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0386/2024 - Gastos governamentais com antirretrovirais no Brasil e seus principais determinantes
Government spending on antiretrovirals in Brazil and its main determinants

Autor:

• Graziela Ferrero Zucoloto - Zucoloto, G.F - <graziela.fz@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2398-6680

Coautor(es):

• Carolinne Thays Scopel - Scopel, C.T - <carol.thays@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3254-2800

• Pedro Villardi - Villardi, P. - <pedro.villardi@world-psi.org>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7788-6055

• Felipe de Carvalho Borges da Fonseca - Fonseca, C.B - <felipe@abiaids.org.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1070-0049

• Susana Rodrigues Cavalcanti van der Ploeg - van der Ploeg, S.R.C. - <susanaploeg@abiaids.org.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3342-8260

• Leonardo Szigethy - Szigethy, L. - <leonardoszigethy@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1841-8515



Resumo:

A construção de políticas públicas para a prevenção e tratamento do HIV/Aids no Brasil é uma história de luta que une sanitaristas, pesquisadores e ativistas desde os anos 1980. Parte importante desse caminho está ligado à produção e distribuição de medicamentos antirretrovirais (ARV), iniciativas de redução do preço dos ARV e mobilizações da sociedade civil pela garantia de direitos, que contribuíram para criar um dos programas mais bem-sucedidos de combate à doença no mundo. Com base nesse histórico, este trabalho teve por objetivo analisar os gastos governamentais na aquisição de ARV selecionados no período entre 2005 e 2020, fazendo uma comparação com preços internacionais, à luz dos determinantes relacionados às disputas patentárias, ao licenciamento voluntário, às PDP e às iniciativas para redução de preços de ARV. Entre outros resultados, foi possível observar que não houve uma relação imediata entre o fim da concessão patentária e a redução de preços. Depósitos de outros pedidos de patente e a inexistência de concorrentes registrados nacionalmente, mesmo após a expiração da patente, podem ser fatores significativos para a manutenção de altos preços.

Palavras-chave:

Antirretrovirais, HIV, Preço de Medicamento, Propriedade Intelectual de Produtos e Processos Farmacêuticos.

Abstract:

The construction of public policies for the prevention and treatment of HIV/AIDS in Brazil is a history of struggle that unites sanitarians, researchers and activists since the 1980s. An important part of this path is linked to the production and distribution of antiretroviral drugs (ARV), initiatives to reduce the price of ARV and civil society mobilizations for the guarantee of rights, which contributed to create one of the most successful programs to combat the disease in the country. world. Based on this history, this study aimed to analyze government spending on the acquisition of ed ARVs in the period between 2005 and 2020, making a comparison with international prices, in the light of determinants related to patent disputes, voluntary licensing, PDP and ARV price reduction initiatives. Among other results, it was possible to observe that there was no immediate relationship between the end of the patent concession and the reduction of prices. Filings of other patent applications and the lack of nationally registered competitors, even after patent expiration, can be significant factors in maintaining high prices.

Keywords:

Anti-Retroviral Agents, HIV, Drug Price, Intellectual Property of Pharmaceutic Products and Process.

Conteúdo:


Introdução
Os antirretrovirais (ARV) surgiram no final da década de 1980. No Brasil, alguns estados começaram a disponibilizar o primeiro deles, a zidovudina (AZT), na rede pública a partir de 1989, especialmente devido a ações judiciais. O AZT começou a ser distribuído pelo Ministério da Saúde (MS) em 19911.
Na década de 1990, o Estado brasileiro passou a investir na produção local de ARV por meio de engenharia reversa. Contudo, em 1996, três eventos influenciaram o cenário brasileiro: o anúncio da eficácia da terapia tríplice para conter a replicação do HIV; a aprovação da Lei nº 9.313/1996, estabelecendo acesso universal e gratuito aos ARV; e a alteração da Lei da Propriedade Industrial (LPI) para adequar-se ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo Trips), permitindo o patenteamento de produtos farmacêuticos2.
Entre as décadas de 1990 e 2000, o Brasil incorporou novos medicamentos, em parte patenteados e importados, cuja distribuição passou a ser ameaçada pela adequação da LPI ao Trips, por conta do expressivo aumento de preços2. Em 2013, a política "Testar e Tratar" gerou a necessidade de adquirir maior quantidade de medicamentos, pois o tratamento passou a ser iniciado logo após o diagnóstico3. Criou-se, assim, um conflito: de um lado o comprometimento com acesso universal e gratuito aos ARV, de outro a aprovação da LPI teve forte impacto no preço desses produtos.
As estratégias utilizadas pelo governo para lidar com esse conflito entre gastos e acesso incluíram produção e distribuição de medicamentos genéricos, negociações de preços, licença compulsória e transferência tecnológica4,5. As negociações foram realizadas diretamente com empresas ou por meio de acordos de cooperação entre países, como a negociação de medicamentos de alto custo que envolveu o Mercado Comum do Sul (Mercosul)6.
As Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), lançadas em 2009, constituem a mais recente política de desenvolvimento e produção de produtos estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS). As PDP são acordos nos quais entidades privadas transferem tecnologia para instituições públicas e, durante o período de transferência de tecnologia, que pode chegar a dez anos, o MS utiliza seu poder de compra para garantir um percentual fixado de aquisições realizadas por dispensa de licitação7. Estudos ainda apresentam resultados contraditórios sobre a capacidade das PDP reduzirem preços8,9.
Organizações da sociedade civil e empresas produtoras de medicamentos genéricos também adotaram estratégias para reduzir os impactos do patenteamento sobre tecnologias farmacêuticas. Entre essas, estão as oposições a patentes no âmbito administrativo: subsídios ao exame técnico, apresentados até o final do exame, e processos administrativos de nulidade (PAN), instaurados em até seis meses após a concessão; além de ações judiciais10.
Há evidências de que as oposições a patentes colaboram para impedir concessões indevidas, limitar o escopo do quadro reivindicatório (QR) e pressionar a redução de preços2,11. A taxa de oposição em relação a patentes concedidas no escritório de patentes europeu esteve em torno de 5% nos anos 2000. Estimou-se que 35% destas patentes foram revogadas e 33% foram modificadas. As oposições podem contribuir na melhora da qualidade das patentes concedidas e na diminuição dos custos financeiros e sociais de processos judiciais. Além disso, ao trazer elementos para a análise, o mecanismo ajuda a compensar a falta de recursos humanos e técnicos dos escritórios de patentes12.
Este artigo visa analisar o gasto governamental na aquisição de ARV selecionados entre 2005 e 2020 e compará-lo com preços internacionais, à luz de determinantes relacionados às iniciativas de redução dos preços, às disputas patentárias, a licenças voluntárias e às PDP.

Metodologia
Este é um estudo de casos múltiplos, descritivo e analítico, longitudinal entre 2005 e 2020.
De acordo com a relevância histórica, a disputa patentária, a presença de oposições a patentes e as iniciativas de produção por meio das PDP, os seguintes ARV foram selecionados para análise: lopinavir/ritonavir (LPV/r), tenofovir em diferentes formulações (TDF - fumarato de tenofovir desoproxila; TDF/FTC - combinação entre TDF e entricitabina; e TAF - hemifumarato de tenofovir alafenamida), atazanavir (ATV) e dolutegravir (DTG).
A sistematização das características dos ARV foi baseada no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do MS13; informações sobre o registro sanitário foram retiradas do portal da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)14; informações patentárias do portal de patentes do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI)15 e informações sobre as PDP do portal das PDP16, complementadas por outras referências.
Para o cálculo do gasto governamental, foram utilizados o Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (Siasg) por meio do Banco de Preços em Saúde (BPS)17 e a Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação da Controladoria Geral da União (CGU)18. O Siasg apresenta o registro obrigatório das compras públicas da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Na plataforma da CGU, foram obtidas informações sobre aquisições de medicamentos pelo MS entre 2012 e 2020, para checagem de consistência e nos casos em que laboratórios públicos, como Farmanguinhos, foram os fornecedores ou a informação não foi disponibilizada no Siasg. Foram coletados: data da compra, preços unitários, quantidades adquiridas, fabricantes/fornecedores, instituições compradoras e modalidades de compra.
A partir desses dados foram calculados: preços reais em valores de 2020, inflacionados pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IPCA/IBGE); estimativa do número de pacientes; gasto do tratamento por paciente; e gasto governamental. Para o cálculo das variáveis, foram consideradas as posologias para o LPV/r de 800/200 mg/dia para adultos, 600/150 mg/dia (comprimido) e 320/80 mg/dia ou 4 mL (solução oral) para crianças, 300 mg/dia para o ATV, 300 mg/dia para o TDF, 300/200 mg/dia para TDF/FTC e 50 mg/dia para o DTG16.
O levantamento concentrou-se nas aquisições de compra centralizada realizadas pelo Departamento de Logística em Saúde (DLog) do MS. Foram excluídas compras pontuais de pequenas quantidades, geralmente associadas a demandas judiciais e dispensa de licitação. As inconsistências encontradas, duplicações de dados e unidade de fornecimento do medicamento incorreta, foram identificadas e ajustadas individualmente.
Os preços internacionais de 2019 e 2020 foram obtidos na base do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef)19, sendo convertidos de dólares para reais a partir da taxa de câmbio média dos respectivos anos20.

