sazonal, uma vez que possui uma amplitude da curva duas vezes maior que a amplitude da curva relacionada a mecanismos térmicos.
Ao separar as curvas de casos ao longo do ano por mecanismo da queimadura, observa-se que mortes por queimadura térmica e por queimadura elétrica possuem padrões de distribuição sazonal bastante distintos. O ápice das mortes por queimadura térmica ocorre por volta de agosto, período em que a curva de mortes por queimaduras elétricas apresentou seu menor valor, com intervalos de confiança menores do que em todos os meses, com exceção de julho e setembro. Por outro lado, o ápice da curva de mortes por queimaduras elétricas acontece em torno de fevereiro e o fundo da curva de mortes por queimaduras térmicas, em torno de março (Figura 1).
Figura 1 - Mortalidade média diária por mês para todas as mortes por queimaduras, mortes térmicas e queimaduras elétricas no Brasil entre 2000 e 2022.
A diferença entre o padrão sazonal das mortalidades por queimadura térmica e elétrica não se resume aos ciclos anuais, mas também foram encontradas diferenças relevantes nos ciclos semanais. Assim como nos ciclos anuais, as mortes por queimaduras elétricas ao longo da semana possuem uma participação maior na determinação do padrão geral com um crescente partindo do domingo atingindo o apogeu no sábado (Figura 2).
Figura 2 – Mortalidade média diária por dia da semana para todas as mortes por queimaduras, mortes térmicas e queimaduras elétricas no Brasil entre 2000 e 2022.
Fig.2
Diferenças entre o padrão de mortalidade por queimaduras térmicas e elétricas também foram observadas em relação ao local de ocorrência. Ao todo, 32,85% dos óbitos por queimaduras ocorreram em municípios diferentes do local de residência do paciente, sendo 43,6% das mortes por queimaduras térmicas e 20,2% elétricas. Todavia, ao analisar o local de ocorrência do óbito quanto a UF, apenas 2,68% ocorreram fora da UF de residência, sendo 2,94% das queimaduras térmicas e 2,38% das elétricas (Dados não mostrados em tabelas). De todos os óbitos registrados, 67,0% (IC 95% 66,6%-67,3%) apresentavam falha de preenchimento no campo “Acidente de trabalho”, deixado em branco ou preenchido como ignorado pelo profissional responsável,
Cerca de 44,8% (IC 95% 44,4%-45,1%) dos óbitos por queimaduras ocorreram em ambiente hospitalar ou outro estabelecimento de saúde, com menos de 1% de declarações de óbito sem esse dado registrado. Dentre o total de mortes por queimadura térmica, 57,3% (IC 95% 56,8% a 57,8%) ocorreram em ambiente hospitalar ou outros estabelecimentos de saúde, enquanto apenas 29,9% (IC 95% 29,4% a 30,4%) dos óbitos por queimaduras elétricas ocorreram nas mesmas condições (Dados não mostrados em tabelas).
Devido às diferenças encontradas entre os padrões de queimaduras térmicas e elétricas, as análises regionais dos resultados foram apresentadas apenas de forma separada.
O risco diário de morte por queimaduras térmicas na região sudeste mostrou-se cerca de 3 vezes maior que o da região nordeste, que por sua vez foi pelo menos duas vezes maior que as outras regiões (Figura 3). Em relação às queimaduras elétricas, as regiões sudeste e nordeste apresentam padrões sazonais bastante semelhantes em relação à mortalidade, diferenciando-as das demais regiões (Figura 4).
Foi possível observar que a amplitude da curva sazonal, assim como o risco atribuível ao efeito sazonal por região foi consistentemente maior na mortalidade por causas elétricas que por causas térmicas, exceto na região Norte (Figuras 3-5).
Fig.3
Fig.4
Fig.5
DISCUSSÃO
O presente estudo avaliou o efeito da sazonalidade das mortalidades por queimadura no Brasil, usando como base dados populacionais de acesso público do SIM. Evidenciou-se aumento da mortalidade por queimaduras em períodos chuvosos27, com impacto maior nas regiões sudeste e nordeste. O número absoluto de mortes por queimaduras térmicas no período foi substancialmente maior na região sudeste do que nas demais, entretanto após a relativização com população padronizada, a região com maior risco de morte foi a região Sul. Na sazonalidade anual, há um pico de mortalidade nos meses de janeiro e fevereiro, com queda em junho. Observaram-se padrões de comportamentos mensais e semanais distintos entre as etiologias térmica e elétrica. A maior parte dos óbitos por queimaduras ocorre no município de residência do paciente, porém, cerca de um terço ocorre em municípios diferentes, entretanto, usualmente dentro da mesma Unidade da Federação.
O Brasil é um país de clima predominantemente tropical, com duas estações bem definidas: verão, quente e úmido, envolvendo os últimos dias de dezembro e os meses de janeiro, fevereiro e março; inverno, com temperaturas mais amenas e secas, durante os meses de junho, julho e agosto 28. Embora não existam limites precisos, dadas as dimensões continentais do país, este estudo demonstrou um pico de mortalidade por queimaduras próximo ao solstício de verão, identificável no gráfico a partir de dezembro.
