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0329/2024 - Iniquidades raciais em saúde bucal na população brasileira: uma análise da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019
Racial inequalities in oral health in the Brazilian population: an analysis of the 2019 National Health Survey

Autor:

• Rafaela de Oliveira Cunha - Cunha, R.O - <rafaeladeoliveiracunha@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9308-970X

Coautor(es):

• Pedro Shaday Mariano Correia - Correia, P.S.M - <pedroshadayhaner@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0006-1001-4870

• Mário Círio Nogueira - Nogueira, M.C - <mario.cirio.nogueira@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9688-4557

• Isabel Cristina Gonçalves Leite - Leite, I.C.G - <isabel.leite@ufjf.edu.br>
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1258-7331



Resumo:

O objetivo deste estudo foi identificar iniquidades raciais em saúde bucal na população brasileira. Estudo transversal que utilizou dados de 64.830 brasileiros com idade entre 18 e 59 anos que participaram da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019. Os desfechos avaliados foram: autoavaliação de saúde bucal, perda de 13 dentes ou mais, uso de prótese e uso recente de serviços odontológicos. As variáveis explicativas incluíram raça, sexo, idade, renda, escolaridade e zona de residência. Utilizou-se regressão de Poisson para obter razões de prevalência (RP) com intervalo de confiança (IC) de 95%. Do total, 41,8% eram brancos, 46,2 % pardos e 12,0% pretos. Indivíduos pretos apresentaram menor prevalência de autoavaliação positiva (RP= 0,90 IC95% 0,87-0,93) e uso recente de serviços odontológicos (RP=0,93 IC95% (0,89-0,97), além de maior prevalência de perda dentária (RP=1,32 IC95% 1,18-1,47) em comparação aos brancos. Pardos apresentaram menor prevalência de autoavaliação positiva (RP= 0,94, IC95% 0,92-0,96) e uso recente (RP=0,95 IC 95% 0,92-0,98), e maior prevalência de perda dentária (RP=1,23 IC 95% 1,14-1,34) comparados aos brancos. Os achados revelaram iniquidades raciais em saúde bucal na população brasileira, sendo o racismo o grande perpetuador dessas disparidades.

Palavras-chave:

Saúde bucal; Acesso aos Serviços de Saúde; Racismo; Grupos Raciais.

Abstract:

The objective of this study was to identify racial inequities in oral health in the Brazilian population. This cross-sectional study used data64,830 Brazilians aged between 18 and 59 who took part in the 2019 National Health Survey. The outcomes were: self-assessment of oral health, loss of 13 teeth or more, use of prosthesis, and use of recent dental services. The explanatory variables included race, gender, age, income, education, and area of residence. Poisson regression was used to obtain prevalence ratios (PR) with 95% confidence interval (CI). Of the total, 41.8% were white, 46.2% brown and 12.0% black. Black individuals had a lower prevalence of positive self-assessment (PR= 0.90 95%CI 0.87-0.93) and recent use of dental services (PR=0.93 95%CI (0.89-0.97), as well as a higher prevalence of tooth loss (PR=1.32 95%CI 1.18-1.47) compared to whites. Browns had a lower prevalence of positive self-assessment (PR= 0.94, 95% CI 0.92-0.96) and recent use (PR=0.95 95% CI 0.92-0.98), and a higher prevalence of tooth loss (PR=1.23 95% CI 1.14-1.34) compared to whites. The findings revealed racial inequities in oral health in the Brazilian population, racism being the major perpetuator of these disparities.

Keywords:

Oral health; Access to health services; Racism; Racial Groups.

