0043/2025 - Gênero e as aberturas poéticas
Gênero e as aberturas poéticas
Autor:
• Bárbara Alves Pereira - Pereira, B.A - <https://orcid.org/0000-0003-1818-4103>ORCID: barbaraalpe.ufrj@gmail.com
Resumo:
Não se aplica.Abstract:
Não se aplica.Conteúdo:
PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. A invenção do impossível: gênero e as poéticas de abertura. São Paulo: Annablume, 2023.
Os debates em torno de gênero e sexualidade na Saúde Coletiva vêm demonstrando como são temas imprescindíveis para atuar contra práticas discriminatórias que historicamente têm restringido o acesso de certos grupos aos serviços de saúde, o que cria obstáculos que comprometem a equidade e a justiça social. Em realidade, a incorporação dessas questões no âmbito da saúde possibilita não apenas a criação de políticas públicas mais inclusivas, como também a promoção de uma abordagem de cuidado que reconheça a pluralidade das experiências humanas e que esteja comprometida com a integralidade do cuidado.
Há pelos menos duas décadas, Pedro Paulo Gomes Pereira vêm contribuindo com esse campo de debates. Recentemente, buscou sintetizar suas contribuições no livro A invenção do impossível: gênero e as poéticas de abertura, tese de titularidade do antropólogo, publicado em 2023, pela editora Annablume. O autor nos chama a acompanhar seus movimentos entre o trabalho de campo e seus processos, em que os interlocutores o interpelam e apresentam desafios e demandando pesquisas colaborativas.
De uma forma geral, o livro discute as “poéticas de abertura” a partir de teorias de Butler, Foucault e Deleuze, enfatizando a liberdade de transitar pelas margens e a imaginação das possibilidades de reinvenção. A proposta desafia a estabilidade da categoria gênero, criticando seu uso mecânico e renaturalizado. Para Pereira, gênero é visto como uma capacidade dinâmica de estabilizar e desestabilizar as normas, e os corpos dissidentes questionam essas normas por meio de novas formas de subjetividade e reinvenção. A ideia central é que a invenção do impossível, fundamentada no desejo e nas poéticas de abertura de gênero, pode desafiar as normas, reinventando corpos e subjetividades.
Pereira se vale de diversas pesquisas que realizou: a começar, pelo seu trabalho etnográfico em um abrigo para pessoas que vivem com HIV entre 1998 e 2000, e, depois, de uma pesquisa que coordenou sobre os itinerários das travestis em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Posteriormente, o autor mostra como pesquisadores, gestores e profissionais de saúde apresentam os desafios da Cracolândia, e trazem suas experiências e seus problemas cotidianos como trabalho, relações, formas de cuidado e mudanças corporais; e como, a partir de suas experiências, formulam teorias para viver os dilemas que enfrentam. Pedro Paulo deixa-se afetar por essas interpelações e denomina esse fazer de uma “antropologia interpelada”. E foi no decorrer do fazer etnográfico que o possibilitou de falar sobre as “poéticas de abertura”.
Depois de apresentar os caminhos de suas pesquisas e esboçar as discussões de gênero, teoria queer e pensamento decolonial – na Introdução e no primeiro capítulo –, o autor se volta, no segundo capítulo, para o corpo e os processos de incorporação. Ao partir de experiências de pesquisa, pedagógicas, com imagens e narrativas fílmicas, no capítulo, o autor procura o capítulo procura refletir sobre os processos de invenção dos corpos de travestis, percorrendo algo de sua economia estilística, da fabricação de beleza, da invenção de complexas formas de incorporação em suas experiências de trânsito e fluxo. Na busca de compreender essas poéticas de abertura, o autor questiona como eles são construídos e afetados por múltiplos elementos, como forças sociais e culturais. O processo de invenção dos corpos das travestis é visto como dinâmico e contínuo, envolvendo resistência e subversão das normas de gênero, criando novas formas de subjetividade.
No terceiro capítulo, Pereira acompanha as travestis envolvidas na cena de crack, no centro da cidade de São Paulo. O texto, em que ele indaga sobre as construções de gênero das travestis na Cracolândia, descreve as relações entre espaço, corpo e gesto. Nas travestis, os corpos transformados na Cracolândia se distanciam do ideal da beleza e de sua poética da reinvenção. No entanto, os corpos dissidentes mudam a paisagem, e os gestos assinalam outra poética, o que aponta, assim, uma possibilidade de vida. Pereira explora como os corpos das travestis são duplamente modificados: primeiro, na sua reinvenção edificada por gestos, práticas estéticas, modos de se vestir, hormônios, silicone. Essas transformações desafiam os padrões convencionais de beleza e estética, criando uma poética dissidente que subverte a violência e as normas sociais, apontando para novas possibilidades de vida e formas de existência não normativas. Depois, seus corpos são modificados no fluxo da cidade: a aridez da vida na rua, o consumo intenso de crack, a interrupção de processos de hormonização, as doenças, as intempéries. Em ambos os casos, os gestos permanecem, como memória encarnada, e indicam a persistência de uma poética que reinventa os corpos.
