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0069/2025 - Ensino remoto em cursos de pós-graduação em saúde na Fiocruz: subsídios para tomada de decisão na gestão do ensino
Ensino remoto em cursos de pós-graduação em saúde na Fiocruz: subsídios para tomada de decisão na gestão do ensino

Autor:

• Joviana Quintes Avanci - Avanci, J.Q - <jovi.avanci@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7779-3991

Coautor(es):

• Isabella Delgado - Delgado,I. - <delgadoisabellaf@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0610-5324

• Enirtes Caetano - Caetano, E. - <enirtes.prates@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4240-8365

• Gideon Borges - Borges, G. - <gidborgess@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1179-9404

• Rondineli Mendes da Silva - Silva, R.M. - <rondineli.mendes@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6243-5179

• Vera Lucia Luiza - Lucia-Luiza, V. - <negritudesenior@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6245-7522

• Luciane Stochero - Stochero, L. - <luciane.stochero@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0432-2739

• Susi Pinheiro - Pinheiro, S. - <susi.pinheiro@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0009-0002-3774-5471

• Reinaldo Souza-Santos - Souza-Santos, R. - <rssantos@ensp.fiocruz.br; santo_rei@outlook.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2387-6999



Resumo:

O ensino remoto emergencial (ERE) trouxe reflexões sobre as práticas pedagógicas, que passaram a ser mediadas por tecnologias digitais. Busca-se analisar fatores associados ao ERE no processo de aprendizagem, a partir da ótica de pós-graduandos em saúde da Fiocruz. Foi utilizada base secundária de dados de cursos Lato (LS) e Stricto Sensu (SS). Participaram 736 discentes (302 LS e 434 SS) com matrícula ativa entre 2020-2022. Foi aplicado questionário digital anônimo sobre perfil discente, organização/experiência com ERE, relação institucional e o impacto do ERE no processo de aprendizagem. Utilizou-se modelo de regressão logística bruta e ajustado bivariada. Os resultados mostram que o prejuízo de atividades acadêmicas teóricas (RC 0,15 LS e RC 0,05 SS) e teórico-práticas (RC 0,18 LS e RC 0,28 SS) tiveram menos chance de impacto positivo na aprendizagem, assim como estabelecer interação regular (RC 0,32 LS e RC 0,15 SS) e ruim (RC 0,09 LS) com os docentes. Assistir a maior parte das aulas remotas em casa/outros espaços teve 3,44 vezes mais chance de impacto positivo nos alunos LS, assim como receber algum apoio da instituição (RC 2,58); já no SS, o resultado foi inverso. Os achados revelam elementos chave do ensino mediado por tecnologias educacionais na pós-graduação.

Palavras-chave:

Ensino, Avaliação da educação, Educação de Pós-Graduação.

Abstract:

Emergency remote teaching (ERT) brought reflections on pedagogical practices, which is mediated by digital technologies. The aim is to analyze associated factors with ERT in the learning process,the perspective of postgraduate health students at the Fiocruz. A secondary database was used in the context of the Lato (LS) and Stricto Sensu (SS). 736 students participated (302LS and 434SS) with active registration between 2020-2022. An anonymous digital questionnaire was applied about student profile, organization/experience with remote teaching, institutional relationship and impact of ERT on the learning process. A crude and bivariate adjusted logistic regression model was used. The results show that the loss of theoretical (RC 0.15 LS and RC 0.05 SS) and theoretical-practical (RC 0.18 LS and RC 0.28 SS) had less chance of having a positive impact on learning, thus as regular (RC 0.32 LS and RC 0.15 SS) and poor (RC 0.09 LS) interaction with teachers. Attending most remote classes at home/other spaces was 3.44 more likely to have a positive impact on LS students, as was receiving supportthe Institution (OR 2.58); in the SS, the result was the opposite. The results reveal fundamental elements of teaching mediated by educational technologies in postgraduate studies.