Determinantes sobre o gasto governamental na aquisição dos ARV
Esta seção apresenta características gerais dos ARV selecionados, reflexões sobre patentes em disputa, licenças voluntárias, PDP e iniciativas para redução de preços dos ARV, sintetizados no Quadro 1.

LPV/r
O LPV/r foi incorporado ao PCDT para tratamento de HIV em 2002. Até 2012, o produto era fornecido como Kaletra® pela Abbott. Em 2011, a Abbott criou a AbbVie, uma empresa independente de produtos farmacêuticos, que passou a ser fornecedora nas aquisições do DLog/MS em 2013. Atualmente, há registros sanitários válidos na Anvisa da AbbVie e da empresa de genéricos Cristália.
O LPV/r foi protegido por patente no Brasil por meio do mecanismo de pipeline presente na LPI, que possibilitou a proteção retroativa de patentes concedidas em outros países, desde que não houvesse esforços de exploração nacional. Portanto, apesar da invenção estar em domínio público, a patente PP1100397-9 foi expedida em 1997 no Brasil21, culminando em várias disputas legais. Em 2005, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou uma resolução recomendando a emissão da licença compulsória para o LPV/r e outros ARV responsáveis por 80% do gasto do MS com ARV, mas a medida foi efetivamente decretada apenas para o efavirenz. Posteriormente, foi firmado um acordo entre o MS e a Abbott que assegurou a redução do preço do LPV/r. Em 2007, foi solicitado, à Procuradoria Geral da República, o ingresso de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 4.234), apresentada em 2009 ao Supremo Tribunal Federal (STF), contra o mecanismo pipeline10, que ainda aguarda julgamento.
Em 2009, a empresa Cristália apresentou uma ação de nulidade, julgada procedente pelo Tribunal Federal do Rio de Janeiro em 2012. Após diversos recursos, a patente foi extinta em 2016, aproximando-se, na prática, da vigência de 20 anos. Dois outros pedidos de patente do LPV/r foram objeto de disputas. O pedido PI1101190-4, dividido da patente pipeline, foi indeferido em 2010, após subsídios ao exame técnico; e o pedido PI0413882-1, também objeto de subsídio, foi indeferido em 2015. Esse último subsídio fez parte da campanha internacional Kaletra Global, cujo objetivo era estimular a competição com medicamentos genéricos10.
Três PDP do LPV/r foram estabelecidas em 2012 entre a empresa Cristália e os laboratórios públicos Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), Fundação para o Remédio Popular (Furp) e Indústria Química do Estado de Goiás (Iquego). Em 2017, elas foram extintas com a justificativa que o medicamento não atendia à definição de “estratégico para o SUS”, portanto sua produção nacional teria se tornado irrelevante.
A partir de 2002, quando genéricos foram lançados mundialmente, os preços do LPV/r se reduziram em diversos países10. A emissão de licença compulsória na Tailândia, em 2007, antecedeu a alteração da política de discriminação de preços da Abbott. Em 2020, após o governo de Israel emitir licença compulsória para potencial tratamento de Covid-19, a AbbVie comunicou que não exigiria o cumprimento de suas patentes relacionadas ao LPV/r para qualquer finalidade em qualquer lugar do mundo22.

