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0349/2024 - Esposas do Cárcere: manifestações de violências em um presídio na região sul do Brasil
Inmate Wives: expressions of violence inside a prison in the southern region of Brazil

Autor:

• Virgínia de Menezes Portes - Portes, V. de M. - <virginiaportes@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6604-1962

Coautor(es):

• Sheila Rubia Lindner - Lindner, S.R - <sheila.lindner@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9724-1561

• Rodrigo Moretti-Pires - Moretti-Pires, R. - <rodrigo.moretti@ufsc.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6372-0000



Resumo:

Este estudo tem como objetivo analisar como a violência estrutural e institucional se manifestou na vida de mulheres companheiras de homens privados de liberdade uma prisão na região sul do Brasil. Trata-se de um estudo etnográfico desenvolvido ao longo de cinco meses do ano de 2022 com seis mulheres que visitavam seus companheiros no presídio. Gênero e classe social, caracterizados pela violência estrutural, apresentaram-se como marcadores sociais responsáveis por limitar suas escolhas e as vulnerabilizar. A violência institucional evidenciou-se nas experiências dessas mulheres por meio da institucionalização secundária, revelando episódios de violência moral e psicológica. Conclui-se que o cárcere representa um depósito da exclusão social, marcado pelas violências estruturais e responsável por perpetuar as estruturas institucionais injustas capazes de condicionar as mulheres às experiências sociais marcadas por precarização, privações de oportunidades e proteção das leis.

Palavras-chave:

Violência; Prisões; Estudos de Gênero; Violência de Gênero.

Abstract:

This study aims to analyze how structural and institutional violence manifested in the lives of women who are partners of incarcerated men in a prison in the southern region of Brazil. It is an ethnographic study conducted over five months in 2022 with six women who visited their partners in prison. Gender and social class, characterized by structural violence, emerged as social markers responsible for limiting their choices and making them vulnerable. Institutional violence was evident in these women\'s experiences through secondary institutionalization, revealing episodes of moral and psychological violence. It is concluded that incarceration represents a repository of social exclusion, marked by structural violence and responsible for perpetuating unjust institutional structures that condition women to social experiences marked by precarity, deprivation of opportunities, and lack of legal protection.

Keywords:

Violence; Prisons; Gender Studies; Gender-Based Violence.

Conteúdo:

Introdução
Entre 2000 e 2019, a ocupação do sistema prisional aumentou 25% no mundo e, em 2019, eram 11,7 milhões de pessoas, o que representa o tamanho populacional comparável a países como Bolívia e Bélgica1. O Brasil possui a terceira maior população encarcerada do mundo, atrás dos Estados Unidos e da China2. Em 2022, o país apresentou aumento de 257%, com 832.295 pessoas presas, cuja maioria é formada por pessoas pobres, negras (68%) e jovens com idade entre 18 e 29 anos3.
Os homens representam 96% da população encarcerada no país4, e as mulheres são as que mais frequentam os presídios na condição de visitantes, principalmente mães, irmãs, filhas e companheiras5,6. As visitas nos presídios masculinos são cinco vezes maiores que nos femininos em alguns estados brasileiros7.
As prisões no Brasil têm más condições e os impactos sociais do encarceramento são pouco debatidos, principalmente quanto às famílias dos presos. Trata-se de um problema relevante, pois cada pessoa na prisão afeta cinco outras que sofrem dificuldades sociais, financeiras e psicológicas8.
A violência estrutural caracteriza-se por circunstâncias capazes de vulnerabilizar indivíduos, como iniquidades de gênero, raça, etnia, más condições econômicas e políticas, as quais podem produzir sofrimentos, doenças e agravos. Ou seja, toda injustiça social corresponde à violência estrutural. Desta forma, a partir de relações de poder desiguais são estabelecidos modos de vida, comportamentos e políticas institucionais e governamentais9,10. Devido ao fato de a violência estrutural materializar-se por meio de atitudes políticas e econômicas que beneficiam alguns grupos em detrimento de outros, estruturando e legitimando as desigualdades sociais, no contexto prisional torna-se crucial compreendê-la como responsável por expor grupos vulneráveis à criminalidade. A violência estrutural tem como expressão a violência institucional e, também frequente no contexto do cárcere, uma vez que própria privação se caracteriza como vulnerabilidade, devido ao fato de a pessoa privada de liberdade ocupar a posição cuja vida é negligenciável9.
A violência institucional cometida no cárcere é perpetrada por meio de normas, regras e procedimentos punitivos capazes de controlar ações e manter uma determinada ordem. Está inserida e legitimada no contexto da violência estrutural, caracterizando-se pela institucionalidade da violência11, momento em que os comportamentos institucionais negligenciam as necessidades dos indivíduos12.
As violências estruturais e institucionais inerentes à situação do cárcere experienciadas por mulheres visitantes, analisadas simultaneamente nesta pesquisa apresentam caráter inédito na contribuição teórico-metodológica das Ciências Sociais e Humanas na Saúde Coletiva, uma vez que as violências e sua relação com a saúde no cárcere são fenômenos invisibilizados e de difícil acesso na perspectiva científica. Este estudo tem como objetivo analisar como a violência estrutural e institucional se manifestou na vida de mulheres companheiras de homens privados de liberdade uma prisão na região sul do Brasil.