Keywords:

Teaching, Education Assessment, Postgraduate Education

Conteúdo:

INTRODUÇÃO

A pandemia de Covid-19 exigiu a substituição das aulas presenciais pelo ensino remoto emergencial (ERE), uma forma de ensino autorizado pelo Ministério da Educação (MEC), em caráter de excepcionalidade durante a pandemia1, que trouxe mudanças e reflexões substanciais sobre o ensinar e o aprender. As aulas passaram a ser profusamente mediadas pelas tecnologias digitais da informação e comunicação, exigindo novas estratégias, capacitação docente, adaptação de alunos e garantia de acesso para todos.
Contudo, a grande desigualdade social do país para o acompanhamento de aulas remotas, as mudanças no processo de trabalho docente, as incertezas quanto à qualidade do ensino oferecido e de como se dá o aprendizado mediado integralmente por ambientes virtuais foram e ainda são objetos de preocupações da oferta do ensino remoto, que se mantém como caráter complementar aos processos educacionais2-4. Diferentes plataformas de interação virtual (Zoom, Google Meet, Teams etc.) e de ensino-aprendizagem (Moddle, Google Classroom etc.) passaram a ser utilizadas em distintos níveis de ensino, necessariamente mediadas por computadores ou dispositivos móveis5,6.
Desde então, o ensino remoto deixou de ter caráter temporário e passou a ser incorporado de forma mais robusta como estratégia pedagógica, mesmo na modalidade denominada inteiramente presencial. Assim, alguns estudos vêm se debruçando a refletir sobre o impacto e as particularidades do ensino remoto, especialmente na graduação7,8, com incipiência de trabalhos desenvolvidos no contexto da pós-graduação.
Os níveis de ensino da pós-graduação têm características que os particularizam. A pós-graduação Lato Sensu (LS) é mais voltada para o aperfeiçoamento e especialização da formação profissional, enquanto a pós-graduação Stricto Sensu (SS) tem a formação de pesquisadores como principal objetivo7, assim como a produção de conhecimento científico, de modo a dar respostas às demandas da sociedade e um importante meio de transformação social. Também exigem intensas demandas aos alunos no desenvolvimento do trabalho de conclusão de curso, na participação em eventos nacionais e internacionais, e na publicação de artigos em periódicos qualificados. Ademais, requerem maior proximidade dos alunos com seu mentor/orientador e muitos discentes, caso frequente na área saúde, desenvolvem concomitantemente o trabalho e o estudo, inclusive, muitos foram mais expostos ao vírus da COVID-19 em virtude de sua inserção profissional no período da pandemia4.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição pública federal vinculada ao Ministério da Saúde, é a principal instituição não universitária de formação de recursos humanos na área de saúde no país. Exerce o papel de formar quadros especializados para o sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação e de contribuir para o atendimento às necessidades do Sistema Único de Saúde nas áreas de atenção, gestão e vigilância em saúde. Suas unidades técnico-científicas são responsáveis pelo ensino de pós-graduação LS, incluindo as residências em saúde, e SS, englobando mais de 200 cursos, com caráter nacional e em quase todas as unidades da federação10.
O ERE foi implementado na Fiocruz no início de 2020 e muitos dos desafios impostos pela pandemia passaram a fazer parte do cotidiano das discussões nos fóruns de educação da instituição, com estratégias de adaptação tecnológica das ofertas educacionais, capacitação docente e a distribuição de dispositivos móveis para os alunos, com o intuito de favorecer a equidade. A avaliação no âmbito da educação na Fiocruz, por sua vez, se materializa como uma cultura institucional, partindo da pactuação de indicadores para o alcance da excelência e da efetividade social do ensino ministrado11.
Diante desse cenário, este trabalho tem como objetivo analisar fatores associados ao impacto do ERE no processo de aprendizagem a partir da ótica de discentes de cursos de pós-graduação em saúde da Fiocruz.