Tenofovir: TDF, TDF/FTC e TAF
O TDF, pró-droga do tenofovir, foi incorporado ao PCDT para tratamento de HIV em 2003, sendo comercializado como Viread® pela farmacêutica Gilead Sciences. No Brasil, o primeiro registro sanitário na Anvisa ocorreu em 2003 e registros de versões genéricas do produto passaram a ser emitidos a partir de 2010. O TDF ainda está presente nos principais esquemas terapêuticos adotados no Brasil.
A partir de 2013, estudos científicos demonstraram benefícios clínicos de outra pró-droga do tenofovir, o TAF2, registrado como Vemlidy® pela Gilead em 2019. Contudo, no seu registro, foi incluída somente a indicação terapêutica para tratamento de hepatite B, impossibilitando sua incorporação ao PCDT e o registro de versões genéricas para tratamento do HIV.
A combinação com a entricitabina (TDF/FTC), comercializada como Truvada® pela mesma empresa, é utilizada na profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV desde 2017, reduzindo a possibilidade de infecção. O primeiro registro sanitário na Anvisa de TDF/FTC foi em 2012. Em 2018, foram feitos registros pela empresa Blanver e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
O pedido de patente PI9811045-4, depositado em 1998, foi objeto de diversas oposições. Foram apresentados subsídios ao exame técnico por Farmanguinhos (em 2005 e 2007) e pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) em 200611. Em 2008, o pedido foi indeferido e, apesar de um recurso administrativo, o indeferimento foi mantido em 2009. A empresa ainda tentou revertê-lo, sem sucesso, por meio de ação judicial. Pouco antes do indeferimento do mencionado pedido, a Gilead depositou um pedido dividido, PI9816239-0, que também foi objeto de subsídio pela Abia. Em 2011, esse pedido também foi indeferido e, apesar da empresa depositante ter recorrido, o INPI manteve o indeferimento em 2014, permanecendo o domínio público do TDF2,23,24.
O pedido PI0406760-6, referente à combinação TDF/FTC, expressa a tentativa de patentear dois ARV que já estavam em domínio público no Brasil. Quatro subsídios destacaram que essa combinação não atendia aos requisitos de patenteabilidade. Em 2017, o pedido de patente foi indeferido, mesmo após recurso2. Também foram feitas oposições para o pedido PI0112646-6, que protege a pró-droga TAF: um subsídio em 2016 e um PAN em 2018. Apesar desses esforços, a patente foi expedida e mantida a concessão.
Em 2006, logo após empresas indianas lançarem versões genéricas do TDF, a Gilead estabeleceu acordos de licença voluntária com as mesmas para a produção e comercialização, excluindo a venda para alguns países, entre os quais o Brasil. A Cipla não participou do acordo, tornando-se a única com possibilidade de exportar para o Brasil; entretanto, a empresa nunca registrou este ARV no país, impossibilitando sua comercialização23.
Em 2009, o MS aprovou duas PDP do TDF, que se tornou o primeiro produto vendido para o MS por meio das parcerias. Todavia, alguns estudos indicaram que os preços dos genéricos brasileiros foram não só sistematicamente mais elevados do que os observados internacionalmente, mas acima do esperado para parâmetros nacionais11,23,24. Duas PDP foram firmadas para o TDF/FTC em 2018: a primeira incluiu Farmanguinhos, Blanver, CYG Biotech (adquirida pela Blanver) e Nortec como parceiros; a segunda, entre Nuplam, SEM e Nortec, encontra-se suspensa.

ATV
O ATV foi incorporado ao PCDT para tratamento de HIV em 2004. Seu registro sanitário como Reyataz® foi emitido no Brasil para a Bristol-Myers Squibb (BMS) em 2003 e para a Fiocruz em 2014.
O ATV obteve proteção patentária no país a partir da expedição da patente PI9701877-5, extinta em 2017. A patente PI0509595-6, concedida em 2019, protege um processo de produção de determinados polimorfos do ATV. Em subsídios ao exame técnico a esta última patente, a Abia e a Anvisa destacaram que formas polimórficas estão em desacordo com a LPI e a forma abrangente do pedido de patente poderia ser utilizada como estratégia para futuras práticas de evergreening, estendendo a proteção patentária além dos 20 anos25,26. Entretanto, após a redução do QR, o INPI concluiu que o pedido cumpria com os requisitos de patenteabilidade. Em 2019, foi protocolado um PAN, mas a concessão foi mantida.
De modo similar ao TDF, o Brasil não foi incluído na política de discriminação de preços que a BMS firmou por meio de licenças voluntárias do ATV, fornecendo descontos em países selecionados4.
A PDP para a produção do ATV envolveu Farmanguinhos, BMS e Nortec, foi firmada em 2011 e previu a transferência de tecnologia do insumo farmacêutico ativo (IFA) e de cápsulas de 200 mg e 300 mg, ficando excluídas quaisquer outras combinações. Essa limitação não se fez presente no contrato assinado entre a BMS e o Medicines Patent Pool (MPP). Na prática, a transferência da tecnologia sofreu atraso e a fabricação dos lotes-piloto foi concluída somente em 2020. Houve também controvérsia sobre se a economia do MS atendeu ao previsto no contrato, que estimava redução de 5% do preço por ano de vigência4.

