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0361/2024 - Gasto extra-hospitalar federal em saúde mental entre 2001-2022: o que dizem os números?
Federal Government Mental Health Out-of-Hospital Spending: What the Numbers Say

Autor:

• Edineia Figueira dos Anjos Oliveira - Oliveira, E.F.A - <eoliveiranjos@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4138-0842

Coautor(es):

• Maria Lúcia Teixeira Garcia - Garcia, M.L.T. - <lucia-garcia@uol.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2672-9310



Resumo:

Este artigo analisa a direção dos gastos da União com saúde mental entre 2001 e 2022, refletindo como essa direção dialeticamente nega e reafirma os princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira. Trata-se de pesquisa documental, a partir de dados de acesso público disponíveis nos bancos de dados do Ministério da Saúde (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil; Sistema Integrado de Orçamento Público da Saúde, bem como informações obtidas por meio do Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão) entre 2001 (ano da Lei nº 10.216) e 2022 (último ano do governo Bolsonaro). Para a análise, utilizamos a estatística descritiva e teste de Tukey. Os gastos federais com a saúde mental, em relação aos gastos totais com ações e serviços de saúde, apresentaram decréscimo nos últimos cinco anos, passando da média de 2% para 1,7%. Os gastos extra-hospitalares em saúde mental alcançaram o percentual de 80%, e houve crescimento dos gastos com custeio de CAPS, mas tal crescimento foi acompanhado de redução em gastos com outras ações. O direcionamento dos gastos federais apontou para avanços, limites e retrocessos no processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica, pois ora reafirma, ora nega seus princípios e os da Lei nº 10.216/2001, em especial ao redirecionar recursos para dispositivos assistenciais de cunho institucionalizante, e invisibilizar gastos com saúde mental no orçamento da saúde, dificultando o controle social na condução da política.

Palavras-chave:

Gastos em saúde mental; Reforma Psiquiátrica; SUS

Abstract:

This article analyses the management of Federal Government expenditure on mental health between 2001 and 2022, reflecting on how this management dialectically both denies and reaffirms the principles of Brazilian Psychiatric Reform. This is documentary research, based on publicly accessible data available on the Ministry of Health databases (Informatics Department of the Brazilian Unified Health System (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil); Integrated Public Health Budget System (Sistema Integrado de Orçamento Público da Saúde); and the Electronic System of the Citizen Information Service (Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão)) between 2001 (the year in which Law No. 10,216 came into force) and 2022 (the last year of the Bolsonaro government). Descriptive statistics and Tukey test were employed for the analysis. Federal spending on mental health, in relation to total spending on health actions and services, has fallen over the last five years,an average of 2% to 1.7%. Extra-hospital expenditure on mental health reached 80%, and funding for CAPS increased, but this growth was accompanied by a reduction in spending on other actions. The management of federal spending demonstrates advances, limits, and setbacks in the process of consolidating Brazilian Psychiatric Reform, as it sometimes reaffirms and sometimes denies its principles and those of Law No. 10,216/2001, especially in redirecting resources to institutionalising healthcare actions, and making mental health expenditure “invisible” within the health budget, which makes the social control of policy application difficult.

Keywords:

Deinstitutionalization and Mental Health Expenditures; Psychiatric Reform; SUS

Conteúdo:

Introdução
Neste artigo analisamos a direção dos gastos da União com saúde mental entre 2001 e 2022, refletindo como essa direção dialeticamente nega e reafirma os princípios da reforma psiquiátrica brasileira. Exploramos os desdobramentos do financiamento da saúde mental a partir da aprovação da Lei nº 10.216/20011, indo até o último ano do governo Bolsonaro.
Este artigo amplia discussões anteriores2-5. Analisar o financiamento da saúde mental permite compreendermos a prioridade dada a essa política no país2-7. Ugá, Porto e Piola8 defendem a necessidade de estudos que avaliem o comportamento dos gastos por programas e ações em saúde. Assumimos que os gastos refletem o processo de subfinanciamento histórico da saúde, que manteve os gastos públicos abaixo de 3,9% em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) e seu desfinanciamento após a Emenda Constitucional nº 95/20169, limitou os gastos da União com políticas sociais por 20 anos (Marques, 2019)10. O SUS sofreu com medidas de limitação do gasto público adotadas pelo governo federal, além do impacto pela pandemia de Covid-19, que elevou os recursos na função saúde11, mantendo tendência crescente dada as ações de enfrentamento à pandemia (vacinação contra a Covid-19). Por fim, concordamos com a Organização Mundial da Saúde que os orçamentos da saúde e da saúde mental expressam o compromisso político do governo (ou sua ausência) essencial para avançar a agenda da saúde mental em sua reforma sanitário e psiquiátrica12.
Perguntamos: para onde o Ministério da Saúde direcionou os gastos da saúde mental entre 2001 e 2022? O texto foi dividido em cinco seções, além desta introdução.