MÉTODO
Trata-se de um estudo analítico que tem como contexto os cursos LS e SS da Fiocruz. A pesquisa foi uma iniciativa colaborativa entre a Coordenação-Geral de Educação da Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunicação (CGE/VPEIC/Fiocruz) e a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). O estudo foi concebido como um levantamento em um nível de gestão e os dados utilizados, anonimizados, fazem parte de um banco de dados público (https://doi.org/10.35078/WQHPAF), dispensando a submissão a Comitê de Ética em Pesquisa. Os resultados apresentados fazem parte das metas institucionais do Plano de Desenvolvimento Institucional da Educação da Fiocruz 2021-202510 visando aprimorar o conhecimento educacional e no nível da gestão de programas de pós-graduação da instituição, o qual é uma das metas institucionais de avaliação de cursos. Todos os cuidados éticos previstos sobre confidencialidade e autonomia de participação foram garantidos, conforme as resoluções vigentes do Conselho Nacional de Saúde.

População
O estudo parte do universo de 79 cursos de especialização e 46 programas acadêmicos e profissionais de mestrado e doutorado da Fiocruz, distribuídos em 15 e 19 unidades, respectivamente, localizados em todas as regiões brasileiras. No período de dezembro de 2022 a março de 2023, 1.341 estudantes com matrícula ativa no período da pandemia (2020/2022) em cursos de LS e 1.360 no SS foram convidados a responderem a avaliação do ERE, totalizando população de 2.701 discentes. As listas dos estudantes de cada curso foram obtidas por meio de Sistemas de Gestão Acadêmica de cada unidade. Participaram deste estudo 736 discentes, sendo 302 (41,0% do total de convidados) de LS localizados em 15 unidades e 434 (59,0% do total) discentes de programas SS distribuídos em 19 unidades da Fiocruz.

Medidas utilizadas
Os participantes foram convidados por e-mail a responderem um questionário digital disponível no Sistema de Avaliação Online da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. Trata-se de um sistema de código fechado, utilizado para avaliação de ofertas educacionais por questionários online.
Cada participante recebeu um link de acesso que o permitia responder o instrumento por meio de uma chave de acesso individual, que exigia login e senha. Foi feita uma ampla divulgação da pesquisa em sítios eletrônicos das Unidades da Fiocruz, nas redes sociais e em listas de WhatsApp. Regularmente, novos e-mails de convite eram disparados para aqueles que ainda não haviam respondido o questionário. O monitoramento do percentual de respondentes de cada unidade permitiu uma mobilização e o contato pessoal de coordenadores e orientadores para o maior alcance dos elegíveis para o estudo.
O questionário anônimo foi elaborado a partir de discussões com coordenadores de cursos Lato e Stricto Sensu da instituição. A versão preliminar foi submetida a um estudo piloto, que contou com a participação de uma amostra de conveniência do público-alvo da pesquisa, chegando à versão final do instrumento. Nesta ocasião, pequenos ajustes foram feitos e verificou-se boa compreensão e satisfatório tempo de preenchimento (entre 15-20 minutos).
O questionário estruturado foi composto por 31 questões fechadas, organizadas em três blocos de perguntas: (1) perfil discente, que contemplou dados pessoais, de saúde e trabalho, condições de estudo e relação do discente com a Fiocruz; (2) organização e experiência com o ensino remoto, com questões sobre perfil das disciplinas, das práticas pedagógicas e de interação com docentes; e (3) relação institucional, com temas sobre o apoio recebido pela instituição, socialização com colegas e pertencimento institucional. O questionário foi publicizado e disponibilizado para acesso livre pelo repositório institucional da Fiocruz - ARCA (https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/63934).
Neste estudo, as seguintes variáveis são analisadas: perfil discente (faixa etária, sexo, raça/cor da pele, ser pessoa com deficiência, ter bolsa de estudo, ter ingressado por ação afirmativa, região que reside, ano de ingresso e tipo de curso) e experiência do ERE (ter sido cuidador principal de alguém que teve covid-19 durante o curso, tipo de ambiente que assistiu as aulas remotas, principais dificuldades desse ambiente, tipo de atividade acadêmica mais prejudicada, interação com os docentes durante o ERE e se recebeu apoio da Fiocruz para o estudo). Vale destacar que os alunos expostos às experiências do ERE na instituição tinham cerca de 3 horas por turno (manhã e tarde) às estratégias pedagógicas adotadas, com muita variação entre os alunos quanto ao número de dias por semana e ao tamanho das turmas, podendo variar de um pequeno até um extenso grupo. As atividades pedagógicas incluíram preponderantemente aulas expositivas síncronas e assíncronas, mas também trabalhos individuais e em grupos, e atividades com uso de software. Toda a interação pedagógica professor-aluno ocorreu por meio de plataformas como Zoom e Teams, muitas vezes, como o apoio de salas virtuais construídas no Moddle e no Google Classroom. As câmeras nem sempre estavam abertas pelos alunos. O conteúdo abordado previamente em aulas presenciais praticamente não foi modificado, mas a forma como passou a ser acessado no ERE.
Como medida de desfecho, foi utilizada a variável “o impacto do ensino remoto no processo de aprendizagem” com opções de respostas que variavam do impacto muito positivo, pouco positivo e indiferente até o impacto pouco negativo e muito negativo. Respostas abertas foram analisadas nesta questão de modo a classificar os respondentes que escolherem a opção indiferente para o impacto do ensino remoto. Quarenta e três participantes do Stricto Sensu e 27 do Lato Sensu foram excluídos por não se posicionarem positiva ou negativamente a essa questão.