Conteúdo:

Introdução
As iniquidades raciais em saúde referem-se a diferenças injustas entre grupos com base na raça, etnia ou quaisquer outros marcadores de herança ancestral ou cultural1.
É amplamente documentado na literatura que os grupos raciais desfavorecidos frequentemente carregam o maior fardo das doenças bucais2,3,4. Estudos têm demostrado que as iniquidades raciais em saúde bucal são generalizadas e afetam diversas faixas etárias. Abanto et al.² demostraram que crianças brasileiras pretas e pardas tinham 1,5 e 1,4 vezes mais probabilidade, respectivamente, de relatar qualidade de vida relacionada à saúde bucal em comparação às brancas. No estudo de Abdelrahim et al.³, adultos negros britânicos também apresentaram 1,5, 1,7 e 1,2 vezes mais probabilidade de apresentar maior prevalência, maior extensão e maior gravidade de impactos orais do que seus pares brancos privilegiados. Além disso, Andrade et al.4, por sua vez, evidenciaram que idosos brasileiros pretos e pardos eram 45% e 65% menos propensos, respectivamente, a apresentar dentição funcional do que os brancos.
Na maioria dos estudos, no entanto, a raça é entendida como proxy do status socioeconômico, o que leva a uma relativização do impacto do racismo como um sistema de opressão na saúde da população5,6. Atribuir as desigualdades raciais na saúde bucal à super-representação das minorias raciais nos estratos socioeconômicos mais baixos contribui para o imaginário coletivo de que as disparidades decorrem apenas de aspectos individuais biológicos e/ou econômicos7,8,9,10,11. Na realidade, é o racismo que, tanto como um componente estruturante das sociedades contemporâneas, quanto como maus tratos mediados pessoalmente, opera para produzir maiores frequências de estados de saúde negativos entre os negros5,6.
A população negra (que no Brasil inclui indivíduos pretos e pardos) apresenta taxas mais altas de cárie dentária não tratada, doença periodontal grave e perda dentária do que as populações brancas5. Além disso, enfrenta maiores dificuldades no acesso à assistência odontológica, menor cobertura de seguro saúde e maior propensão a sofrer maus-tratos por profissionais de saúde?.
Analisar a extensão das desigualdades em saúde bucal e no acesso a serviços odontológicos é fundamental para a formulação de políticas promovam a equidade racial e garantam o direito constitucional à saúde. Inquéritos populacionais constituem estratégias valiosas para mensurar a magnitude dos problemas de saúde bucal na população, identificar o perfil e as necessidades coletivas de saúde, além de estabelecer e monitorar indicadores de saúde12.
Assim, o presente estudo teve como objetivo identificar a existência de iniquidades raciais nos resultados de saúde bucal e no uso de serviços odontológicos, além de analisar a persistência dessas diferenças raciais após ajuste para variáveis socioeconômicas, utilizando dados representativos da população brasileira na Pesquisa Nacional de Saúde de 2019.