Métodos
Este é um estudo de cunho etnográfico em que se investigou as experiências de mulheres companheiras de homens presos durante as visitas ao cárcere. A investigação ocorreu por meio de “descrição consistente”, resultante da imersão no cotidiano do grupo investigado, e concentrou-se nos detalhes e informações subjacentes, buscando explicar modos de vida e expor padrões de significado, que podem ser traduzidos pela cultura13.
A etnografia é uma importante ferramenta na pesquisa em unidades prisionais pois possibilita adentrar as fronteiras da prisão, permitindo documentar fenômenos invisibilizados. Além disso, demonstra disponibilidade para interagir com os visitantes nas filas de espera e ocupa-se da relação entre prisão-sociedade e da articulação interna e externa do encarceramento14.
O percurso etnográfico ocorreu durante cinco meses, entre julho e dezembro de 2022, em um presídio da região sul do Brasil com mais de trinta anos de funcionamento. A unidade prisional apresentava, na data da coleta, ocupação de 341 presos, quase 40% a mais do que sua capacidade. Realizou-se observação-participante por meio da imersão nos locais em que circulavam as visitantes, caracterizando-se como um entre-lugar, ou seja, um arranjo espacial que demarca uma fronteira, os quais eram permitidos apenas aos visitantes circularem. A imersão ocorreu de três a quatro vezes por semana e era marcada pelas interações com trabalhadores, homens presos que trabalham dentro do presídio e familiares em dias de visitas. No entanto, a partir do objetivo do estudo, acompanhou-se a rotina de visitas das mulheres companheiras de homens presos.
O cotidiano foi documentado em um diário de campo, que acompanhou a pesquisadora durante a coleta de dados, permitindo uma análise detalhada das situações vivenciadas. Nele, foram registradas percepções, incluindo tensões relacionadas à segurança e ao fato de a pesquisadora ser mulher em um ambiente majoritariamente masculino.
Após cinco meses de investigação etnográfica, deu-se início a realização de entrevistas, a fim de aprofundar as percepções que emergiram no campo. Os critérios de elegibilidade das participantes das entrevistas foram: 1) ser companheiras de homens presos; 2) ter visto a pesquisadora nos dias de visitas pelo menos uma vez; e 3) ter interesse e disponibilidade para ser entrevistada. O convite foi realizado pelo setor de Assistência Social do presídio no momento da marcação das visitas sociais e íntimas.
As entrevistas foram realizadas no presídio após a saída das mulheres das visitas, uma vez que vinham sendo acompanhadas pela pesquisadora em suas rotinas como visitantes. Os procedimentos de segurança, como a passagem pelo raio X e pelo scanner corporal, a vistoria nas sacolas e a revista em seus corpos foram acompanhadas pela pesquisadora.
As entrevistas ocorreram por meio de roteiro semiestruturado, com duração média de 40 minutos, a partir dos seguintes temas: (1) relacionamento com o companheiro encarcerado; (2) experiência sobre a rotina do cárcere; (3) situações de violências vividas na prisão; e (4) desafios enfrentados pela família devido ao contexto do cárcere.
A pesquisadora, para estabelecer confiança com as entrevistadas, afirmou não ter acesso aos prontuários e desconhecer os crimes cometidos. Além disso, alegou que não pertencia a nenhuma formação jurídico-policial e garantiu que a privacidade seria mantida durante as entrevistas. Tal postura foi desenvolvida pela pesquisadora ao perceber a necessidade de tornar a conversa mais confortável15.
O tratamento dos dados foi realizado por meio da técnica de análise de conteúdo temática, cuja finalidade foi identificar, codificar, analisar e interpretar temas que emergiram do corpus textual16.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (CEPSH-UFSC), sob número 5.440.345. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi lido e explicado pela pesquisadora, que solicitou a assinatura das participantes. Os nomes utilizados são fictícios e nenhum outro dado que pudesse ser associado a identificação das mulheres foi apresentado.