Análise dos dados
Foi realizada análise descritiva por frequência absoluta e relativa das variáveis de perfil discente, das experiências com o ERE e da questão sobre o “impacto do ensino remoto na aprendizagem”. Em seguida, foi utilizado modelo de regressão logística bruta bivariada para avaliar a relação entre as variáveis de perfil e da experiência com o ERE segundo o desfecho impacto do ensino remoto na aprendizagem (positivo ou negativo). Inicialmente, foram inseridas no modelo de regressão logística todas as variáveis com p-valor inferior a 0,20. No modelo final foram mantidas apenas as variáveis com p-valor inferior a 0,05. As proporções foram comparadas por meio do teste qui-quadrado de Pearson, ao nível de significância de 5% e seus respectivos intervalos de confiança de 95%. Os resultados estão apresentados como razão de chances (RC). As variáveis raça/cor da pele e sexo foram mantidas no modelo ajustado, independentemente do nível de significância, considerando a relevância das questões para o estudo do tema.
A análise dos fatores associados ao impacto do ERE foi efetuada separadamente para o nível lato e Stricto Sensu. Toda análise foi feita no Programa R versão 4.3.2.

RESULTADOS

Encontrou-se perfil etário e de sexo semelhante entre os discentes LS e SS participantes da pesquisa, com maiores percentuais na faixa de 30 a 39 anos de idade (37,1% e 44,9%, respectivamente) e do sexo feminino (75,8% no LS e 69,8% no SS). Cinquenta e três por cento se autodenominam com raça/cor de pele preta/parda no LS e 56,0% de pele branca no SS. Em relação a possuir deficiência, apesar dos baixos percentuais, nota-se maior número no LS (4,0%) em relação ao SS (1,2%). Quase 55% dos participantes são bolsistas no SS e 8,6% no LS. Do total de respondentes, 14,9% do LS informam ter ingressado por meio de ações afirmativas, enquanto apenas 5,1% no SS. Participaram discentes de todas as regiões do Brasil, com maiores percentuais dos residentes no Sudeste nos dois níveis de ensino, local de maior número de cursos da instituição. Em relação ao ano de ingresso no curso, houve padrões distintos entre LS e SS, com aumento gradativo de discentes do LS entre 2019 (0,07%) e 2022 (41,4%), enquanto no SS houve crescimento entre 2019 (24,2%) e 2020 (34,6%) com uma posterior redução até 2022 (11,8%). No SS, o maior percentual de respondentes era do doutorado acadêmico (80,5%), enquanto no LS todos cursavam especialização. Quanto à variável desfecho do estudo, os discentes responderam majoritariamente que o ensino remoto emergencial impactou positivamente na aprendizagem tanto no LS (69,2%) quanto no SS (56,9%) (Tabela 1).