DTG
O DTG foi incorporado ao PCDT para tratamento de HIV em 2017, após intensa demanda da sociedade civil27, incluindo uma iniciativa de redução de preço de 70% por meio da negociação entre o MS e a GlaxoSmithKline (GSK)28. Atualmente, o DTG compõe praticamente todos os esquemas terapêuticos no Brasil por causa da elevada barreira genética para mutações, reduzidos efeitos colaterais e dose única diária22. O DTG é produzido pelas empresas ViiV Healthcare, joint venture entre Pfizer e GSK, e Shionogi. Há apenas um registro do DTG na Anvisa com o nome de Tivicay®, solicitado pela GSK, e três registros de genéricos da Fiocruz, Blanver e Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe).
A patente PI0610030-9, que protege o DTG, depositada por Shionogi e ViiV em 2006, foi contestada em diversos subsídios pela Blanver, Abia e Anvisa. O QR do pedido foi alterado de 56 para sete reivindicações, sendo a patente expedida em 2020. No mesmo ano, a Blanver ingressou com ação judicial, ainda sem decisão final, para suspender a concessão da patente e a Abia entrou com um PAN em 2021, que se encerrou em 2023 com a decisão final do INPI em manter a concessão. Em novembro de 2022, o CNS protocolou um subsídio, recomendando que o INPI declarasse a nulidade da patente por não cumprir com os requisitos de patenteabilidade e por apresentar riscos à sustentabilidade da política de saúde. Contudo, esse documento não foi considerado por falta de fundamentação legal, segundo parecer do INPI.
A ViiV assinou um contrato com o MPP de licença voluntária para o DTG em 2014. Pelo acordo, os produtores poderiam fornecer seus produtos para os mercados público e privado, mas somente sistemas públicos de saúde poderiam ser abastecidos em alguns países. O acordo com o MPP permite a venda de DTG genérico para países fora do território acordado, se não houver patentes impedindo22. Em 2020, foi firmada uma aliança estratégica entre a ViiV e Farmanguinhos para a transferência de tecnologia e produção de DTG no Brasil27.
Além disso, há duas PDP envolvendo o DTG. Uma delas inclui uma parceria entre Lafepe e as empresas Blanver, CYG Biotech e Nortec; e outra entre o Laboratório Químico-Farmacêutico da Aeronáutica (LAQFA) e a Cristália. Nenhuma das PDP inclui a empresa ViiV, o que tem gerado disputas jurídicas sobre as aquisições e validade da patente27.

Gasto governamental na aquisição dos ARV

LPV/r
A Abbott/AbbVie foi a única fornecedora de LPV/r durante todo o período analisado. A apresentação de 200/50 mg foi a mais adquirida pelo DLog/MS até 2017. Neste ano, estima-se que estas aquisições atenderam 43,8 mil pacientes, comparado a 257 e 1.000 pacientes para as apresentações de 100/25 mg e 80/20 mg, respectivamente. Todavia, após 2017, as três apresentações do ARV passaram a ser recomendadas somente para uso pediátrico, apenas as duas últimas apresentações continuaram sendo compradas. Estima-se que a quantidade adquirida de ambas atenderia 2.764 pacientes em 2020.
Observou-se redução dos preços até 2013, quando atingiu o menor valor em todas as apresentações, seguida de aumento a partir de 2014. Em 2020, o gasto total com o medicamento foi de R$ 4,2 milhões, reduzido se comparado a outros ARV (Tabela 1).

Tenofovir: TDF, TDF/FTC e TAF
Até 2010, o TDF foi ofertado por inexigibilidade de licitação pela Gilead. Entre 2011 e 2016, as compras do TDF foram realizadas por dispensa de licitação dos laboratórios Lafepe e Funed. O medicamento voltou a ser adquirido via pregão em 2017, as empresas Cristália e Blanver foram as vencedoras da concorrência. A Gilead foi a fornecedora do TDF/FTC em 2017 e em uma das aquisições realizadas em 2019, e Farmanguinhos tornou-se fornecedor nas aquisições de 2019 e 2020. O TAF não foi comprado pelo DLog/MS até 2020.
É possível observar queda constante e significativa dos preços do TDF, passando de R$ 28,20 para R$ 0,93 por comprimido, em termos reais, entre 2005 e 2020. Entre 2005 e 2010, o preço foi reduzido em 81,1%; houve redução de 23,9% nas aquisições entre 2011 e 2016; e queda de 43,6% entre 2017 e 2020. Desde meados da década de 2010, observou-se diminuição da quantidade média de comprimidos de TDF adquirida, passando de 36,6 milhões entre 2011 e 2015 para somente 8,5 milhões entre 2016 e 2020.
Entre 2017 e 2020, foi observada redução de 14,4% no preço da combinação TDF/FTC e aumento no número de pacientes atendidos de 10 mil para 16,6 mil. Neste último ano, o gasto total com o ARV alcançou R$ 13,5 milhões, superior aos R$ 7,4 milhões da aquisição do TDF (Tabela 2).

