EN PT

Artigos

0389/2024 - Início oportuno do pré-natal em adolescentes vítimas de violência sexual: implicações para o aborto legal no Brasil
Timely initiation of antenatal care in adolescent victims of sexual violence: implications for legal abortion in Brazil

Autor:

• Luiza Eunice Sá da Silva - Silva, L.E.S - <luizaeunice@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1320-4937

Coautor(es):

• Janaina Calu Costa - Costa, J.C - <jcosta@equidade.org>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7912-8685

• Cauane Blumenberg - Blumenberg, C. - <cblumenberg@equidade.org>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4580-3849

• Natália Peixoto Lima - Lima, N.P - <nlima@equidade.org>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7181-3717

• Luis Paulo Vidaletti Ruas - Ruas, L.P.V - <lpvidaletti@equidade.org>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2840-6841

• Francine dos Santos Costa - Costa, F.S - <francinesct@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9558-937X

• Aluísio J. D. Barros - Barros, A.J.D - <abarros@equidade.org>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2022-8729

• Fernando César Wehrmeister - Wehrmeister, F.C - <fwehrmeister@equidade.org>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7137-1747

• Cesar Gomes Victora - Victora, C.G - <cvictora@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2465-2180



Resumo:

Investigamos o início oportuno do pré-natal em adolescentes brasileiras para subsidiar a discussão nacional sobre o limite de idade gestacional para o aborto legal. Com dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC) 2020-2022 correlacionamos o início oportuno do pré-natal (primeiro trimestre da gestação) com a idade da adolescente, região, raça/cor e escolaridade. Considerando a idade estimada na concepção, estimamos que 11.607 partos anuais resultam de estupro de vulnerável. O início oportuno aumentou com a idade, sendo de 70,2% para todas as adolescentes (<20 anos), mas de apenas 55,6% para aquelas abaixo de 13 anos; 14,1% das adolescentes iniciaram o pré-natal com 22 semanas ou mais de gestação (28,3% entre <13 anos). O início oportuno foi menor na Região Norte, entre meninas indígenas e entre aquelas com baixa escolaridade. Os resultados questionam o recente projeto de lei de limitar o aborto legal para vítimas de estupro de vulnerável até 22 de semanas de idade gestacional. Demoras no reconhecimento da gestação e na comunicação para a família contribuem para o início tardio do pré-natal e para a decisão de abortar. A proposta de limite do prazo para abortos legais irá atingir principalmente as adolescentes mais vulneráveis em termos socioeconômicos e raciais.

Palavras-chave:

Gravidez na Adolescência, Estupro, Aborto, Nascido vivo, Cuidado pré-natal

Abstract:

We investigated the timely initiation of antenatal care among Brazilian adolescents to support the national discussion on the gestational age limit for legal abortion. Using data from the Live Births Information System (SINASC) from 2020 to 2022, we correlated timely prenatal care (in the first trimester of pregnancy) with the adolescent's age, region, race/color, and education level. Considering the estimated age at conception, we estimate that 11,607 annual births result from vulnerable rape. Timely initiation increased with age, being 70.2% for all adolescents (<20 years), but only 55.6% for those under 13; 14.1% of adolescents started antenatal care at 22 weeks or more of gestation (28.3% among those <13 years). Timely initiation was lower in the North Region, among Indigenous girls, and among those with low educational attainment. The results challenge the recent legislative proposal to limit legal abortion for victims of vulnerable rape to up to 22 weeks of gestational age. Delays in recognizing pregnancy and communicating with the family contribute to the late initiation of antenatal care and the decision to abort. The proposed deadline for legal abortions will primarily affect the most socioeconomically and racially vulnerable adolescents.