Resultados e Discussão
Participaram deste estudo seis mulheres companheiras de homens em situação de privação de liberdade. As características sociodemográficas das interlocutoras são apresentadas no Quadro 1.
Apenas duas mulheres recebiam algum tipo de benefício do Estado: uma recebia Auxílio-reclusão e outra o Bolsa Família. Nenhuma delas conhecia ou fazia parte de alguma Organização da Sociedade Civil de defesa dos direitos de pessoas presas e familiares. O grupo possuía baixa renda familiar, estavam desempregadas ou inseridas em trabalhos precários, com pouca escolaridade e eram obrigadas a oficializar o relacionamento com os seus companheiros no formato de casamento ou união estável. Além disso, apenas duas residiam em casas próprias, enquanto três viviam em imóveis alugados ou emprestado por familiares e uma residia com os pais.

Violência Estrutural: “se está na cadeia boa coisa não é”

O conceito de violência estrutural contribui para a compreensão dos marcadores sociais, como classe, raça, gênero, sexualidade e faixa etária, que resultam em experiências individuais de sofrimento. Refere-se aos elementos estruturais estabelecidos histórica e socialmente e que determinam os indivíduos que sofrem e os que estão protegidos de riscos, agravos, danos e iniquidades. Mais do que isso, define quem terá liberdade ou privações de escolhas e ações a partir do sexismo, pobreza, racismo e violência política. Comumente os mecanismos de violência assumem caráter invisível e podem ocorrer em instituições e espaços normativos10.
As violências estruturais se configuram como cruéis, pois resultam em miséria, fome e diversas formas de submissão e exploração. É considerada a violência causadora da miséria existente no mundo17.
Neste estudo, gênero revelou-se como um determinante social importante para a violência estrutural. Para Butler18, gênero é definido como uma performance, uma espécie de roteiro composto por atos que culmina na perpetuação da crença de diferenças originárias entre mulheres e homens, abrangendo construções sócio-históricas. No entanto, ainda se reconhece o intuito de torná-las inquestionáveis sob a legitimidade das ciências naturais, a partir de argumentos fisiológicos19.
A violência estrutural possui efeitos nas trajetórias das entrevistadas, apresentando-se de diferentes formas, como pela importância dada às visitas nos presídios masculinos, vista como uma atribuição feminina. O ato de visitar quem está privado de liberdade é explanado por estudiosas da área, em contraponto com a realidades dos presídios femininos, em que a presença dos companheiros não é frequente5,6. No contexto do cárcere, o ato de visitar relaciona-se com a identidade de gênero, uma vez que por serem mulheres e esposas sentem-se obrigadas a visitar e não abandonar os companheiros, como revelado por Marcele:“Maior desafio é não abandonar porque não tem como virar as costas, é meu marido. A partir do momento que fiz essa escolha, vou ter que apoiar e visitar”.
A obrigatoriedade em não abandonar o companheiro aparece como norma social, demonstrando a supervalorização da figura feminina que permanece com o companheiro e assume o papel de cuidadora dentro e fora da prisão, o que implica em visitar frequentemente no presídio. Lermen20, por meio da experiência etnográfica, apresenta os significados sociais das visitas e a dedicação das mulheres em presídios masculinos, definindo “puxar sacola” como ato de amor e cuidado, típicos da identidade de gênero nas trajetórias femininas.
As mulheres enfrentam o fardo de cuidar do companheiro e da família, lidando com desafios como a ausência do parceiro, ser a principal provedora financeira e adaptar-se à rotina prisional (visita, assistência jurídica e acesso à saúde), o que se apresentou como fatores relevantes, como narrado por Sabrina: “tu paga advogado, manda bolsa, gasta muito. Parei de trabalhar mais por causa dele, porque ele não recebe visita a não ser a minha. Então preciso me dedicar”.