Da Lei da Saúde Mental ao governo Bolsonaro

A existência de uma Lei de Saúde Mental é desafio para muitos países (apenas 57% dos países-membros da OMS possuem tal lei)13. Ou seja, ter o marco legal no Brasil (Lei nº 10.216/2001) é um avanço, pois redirecionou o modelo assistencial em saúde mental no Brasil. Essa conquista trouxe consigo a necessidade de recursos financeiros para a constituição dos dispositivos assistenciais de base comunitária1.
Desde a regulamentação da Política de Saúde Mental, esta não garantiu recursos mínimos para a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS)10. A luta por recursos para o SUS se estendeu durante os anos de 1990 até a aprovação da Lei nº 14114, de 201210. A aprovação da Emenda Constitucional nº 29/200015 - que propôs a participação mínima dos entes no financiamento da saúde - ocorreu em um contexto em que os estados e municípios aumentavam os gastos com saúde e a esfera federal diminuía sua participação no montante6. Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 95/20169, que congelou os gastos sociais por 20 anos10, a participação da União se restringiu ainda mais.
Nesses 22 anos de aprovação da Lei nº 10.216, identificamos avanços na política da saúde mental, como a ampliação da rede pública de atenção à saúde mental, de base territorial, a partir do financiamento da esfera federal. É importante afirmar que o Ministério da Saúde tem responsabilidade solidária na assistência à saúde mental, devendo garantir, junto com os entes federados, a organização e o funcionamento dos serviços assistenciais, em especial, por meio da regulamentação e do financiamento para implantação de dispositivos assistenciais como CAPS, Unidade de Acolhimento, Consultório na Rua, Serviços Residenciais Terapêuticos, procedimentos ambulatoriais e hospitalares, Programa de Volta para Casa, Centro de Convivência, entre outros, além de garantir o financiamento de um grupo de medicações específicas da saúde mental.
As primeiras experiências municipais de construção de serviços de base territorial, no final dos anos de 1980, não contaram com financiamento da esfera federal16-17. Na década de 1990, de forma tímida, o governo federal foi financiando alguns procedimentos realizados em serviços extra-hospitalares e, a partir da aprovação da lei, este se coloca de forma mais expressiva para o financiamento e construção de tais serviços, por meio de portarias, o que possibilitou a ampliação da rede assistencial em saúde mental17-18.
A expansão de serviços extra-hospitalares, por meio de diferentes dispositivos assistenciais – como Unidade de Acolhimento, Consultório na Rua e Núcleo de Apoio à Estratégia Saúde da Família (ESF) –, compunha estratégia de atenção em diferentes níveis de complexidade, o que representou avanço na atenção à saúde mental16. A prioridade dada à construção de Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e a progressiva tipificação (CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi, CAPSad, CAPSad III, CAPSad IV) colocou esse dispositivo como central no conjunto de dispositivos assistenciais. Todavia, se, de um lado, os serviços extra-hospitalares se expandiram, de outro, houve redução de leitos em hospitais psiquiátricos, em maior proporção nos hospitais públicos e, em menor, nos hospitais privados conveniados ao SUS, fato esse que provocou mudança no perfil dos hospitais psiquiátricos20. Entretanto, a abertura de leitos em hospitais gerais para responder às urgências hospitalares (em atenção à crise) não ocorreu dentro das projeções, e muito menos se garantiu a distribuição desses leitos nas regiões de saúde. Em decorrência disso, os vazios assistenciais se estenderam a todos os níveis de atenção2. Registrou-se também a insuficiência na expansão do Programa de Volta para Casa, mesmo tendo pessoas com sofrimento psíquico em instituição de longa permanência.
Três questões permearam o processo de implementação da Reforma Psiquiátrica, a partir da Lei nº 10.216/2001:
a) a edição de um conjunto de legislação que garantiu a reversão dos gastos das ações hospitalares para as ações extra-hospitalares, tornando visível a intervenção do Estado no ordenamento econômico, efetuando mudanças frente à expressão concreta da luta entre interesses divergentes – luta antimanicomial x indústria da loucura;
b) a instabilidade desse ordenamento à medida que a correlação de forças se modifica.
c) o acirramento do embate entre os setores responsáveis pela implantação da política sobre drogas ao longo dos anos recentes. O Ministério da Saúde e a Secretaria Nacional Álcool e Drogas ora se articulam, ora polarizam em termos das ações que o Estado brasileiro deve desenvolver nesse campo20,21.
A conjuntura após os anos 2000, tensionada por reformas neoliberais, tem minado a capacidade de articulação em defesa das políticas sociais. No campo da saúde mental, vivenciamos conquistas, dada a pressão e articulação do movimento antimanicomial22-24. Porém, os avanços na Política de Saúde Mental, entre 2001-2014, começaram a sofrer retrocessos sistemáticos, em um “acelerado desmonte”25, expressos por portarias, resoluções, decretos e editais, que a Nota Técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS chamou de Nova Política Nacional de Saúde Mental26. Tal conjuntura foi marcada por recessão econômica (iniciada em 2015), somada à vigência da EC 8627, que implicou a queda de arrecadação e impactou o financiamento federal do SUS27. Com o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, um novo marco fiscal foi implantado. A aprovação da EC 95/2016 congelou investimentos em saúde e outras áreas sociais até 2036, aumentando o potencial de desfinanciamento do SUS.
A EC 959 acirrou a disputa pelo fundo público no interior das políticas sociais. Isso porque, ao impor uma trava nos gastos sociais, não era possível alocar mais recursos para a saúde sem o desfinanciamento de outras políticas sociais28. O teto de gastos imposto para as despesas primárias gerava competição por recursos. Disputa que se acirrou nos governos Temer e Bolsonaro, intensificando o desmonte da política de saúde. Esse desmonte envolveu a proposta dos chamados planos de saúde acessíveis à população; a fragilização da Política Nacional de Atenção Básica e proposta de remanicomialização na Política de Saúde Mental29, expressa, entre outros, por reajuste no valor da diária hospitalar em média 65% 30.
O governo Bolsonaro sustentou a defesa da privatização em geral, acelerando o processo de disseminação do novo coronavírus, agravando a crise sanitária no ano de 2020, e, consequentemente, o impacto da Covid-19 no sistema de saúde brasileiro, tal qual na economia, foi considerável28.
Nos governos Temer e Bolsonaro houve ameaças às conquistas da Reforma Psiquiátrica no país (Portaria 3.588/201733 e da Nota Técnica nº 11/2019)26. Ambas engendraram mudanças na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), fortalecendo as Comunidades Terapêuticas na RAPS, bem como internações em hospitais, por meio de ampliação de recursos para tais fins, entre outras. Assim, a direção dada pelos últimos dois governos evidenciou o acirramento da disputa pelo fundo público da saúde/saúde mental com ganhos favoráveis para grupos que se colocam na contramão das diretrizes da Reforma Psiquiátrica brasileira. Esse cenário aqui retratado reafirma um contexto político instável desafiam continuamente os sistemas de saúde nos países de baixo rendimento.
Configurado o contexto, construímos um caminho metodológico para analisar os gastos da União com saúde mental entre 2001-202233.