Keywords:

Pregnancy in Adolescence, Rape, Abortion, Live Birth, Prenatal Care

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
A assistência pré-natal adequada é fundamental para garantir a saúde da gestante e o desenvolvimento saudável da criança, pois possibilita a implementação de ações de apoio, prevenção, triagem, diagnóstico e assistência ao longo de um período crítico1. A Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde do Brasil recomendam que o pré-natal seja iniciado no primeiro trimestre de gestação, ou seja, até a 12ª semana, pois possibilita a triagem eficaz de condições da gestação e permite intervenções e orientações para redução de riscos à saúde e promoção de uma gestação mais saudável 1. O início oportuno do acompanhamento tem sido utilizado como um dos indicadores da adequação e qualidade do cuidado pré-natal1.
Na adolescência, a gestação demanda um cuidado especial pelas particularidades dessa faixa etária, pois os riscos de eventos de saúde adversos são elevados, além das complexas condições sociais e econômicas que podem limitar, por exemplo, o acesso da jovem gestante à educação2,3. Dados de um inquérito nacional realizado em 2011 mostraram que gestações de adolescentes de 12 a 16 anos de idade têm maior risco de prematuridade espontânea, tanto em comparação às adolescentes de 17 a 19 anos (razão de odds = 1,49), quanto às adultas jovens de 20 a 34 anos de idade (razão de odds = 2,38)4. Outro estudo que utilizou dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC) de 2011 a 2021 mostrou que os nascidos vivos de adolescentes brasileiras de 10 a 14 anos apresentaram maiores percentuais de prematuridade (18,9%) e de baixo peso ao nascer (14,5%) do que em qualquer outra faixa etária5.
Embora o Brasil tenha avançado na criação de políticas de saúde voltadas para adolescentes e na proteção de seus direitos, muitas jovens ainda enfrentam dificuldades e estigmas no acesso aos serviços de saúde para diagnóstico oportuno da gravidez e a realização do aborto legal6,7. Tais barreiras estão relacionadas a contextos demográficos, sociais e econômicos, resultando em variações entre diferentes grupos conforme a região de residência e às condições socioeconômicas das adolescentes e suas famílias8. Estudos mostram que a maioria das parturientes adolescentes são pretas e pardas, iniciaram tardiamente o pré-natal e realizaram menos consultas do que os sete contatos recomendados durante a gestação7-9. Entretanto, até o momento, nenhum estudo se propôs a analisar o início do acompanhamento pré-natal para cada ano de idade da adolescente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) destaca a importância da proteção dos direitos dos adolescentes e da implementação de políticas públicas que assegurem sua saúde e bem-estar, reconhecendo as vulnerabilidades advindas da gravidez na adolescência10. Além disso, o Artigo 217-A do Código Penal brasileiro define como estupro de vulnerável "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos", o que caracteriza a gravidez de meninas de 14 anos ou menos como resultado de um ato criminoso11. Nesse contexto, o Artigo 128 do mesmo código autoriza a realização do aborto em casos de gravidez resultante de estupro, sem restrição quanto à idade gestacional12.
Na contramão do Código Penal, um projeto de lei foi proposto em 2024 na Câmara de Deputados (Projeto de Lei n. 1.904/2024) equiparando o aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, mesmo em situações de estupro13. No entanto, tal prazo pode ser demasiadamente curto para adolescentes violentadas em função de diversos fatores, como demora no reconhecimento da gestação, receios em comunicá-la para a família e em procurar atendimento, e dificuldades em obter autorização judicial e acessar hospitais que realizem abortos legais. Para subsidiar esta discussão, é importante descrever iniquidades associadas ao início do acompanhamento pré-natal conforme a idade das adolescentes, as quais podem impedir que a adolescente violentada tenha acesso a um aborto legal antes de sua gestação completar 22 semanas. Analisamos mais de 1 milhão de gestações de adolescentes brasileiras para documentar padrões etários de início oportuno do pré-natal conforme a região do país, a raça/cor da pele e a escolaridade da adolescente.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo retrospectivo utilizando dados do SINASC referentes aos anos de 2020, 2021 e 2022. O sistema tem como base a Declaração de Nascido Vivo (DNV), documento cuja emissão é obrigatória no serviço onde ocorreu o parto e tem como principal finalidade caracterizar as condições da gestação, do parto e do nascimento em todo o território nacional. A DNV contém várias informações sobre a parturiente e a gestação, incluindo a idade em anos completos (campo de preenchimento obrigatório), a data de nascimento da parturiente, e o mês de gestação em que iniciou o pré-natal.