Além dos gastos inerentes ao cárcere – sacola mensal com produtos de higiene pessoal e comidas não perecíveis – a subsistência das famílias sofreu impactos, uma vez que o emprego precisa ser abandonado em virtude da adaptação às agendas de visitas e demais atividades na busca por direitos. Além disso, a solidão e a situação da mulher como principal provedora durante a privação também foram evidenciadas por Marcele: “É difícil enfrentar tudo sozinha. Sobra tudo para mim (..) pago advogado, banco presídio, são gastos que não estavam no meu orçamento”.
As dificuldades revelam a situação da prisão como desfecho das violências estruturais baseadas nas desigualdades de gênero e no dispositivo amoroso a que estão submetidas21. O apoio, a sobrecarga e a dedicação são resultadas das performances esperadas dessas esposas, tornando a relação alvo de dedicação quase exclusiva e fortalecendo o dispositivo amoroso. Neste processo de subjetivação, o casamento é o elemento central, e faz com que muitas mulheres suportem situações de desigualdade e violências nas relações amorosas em virtude da preservação do relacionamento21.
Embora nenhuma situação de violência física perpetrada por parceiro íntimo tenha sido revelada, a obrigatoriedade em não abandonar o companheiro resulta da violência estrutural a que estão submetidas pelo fato de serem mulheres. As restrições impostas pelas desigualdades de gênero e classe social configuraram-se como desvantagens e interferem nas trajetórias de vida22. Essas trajetórias foram marcadas - antes e depois do cárcere - por limitações, dificuldades e imposição de responsabilidades, resultando em precariedade22. Entretanto, as falas apresentam agência e função baseada nas relações de poder5, e muitas mulheres assumiram esses papéis devido à dependência do companheiro21. Além disso, não identificam tais ações como resultantes de um complexo cenário de desigualdade de gênero como determinante para as situações de violência.
Identificou-se a compreensão que a sociedade tem dessas mulheres por meio da identidade “mulher de preso”, que se apresenta como um sintoma e, ao mesmo tempo, efeito da violência estrutural9, como cita Laura: “As pessoas julgam demais (..), pensam que todo preso é igual. Minha família perguntava como eu ficaria com ele se foi usuário e em seguida foi preso”.
O trecho revela o estigma sofrido por envolver-se com alguém que cometeu um crime, inclusive por membros da família. Ainda, afirma que a sociedade iguala todas as pessoas que estão em privação de liberdade, ignorando histórias de vidas e contextos, criminalizando a pessoa presa e seus familiares. Neste sentido, “ser mulher de preso” - “casar-se com bandido” - configura-se um novo marcador social da violência estrutural produzido pelo cárcere, uma vez que elabora e reforça a figura do bandido como perigoso e marginalizado, definindo, assim, as privações de escolhas e ações a partir da violência política inerente à essa figura e suas companheiras.
A extensão da criminalização aos familiares gera sofrimento e apresenta-se como “tatuagem social”, uma marca na trajetória destas mulheres. Por isso, não revelar a verdadeira história, muitas vezes, é uma aposta, como relatado por Carla: “Todo mundo pensa que se está na cadeia boa coisa não é. Por isso, eu preferia mentir que era separada ou viúva do que dizer que ele estava na cadeia, porque assim acabava o assunto”.
Carla preferiu, por mais de vinte anos, afirmar que não tinha companheiro, uma vez que afastava comentários estigmatizadores devido ao fato de o marido estar preso. Revela ainda que, devido à reincidência do marido, as filhas cresceram neste contexto, o que impediu que o companheiro participasse do processo.