Métodos
Foi realizado um estudo transversal utilizando o banco de dados da mais recente Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do Brasil, conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) junto ao Ministério da Saúde, no ano de 2019.
A PNS 2019 é um inquérito de base populacional, representativo do Brasil e da população residente em domicílios particulares de seu território13. A PNS utilizou uma amostra representativa da população com idade ? 15 anos. Para a seleção dos participantes, foi realizado um processo de amostragem complexa por conglomerados em três estágios: (i) estratificação das Unidades Primárias de Amostragem (UPAs), compostas por um ou mais setores censitários, e seleção aleatória com probabilidade de seleção proporcional ao número de domicílios particulares permanentes; (ii) seleção dos domicílios em cada UPA, a partir da atualização mais recente disponível do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), por amostragem aleatória simples; e (iii) seleção aleatória simples de um morador elegível, com base na lista de moradores elaborada no momento da entrevista. O tamanho amostral da PNS 2019 foi calculado com base em indicadores da edição de 2013. O questionário utilizado foi dividido em 3 seções: questionário domiciliar, questionário para todos os moradores do domicílio e questionário do morador selecionado. Mais detalhes sobre o plano amostral, o processo de coleta de dados e a ponderação foram publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística14.
Para o presente estudo, foram incluídos dados dos respondentes com idades entre 18 e 59 anos de idade que se autodeclararam brancos, pretos ou pardos. A opção de não incluir na análise os grupos amarelos e indígenas, deve-se à orientação do IBGE, devido ao pequeno número de respostas dessas populações e ao elevado coeficiente de variação, uma prática também adotada em outras análises da PNS¹?.
Em relação às variáveis dependentes do estudo, os dados sobre saúde bucal foram obtidos a partir do “Módulo U” do questionário, enquanto os dados sobre o uso de serviços odontológicos foram obtidos através do “Módulo J”. Assim, o estudo contemplou quatro desfechos: I) autopercepção de saúde bucal (obtido pela pergunta: “Em geral, como o(a) Sr.(a) avalia sua saúde bucal (dentes e gengivas)?” e categorizada em “positiva” para as respostas “muito boa” e “boa” e “negativa” para as respostas “regular”, “ruim” e “muito ruim”) ; II) perda de 13 dentes ou mais (obtido pelas questões: “Lembrando-se dos seus dentes permanentes de cima, o(a) Sr(a) perdeu algum?” e “Lembrando-se dos seus dentes permanentes de baixo, o(a) Sr(a) perdeu algum?”, sendo considerado “sim” para perda de 13 ou mais dentes no total); III) uso de prótese dentária (obtido pela pergunta: “O (a) Sr(a) usa algum tipo de prótese dentária (dente artificial, implante, dentadura, chapa)?” e categorizado em “sim” e “não”); IV) uso recente de serviços odontológicos (obtido através da questão: “Quando consultou um dentista pela última vez?” e categorizado em “sim” para a resposta “Até 1 ano” e “não” para as demais respostas). Os dois primeiros desfechos visaram avaliar a condição de saúde bucal, enquanto os dois últimos avaliaram o acesso desses indivíduos aos serviços odontológicos.
As variáveis explicativas analisadas foram: raça/cor da pele (branca; parda; preta), sexo (masculino; feminino), idade (18-29; 30-39; 40-59 anos), renda per capita em salários-mínimos (até 1; mais de 1 a 3; mais de 3), escolaridade (sem instrução/ fundamental incompleto; fundamental completo/ médio incompleto; médio completo/ superior incompleto; superior completo) e zona de residência (urbana; rural).
Foram estimadas as prevalências de cada desfecho com intervalos de confiança de 95% (IC95%) por categorias das demais variáveis. Análises bivariadas foram realizadas usando teste qui-quadrado, e as razões de prevalência ajustada (RP), também com IC95%, foram estimadas utilizando regressão de Poisson. Como análise de sensibilidade, avaliou-se o efeito da inclusão das variáveis cobertura de plano de saúde odontológico e cadastro na Estratégia Saúde da Família sobre a variável raça/cor (modelos 2 e 3, respectivamente).
O processamento do banco de dados e a análise estatística foram realizados através do programa R versão 4.2.1, com a biblioteca survey, elaborada para análises de inquéritos com amostragem complexa.
Este estudo dispensa aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP), pois utilizou dados secundários provenientes da PNS, a qual teve aprovação pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Conselho Nacional de Saúde (CNS) sob o Parecer nº 3.529.376, emitido em 23 de agosto de 2019. Os dados referentes à PNS 2019 são de acesso público e estão disponíveis na internet (https://www.pns.icict.fiocruz.br/), tendo sido extraídos em 18 de agosto de 2022.
Os conjuntos de dados gerados e analisados durante este estudo estão disponíveis no repositório SciELO Data16.