Metodologia

Pesquisa documental nos bancos de dados do Ministério da Saúde: Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS)34, para identificar o valor pago aos procedimentos ambulatoriais da saúde mental; no Sistema Integrado de Orçamento Público da Saúde (SIOP)35, verificando o repasse feito pelo Ministério da Saúde aos estados e municípios para pagamentos de ações e serviços da saúde mental; e no Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão (e-SIC)36, para obter os códigos e valores pagos dos procedimentos hospitalares e extra-hospitalares da saúde mental, bem como os gastos com medicamentos excepcionais, além dos gastos com a manutenção dos CAPS (custeio).
As variáveis consideradas para as ações e serviços extra-hospitalares foram: 1) gastos com medicamentos essenciais e excepcionais, e ações ambulatoriais (DATASUS/TABNET); 2) Centro de Atenção Psicossocial; Programa de Volta Para Casa (PVC) e Serviço Residencial Terapêutico (SRT); convênios e eventos realizados na área; incentivo para construção de novos pontos de atenção da RAPS/Crak –CAPS AD III, UA; incentivo para custeio de Unidade de Acolhimento, SRT e leitos em Hospital Geral, Enfrentamento ao Crack e outras Drogas na Atenção Básica (SIOP). Os dados fornecidos pelo e-SIC foram utilizados como complementos de informações sobre gastos com manutenção de CAPS, considerando que no SIOP não foi possível identificar esse gasto específico, e para a checagem dos gastos com medicamentos, considerando nossa estranheza ante a queda de gasto com essa ação.
Os valores foram deflacionados, utilizando o fator IGP-DI da Fundação Getúlio Vargas.
Como técnica de análise, utilizou-se a análise estatística (análise de variância – ANOVA e Teste post-hoc de Tukey).

Resultados:

Os gastos da saúde mental em relação aos gastos totais em saúde variaram entre 3,7% (máximo) em 2017 e 1,2% (mínimo) em 2021-2022 (Gráfico 1). Tais gastos não alcançaram a meta proposta pelo Ministério da Saúde para o quadriênio 2007-2010 (4,5%)37, reduzindo abruptamente no governo Bolsonaro. Além disso, o Ministério da Saúde não atendeu às deliberações das III e IV Conferências Nacionais de Saúde Mental1,38, que estipularam a ampliação progressiva do financiamento da rede extra-hospitalar, não se limitando à realocação de recursos do componente hospitalar.

Gráfico 1

Os dados do Brasil se coadunam com os dados mundiais – o valor gasto pelos países em desenvolvimento com a saúde mental é inferior a 1 dólar per capita, enquanto os países desenvolvidos alocam um pouco mais de US$ 8039. Desde 2013, a OMS recomendou que os Estados-membros aumentassem a cobertura de serviços de saúde mental para metade até 2030, e isso requer orçamento de, no mínimo, 5%. Esse percentual praticado no país expressam um quadro mundial - a saúde mental continua a ser uma prioridade negligenciada, ocupando um lugar inferior na agenda política40.
Apenas em 2015 o Ministério da Saúde alcançou uma das deliberações da IV Conferência Nacional de Saúde Mental37 – 80% dos recursos para a rede substitutiva e 20% para o sistema hospitalar. Entretanto, em termos nominais, a partir de 2018, os recursos destinados às ações extra-hospitalares seguiram tendência decrescente (Gráfico 2).