As parturientes adolescentes (com até 19 anos no momento do parto) constituíram o foco das análises, que foram estratificadas pela idade em anos completos. Para garantir o tamanho amostral, adolescentes com 12 anos ou menos de idade foram agrupadas. Em algumas análises, foram utilizadas como grupo de comparação as parturientes com 20 anos ou mais de idade. Vale ressaltar que a idade da gestante na concepção é aproximadamente nove meses menor que sua idade no momento do parto. Assim, para as parturientes de 14 anos completos, estimou-se a idade da concepção subtraindo o número de semanas de idade gestacional (dividido por 52 para ser expresso em frações de ano) da idade exata da menina por ocasião do parto.
O início oportuno do pré-natal foi definido quando ocorreu durante o primeiro trimestre da gestação (primeiras 12 semanas), conforme preconizado pelo Ministério da Saúde1. Calculou-se também os percentuais de parturientes cujo atendimento pré-natal iniciou com cinco meses ou mais de gestação, o que corresponde a aproximadamente 21,7 semanas. Como a DNV não registra a idade gestacional em semanas por ocasião da primeira consulta, usamos nas análises o ponto de corte de cinco meses como correspondendo às 22 semanas propostas na legislação.
Foram calculadas as proporções de partos que tiveram início do pré-natal oportuno segundo: região de residência (Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste), raça/cor da pele (branca, parda, preta, indígena) e escolaridade (menos de 4 anos, 4 a 7 anos e 8 anos e mais). A categoria de raça/cor ‘amarela’ (origem asiática/oriental) não foi incluída nas análises estratificadas por raça/cor por incluir apenas 3.943 parturientes adolescentes, concentradas em 18 e 19 anos de idade.
As análises da associação entre a proporção de início do pré-natal oportuno e a idade ajustadas pelas variáveis sociodemográficas foram baseadas em razões de prevalência (RP) e os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC 95%), estimadas por modelos de regressão de Poisson. Foram testadas interação entre a idade e região de residência, raça/cor da pele e escolaridade.
Os dados do SINASC são disponibilizados publicamente pelo Ministério da Saúde em seu portal eletrônico (https://datasus.saude.gov.br/transferencia-de-arquivos/) e todas as informações das parturientes e nascidos vivos são anônimas. As análises foram realizadas utilizando o software estatístico Stata (StataCorp. 2023. Stata Statistical Software: Release 18. College Station, TX: StataCorp LLC.)
?
RESULTADOS
Entre 2020 e 2022 o Brasil registrou 7.968.916 nascimentos. Dentre as parturientes, 1.061.967 eram adolescentes (13,3% do total), variando de 1.958 com 12 anos ou menos e 314.342 com 19 anos (Tabela 1). O grupo com 12 anos ou menos incluiu 1 menina reportadamente com 8 anos, 18 com 10 anos, 284 com 11 anos e 1.654 com 12 anos, totalizando 1.958 menores de 13 anos por ocasião do parto. Houve ainda 9.793 partos de meninas com 13 anos e 37.576 com 14 anos. Entre essas últimas, 61,4% engravidaram antes do 14º aniversário, totalizando 23.072 partos. Quando estas são somadas às parturientes com 13 anos ou menos, obtém-se o total de 34.823 partos no triênio 2020-2022, ou 11.607 partos anuais decorrentes de estupro de adolescentes que engravidaram com menos de 14 anos.
A proporção total de adolescentes que iniciaram o pré-natal no primeiro trimestre foi de 70,2%. Essa cobertura aumentou com a idade, variando entre 55,6% no grupo de 12 anos ou menos até 77,8% para aquelas com 19 anos; entre mulheres com 20 anos ou mais, 84,9% tiverem início oportuno do pré-natal (Figura 1 e Tabela Suplementar 1). O teste para tendência linear em proporções foi significante (p<0,0001), com um aumento de 3,0 pontos percentuais (pp) por ano de idade (Figura 1 e Tabela Suplementar 2). Embora a associação entre idade e início oportuno não seja perfeitamente linear, optou-se por citar o coeficiente da regressão, o qual indica o valor médio de aumento por ano de idade durante toda a adolescência.