Resultados

Foi analisada uma amostra total de 64.830 brasileiros respondentes com idade entre 18 e 59 anos, autodeclarados como brancos, pretos ou pardos. Considerando as ponderações amostrais, 41,8 % dos entrevistados se autodeclararam brancos, 46,2% pardos e 12,0% pretos. As mulheres representaram 52,3% da amostra, e 45,1% dos participantes tinham entre 40 e 59 anos. Em relação à renda per capita, 53,8% recebiam até 1 salário mínimo, 35,8% entre 1 e 3 salários mínimos e 10,4% acima de 3 salários mínimos. Quanto à escolaridade, 27,0% não tinham instrução ou possuíam ensino fundamental incompleto, 15,9% tinham ensino fundamental completo ou médio incompleto, 40,1% tinham ensino médio completo ou superior incompleto e 17,0% possuíam ensino superior completo. Ademais, 86,3% dos respondentes residiam em zona urbana.
Em relação aos desfechos investigados, 70,5% dos indivíduos avaliaram sua saúde bucal de forma positiva, 13,2% relataram perda de 13 ou mais dentes, 22,3% mencionaram o uso de prótese dentária e 53,1% utilizaram serviços odontológicos nos 12 meses anteriores à entrevista. As prevalências dos desfechos em saúde bucal investigados estão apresentadas na tabela 1.

(Inserir tabela 1)

Após ajuste para outras variáveis sociodemográficas, foram observadas diferenças significativas entre os grupos de raça/cor para os desfechos autopercepção positiva de saúde bucal, perda de 13 dentes ou mais e uso recente de serviços odontológicos.
Em relação à autopercepção de saúde bucal, na análise ajustada, os indivíduos autodeclarados pretos e pardos apresentaram, respectivamente, 10% e 6% menor probabilidade de ter uma autopercepção positiva em comparação aos indivíduos brancos. Outros fatores demográficos e socioeconômicos também apresentaram associação com a autopercepção de saúde bucal: mulheres, pessoas mais jovens, com maior renda e maior escolaridade apresentaram maior probabilidade de autopercepção positiva (Tabela 2).
(Inserir Tabela 2)

A raça também foi um importante marcador de desigualdades na perda dentária (Tabela 3). Indivíduos autodeclarados pretos apresentaram 32% mais probabilidade de ter perdido 13 ou mais dentes, enquanto os autodeclarados pardos, apresentaram 23% mais probabilidade de perda dentária em comparação aos brancos.
Também apresentaram maior probabilidade de experienciar a perda de 13 ou mais dentes os indivíduos de maior idade, menor escolaridade e residentes em zona rural (Tabela 3).

(Inserir tabela 3)

Em relação ao uso de prótese dentária, as variáveis que permaneceram associadas após ajuste foram: sexo, idade, renda, escolaridade e zona de residência. Indivíduos do sexo feminino, com maior idade, maior renda per capita, menor escolaridade e residentes nas regiões Sul e Centro-Oeste apresentaram maior probabilidade de fazer uso de prótese dentária (Tabela 4).

(Inserir tabela 4)


Diferenças estatísticas entre os grupos de raça/cor também foram observadas em relação ao uso recente de serviços odontológicos. Pretos (RP:0,93; IC95% (0,89-0,97) e pardos (RP: 0,95; IC95% (0,92-0,98) apresentaram menor probabilidade de utilizar serviços de saúde bucal nos últimos 12 meses em comparação aos indivíduos brancos. As outras variáveis que também apresentaram associação com uma maior prevalência de uso recente no modelo ajustado foram: sexo feminino, menor idade, maior renda per capita e maior escolaridade (Tabela 5).
(Inserir tabela 5)