ATV
A BMS ou empresas associadas forneceram o ATV ao DLog/MS entre 2009 e 2013. No ano seguinte, Farmanguinhos tornou-se fornecedor, até que a BMS ou associadas venceram pregões em 2017 e 2018. Posteriormente, o fornecimento de Farmanguinhos foi retomado.
Ao longo do período, a queda nos preços foi nítida, especialmente entre 2009 e 2011 e entre 2016 e 2017. Entre 2009 e 2020, o preço do comprimido do ATV foi reduzido em 65%. A maior quantidade de comprimidos foi adquirida em 2018, permitindo atender uma estimativa de 155,5 mil pacientes, com gasto de R$ 253,3 milhões (Tabela 3).

DTG
A GSK manteve-se como a única fornecedora do DTG ao DLog/MS em todo o período analisado. Em 2016, foi possível observar redução do preço por comprimido, em termos reais, de R$ 20,60 para R$ 5,50 e um aumento considerável da quantidade adquirida, de 1,1 milhão para 38,6 milhões de comprimidos. O preço por comprimido sofreu leve redução em 2018, mas apresentou nova tendência de alta nas aquisições seguintes. Em 2020, o MS pagou 60% a mais pelo medicamento em comparação a 2018 e o gasto anual do tratamento por paciente foi superior a R$ 2,3 mil. O crescimento das aquisições possibilitou que o atendimento anual de 110,4 mil pacientes em 2016 chegasse a 345 mil em 2020. Dada a quantidade de pacientes atendidos, o gasto com o DTG chegou a R$ 797,4 milhões em 2020 (Tabela 3).

Comparação com preços internacionais
Para todos os ARV estudados, o preço médio do comprimido adquirido pelo DLog/MS foi superior ao menor preço médio internacional em 2019/2020 (Quadro 2). Entre os medicamentos estudados, o DTG apresentou, incomparavelmente, a maior distância entre o preço pago pelo governo brasileiro e o praticado pelo Unicef (relação de 11,5). O DTG representou o principal gasto do MS com ARV entre 2019 e 2020: R$ 1,1 bilhão, comparado a R$ 450,5 milhões para os demais ARV somados. No outro extremo, a menor relação entre o preço nacional e o internacional (1,49) foi encontrada para o LPV/r 80/20 mg. A relação para o LPV/r 100/25 mg foi um pouco mais elevada (2,67). Não foi calculada a relação para o LPV/r 200/50 mg, porque os dados internacionais foram identificados para anos mais recentes e a compra desta apresentação terminou em 2017.
A relação entre o preço de aquisição do ATV pelo DLog/MS e o preço Unicef foi a segunda menor observada (2,48). Todavia, em termos absolutos, o preço médio do ATV no mercado nacional foi o segundo mais elevado (R$ 4,63) e esse foi o ARV com o maior preço internacional (R$ 1,87), mais que o dobro dos demais. Por fim, a relação de preços nacionais e internacionais para TDF e TDF/FTC foi de 2,62 e 3,34, respectivamente.