Os resultados sobre os percentuais de adolescentes cuja primeira consulta foi com 22 semanas ou mais foram também muito relevantes, variando de 28,3% entre meninas com 12 anos ou menos a 12,2% para aquelas com 19 anos (Tabela Suplementar 3).
O padrão etário de início oportuno variou entre as regiões do país (Figura 2 e Tabela suplementar 1). Em todas as regiões, a proporção aumentou com a idade. Na maioria dos grupos etários, as frequências observadas na região Norte foram cerca de 10 pp inferiores às observadas nas demais regiões. A exceção ocorreu entre adolescentes com 12 anos ou menos na Região Centro-Oeste, com 44,4%, inferior aos 46,3% da Região Norte. Vale notar que 65% das parturientes menores de 13 anos no Centro-Oeste eram indígenas, e que a partir dos 14 anos, as coberturas se equipararam às observadas nas demais regiões, excetuando-se a Região Norte. Houve interação entre idade e região (p<0,0001). O maior aumento por ano de idade foi observado na Região Sul (3,1 pp) e o menor na Região Norte (1,8 pp) (Tabela Suplementar 2). Vale salientar que aumentos menores estão associados com coberturas mais altas entre adolescentes jovens, relativamente às adolescentes com mais anos de idade.
O padrão de início oportuno de pré-natal também apresentou variações de acordo com a raça/cor das parturientes (Figura 3 e Tabela suplementar 1). Em todos os grupos analisados, observou-se um aumento no início oportuno com o aumento da idade. No entanto, tal aumento foi menos acentuado entre as parturientes indígenas, que apresentaram baixas frequências em todas as idades (46,3% entre aquelas com 12 anos ou menos e 61,7% com 19 anos). As maiores coberturas foram registradas entre adolescentes brancas (63,6% com 12 anos ou menos e 83,1% com 19 anos), seguidas por adolescentes pardas e pretas, com uma ligeira desvantagem para essas últimas. O teste para interação foi significante (p<0,0001), com os aumentos por ano de idade variando entre 1,6 pp nas indígenas, 2,6 pp entre as pretas, 2,8 pp entre as pardas e 3,2 pp entre adolescentes brancas (Tabela Suplementar 2).
O início oportuno do pré-natal também variou de acordo com a escolaridade da parturiente (Figura 4 e Tabela suplementar 1). De modo geral, adolescentes com mais anos de escolaridade apresentaram maiores coberturas em todas as idades. Entre as parturientes de 15 anos de idade, com escolaridade acima de 8 anos de estudos, 71,3% realizaram o pré-natal oportuno, enquanto a frequência foi de apenas 59,9% entre aquelas com menos de 4 anos de escolaridade (Figura 4 e Tabela suplementar 1). A Figura 4 omite os resultados quando as idades das adolescentes seriam possivelmente incompatíveis com o número de anos de escolaridade. O teste para heterogeneidade (p<0,0001) mostrou que os aumentos com a idade foram associados positivamente com a escolaridade, variando entre 1,4 pp para meninas com menos de 4 anos de escolaridade para um aumento de 2,6 pp para aquelas com escolaridade de 8 anos ou mais por ano de idade (Tabela Suplementar 2).
DISCUSSÃO
O início oportuno do pré-natal é uma das principais estratégias para reduzir os índices de morbimortalidade materna e perinatal1. No entanto, essa prática está relacionada a fatores sociodemográficos, culturais e econômicos que influenciam o acesso aos serviços de saúde. Desigualdades no acesso, resultam em coberturas variáveis entre diferentes estratos populacionais. Nossos resultados demonstram que a idade da parturiente esteve diretamente associada à cobertura de início oportuno, a qual alcançou apenas 55,6%, 61,1% e 66,3% das adolescentes com 12 anos ou menos, 13 anos e 14 anos, respectivamente, enquanto a cobertura foi de 84,9% entre mulheres com 20 anos ou mais. Igualmente relevante foi o achado de que 14,1%, ou cerca de uma em cada sete adolescentes, iniciaram o pré-natal após as 22 semanas de idade gestacional, sendo que este percentual foi de 28,3% naquelas com 12 anos ou menos de idade.
Nossas análises mostraram que as desigualdades conforme a idade, foram superpostas a disparidades de acordo com a região, raça/cor e escolaridade das adolescentes, caracterizando diversos tipos de interseccionalidade decorrentes da interação entre essas diferentes dimensões, levando a experiências únicas de iniquidades.