Gráfico 2

Os gastos com ações extra-hospitalares cresceram no período 2001-2022, porém tal aumento se deveu à realocação de recursos dos serviços hospitalares para os serviços de base comunitária, e não ao aumento de repasse de recursos para a área de saúde mental em termos percentuais. Tal assertiva se sustenta na média do orçamento da saúde metal em relação aos gastos com ações e serviços de saúde, que variou pouco ao longo dos anos, sofrendo declínio significativo no governo Bolsonaro.
As despesas com ações extra-hospitalares, entre 2001 e 2022, destinaram-se a compra de medicamentos, atendimento ambulatorial, ações de reinserção social (PVC e SRT), Centro de Atenção Psicossocial, convênios e eventos, incentivo para construção de novos pontos de atenção da RAPS/Crak é Possível Vencer (investimento em CAPS ad III, UA) (Gráfico 3).

Gráfico 3

As despesas com medicamentos até 2013 constituíram o principal gasto extra-hospitalar - 30% dos gastos com ações extra-hospitalares. A partir de 2014 houve redução com medicamentos, principalmente os do grupo 1A. Segundo o Ministério da Saúde, isto se deu devido à diminuição do preço unitário da medicação, por quebras de patentes, mas não houve redução na quantidade de medicamentos adquiridos.
De um lado, os gastos com medicação e a questão das patentes são discutidos por autores que defendem a necessidade de garantir a política de acesso a medicamentos essenciais40-42. Devido ao crescimento dos recursos destinados aos medicamentos de alto custo, resultante, muitas vezes, de especulações das indústrias farmacêuticas, a IV Conferência Nacional de Saúde Mental37 deliberou que o Ministério da Saúde deveria elaborar uma proposta de quebra de patentes para a produção e distribuição de genéricos na rede pública de saúde. A redução de gastos com medicamentos representava tanto o alcance da deliberação da referida conferência (quebra de patentes e distribuição de genéricos no SUS); quanto a manutenção da quantidade de medicamentos adquiridos.
O gasto com medicamentos traz o debate sobre a medicalização da vida. A hegemonia das práticas orientadas pelo modelo médico tradicional nos serviços assistenciais de saúde é um tema debatido por vários autores no campo da saúde mental45-47. Ou, nos termos de Amarante49 (sem paginação): “Um desafio hoje da reforma psiquiátrica é [...] as pessoas são contra o manicômio, mas não abrem mão do conceito de depressão tal qual utilizado pela indústria farmacêutica”. Em relação aos dispositivos de saúde mental, os recursos para CAPS incluem gastos de custeio e de investimento. A partir da Portaria 336/200247 (regulamentação do CAPS), ocorreu a expansão gradual no número desses dispositivos, impulsionada pela garantia de financiamento dessas estruturas (de 424 em 2002 para 2.836 CAPS habilitados em 2022, – crescimento em torno de 600% em 20 anos).
Em 2001, o percentual destinado à manutenção dos CAPS do montante gasto com ações extra-hospitalares foi de 44,6%. A partir de 2015, os gastos com a manutenção dos CAPS representaram o maior percentual aplicado entre todas as ações de saúde mental - 80% dos gastos com saúde mental em 2022.
Entretanto, cabem dois alertas: primeiro, os valores se referem aos gastos de custeio dos CAPS, pois os gastos de investimento não ocorreram; segundo, essa variação foi decorrente da edição da Portaria GM nº 3.089, de 23 de dezembro de 201148 (que estabeleceu novos valores de financiamento) e da Portaria GM nº 3.099, de 23 de dezembro de 201150 (que estabeleceu, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial, recursos a serem incorporados ao Teto Financeiro Anual da Assistência Ambulatorial e Hospitalar de Média e Alta Complexidade dos Estados, Distrito Federal e Municípios referentes ao novo tipo de financiamento dos CAPS). Entretanto, o aumento do percentual gasto com CAPS só ocorreu a partir de 2015. Ademais, a partir de 2018 houve redução abrupta de recursos destinados à saúde mental (Gráfico 1). Ou seja, o crescimento dos gastos com o custeio dos CAPS representou a redução de gastos em outros dispositivos da rede.