Na literatura, alguns trabalhos não evidenciaram efeito de sazonalidade na incidência de queimaduras 10,17, enquanto outros demonstraram aumento de casos, com padrões distintos 18,19. Hultman e colaboradores evidenciaram aumento de casos durante a primavera 19. Já Obed et al avaliaram dados de pacientes queimados admitidos em Unidades de Terapia Intensiva com evidência de aumento de ocorrências no período do verão, principalmente em pacientes entre 25 e 64 anos. Porém, em idosos (>64 anos), houve maior número durante o inverno 18. Outros estudos também demonstram aumento da incidência de queimaduras nos idosos durante meses frios, provavelmente relacionados ao uso de aquecedores ou banhos quentes 10,29. Uma vez que no Brasil não há diversas localidades com temperaturas extremas e o país ainda passa pela transição demográfica 30, ou seja, a população está envelhecendo, mas ainda é predominantemente jovem, é possível que o efeito do aumento da incidência de queimaduras em idosos pelo uso de aquecedores e banhos quentes em meses frios seja reduzido. Em países subdesenvolvidos, durante o inverno, o uso de fogo intradomiciliar para aquecimento parece estar relacionado com aumento de queimaduras 29,31. Porém, os poucos estudos que avaliaram mortalidade não encontraram diferenças significativas 29 e esse hábito - aquecimento intradomiciliar com chama - no Brasil não é amplamente realizado, dadas as características climáticas.
Ao aprofundar a análise baseada na etiologia da queimadura, nota-se que o padrão de sazonalidade da mortalidade possui maior influência das queimaduras elétricas. Esse efeito, aparentemente deveu-se à maior amplitude da curva de mortes por queimaduras elétricas o que pode ser um efeito do menor tempo entre o evento de queimadura e a morte para essa etiologia, enquanto queimaduras térmicas frequentemente permitem atendimento médico e suporte de vida antes de um desfecho fatal o que faz com que haja grande sobreposição de óbitos na curva cujos eventos de queimadura ocorreram em momentos diferentes, de forma que os óbitos podem não se relacionar com o momento em que ocorre o acidente. Porém, ainda que esse comportamento reduza o efeito dos óbitos por queimaduras térmicas e note-se uma amplitude maior nas queimaduras elétricas, o que gera o efeito de sazonalidade nas análises são as mortes rápidas. No mais, mesmo que exista um anacronismo do evento inicial, o valor epidemiológico discutido no estudo é importante, pois identifica padrões de óbitos nas queimaduras no Brasil.
Çomçali e colaboradores demonstraram um aumento de queimaduras elétricas durante o verão e a primavera em uma Unidade de Tratamento de Queimados na Turquia, atribuindo tal evento possivelmente a acidentes relacionados ao trabalho 32. Nesse sentido, os trabalhos de Obed 18 e Ribeiro 10 encontraram associação entre queimaduras elétricas e a circunstância da lesão, sendo destacado o risco ocupacional. Tal fato pode também justificar a queda de óbitos no meio do ano, período de férias (embora em dezembro e janeiro não tenha sido observado o mesmo efeito), bem como a predominância de queimaduras elétricas em dias úteis. Acreditamos que esse comportamento dual ocorra pela influência de outros fatores além do período do ano, como efeitos climáticos e da ocorrência de chuvas. Uma análise regional, acerca de acidentes elétricos, demonstrou esse comportamento semanal 33. Contudo, os dados levantados demonstram que há subnotificação dos óbitos por queimaduras relacionados à atividade laboral no Brasil, com 67,0% (IC 95% 66,6% - 67,3%) dos registros analisados sem o devido preenchimento dessa informação, dificultando maiores análises.
Outro fator que pode impactar na ocorrência de queimaduras elétricas é a fragilidade da segurança das redes de energia observada em diversos pontos do Brasil 34,35. Dados da Associação Brasileira de Conscientização para os Perigos da Eletricidade (ABRACOPEL) demonstraram que grande parte das residências não apresentam projeto elétrico, componentes de proteção nas instalações previstos em normas, condutor de proteção, além de baixos além de baixos índices de manutenção34. Os meses do começo do ano, notadamente mais chuvosos, podem levar a um maior risco de lesões, mediados pelos efeitos das chuvas sobre os sistemas urbanos de distribuição de energia. Isso se destaca no caso de mortes por choque elétrico, no qual outros autores também identificaram o comportamento sazonal 21.
Em relação ao padrão semanal encontrado, é possível que o pico de óbitos por lesões térmicas observado no domingo esteja relacionado a atividades de lazer 32 frequentemente associadas ao consumo de álcool. Seja no preparo de alimentos em churrasqueiras ou pela ocorrência de acidentes em dias de maior quantidade de pessoas em casa, como demonstrado em trabalhos que avaliaram a incidência de queimaduras em feriados ou finais de semana 36.