No penúltimo capítulo, Pereira procura refletir sobre violência contra travestis. Pereira também reflete sobre a violência direcionada às travestis, analisando assassinatos e narrativas associadas a essas violências. Ele busca compreender os motivos dessa violência, suas implicações e o que ela revela sobre as relações entre gênero, sexualidade e violência. O texto questiona se podemos considerar os crimes como de caráter generificado e como esses eventos nos dizem sobre o conceito de gênero. O texto discute como as transformações corporais e performances femininas das travestis desafiam as normas sociais de inteligibilidade sexo/gênero, que impõem comportamentos e ações esperados. Esses desafios expõem brechas que geram respostas violentas, com dispositivos sociais operando para restituir as normas, mesmo após a morte dessas pessoas. A violência extrema, como assassinatos, é o ápice desse mecanismo.
A violência funciona pelo não reconhecimento de certas vidas como dignas, levando à indiferença diante de assassinatos e à naturalização de crimes contra corpos que ocupam espaços marginalizados. Além disso, uma gramática moral retroalimenta essas dinâmicas. Embora não todos os homens cometam violência, o dispositivo se manifesta em situações de desejo onde aversão e prazer se confundem, resultando em agressões físicas e sexuais. Essa hipercorporalidade reforça a violência contra corpos que criam rupturas nas normas, especialmente em momentos de vulnerabilidade.
No final, Pereira foi capaz de repensar o próprio conceito de gênero. Como já indicado, o autor dialoga com a teoria de gênero de Judith Butler1 – o gênero como algo da ordem de natureza regulatória. Butler2 aponta que as normas regulatórias podem se desconectar, mostrar sua instabilidade e abrir para ressignificações. O desejo não é totalmente determinado e a sexualidade nunca é completamente capturada por uma regra. A performatividade de gênero não pode ser teorizada separadamente da prática forçada e reiterativa dos regimes sexuais regulatórios. Pereira propõe, então, uma inversão. A proposta de Pereira consiste em repensar o gênero, não como norma, mas como “abertura, devir, e a capacidade de escapar das normas que tentam impedir a reinvenção poética de novas formas de subjetivação”3 (p. 14). Acompanhando invenções dos corpos e subjetividades dissidentes, ele descreve poéticas que desestabilizam as normas.
Pereira apresenta indagações sem se preocupar em respostas definitivas. No capítulo final, ele propõe que o conceito de gênero deveria surgir das pesquisas, dos encontros etnográficos, em processos complexos de tradução, e não anterior aos encontros. O autor alerta para a possibilidade de que a aplicação universal de conceitos, como o de gênero, possa acabar impondo violência às categorias locais. O conceito de gênero deve ser visto como processo de tradução que se expande e ganha novos significados ao longo do tempo. Assim, para evitar que suas ideias sejam mal interpretadas, propõe também que devamos distorcer, movimentar e reinventar esses conceitos, aprendendo com as poéticas de abertura e com suas invenções do impossível. Mais uma vez, ele nos desafia a pensar o gênero como algo em aberto, e não como um conceito fechado.
Certamente, por abordar questões relacionadas ao corpo, saúde e populações de rua, o livro é indicado para profissionais e pesquisadores da Saúde Coletiva, em especial da área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Além disso, é uma leitura indicada para quem trabalha e pesquisa temáticas de gênero e sexualidade, oferecendo reflexões para o aprofundamento nessas áreas.
Certa vez, Judith Butler4 (p. xv) escreveu sobre a “vasta contribuição para a teoria de gênero” empreendida por Pereira. A invenção do impossível: gênero e as poéticas de abertura sintetiza e amplia a contribuição ao se colocar em perspectiva: ao invés de uma imposição, o livro é um convite ao diálogo. Trata-se de fazer perguntas em constante movimento, sem respostas definitivas, mas com um apelo para repensar e reinventar.
Referências
1 Butler J. Bodies that matter: On the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.
2 Butler J. Deshacer el género. Barcelona: Paidós; 2006.
3 Deslandes K. Prefácio. In: Pereira, PPG. A invenção do impossível: gênero e as poéticas de abertura. São Paulo: Annablume; 2023. p. 13-15.