Em relação às ações ambulatoriais, o percentual gasto oscilou entre 25% e 30%, no período de 2001 a 2014, oscilando nos anos seguintes, chegando a 15% em 2022. Caracterizamos como ações ambulatoriais procedimentos de psicodiagnóstico, consulta em psiquiatria, acompanhamento de pessoa com deficiência mental ou com autismo, acompanhamento neuropsicológico de paciente em reabilitação, atendimento em psicoterapia, terapia individual e oficinas terapêuticas.
A redução dos gastos com as ações ambulatoriais, deveu-se ao fato de o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 854/201251, ter alterado a tabela de procedimentos, a partir da competência de outubro de 2012, alterando o valor pago ao longo dos quatros últimos anos em função do número reduzido de procedimentos que se manteve na tabela. A estratégia utilizada pelo Ministério da Saúde na definição das tabelas de procedimentos e custeio destes explicita a intencionalidade de não aumentar recursos destinados ao SUS e, consequentemente, à saúde mental, mas apenas redirecionar recursos de uma ação para outra ação sem mudança estrutural na lógica do financiamento. Nessa lógica, municípios que não têm CAPS reduzem sua capacidade de ressarcimento com procedimentos realizados nos serviços ambulatoriais.
Quanto às ações de reinserção social, foram considerados os recursos destinados aos Serviço Residencial Terapêutico e ao Programa de Volta Para Casa2. Entre 2003 e 2006, o percentual gasto se manteve entre 3 e 4% do montante gasto com ações extra-hospitalares até 2011. Entre 2012 e 2022, esse percentual caiu para 2%, revelando que não houve projeção de gastos com as duas principais ações desinstitucionalizantes.
Juntamente com os SRTs, o Programa de Volta Para Casa, regulamentado pela lei nº 10.708, de 31 de julho de 2003, que institui o auxílio-reabilitação psicossocial para egressos de internações psiquiátricas52, é reconhecido como um programa desinstitucionalizante, entretanto, o valor do incentivo é baixo (valor atual de R$500,00). O reajuste dado em 2008 pela Portaria GM nº 1.95453 não considerou as perdas da inflação, inviabilizando o cumprimento de sua função no interior da Política de Saúde Mental.
Boa parte das pessoas cadastradas no PVC encontra-se em municípios com hospitais psiquiátricos em processo de fechamento e/ou em uma das 870 Residências Terapêuticas existentes no país54. O governo Temer previu em seu Plano de governo a inclusão de 2.400 novos beneficiários até o ano de 2019. Entretanto, em 2023, revela redução no número de pessoas cadastradas no programa54. Esse dado merece reflexão: na perspectiva a longo prazo, esse indicador deve ser regressivo, considerando que, ao longo do tempo, com o processo de desinstitucionalização, é esperado que não haja pessoas institucionalizadas; logo, deve-se reduzir o número de beneficiários dentro do propósito do programa. Entretanto, não ter registro do número de pessoas que ainda se encontram institucionalizadas é uma falha do sistema e compromete a avaliação da política.
Quanto às ações de incentivo à construção de novos pontos de atenção da RAPS/Crak é Possível Vencer - parte constitutiva do Programa de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas55, esta passou de 8% em 2012 a 14% do montante gasto com ações extra-hospitalares (em 2017) e, posteriormente suspensos. Do mesmo modo, os recursos destinados à implementação de Consultório na Rua, previsto a partir de 2013, representou percentual entre 1 e 2% do montante gasto com ações extra-hospitalares entre 2013 e 2017, desaparecendo do orçamento em 2018. A suspensão do recurso implica a não implantação e/ou ampliação desse serviço nos municípios.