Em termos de distribuição geográfica, as regiões Norte e Nordeste apresentam proporções de pré-natal oportuno entre adolescentes inferiores em comparação ao Sul e Sudeste, evidenciando disparidades no acesso aos serviços de saúde. Victora et al. (2011) identificaram marcadas desigualdades regionais nas condições de acesso à saúde materno-infantil, cuja origem estaria ligada às iniquidades sociais que predominam nas regiões mais vulneráveis do país14. Chama a atenção a baixa cobertura observada na região Centro-Oeste entre adolescentes com 12 anos ou menos, entre as quais 65% são indígenas (dados não mostrados), o que remete às desigualdades étnicas discutidas abaixo. Características regionais como o casamento precoce e a gravidez na adolescência, podem estar relacionados a essas desigualdades5,15,16.
Jovens indígenas enfrentam maiores dificuldades para iniciar o acompanhamento pré-natal, evidenciando a intersecção entre raça/cor e desigualdade social. O Primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas realizado entre 2008 e 2009, que investigou uma amostra representativa de mulheres com 14-49 anos e crianças menores de cinco anos, identificou que apenas 30% das indígenas iniciaram o pré-natal no primeiro trimestre16. Nossos resultados para 2020-2022 indicam um aumento na cobertura um pouco acima de 50%, mesmo assim muito abaixo do recomendado. A assistência à saúde de mulheres indígenas brasileiras é precária. Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) organize serviços nas aldeias por meio do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), persistem baixas coberturas, em grande parte devido a questões culturais8,16. Por exemplo, percentuais de solicitação de exames laboratoriais durante as consultas de pré-natal são muito inferiores aos obtidos para gestantes não indígenas atendidas pelo SUS, assim como, baixos percentuais de vacinação contra difteria e tétano (64%) e de prescrição de sulfato ferroso (44%)16.
Adolescentes pretas e pardas também apresentaram menores coberturas de início oportuno do pré-natal do que meninas brancas em todas as idades, o que reflete um padrão já identificado de iniquidades raciais no cuidado pré-natal independentemente da idade da mulher, que revelam influência sistêmica do racismo e da discriminação na oferta do cuidado17,18. Dessa forma, nossos resultados reafirmam a importância dos contextos e processos históricos que farão com que meninas e mulheres vivenciem de forma desigual o exercício de seus direitos reprodutivos.
O início oportuno do pré-natal também se mostrou positivamente associado à escolaridade da adolescente, dentro de cada grupo de idade. Considerando que muitas adolescentes ainda não tiveram oportunidade de completar seu histórico escolar, principalmente as mais jovens, a maioria dos estudos existentes focou na relação positiva entre escolaridade e início oportuno do pré-natal entre adultas19. Contudo, a literatura corrobora as análises aqui apresentadas, indicando que entre adolescentes com mais anos de estudo há maior autonomia para cuidar da própria saúde e maior conscientização sobre a importância de utilizar serviços de saúde durante a gravidez20.
Nosso estudo possui algumas limitações. Embora o SINASC cubra a quase totalidade de nascimentos no país21, os dados podem ser afetados por omissões e erros nos registros da DNV. Além disso, nossas análises não incluem abortos legais ou clandestinos, tampouco natimortos para os quais a DNV não se aplica22. Destaca-se, ainda, que a idade da parturiente se refere à ocasião do parto, ou seja, cerca de nove meses após a concepção. Embora para a maioria das parturientes teria sido possível estimar suas idades ao conceber, optamos por apresentar os principais resultados por idades na data do parto, relatando a idade estimada da concepção apenas para parturientes de 14 anos, para identificar quais teriam sido vítimas de estupro. Apesar das limitações dos dados de sistemas de informação, seu uso representa uma fonte valiosa para orientar as políticas de atenção à gestante e ao recém-nascido nos níveis municipal, estadual e nacional21,22.
Acreditamos ser o presente estudo o primeiro a documentar o início oportuno de pré-natal para adolescentes estratificadas por idade em anos exatos. Outros aspectos positivos das análises incluem a representatividade nacional e o grande número de gestações estudadas. Embora o SINASC tenha cobertura populacional, optamos por calcular estatísticas inferenciais (como testes de significância estatística e intervalos de confiança) como se os dados fossem uma amostra de populações similares em outros períodos. Devido ao grande tamanho amostral, os testes mostraram altos níveis de significância estatística (mesmo quando as diferenças eram pequenas) e grande precisão nos parâmetros estimados.