As mulheres compartilharam experiências de estigma e exclusão após aprisionamento de familiares, enfrentando desconfiança e constrangimento social. Desta forma, ter um companheiro nesta situação resulta em mecanismos invisíveis de punição e promove a estigmatização e a exclusão de familiares23,24.
O adoecimento físico e mental é associado por Carla ao estresse causado pelo último episódio de encarceramento do companheiro: “na última prisão começaram esses problemas. Eu perdi uma porcentagem do pulmão e tive cinco paradas. Mais tarde, Deus me deu a vida de volta, aí eu penso “O Senhor, me deu a vida de volta para isso?”. Carla também relatou que possui um filho na mesma situação, revelando que o sofrimento demasiado quase lhe custou a vida, a qual questiona a continuidade após a recuperação.
Quando questionada sobre a sua situação de saúde, Josiane diz: “Acho que a minha saúde psicológica está bem abalada. Não vou dizer que é fácil, porque não é, mexe muito com o emocional, abala muito o psicológico”. Josiane revelou que sua saúde mental foi prejudicada após o encarceramento do companheiro. Além disso, devido aos gastos financeiro e de tempo que precisa dedicar à situação, não tem condições de realizar tratamento.
A exposição às vulnerabilidades e sofrimentos inerentes ao contexto do cárcere, apresenta-se como um fator de risco para as mulheres de homens presos, sendo um dos impactos da violência estrutural. A natureza estressante inerente ao ambiente prisional repercute na saúde das mulheres através de doenças físicas e mentais, apesar de elas não se referirem às violências cotidianas como um aspecto impactante em seus processos de saúde. Percebe-se que a concepção compreendida pelas interlocutoras se baseia na abordagem biologicista, desconsiderando a dimensão histórico-social do adoecimento25. Neste sentido, a noção restrita da concepção de saúde faz com que os aspectos que compõem o conceito ampliado, o qual considera seus vários determinantes, não sejam claramente identificados e mencionados por elas, como as situações de violências produzidas pelo cárcere.
As consequências na vida das mulheres foram apontadas por estudo recente em que se estima que 3,3 milhões de brasileiros sofram algum tipo de transtorno diante do encarceramento de um familiar8. Desta forma, as vulnerabilidades apresentam-se como resultado da somatória de sofrimentos resultantes das práticas organizacionais da instituição prisão e de sofrimentos morais, causados pela exclusão social de ter um familiar preso. Por reconhecer as vulnerabilidades ao sofrimento advindos do cárcere, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) contempla em suas ações de promoção da saúde e de prevenção de agravos a atenção aos familiares de pessoas presas26.
Ao investigar as trajetórias de mulheres companheiras de homens presos, observou-se a manutenção das desigualdades sociais capazes de perpetrar as múltiplas formas de submissão e exploração, dentre elas, as assimetrias baseadas na identidade de gênero, o trabalho precário, a baixa renda familiar, o desemprego, baixos níveis de escolaridade e a estigmatização.
Ser companheira de um homem privado de liberdade apresenta-se como um marcador social de violência estrutural específico no contexto do cárcere, capaz de estabelecer privações e sofrimentos às companheiras de homens em privação de liberdade. Tais violências – potencializadas pelo contexto do encarceramento - corroboram para trajetórias marcadas por restrições existenciais, materiais e simbólicas e com consequências à situação de saúde. Trata-se da manutenção de um sistema socioeconômico e político que legitima a exclusão e a marginalização de um grupo vulnerável ao sofrimento social.