4 Butler J. Foreword – Experiencing Other Concepts. In: Pereira PPG. Queer in the Tropics: Gender and Sexuality in the Global South. Switzerland: Springer; 2019. p. xiii-xv.
Os debates em torno de gênero e sexualidade na Saúde Coletiva vêm demonstrando como são temas imprescindíveis para atuar contra práticas discriminatórias que historicamente têm restringido o acesso de certos grupos aos serviços de saúde, o que cria obstáculos que comprometem a equidade e a justiça social. Em realidade, a incorporação dessas questões no âmbito da saúde possibilita não apenas a criação de políticas públicas mais inclusivas, como também a promoção de uma abordagem de cuidado que reconheça a pluralidade das experiências humanas e que esteja comprometida com a integralidade do cuidado.
Há pelos menos duas décadas, Pedro Paulo Gomes Pereira vêm contribuindo com esse campo de debates. Recentemente, buscou sintetizar suas contribuições no livro A invenção do impossível: gênero e as poéticas de abertura, tese de titularidade do antropólogo, publicado em 2023, pela editora Annablume. O autor nos chama a acompanhar seus movimentos entre o trabalho de campo e seus processos, em que os interlocutores o interpelam e apresentam desafios e demandando pesquisas colaborativas.
De uma forma geral, o livro discute as “poéticas de abertura” a partir de teorias de Butler, Foucault e Deleuze, enfatizando a liberdade de transitar pelas margens e a imaginação das possibilidades de reinvenção. A proposta desafia a estabilidade da categoria gênero, criticando seu uso mecânico e renaturalizado. Para Pereira, gênero é visto como uma capacidade dinâmica de estabilizar e desestabilizar as normas, e os corpos dissidentes questionam essas normas por meio de novas formas de subjetividade e reinvenção. A ideia central é que a invenção do impossível, fundamentada no desejo e nas poéticas de abertura de gênero, pode desafiar as normas, reinventando corpos e subjetividades.
Pereira se vale de diversas pesquisas que realizou: a começar, pelo seu trabalho etnográfico em um abrigo para pessoas que vivem com HIV entre 1998 e 2000, e, depois, de uma pesquisa que coordenou sobre os itinerários das travestis em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Posteriormente, o autor mostra como pesquisadores, gestores e profissionais de saúde apresentam os desafios da Cracolândia, e trazem suas experiências e seus problemas cotidianos como trabalho, relações, formas de cuidado e mudanças corporais; e como, a partir de suas experiências, formulam teorias para viver os dilemas que enfrentam. Pedro Paulo deixa-se afetar por essas interpelações e denomina esse fazer de uma “antropologia interpelada”. E foi no decorrer do fazer etnográfico que o possibilitou de falar sobre as “poéticas de abertura”.
Depois de apresentar os caminhos de suas pesquisas e esboçar as discussões de gênero, teoria queer e pensamento decolonial – na Introdução e no primeiro capítulo –, o autor se volta, no segundo capítulo, para o corpo e os processos de incorporação. Ao partir de experiências de pesquisa, pedagógicas, com imagens e narrativas fílmicas, no capítulo, o autor procura o capítulo procura refletir sobre os processos de invenção dos corpos de travestis, percorrendo algo de sua economia estilística, da fabricação de beleza, da invenção de complexas formas de incorporação em suas experiências de trânsito e fluxo. Na busca de compreender essas poéticas de abertura, o autor questiona como eles são construídos e afetados por múltiplos elementos, como forças sociais e culturais. O processo de invenção dos corpos das travestis é visto como dinâmico e contínuo, envolvendo resistência e subversão das normas de gênero, criando novas formas de subjetividade.
No terceiro capítulo, Pereira acompanha as travestis envolvidas na cena de crack, no centro da cidade de São Paulo. O texto, em que ele indaga sobre as construções de gênero das travestis na Cracolândia, descreve as relações entre espaço, corpo e gesto. Nas travestis, os corpos transformados na Cracolândia se distanciam do ideal da beleza e de sua poética da reinvenção. No entanto, os corpos dissidentes mudam a paisagem, e os gestos assinalam outra poética, o que aponta, assim, uma possibilidade de vida. Pereira explora como os corpos das travestis são duplamente modificados: primeiro, na sua reinvenção edificada por gestos, práticas estéticas, modos de se vestir, hormônios, silicone. Essas transformações desafiam os padrões convencionais de beleza e estética, criando uma poética dissidente que subverte a violência e as normas sociais, apontando para novas possibilidades de vida e formas de existência não normativas. Depois, seus corpos são modificados no fluxo da cidade: a aridez da vida na rua, o consumo intenso de crack, a interrupção de processos de hormonização, as doenças, as intempéries. Em ambos os casos, os gestos permanecem, como memória encarnada, e indicam a persistência de uma poética que reinventa os corpos.