Os dados demonstram ainda uma participação importante da etiologia elétrica em óbitos por queimaduras, superando outros países, com grande parte das ocorrências fora de instituições de saúde. Dada sua relação com o trabalho 10,18 e usual maior gravidade e demanda por atendimento especializado 37, é razoável supor que a ocorrência extra-hospitalar reduza a oportunidade de tratamento do indivíduo pela reduzida janela de ação. Especificamente para acidentes de baixa voltagem, essa hipótese foi proposta na revisão de Shih et al 38. Neste estudo, a grande falha de preenchimento do campo “Acidente de trabalho” na declaração de óbito dificulta essa análise. A menor ocorrência de óbitos por queimadura elétrica em municípios diferentes do local de residência pode estar relacionada com essa menor oportunidade de cuidado. Apesar de inicialmente explorado para queimaduras térmicas no Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde 39, outros trabalhos são necessários para entender as diferenças entre a relação residência e ocorrência do óbito no paciente queimado.
Outro fator que pode contribuir para os acidentes elétricos é a predominância de redes de distribuição aéreas, que tornam o sistema mais vulnerável a acidentes meteorológicos, enquanto redes subterrâneas trazem maior proteção e melhor estética urbanística 28. Disso, infere-se que fomentar a discussão sobre as redes de distribuição é uma boa agenda para aumentar a segurança de moradias, transeuntes em vias públicas e trabalhadores da construção civil.
A região Sudeste destaca-se no país tanto em mortes por queimaduras térmicas quanto nas elétricas. Esse efeito pode ser devido à elevada densidade demográfica e urbanização com fácil acesso a elementos laborais e domiciliares que podem aumentar o risco de incidentes, como sistemas de gás encanado, indústria, ligações elétricas clandestinas, entre outros 40. Isso pode também estar relacionado com a insegurança domiciliar da população marginal de periferias carentes de segurança residencial e ainda com pouco alcance de políticas públicas resolutivas que garantam bem-estar, perpetuando más condições de moradia, falta de acesso a água limpa e saneamento básico, que contribuem para um maior risco de doenças transmissíveis e não transmissíveis. No caso do Nordeste recai grande parte dos estados com baixos indicadores demográficos como o IDH e a Renda per capita 24, apesar de ser uma região com alguns dos estados de maior densidade demográfica. Na região sul, por outro lado, estão os indicadores IDH e Renda per capita mais elevados, com uma baixa taxa de mortalidade por queimaduras. Desa forma, percebe-se que diversos efeitos contextuais se combinam para explicar a mortalidade, não sendo possível estabelecer relações diretas apenas com indicadores de renda ou populacionais.
É muito importante ressaltar que o risco atribuível à sazonalidade no período permite estimar uma oportunidade de redução dessas mortes que poderia chegar em números absolutos até a 4.824 óbitos por queimaduras térmicas e 12.028 por elétricas no período avaliado (Figura 5). Para isso é necessário compreender melhor a relação entre a sazonalidade e mortes por queimaduras através de novos estudos e planejar a estrutura de cuidados adequados de maneira condizente com a movimentação sazonal.
Este estudo apresenta algumas limitações importantes. Por tratar-se de um trabalho com uso de dados secundários, é preciso considerar a possibilidade de erros de preenchimento ou imprecisão de informações. Todavia, o SIM possui um protocolo de qualificação dos dados com uma série de etapas até a consolidação e disponibilização da informação para minimizar esse efeito, sendo notável a melhora da qualidade dos dados nos últimos anos 7,41–43. Uma outra limitação importante é o efeito temporal de um período tão longo como o utilizado, para compreender a influência temporal na análise, os dados foram estudados em uma série histórica única, com taxas padronizadas por idade, considerando as variações na estrutura etária brasileira ao longo do período e a possibilidade de padrões de mortalidade distintos entre as faixas etárias.
Deve-se observar ainda que todas as análises foram realizadas com dados de mortalidade. Apesar dessa informação ser importante para a elaboração de políticas públicas, os resultados desse estudo não devem ser extrapolados para a sazonalidade na incidência de queimaduras, e para isso fazem-se necessários estudos específicos para esse efeito. No Brasil, hoje, esse dado restringe-se a informações locais de Hospitais que atendem vítimas de queimadura ou Unidades de Tratamento de Queimaduras, dificultando a análise nacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível observar que a epidemiologia por queimaduras pode ser considerada um tema complexo, que não pode ser estudado sem a devida separação de seus componentes etiológicos. A mortalidade por queimaduras parece possuir um componente de sazonalidade importante no Brasil, sobretudo por causas elétricas e o estudo destas condições tem o potencial de proporcionar grandes oportunidades de prevenção, caso novos estudos possam apontar para associações com variáveis como a infraestrutura urbana e medidas de proteção social associadas às variações sazonais do clima e tempo, que tendem a ser mais severas com as novas mudanças globais de temperatura.
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