Violência Institucional: “era só um sabonete. Precisava me humilhar tanto?”

A violência institucional foi identificada na experiência das mulheres por meio de situações em que estão expostas no cenário da prisão, como normas, discursos e penalidades institucionais. Os excertos revelaram submissão às regras e aos códigos do presídio, o que expõe a reprodução das estruturas sociais injustas, regras formais e informais que violam os direitos humanos.
Dentre as regras inerentes ao presídio, o ato de visitar o companheiro preso merece atenção. O direito à visita íntima é conquistado diante do cumprimento de requisitos, dentre eles possuir união estável ou ser casada com o homem preso. Desta forma, outros formatos de relacionamento não garantem o direito de realizar a visita. Este fator obriga-as a oficializar o relacionamento com seus companheiros, o que implica em um elo maior acompanhado da perda de autonomia e liberdade de escolha quanto à situação conjugal. Marcele cita: “tinha toda a documentação da união estável para fazer porque a gente não era casado. Então tudo é um processo difícil, tem que ir ao cartório, pegar a assinatura dele, pagar e esperar (..)”.
A maioria das mulheres não apresentava situações conjugais oficializadas anteriormente à prisão. Vincular-se de maneira permanente a esses homens torna-se um requisito e, caso contrário, elas não existem para o sistema carcerário. Desta forma, identifica-se que a norma institucional fortalece as injustiças de gênero, uma vez que condiciona a visita íntima com valorização da instituição casamento, acarretando a manutenção do status quo desta instituição. Historicamente, o casamento representa uma reprodução da relação de dominação entre homens e mulheres. Fortemente inspirada e legitimada pelas lutas feministas, a recusa ao casamento está ligada à afirmação das mulheres como sujeitos livres da dominação masculina, sobretudo da constituição de uma identidade feminina que opta em romper com a noção conjugal do casamento e da família27,18.
A violência institucional é identificada por meio das normativas de vestimentas e regras em que estão submetidas as mulheres visitantes. Para adentrar a prisão, todas devem vestir-se da mesma maneira: top que não contenham nenhum material metálico, blusa branca, calça de moletom cinza e chinelos coloridos, para que não sejam trocados com os utilizados pelo preso, processo que caracteriza duplamente a identidade retirada, uma vez que, além de utilizarem roupas iguais, são identificadas primeiramente como “visita do fulano”, “mulher do beltrano”. Desta forma, aponta-se para a perpetração da violência em forma de extensão da mortificação do eu28, que atinge não apenas as pessoas institucionalizadas, como todas aquelas que adentram a prisão. As companheiras estão expostas às humilhações e violações responsáveis por mutilar as identidades individuais e as subjetividades, transformando-as em objetos, o que contribui para despersonalização e perda de seus papéis sociais28.
A proibição de utilizar vestimentas e artefatos símbolos de feminilidade está ligada à interdição da sexualidade da mulher neste cenário. Assim, ao retirar tais identidades, estabelece-se o controle dos corpos, o que corrobora para a identidade de uma “mulher de família” como a única figura permitida a visitar o presídio. A violência institucional é identificada pelas iniciativas repressivas de obediência e censura, assumindo o caráter de uma sexualidade centralizada no casal, na família, marcada pelo puritanismo e pela interdição29.
As regras e procedimentos que não são cumpridos na íntegra ocasionam na proibição das visitas. Ainda, as mulheres estão autorizadas a levar apenas os seguintes objetos nas visitas íntimas: um sabonete líquido, uma manta, um lençol e uma toalha, todos na cor branca. Os objetos são minuciosamente fiscalizados pela vigilância. A conferência também ocorre na saída das mulheres, que devem apresentar todos os objetos que as acompanharam na revista da entrada. Caso isso não ocorra, as mulheres podem sofrer penalidades – como a retirada da carteirinha de visitação – que as impede de realizar as próximas visitas íntimas e sociais, como relata Josiane: “Se eu cometer algum erro ou ele lá dentro fizer algo proibido, eles tiram a carteirinha na hora e cortam a visita”.
Sem a carteirinha de visita, nenhum familiar acessa o presídio. O documento é fornecido após análise documental cuja investigação abarca antecedentes criminais, situação socioeconômica e grau de parentesco com a pessoa presa. Após sua emissão, quaisquer descumprimentos de regras – isso serve para familiares e presos – a penalidade é a retirada da carteira e, consequentemente, a proibição da visita.