Tabela 1

O resultado da análise da regressão logística ajustada para identificar os fatores associados ao impacto positivo do ERE na aprendizagem em cursos LS mostra que: o prejuízo de atividades acadêmicas teóricas (RC 0,15) e de teórico-práticas (RC 0,18) tiveram menos chance de impacto na aprendizagem, assim como estabelecer interação regular (RC 0,32) e ruim (RC 0,09) com os docentes. Por outro lado, assistir a maior parte das aulas remotas no ambiente de casa e em outros espaços teve 3,44 vezes mais chance de impactar positivamente a aprendizagem em comparação àqueles que assistiam às aulas exclusivamente em casa ou no trabalho. Receber algum apoio da Fiocruz para o estudo teve 2,58% mais chances do impacto positivo do ensino remoto emergencial na aprendizagem em comparação àqueles que não tiveram nenhum apoio (Tabela 2).

Tabela 2

No que se refere aos resultados da análise da regressão logística ajustada com os discentes do SS, os fatores associados ao impacto do ERE mostram um cenário muito similar: as atividades teóricas (RC 0,05) e teórico-práticas (RC 0,28), e a interação regular com os docentes (RC 0,15) também tiveram menos chance do impacto positivo do ERE na aprendizagem dos discentes. Ter recebido algum apoio da Fiocruz se mostrou com menos chances de impacto desta prática pedagógica na aprendizagem, em comparação aqueles que não tiveram nenhum apoio (Tabela 3). Vale ressaltar que 80 discentes participantes inseridos em cursos SS receberam algum de apoio. As demais variáveis não foram significativas no modelo ajustado.
Tabela 3