Discussão
Apesar de pedidos de patente do LPV/r terem sido indeferidos, a Abbott/AbbVie monopolizou as vendas ao DLog/MS pela ausência de concorrentes no mercado nacional. A queda no número de pacientes em uso de LPV/r ocorreu gradualmente, traduzindo a redução da importância do produto na terapia antirretroviral. As negociações do governo e pressões de movimentos sociais foram direcionadas para outros ARV, justificando a suspensão da PDP.
O lançamento da PDP em 2012 e a extinção de patentes importantes em 2015 não impediram o aumento nos preços do LPV/r a partir de 2014, que pode ser explicado pela inexistência de concorrentes e possível presença de outros pedidos de patente. Ainda assim, comparando com outros ARV, a baixa relevância no gasto total do DLog/MS, a manutenção dos preços relativamente modestos e a baixa relação entre o preço nacional e internacional podem ser associados à entrada em desuso do LPV/r e à baixa quantidade adquirida em 2019 e 2020.
As diferentes modalidades de fornecimento do TDF e do TDF/FTC foram influenciadas pela presença de PDP, com compras de TDF do Lafepe e da Funed e de TDF/FTC de Farmanguinhos entre 2019 e 2020.
A redução dos preços do TDF ao longo do período foi contínua, podendo estar associada a diversos fenômenos: negociação do governo com empresas farmacêuticas entre 2005 e 2006, indeferimento do pedido de patente e lançamento das PDP em 2009/2010, aquisições por meio de PDP entre 2011 e 2016 e concorrência do pregão entre 2017 e 2020. No caso do TDF/FTC, observa-se redução dos preços com o início das vendas pela PDP.
A diminuição da quantidade média de comprimidos de TDF adquirida reflete sua substituição por formulações combinadas. Por fim, a baixa relação entre os preços nacionais e internacionais do TDF e do TDF/FTC pode ter influência do aumento da concorrência e do indeferimento dos pedidos de patente.
A alternância do fornecimento do ATV entre BMS e Farmanguinhos deveu-se ao período de transferência de tecnologia da PDP. Divergências em relação à obrigatoriedade da aquisição do MS via PDP9 permitiram que, mesmo durante o processo de transferência de tecnologia, fosse aberto pregão, no qual a BMS ou associadas foram as vencedoras em 2017 e 2018.
A queda de 65% nos preços do ATV durante o período exemplifica a grande variação de preços de medicamentos durante o monopólio e no fim desse período, já que mesmo quando o fornecimento foi realizado por Farmanguinhos havia uma situação de exclusividade decorrente da PDP. Quando a entidade privada detentora da patente é a transferidora da tecnologia e o tempo é longo, pode haver uma extensão desse monopólio mesmo após a expiração da patente.
Apesar da patente concedida, o ATV teve a segunda menor relação entre os preços nacional e internacional, possivelmente por estar na fase final da PDP e pelo alto preço médio internacional em termos absolutos, fazendo com que a relação com o preço praticado no Brasil não fosse tão expressiva.
Apesar da patente do DTG só ter sido concedida em 2020 e das PDP, a expectativa de concessão manteve a GSK com o monopólio das vendas ao DLog/MS em todo o período. A redução do preço do DTG em 2016 ocorreu após negociação entre a GSK e o MS, resultando em aumento no número de pacientes em uso de DTG pela sua incorporação na primeira linha de tratamento.
Em 2018, quando duas PDP foram assinadas e após o primeiro subsídio ao pedido de patente, houve nova queda nos preços. O aumento de 60% no preço do DTG entre 2018 e 2020 se relaciona temporalmente com a concessão da principal patente do ARV. O elevado preço do DTG, associado à sua importância no PCDT, fez com ele representasse o principal gasto do MS entre os ARV analisados em 2019 e 2020. Futura redução nos preços talvez possa ser observada com a extinção da patente e o aumento da concorrência.
É necessário cuidado ao realizar comparações entre preços praticados no Brasil e no exterior, especialmente quando os valores nacionais são contrapostos aos menores preços praticados no mundo, negociados, em geral, por empresas indianas para distribuição por organizações internacionais. Na prática, estes preços dificilmente serão alcançados nacionalmente, porque os acordos realizados com tais organizações não incluem o Brasil e porque os custos de produção e de desenvolvimento tecnológico são mais elevados no Brasil.
Isto não significa, todavia, que o país não deva fazer esforços de capacitação produtiva e tecnológica na área de medicamentos, por razões de segurança sanitária, de economia ou das externalidades na absorção de novas tecnologias29. Deste modo, a comparação realizada pretendeu somente demonstrar quais preços dos ARV estavam mais próximos destas referências internacionais entre 2019 e 2020.
Além disso, observou-se que todos os registros sanitários dos ARV analisados são das empresas depositantes/detentoras das patentes, de laboratórios públicos ou de empresas brasileiras de genéricos envolvidos nas PDP. Não há, desse modo, outros concorrentes com registros para os medicamentos analisados, mesmo no caso de patentes extintas. Assim, a discussão sobre a precificação de ARV, comparando com os praticados por fabricantes indianos30,31,32, deve levar em conta que essas empresas não estão presentes no mercado brasileiro.
Dos oito pedidos de patente que sofreram oposição, cinco foram indeferidos. As demais patentes, associadas ao ATV, DTG e TAF, foram expedidas, porém com QR reduzidos. Com base no presente levantamento, não é possível afirmar a influência das oposições nestas decisões. Contudo, considerando o papel relatado na literatura12, deve-se considerar a influência das oposições brasileiras no indeferimento e na redução do escopo das patentes concedidas, assim como no estabelecimento de um ambiente favorável para redução do preço10.
Três dos quatro ARV analisados estão incluídos em acordos de licença voluntária entre empresas detentoras das patentes e produtores de genéricos no exterior. Entretanto, um aspecto desafiador tem sido a exclusão de países de renda média alta, entre os quais está o Brasil, contribuindo para que os preços nacionais permaneçam comparativamente elevados22.
Durante a transferência tecnológica das PDP, a empresa responsável pela transferência detém o monopólio da venda para o MS. Se a demanda for de 100%, mesmo com a extinção da patente, o monopólio continuará presente até a finalização do acordo. Dado que os contratos entre as empresas e os laboratórios públicos são sigilosos e que a legislação33 é pouco detalhada sobre o tema, os termos de propriedade intelectual não ficam nítidos. Não foram encontradas informações nesse sentido sobre o ATV, no qual a PDP foi finalizada, mas a patente ainda está vigente. Por fim, ainda que a maior parte das empresas parceiras das PDP seja brasileira, há casos em que transnacionais farmacêuticas participam da parceria como transferidoras de tecnologia, como a BMS.