As falas das mulheres e os relatos registrados no diário de campo demonstraram a rotina do presídio definida por normas e procedimentos, os quais possuem como eixo principal a segurança e a vigilância constante. A retirada da carteira de visitação dos familiares funciona como punição diante da infração das regras, o que se caracterizou como um dos maiores causadores de medo entre as informantes. Desta forma, a violência institucional toma forma por meio da punição de comportamentos como ferramenta institucional que controla uma ação com o discurso de manutenção de uma determinada ordem. Por meio da estrutura formal, do contexto possibilitador e o fundo ideológico, ocorre a institucionalização da violência11.
No presídio investigado, a revista íntima das mulheres foi substituída pela utilização de scanner corporal e raio X, o que representa um avanço na perspectiva da garantia dos direitos humanos. No entanto, até o ano de 2020 as práticas vexatórias eram utilizadas, caracterizando violência institucional, como relatado por Laura: “para entrar eu tirava toda a roupa e agachava com um espelho embaixo, bem como mostra nos filmes. Um dia eu cheguei a ficar menstruada de tão nervosa que eu fiquei”.
Laura afirma que o nervosismo e a exposição do seu corpo causaram profundo abalo emocional. O procedimento era instituído sob o argumento de garantir que nenhum objeto ilícito fosse entregue aos presos. Assim, a violência institucional foi legitimada em nome da manutenção da segurança e do controle. A revista íntima é considerada uma violação dos Direitos Humanos e recentemente foi pauta do Supremo Tribunal Federal que a extinguiu como requisito obrigatório para o acesso aos estabelecimentos prisionais. A prática é considerada vexatória e sua realização proibida, mesmo diante da ausência de scanner corporal e do raio X30. Apesar disso, o sofrimento relatado por Laura ainda pode ser experienciado por outras mulheres visitantes do cárcere, uma vez que a rotina varia de acordo com a Unidade Prisional e elas comumente são submetidas à arbitrariedade das forças de segurança, sofrendo em seus corpos a extensão da punição estatal31.
A violência institucional ganha contornos drásticos em casos como o relatado por Valéria, a qual foi vítima de violência moral e psicológica durante uma visita íntima. Valéria não cumpriu uma das regras do presídio ao sair da visita íntima. Diante da conferência, constatou-se que o sabonete líquido, o qual Valéria portava ao entrar, havia ficado na unidade, gerando tensão, gritos e ameaças, como relata Valéria: “meu deus, era só um sabonete. Precisava me humilhar tanto?”. Os gritos da guarda ressoavam na recepção, causando uma situação de constrangimento e humilhação. Ao expor a situação, Valéria ainda afirmou: “se a minha carteirinha for retida, vou procurar os meus direitos. Vou denunciar no Ministério Público e registrar que fui tratada como um animal”.
A humilhação vivenciada por Valéria torna evidente as violências institucionais que estão expostos os corpos que visitam a prisão, sobretudo os femininos. Além das agressões verbais, a ameaça de reter a carteirinha também marcou a cena narrada por Valéria. A comparação “tratada como uma animal” apresenta uma experiência de sofrimento individual a partir de seu enquadramento social, que requer compreender que mesmo os sentimentos e emoções mais íntimas são fatos sociais32. Além disso, revela condutas abusivas como forma de violência de gênero institucional, gerada em contextos microssociais de relações desiguais de poder10. De um lado, as mulheres que visitam, e de outro, a instituição detentora e reguladora das regras do jogo.
As fragilidades expostas nesta relação desigual apontam para o que Butler chama de vidas precárias33, apresentando elementos capazes de configurar a valorização de algumas vidas em detrimento de outras. A partir de conceitos como vulnerabilidade, precariedade, violência e luto, a autora reflete sobre a valoração da vida e, sobretudo, sobre quais são os processos políticos, econômicos e sociais capazes de ditar quais vidas podem ser vivíveis e quais mortes serão aceitáveis33.
Os marcadores sociais definidores das trajetórias de vida dessas mulheres as posicionam em um grupo mais vulnerável que outros. Configuram-se como experiências sociais marcadas por violência, privação da proteção das leis e da justiça. A partir disso, podem ser definidas como duplamente precárias, primeiro por circunscrever-se como vidas esvaziadas de valor e, em segundo, por defender, amar e cuidar de vidas não passíveis de luto, as quais perecem atrás das grades.