DISCUSSÃO
Os achados deste estudo trazem importantes reflexões sobre o impacto do ERE na aprendizagem de discentes, que podem orientar a tomada de decisão na gestão do ensino no âmbito da pós-graduação brasileira. Primeiro, apesar de particularidades, constata-se um perfil semelhante na percepção de impacto positivo do ERE na aprendizagem entre alunos inseridos em cursos LS e SS, ligeiramente mais enunciado entre os primeiros em comparação aos inseridos em cursos de mestrado e doutorado.
Um ponto a ser destacado é que os resultados precisam ser discutidos a partir da falsa dicotomia entre educação presencial e EaD como horizonte para a garantia da qualidade do ensino. Portanto, entre as diferenças entre ambas estão o deslocamento geográfico, o tipo de contato e interação proporcionados, e o tempo pedagógico suportável (mais curto no ensino remoto). O ensino remoto, portanto, não é uma modalidade educativa, mas uma estratégia pedagógica, majoritariamente mediada por ferramentas digitais, imposta pelas circunstâncias da pandemia, que se presta como estratégia de ensino aprendizagem tanto para educação presencial quanto à distância.
De fato, não existe modelos teórico-conceituais específicos e prévios para a prática do ensino remoto, que guarda a marca dos modelos que sustentam o fazer do professor no presencial, com a interatividade entre professores e alunos em tempo real como se estivesse numa sala de aula presencial12. Em contraposição, a modalidade de EaD se dá a partir do uso de tecnologias com mediação didático-pedagógica baseada por meios e tecnologias de informação e comunicação, orientadores da proposição de atividades e sua avaliação subsequente13,14. Nesta modalidade, as atividades acadêmicas não precisam necessariamente ser disponibilizadas apenas em tempo real (síncrona), mas podem também ser realizadas assincronamente, ou seja, em tempos e espaços diferentes15. Assim, o ensino remoto não compete, nem substitui a EaD, pois não são processos equivalentes, embora, em alguma medida, um pode servir de recurso para o outro. Sob outra perspectiva, as críticas são semelhantes, que decorrem da precarização do uso de ferramentas digitais como mediadoras no processo ensino aprendizagem, considerado de má qualidade pelo senso comum, pois não pressupõe a proximidade física, além de o repasse de informações estar centralizado no professor2.
Todavia, essa linha de discussão pode ser insuficiente e empobrece a complexidade do debate. Há que problematizar que a educação presencial não é necessariamente garantia de excelência no ensinar e aprender. A qualidade do ensino oferecido e seu impacto positivo é menos o contexto em que se dá a educação presencial ou à distância, que garanta o efeito de troca, de relação e de construção de aprendizagens e mais os modelos teóricos conceituais que sustentam a proposta didático-pedagógica2. O que se deve considerar são as possibilidades de formação que uma e outra modalidade podem oferecer. Preti16 explica que, independentemente das modalidades educacionais, todos estão sujeitos a práticas transmissivas, autodidatas e individualistas, ou que privilegiam a relação entre professor, aluno e conhecimento, baseadas em pressupostos socioconstrutivistas. Nesse sentido, a oposição entre educação presencial e EaD se mostra superficial e insuficiente, pois quaisquer das formas podem assumir uma abordagem diretiva, não diretiva ou relacional. Essa discussão dialoga com a constatação de que o modelo de disciplina teórica ou prática parece não impactar a aprendizagem no ensino remoto, independentemente do nível de ensino de pós-graduação. Todavia, o conteúdo prático de uma disciplina em sala virtual exige domínio tecnológico pelo professor e pelo aluno, além de dependência de infraestrutura, menor possibilidade de simulações realistas e desafios na avaliação prática, o que gera importantes limitações.
Um elemento muito debatido é quanto a interação que as distintas práticas pedagógicas possibilitam. Os resultados mostram que um relacionamento regular ou ruim com os docentes diminuiu o impacto positivo na aprendizagem durante ERE. Desta forma, a troca e a escuta do aluno pelo professor parecem ser facilitadas no espaço presencial de encontro em sala de aula, o que pode interferir no aprendizado. Não resta dúvida que é preciso apoiar uma prática docente que reafirma o laço afetivo e relacional em conformação ao desenvolvimento de competências a serem desenvolvidas em aulas práticas ou teóricas. Cabe à educação convocar a formação humana a presença da autoreflexão, da imaginação e da sensibilidade, que funcionam como apoios para a criação de sujeitos autônomos, meio e fim da toda atividade educativa seja presencial ou a distância. É neste sentido que se reitera a concepção de que a educação mediada pelo apoio, diálogo e trocas são determinantes para o desenvolvimento social e a garantia de importantes aprendizados pedagógicos dos alunos (muitos trabalhadores da saúde) e docentes17,18. Esse ponto é ainda mais relevante quando se pensa a educação em saúde a partir da promoção de uma formação generalista, humanista, crítica e reflexiva.