Figura 1

A análise estatística e a Figura 1 revelam algumas tendências importantes nessa categoria:
a) Variabilidade Alta: Os gastos em CAPS variam significativamente, com alguns valores extremamente altos.
b) Presença de Outliers: A existência de valores muito altos, além do terceiro quartil, indica que alguns CAPS recebem financiamentos significativamente maiores. c) Distribuição Relativamente Simétrica: A mediana está centralizada dentro do IQR, indicando uma distribuição simétrica dos dados na faixa média.
Os resultados do teste de Tukey indicaram que os desembolsos para CAPS são significativamente maiores do que para qualquer outra categoria. Há diferenças positivas (diff) e valores p ajustados (p adj) menores que 0.05 em todas as comparações relevantes.
Fazendo uma análise dos recursos alocados nos diferentes tipos de CAPS, identificamos que os CAPS I apresentaram um desvio padrão menor, com valores de financiamento mais consistentes e menos dispersos em relação à média. Por outro lado, os CAPS II apresentaram desvio padrão muito maior, sugerindo uma grande variabilidade nos valores de financiamento recebidos ao longo dos anos. Dessa forma, os CAPS I demonstraram uma maior estabilidade no financiamento ao longo dos anos, com valores mais previsíveis e consistentes.
Aplicando o teste ANOVA nos dados de CAPS temos que o valor do teste F (7.3491) é significativamente maior que 1, indicando diferenças estatisticamente significativas entre os financiamentos das diferentes categorias de CAPS. E o valor p (1.665e-06) é muito menor que 0,05 (ou seja, altamente significativo), sugerindo que as diferenças encontradas não são devido ao acaso, mas sim refletem diferenças reais nos financiamentos entre as categorias de CAPS ao longo dos anos.
As comparações múltiplas de Tukey indicaram de maneira consistente que o CAPS I possui o maior financiamento entre as categorias analisadas.
Entretanto, outras dimensões podem ser aqui agregadas. A alteração no registro de gastos com medicamentos alterou a correlação analisada.