Limitações do estudo
Entre as limitações do estudo, destaca-se o fato de as entrevistas terem ocorrido no presídio, embora em sala reservada e sem a presença dos funcionários da unidade prisional. Esse fato pode ter interferido no compartilhamento de experiências percebidas pelas entrevistadas no ato de visitar, devido ao receio de sofrerem represália institucional.

Considerações finais
As violências experienciadas por companheiras de homens em privação de liberdade analisadas neste estudo possibilitou compreender vulnerabilidades destas mulheres, intituladas esposas do cárcere. A prisão apresentou-se como um local que potencializa as violências devido às características institucionais, como a adesão à ordem e a ausência de possibilidades de resistências. Investigar este cenário proporcionou perceber as relações de poder que configuram um espaço oculto – acesso controlado e altamente vigiado – o que corrobora para que presos e familiares não sejam vistos, ouvidos e lembrados.
As violências estruturais marcaram as vidas das mulheres por meio de restrições existenciais, materiais e simbólicas. As iniquidades de acesso resultantes dos elementos estruturais, como a classe social e o gênero, apresentaram-se como fatores limitadores de escolhas dessas mulheres antes do cárcere. No entanto, continuaram posicionando-as durante a experiência da prisão, uma vez que lhes obriga a abdicar do trabalho, da educação formal e do cuidado à sua saúde para dedicarem-se ao apoio e cuidado ao companheiro e aos filhos, embora, muitas vezes, desconsiderem os diversos determinantes causadores das violências produzidas pelo cárcere e responsáveis por impactar em suas próprias situações de saúde e de suas famílias.
O cárcere apresentou-se como um depósito da exclusão social – marcado pelas violências estruturais – e responsável por perpetuar as estruturas institucionais injustas. Nessa conjuntura, ser mulher de preso é um marcador social da violência estrutural no cárcere, capaz de elaborar a figura do bandido e, portanto, limitar direitos e representar um fator de risco à saúde nas trajetórias femininas.
As regras e discursos perpetrados no presídio revelaram a reprodução das estruturas sociais injustas que violam, diversas vezes, os direitos humanos, caracterizadas pelas violências institucionais. O sistema patriarcal consolida as violências e humilhações que marcam com ênfase os corpos femininos, por meio de normas, como a obrigatoriedade de oficializar o relacionamento, a retirada da identidade e os procedimentos da revista vexatória. Além disso, condicionar a visita no presídio com a identidade de mulher de família, que possui situação conjugal oficializada, configura-se como uma das faces assumidas pela violência institucional no cárcere.
Por fim, debruçar-se sobre as trajetórias de vidas de mulheres companheiras de homens presos permitiu a identificação da complexa articulação entre cárcere, gênero e violências, por vezes veladas, por outras, gritantes. Permitiu, sobretudo, a identificação de fatores capazes de precarizar duplamente as esposas do cárcere - mesmo que em diversas situações não se identifiquem como tal -, uma vez que se trata de vidas esvaziadas de valor e comprometidas com a defesa de vidas limitadas pelas grades, configurando-se como uma trama de vidas não passíveis de luto.

Agradecimentos
Gostaríamos de expressar nossos agradecimentos ao Ministério da Educação, por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo financiamento desta pesquisa. Além disso, somos especialmente gratos ao Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina, que, por meio do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, desempenha um papel fundamental na realização de pesquisas semelhantes.

Referências
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Portes, V. de M., Lindner, S.R, Moretti-Pires, R.. Esposas do Cárcere: manifestações de violências em um presídio na região sul do Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/out). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/esposas-do-carcere-manifestacoes-de-violencias-em-um-presidio-na-regiao-sul-do-brasil/19397?id=19397

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