Nossos resultados podem contribuir para o atual debate sobre a idade gestacional em que abortos legais são permitidos no Brasil, discussão essa que tem sido afetada por opções políticas e religiosas, em detrimento do conhecimento científico e dos direitos reprodutivos de meninas e mulheres. Considerando que a legislação brasileira classifica relações sexuais com menores de 14 anos como estupro de vulnerável e que a maioria dos casos envolve agressores próximos das vítimas15, demoras no reconhecimento da gravidez pelas adolescentes e sua comunicação para as famílias contribuem para que o início do acompanhamento ocorra de forma tardia e para dificuldade de realização do aborto previsto em lei. Mostramos que nada menos do que 28,3% das meninas que tiveram filhos com 12 anos ou menos somente buscaram acompanhamento pré-natal com 22 ou mais semanas de gestação. Após o contato inicial com serviços de saúde e a opção pelo aborto legal, há necessidade de conseguir acesso a um serviço de saúde habilitado a realizá-lo. Em vários casos documentados recentemente23, houve necessidade de recorrer ao judiciário para garantir que serviços de saúde realizem o procedimento. Ressalta-se ainda a importância da implementação de estratégias de comunicação e programas educativos relacionados à saúde sexual e reprodutiva para promover a autonomia sobre a sexualidade e enfrentar a violência sexual9.
A interrupção da gestação decorrente de violência sexual é respaldada pela legislação brasileira, sem restrição quanto à semana gestacional11. Contudo, em junho de 2024, foi proposto na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, mesmo nos casos em que a interrupção é legalmente permitida, como nas situações de estupro de vulnerável12. Essa proposta estabelece penas equivalentes às do homicídio simples, podendo inclusive resultar em uma penalização maior para a vítima do que para o seu agressor. Assim, ela não apenas ignora a vulnerabilidade da jovem que sofre violência sexual, mas também desconsidera as iniquidades sociais que afetam o diagnóstico precoce da gravidez e o acesso ao direito em legislação. Após intensa mobilização dos movimentos populares de mulheres, o projeto de lei não avançou, mas persiste a possibilidade de que seja reapresentado no futuro. Levando em conta a idade por ocasião da concepção, nossa estimativa é de que cerca de 11.607 partos anuais ocorram como decorrência de estupro de meninas menores de 14 anos, sem contar gestações resultantes em natimortos e abortos espontâneos ou provocados (legais ou clandestinos)24. O limite de 22 semanas para a realização de abortos legais é claramente incompatível com o quadro descrito acima.
As desigualdades na cobertura do pré-natal entre parturientes adolescentes brasileiras são evidentes e se manifestam de maneira preocupante quando analisadas por região, raça/cor e escolaridade. Diversas iniciativas - em particular a Rede Cegonha lançada em 2011 e reestruturada em 2024 como Rede Alyne - têm sido direcionadas para promover uma distribuição mais equitativa de recursos, visando reduzir disparidades regionais, socioeconômicas e raciais no cuidado integral de gestantes e crianças9. Tais iniciativas precisam ser continuamente monitoradas e avaliadas para garantir que seus objetivos estão sendo alcançados. Não obstante importantes reduções nas desigualdades em saúde de mulheres e crianças observadas a partir da criação do SUS em 198810,25, nossos atuais resultados evidenciam a continuada necessidade de ações integradas, fundamentadas em evidências, para garantir a proteção das adolescentes e seu acesso ao aborto legal.
Contribuições dos autores
LES Silva participou do delineamento, análises estatísticas, redação dos resultados, interpretação das análises estatísticas e dos resultados, redação da primeira versão do artigo e revisão crítica do artigo. C Victora concebeu o artigo, participou da concepção do estudo, planejamento, delineamento, interpretação das análises estatísticas e dos resultados, realizou a supervisão do trabalho e a revisão crítica do artigo. JC Costa, C Blumenberg, NP Lima, LPV Ruas, FS Costa, AJD Barros e FC Wehrmeister participaram das análises e interpretação dos resultados, revisão crítica do artigo. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo.