No penúltimo capítulo, Pereira procura refletir sobre violência contra travestis. Pereira também reflete sobre a violência direcionada às travestis, analisando assassinatos e narrativas associadas a essas violências. Ele busca compreender os motivos dessa violência, suas implicações e o que ela revela sobre as relações entre gênero, sexualidade e violência. O texto questiona se podemos considerar os crimes como de caráter generificado e como esses eventos nos dizem sobre o conceito de gênero. O texto discute como as transformações corporais e performances femininas das travestis desafiam as normas sociais de inteligibilidade sexo/gênero, que impõem comportamentos e ações esperados. Esses desafios expõem brechas que geram respostas violentas, com dispositivos sociais operando para restituir as normas, mesmo após a morte dessas pessoas. A violência extrema, como assassinatos, é o ápice desse mecanismo.
A violência funciona pelo não reconhecimento de certas vidas como dignas, levando à indiferença diante de assassinatos e à naturalização de crimes contra corpos que ocupam espaços marginalizados. Além disso, uma gramática moral retroalimenta essas dinâmicas. Embora não todos os homens cometam violência, o dispositivo se manifesta em situações de desejo onde aversão e prazer se confundem, resultando em agressões físicas e sexuais. Essa hipercorporalidade reforça a violência contra corpos que criam rupturas nas normas, especialmente em momentos de vulnerabilidade.
No final, Pereira foi capaz de repensar o próprio conceito de gênero. Como já indicado, o autor dialoga com a teoria de gênero de Judith Butler1 – o gênero como algo da ordem de natureza regulatória. Butler2 aponta que as normas regulatórias podem se desconectar, mostrar sua instabilidade e abrir para ressignificações. O desejo não é totalmente determinado e a sexualidade nunca é completamente capturada por uma regra. A performatividade de gênero não pode ser teorizada separadamente da prática forçada e reiterativa dos regimes sexuais regulatórios. Pereira propõe, então, uma inversão. A proposta de Pereira consiste em repensar o gênero, não como norma, mas como “abertura, devir, e a capacidade de escapar das normas que tentam impedir a reinvenção poética de novas formas de subjetivação”3 (p. 14). Acompanhando invenções dos corpos e subjetividades dissidentes, ele descreve poéticas que desestabilizam as normas.
Pereira apresenta indagações sem se preocupar em respostas definitivas. No capítulo final, ele propõe que o conceito de gênero deveria surgir das pesquisas, dos encontros etnográficos, em processos complexos de tradução, e não anterior aos encontros. O autor alerta para a possibilidade de que a aplicação universal de conceitos, como o de gênero, possa acabar impondo violência às categorias locais. O conceito de gênero deve ser visto como processo de tradução que se expande e ganha novos significados ao longo do tempo. Assim, para evitar que suas ideias sejam mal interpretadas, propõe também que devamos distorcer, movimentar e reinventar esses conceitos, aprendendo com as poéticas de abertura e com suas invenções do impossível. Mais uma vez, ele nos desafia a pensar o gênero como algo em aberto, e não como um conceito fechado.
Certamente, por abordar questões relacionadas ao corpo, saúde e populações de rua, o livro é indicado para profissionais e pesquisadores da Saúde Coletiva, em especial da área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Além disso, é uma leitura indicada para quem trabalha e pesquisa temáticas de gênero e sexualidade, oferecendo reflexões para o aprofundamento nessas áreas.
Certa vez, Judith Butler4 (p. xv) escreveu sobre a “vasta contribuição para a teoria de gênero” empreendida por Pereira. A invenção do impossível: gênero e as poéticas de abertura sintetiza e amplia a contribuição ao se colocar em perspectiva: ao invés de uma imposição, o livro é um convite ao diálogo. Trata-se de fazer perguntas em constante movimento, sem respostas definitivas, mas com um apelo para repensar e reinventar.
Referências
1 Butler J. Bodies that matter: On the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.
2 Butler J. Deshacer el género. Barcelona: Paidós; 2006.
3 Deslandes K. Prefácio. In: Pereira, PPG. A invenção do impossível: gênero e as poéticas de abertura. São Paulo: Annablume; 2023. p. 13-15.
4 Butler J. Foreword – Experiencing Other Concepts. In: Pereira PPG. Queer in the Tropics: Gender and Sexuality in the Global South. Switzerland: Springer; 2019. p. xiii-xv.