Mudanças na Política de Saúde Mental governos Temer e Bolsonaro.
Em 2017 registrou-se mudança na direção da Política de Saúde Mental - a Portaria nº 3.58830 alterou a Rede de Atenção Psicossocial, provocando enfraquecimento dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e da rede de base territorial, fortalecendo a implantação de dispositivos assistenciais de lógica manicomial (que propõem restrição de autonomia e liberdade dos sujeitos). A Portaria nº 3.588/2017 foi elaborada de forma antidemocrática, sem envolver categorias profissionais e suas entidades representativas, usuários e suas entidades organizadas, nem instâncias da saúde mental e do controle social, sendo elaborada exclusivamente por um determinado segmento da corporação médica57.
Na contramão da Lei nº 10.216/2001, a supracitada Portaria propôs mudanças que impactaram a composição da Rede de Atenção Psicossocial e violaram direitos das pessoas com transtornos mentais, com inclusão na RAPS de dispositivos de caráter manicomial: o hospital psiquiátrico e as Comunidades Terapêuticas, que passam a desempenhar um papel central dentro da RAPS, com previsão de mais investimento. Assim, a Portaria 3.588/2017 apontava para um retorno ao paradigma manicomial, e deturpava a conceituação de Serviço Residencial Terapêutico (SRT), abrindo a possibilidade de abrigamento de qualquer pessoa com transtorno mental que tivesse necessidades de cuidado, quebrando a lógica de desinstitucionalização55.
No governo Bolsonaro, o retrocesso na política da saúde mental foi instituído pelo Decreto nº 9.761/201958, que aprovou a Política Nacional sobre Drogas pautado na lógica da abstinência, negando as possibilidades de estratégias de redução de danos no cuidado. Ademais, duas outras medidas deste governo mostravam franco ataque à política antimanicomial do SUS: o Edital de Chamamento Público nº 3/202259, que selecionou Organizações da Sociedade Civil (OSC) para prestar atendimento como hospital psiquiátrico, e a Portaria nº 596/202260, que sustava o Programa e o Incentivo Financeiro de Custeio Mensal para o Programa de Desinstitucionalização Integrante do Componente Estratégias de Desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); 2) a nova Política Nacional sobre Drogas (PNAD), instituída pelo Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 201958, que dispõe em suas diretrizes o estímulo e apoio, inclusive financeiramente, a entidades dedicadas às ações de redução da demanda de drogas, pautadas na abstinência; prevenção ao uso de álcool e outras drogas, cuidados e reinserção social do dependente químico e apoio aos seus familiares.
O Ministério da Saúde, ao longo dos anos, definiu ações orçamentárias específicas para a saúde mental. E, ao apresentar os gastos da saúde mental por tipo, constatamos que, a partir de 2017, não apareciam recursos para manutenção dos CAPS. Indagamos o Ministério da Saúde (via e-SIC) pelos recursos gastos na manutenção dos CAPS. Recebemos a informação de que: “Por efeito da Portaria GM/MS nº 3.992 de 28, de dezembro de 2017, Art. 3º – a partir de 2018 os recursos destinados aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da Rede de Atenção Psicossocial, foram incorporados ao Bloco de Manutenção das Ações e Serviços Públicos de Saúde (custeio), juntamente com os demais serviços de saúde da Média e Alta Complexidade”36 (p. 1). Dessa forma, essa portaria tornava invisível os gastos com os CAPS no orçamento da saúde, pois se encontram no montante destinado ao conjunto de serviços do SUS de Média e Alta Complexidade. Ou seja, o decréscimo sistemático no custeio dos CAPS ficava mascarado e não permitia análises como estas que fazemos aqui.
Em 2023 (terceiro governo Lula), o Ministério da Saúde lançou a Nota Técnica nº 2/202357, que revogou a Portaria GM/MS nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017, afirmando que as alterações feitas pela referida portaria contrariavam o modelo assistencial proposto pela Reforma Psiquiátrica brasileira.

Conclusão

Se não houve aumento percentual de recurso destinado à saúde mental do montante de recurso da saúde, a reversão dos gastos (com priorização das ações extra-hospitalares), se manteve ao longo dos anos estudados. Entretanto, o direcionamento dos gastos apontou avanços e retrocessos no processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica. Tal conclusão se sustenta pela: insuficiência dos recursos alocados para a implementação da política de saúde e da saúde mental; dificuldade na ampliação de uma rede extra-hospitalar com dispositivos assistenciais que garantam cobertura dos usuários da saúde mental; dificuldade de superar o paradigma médico-hospitalocêntrico-medicamentoso; e insuficiência de investimento em dispositivos assistenciais no processo de desinstitucionalização para possibilitar a reinserção social (como os SRTs e PVC).
Em relação aos gastos com CAPS, destacamos a invisibilidade destes no orçamento da saúde como retrocesso da Política de Saúde Mental nos últimos cinco anos, considerando que a transparência na destinação dos recursos destinados à saúde mental, como em qualquer política, é um importante instrumento de monitoramento, avaliação e controle social, e atende ao critério democrático da necessidade de transparência das informações da gestão pública.
Assim, se por um lado o Ministério da Saúde alcançou uma das deliberações da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental em 2015 – alocação de 80% dos recursos para a rede substitutiva –, por outro, o percentual mascara a tendência decrescente no percentual global da SM no orçamento da Saúde. Assim, urge o fortalecimento da luta antimanicomial na direção da ampliação das conquistas da Reforma Psiquiátrica.

Referências

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Oliveira, E.F.A, Garcia, M.L.T.. Gasto extra-hospitalar federal em saúde mental entre 2001-2022: o que dizem os números?. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/nov). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/gasto-extrahospitalar-federal-em-saude-mental-entre-20012022-o-que-dizem-os-numeros/19409?id=19409

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