FINANCIAMENTO
Departamento de Ciência e Tecnologia (DECIT) do Ministério da Saúde (Processo CNPq: 445214/2023-6) e Programa de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente da Associação Umane.
?
REFERÊNCIAS
1. World Health Organization (WHO). WHO recommendations on antenatal care for a positive pregnancy experience. 2016. [cited 2024 out 17]. Available from: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/250796/9789241549912-eng.pdf?sequence=1.
2. United Nations (UN). Department of Economic and Social Affairs, Population Division. Fertility among very young adolescents aged 10-14 years – A global assessment. 2020 [cited 2024 set 03]. Available from: www.unpopulation.org.
3. Santos NL de AC, Costa MCO, Amaral MTR, Vieira GO, Bacelar EB, Almeida AH do V de. Gravidez na adolescência: análise de fatores de risco para baixo peso, prematuridade e cesariana. Cienc saúde coletiva. 2014 mar;19(3):719–26.
4. Almeida AH do V de, Gama SGN da, Costa MCO, Carmo CN do, Pacheco VE, Martinelli KG, Leal MC. Prematuridade e gravidez na adolescência no Brasil, 2011-2012. Cad Saúde Pública. 2020;36(12).
5. Pinto IV, Bernal RTI, Souza JB, Andrade GN de, Araújo LF, Felisbino-Mendes MS, Souza MFM, Montenegro MM, Vasconcelos NM, Malta DC. Gravidez em meninas menores de 14 anos: análise espacial no Brasil, 2011 a 2021. Cien Saude Colet. 2024;29(9):e10582024.
6. Costa SF da, Taquette SR, Moraes CL de, Souza LM B da M, Moura MP de. Contradições acerca da violência sexual na percepção de adolescentes e sua desconexão da lei que tipifica o “estupro de vulnerável”. Cad. Saúde Pública. 2020;36(11).
7. Mario DN, Rigo L, Boclin K de LS, Malvestio LMM, Anziliero D, Horta BL, Wehrmeister FC, Martínez-Mesa J. Qualidade do pré-natal no Brasil: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Cienc saúde coletiva. 2019 mar;24(3):1223–32.
8. Lessa, MSA, Nascimento ER, Coelho EAC, Soares IJ, Rodrigues QP, Santos CAS, Nunes IM. Pré-natal da mulher brasileira: desigualdades raciais e suas implicações para o cuidado. Cienc saúde coletiva. 2022; 27(10): 3881-3890.
9. Brasil. Portaria GM/ms Nº 5.350, DE 12 DE setembro DE 2024. Altera a Portaria de Consolidação GM/MS nº 3, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede Alyne. [internet]. 2024 [cited 2024 out 18]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2024/prt5350_13_09_2024.html
10. Brasil. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 13 julho.
11. Brasil. Código Penal. Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Art. 217-A. Brasília, 1940.
12. Brasil. Código Penal. Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Art. 128. Brasília, 1940.
13. Brasil. Projeto de Lei 1904/2024 [internet]. 2024 [cited 2024 set 23]. Available from: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2434493&fichaAmigavel=nao.
14. Victora CG, Aquino EM, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet. 2011; 377:1863-76.
15. Vasconcelos NM, Andrade FMD, Gomes CS, Bernal RT, Malta DC. Violência física contra mulheres perpetrada por parceiro íntimo: análise do VIVA Inquérito 2017. Cienc saúde coletiva. 2022; 27(10): 3993-4002.