Outro elemento que aparece entre os resultados enunciados pelos alunos do LS é o acesso à aula a partir de diferentes ambientes, seja em casa, no trabalho ou qualquer outro espaço, para o impacto positivo da aprendizagem no ERE. Di Marco et al.19 confirmaram que a conveniência de locomoção, a opção de estudar em tempo e lugar próprios são vistos muito positivamente pelos alunos. Todavia, há que indagar se esta percepção do aluno realmente condiz para a qualidade do aprendizado, que possibilita que discentes façam atividades de ensino, trabalho ou qualquer outra de forma concomitante e conflitante.
A constatação do apoio de equipamentos e de suporte emocional (por meio de grupos de WhatsApp e de ações de diálogo e acolhimento) oferecidos pela Fiocruz se mostrou como impacto positivo para o aprendizado no ERE entre alunos de cursos LS, o que reforça a necessidade de fortalecimento de ações de inclusão social. Os resultados dos discentes do SS precisam ser vistos com cautela, uma vez que o número reduzido de alunos deste nível de ensino beneficiados pode ter introduzido inversões. Também se supõe que as questões de saúde mental podem atuar como mediadoras da relação do ERE e o impacto da aprendizagem. Um outro aspecto que pode apoiar esta reflexão é que qualquer iniciativa oferecida a discentes do LS é muito valorizada, uma vez que é um grupo que comumente não recebe bolsa nos cursos de especialização, e nem costuma receber outro tipo de apoio, diferentemente dos cursos SS. Logo, qualquer iniciativa de apoio material para os discentes de LS pode ter maior impacto que no SS.
Face a todo contexto pandêmico, o ERE pode ter atuado muito como meio de acesso, reposição e divulgação de materiais didático-pedagógicos. As dificuldades de uso de plataformas digitais, aplicativos e dispositivos tecnológicos foram importantes barreiras para o ERE em plena pandemia, apesar de várias ofertas de formação. A comunidade acadêmica teve que criar as condições estruturais e pedagógicas adequadas, os docentes precisaram reinventar suas práticas e adaptar o currículo e as relações sociais e afetivas com os alunos20. Ademais, a inclusão digital dos alunos precisou ser incrementada face à necessidade de democratização da educação e das tecnologias da informação e da comunicação.
É fundamental destacar que as reflexões apresentadas não se aplicam automaticamente a todos os processos formativos, como no caso da graduação ou no desenvolvimento de diferentes competências. Isso é especialmente relevante para competências que vão além do aspecto cognitivo-conteudista e que exigem interação entre profissionais e usuários, entre equipes interdisciplinares ou mesmo entre profissionais e gestores. Nessas situações, o uso de apoios contextualizados, aliados à criação de espaços para expressão e reflexão sobre as especificidades locais e as relações de poder, pode agregar potência às formações que combinem EAD com outras estratégias pedagógicas. Por outro lado, na pós-graduação Stricto Sensu, caracterizada por grupos menores e metodologias que privilegiam o debate e o aprofundamento de questões específicas, há maior viabilidade para atingir objetivos complexos e estruturantes.
Dentre as limitações do estudo está a não garantia de generalização dos resultados, apesar do alcance de uma boa taxa de resposta (por volta de 50%) especialmente no que se refere a questionários online. Em que pese uma taxa de resposta aceitável, não foi suficiente para desagregar a análise por curso ou Programa de Pós-graduação. Além do mais, o estudo pode ter introduzido viés na medida em que um perfil de alunos mais satisfatório (ou não) ao ERE pode ter aderido mais à pesquisa. Em contraposição, os achados trazem reflexões inéditas sobre o tema no ensino em pós-graduação (LS e SS), revelando elementos chave do ensino mediado por tecnologias educacionais e deixando de lado interesses privatistas que transformam a educação em mercadoria e não levam em consideração a exclusão tecnológica, a ausência de democracia nos processos decisórios para adoção de modelos de ensino, a precarização e intensificação do trabalho docente21. Finalmente, cabe lembrar que a variável desfecho diz respeito à percepção dos discentes quanto ao impacto do ensino remoto na qualidade do ensino, não tendo sido feita avaliação objetiva do desenvolvimento de competências. Seria muito agregador, abordar o tema a partir do ponto de vista dos professores.
Como recomendação, há urgência de uma orientação clara a ser seguida no país quanto à utilização de tecnologias digitais da informação e comunicação em programas de pós-graduação, que tem acontecido de forma heterogênea e um tanto controversa. É preciso refletir sobre uma educação presencial ou online em prol de uma formação transformadora, emancipatória, inclusiva e de qualidade, mas também levando em conta suas limitações.





REFERÊNCIAS

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Avanci, J.Q, Delgado,I., Caetano, E., Borges, G., Silva, R.M., Lucia-Luiza, V., Stochero, L., Pinheiro, S., Souza-Santos, R.. Ensino remoto em cursos de pós-graduação em saúde na Fiocruz: subsídios para tomada de decisão na gestão do ensino. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/mar). [Citado em 12/03/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/ensino-remoto-em-cursos-de-posgraduacao-em-saude-na-fiocruz-subsidios-para-tomada-de-decisao-na-gestao-do-ensino/19545?id=19545

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