Considerações finais
Esse trabalho mapeou as aquisições do DLog/MS de ARV selecionados, calculou e analisou o gasto governamental, relacionando com preços internacionais, monopólio patentário, licenças voluntárias, participação em PDP, negociações governamentais e oposições a patentes.
Não foi possível observar uma relação inequívoca entre a expiração da patente e a redução de preços. Outros fatores podem ter influenciado na manutenção de preços elevados, tais como depósitos de outros pedidos de patente, a existência ou não de concorrentes com registro nacional e a substituição do medicamento nos protocolos internacionais.
Na comparação com os menores preços internacionais, ainda que os preços de genéricos nacionais não os alcancem, a internalização da produção no Brasil pode ser incentivada por outras razões, como o fato de o país ser sistematicamente excluído de acordos de licença voluntária, restringindo seu acesso a medicamentos mais baratos. Além disso, o desenvolvimento da capacidade produtiva permite negociar melhores preços, diminui a insegurança em caso de desabastecimento no mercado mundial e aprimora o aprendizado tecnológico.
A questão patentária não está nítida nas normativas das PDP e o sigilo dos contratos torna ainda mais difícil compreender as pactuações. Compreender a extensão dos monopólios propiciada pelo período de transferência de tecnologia, nos casos em que a patente é expira durante esse processo, torna-se essencial para o aprimoramento da política. Houve também insegurança com relação à exclusividade de compra por dispensa de licitação durante alguns anos da vigência das PDP, já que foi permitida a abertura de pregão em alguns anos, indicando fragilidades institucionais que precisam ser superadas.
Em suma, o aprimoramento das PDP envolve aspectos relacionados ao monitoramento, enforcement e transparência, que podem permitir a ampliação da concorrência de forma perene e o aumento das capacitações produtivas e tecnológicas locais associadas à economicidade.
As negociações também se mostraram fundamentais em alguns períodos para a redução de preços. A melhoria nas habilidades para negociação, como sugerido pela Organização Mundial da Saúde (OMS)34, também é elemento importante para alcançar a redução de preços pelo MS. Outra medida destacada pela OMS, já realizada pelo Brasil, ainda que não observada em muitos países, é a transparência na divulgação dos preços dos medicamentos adquiridos pelo governo federal, como foi possível observar ao longo desse trabalho, que se baseou majoritariamente em fontes públicas de informações de preços.
Por fim, também foi possível constatar o papel ativo da sociedade civil para limitar a concessão de patentes ou reduzir seu escopo. Ainda que o trabalho não estabeleça uma relação causal entre as oposições a patentes e a redução do QR ou até o indeferimento de pedidos de patentes, dada a existência de outros fatores, é inegável que os esforços dos atores envolvidos (organizações da sociedade civil, empresas de genéricos e laboratórios públicos) tiveram papel fundamental nos resultados observados.


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Zucoloto, G.F, Scopel, C.T, Villardi, P., Fonseca, C.B, van der Ploeg, S.R.C., Szigethy, L.. Gastos governamentais com antirretrovirais no Brasil e seus principais determinantes. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/nov). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/gastos-governamentais-com-antirretrovirais-no-brasil-e-seus-principais-determinantes/19434?id=19434&id=19434

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