16. Garnelo L, Horta BL, Escobar AL, Santos RV, Cardoso AM, Wlch JR, Tavares FG, Coimbra Jr, CEA. Avaliação da atenção pré-natal ofertada às mulheres indígenas no Brasil: achados do Primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas. Cad Saúde Pública. 2019, (35) e00181318.
17. Leal M do C, Gama SGN da, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN do, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saúde Pública. 2017;33:e00078816.
18. Bairros FS de, Meneghel SN, Dias-da-Costa JS, Bassani DG, Menezes AMB, Gigante DP, Olinto MTA. Racial inequalities in access to women's health care in southern Brazil. Cad Saúde Pública. 2011Dec;27(12):2364–72.
19. Tessema ZT, Teshale AB, Tesema GA, Tamirat KS. Determinants of completing recommended antenatal care utilization in sub-Saharan Africa from 2006 to 2018: evidence from 36 countries using Demographic and Health Surveys. BMC Pregnancy Childbirth. 2021;21:192.
20. Morón-Duarte LS, Varela AR, Bertoldi AD, Domingues MR, Wehrmeister FC, Silveira MF. Quality of antenatal care and its sociodemographic determinants: results of the 2015 Pelotas birth cohort, Brazil. BMC Health Serv Res 21, 1070 (2021).
21. Szwarcwald CL, Leal M do C, Esteves-Pereira AP, Almeida W da S de, Frias PG de, Damacena GN, Júnior PRBS, Rocha NM, Mullachery PMH. Avaliação das informações do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), Brasil. Cad Saúde Pública. 2019;35(10):e00214918.
22. Agranonik M, Jung ROl. Qualidade dos sistemas de informações sobre nascidos vivos e sobre mortalidade no Rio Grande do Sul, Brasil, 2000 a 2014. Cien Saude Colet.24(5), pp. 1945-1958.
23. A juíza errou: o que diz a lei brasileira sobre aborto, estupro e proteção de crianças. Brasil de Fato. São Paulo, 22 de junho de 2022. [cited 2024 out 18]. Available from: https://www.brasildefato.com.br/2022/06/22/a-juiza-errou-o-que-diz-a-lei-brasileira-sobre-aborto-estupro-e-protecao-de-criancas
24. Madeiro AP, Diniz D. Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional. Cien Saude Colet, 2016 21(2), 563–572.
25. Leal MDC, Szwarcwald CL, Almeida PVB, Aquino EML, Barreto ML, Barros F, Victora C. Reproductive, maternal, neonatal and child health in the 30 years since the creation of the Unified Health System (SUS). Cien Saude Colet. 2018 Jun;23(6):1915-1928.
Artigo apresentado em 23/10/2024
Aprovado em 01/12/2024
Versão final apresentada em 03/12/2024
Editores-chefes: Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva



Outros idiomas:







Como

Citar

Silva, L.E.S, Costa, J.C, Blumenberg, C., Lima, N.P, Ruas, L.P.V, Costa, F.S, Barros, A.J.D, Wehrmeister, F.C, Victora, C.G. Início oportuno do pré-natal em adolescentes vítimas de violência sexual: implicações para o aborto legal no Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/dez). [Citado em ]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/inicio-oportuno-do-prenatal-em-adolescentes-vitimas-de-violencia-sexual-implicacoes-para-o-aborto-legal-no-brasil/19437?id=19437&id=19437

Últimos

Artigos



Realização



Patrocínio