Discussão
O presente estudo identificou iniquidades raciais em saúde bucal utilizando dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019. Os resultados evidenciaram diferenças significativas entre os grupos raciais para os desfechos autopercepção positiva de saúde bucal, perda de 13 dentes ou mais e uso recente de serviços odontológicos.
É importante destacar que o termo “raça” é utilizado neste estudo em seu sentido sociológico, uma vez que do ponto de vista biológico e científico raças não existem17,18. Entende-se, portanto, a raça como um conceito indicador de uma conformação sociocultural. Nesse sentido, as associações encontradas entre raça e os desfechos analisados no presente estudo decorrem das diferenças sociais resultantes do racismo estrutural19.
Este trabalho oferece contribuições importantes ao estudo das iniquidades raciais em saúde bucal ao demostrar que, independentemente de outras variáveis socioeconômicas, a raça foi um marcador significativo para a autopercepção positiva de saúde bucal, perda de 13 dentes ou mais e uso recente de serviços odontológicos. Isso reforça uma linha de pesquisa que destaca que as diferenças socioeconômicas entre grupos raciais e étnicos são apenas um dos diversos mecanismos pelos quais o sistema de opressão racial na sociedade afeta a saúde bucal1,20.
As desigualdades entre grupos raciais e étnicos têm como causa fundamental o racismo, que está profundamente enraizado na sociedade brasileira1,20. O racismo, como um sistema que atravessa as dimensões institucionais, culturais e comportamentais da vida social, molda as desigualdades raciais na saúde bucal através de caminhos não econômicos interconectados. Estes incluem uma gama de recursos de poder (o grau em que um grupo social exerce controle sobre os outros), prestígio (honra ou deferência ligada a um indivíduo ou grupo social), liberdade (a capacidade de controlar as próprias circunstâncias de vida e ações), contexto da vizinhança e cuidados de saúde10.
Os achados do presente estudo também evidenciam o papel do colorismo nos resultados de saúde bucal, uma temática ainda pouco explorada pelos estudos na área. O colorismo (ou pigmentocracia) pode ser conceituado como a relação entre o tom de pele de uma pessoa e a obtenção de privilégios, experiências de discriminação e execução de direitos21. Quanto mais escura a tonalidade da pele, maior a probabilidade de exclusão social e menor acesso a oportunidades em áreas como educação, saúde, emprego e moradia, entre outros direitos e privilégios22. No que se refere à autoavaliação de saúde bucal, perda de 13 ou mais dentes e uso recente de serviços odontológicos, os indivíduos brancos apresentaram as melhores prevalências em comparação aos pretos e aos pardos. Os pardos mostraram prevalências intermediárias, melhores do que os pretos, mas ainda inferiores aos brancos. Já os indivíduos pretos apresentaram as maiores desvantagens entre os grupos. Os achados são consistentes com dados da literatura, que indicam uma associação entre pele mais clara e consequências reforçadoras positivas (à exemplo de maiores salários e maior escolaridade), enquanto peles mais escuras estão associadas a consequências punitivas e adversas, como sentenças mais severas para crimes semelhantes e menor autoestima23.
Em relação aos desfechos analisados, os resultados corroboram achados de estudos anteriores que evidenciaram a raça como preditor para autoavaliação de saúde bucal24,25,26 e perda dentária27,28,29.
A autoavaliação da saúde bucal é um indicador subjetivo das condições bucais amplamente utilizado na literatura, capaz de refletir a experiência subjetiva dos indivíduos e sintetizar a condição objetiva da saúde bucal em termos de funcionalidade, valores sociais e culturais relacionados à essa30. A autoavaliação menos favorável da saúde bucal por indivíduos pretos e pardos, conforme observado neste estudo, é resultado da exposição contínua e prolongada dessa população a violações de seus direitos fundamentais, impactando significativamente suas condições de saúde e, consequentemente, sua percepção de saúde24. A literatura também tem mostrado, de forma consistente, que indivíduos brancos apresentam menor frequência de autoavaliação de saúde geral ruim do que os indivíduos que se autodeclaram de outras raças, independente de indicadores de posição socioeconômica como escolaridade, renda ou ocupação30. Uma autoavaliação negativa da saúde pode refletir os sentimentos do indivíduo na sociedade, seja preconceito, exclusão ou mesmo dificuldades de acesso aos serviços de saúde31. Ressalta-se que, pretos e pardos, além de possuírem menor acesso a recursos educacionais, econômicos e ocupacionais, também possuem menor acesso a moradia de qualidade, vivem em vizinhanças mais economicamente segregadas, possuem menor capital social e político, menor acesso aos serviços de saúde, são mais expostos a trabalhos desgastantes e são mais expostos ao estresse psicossocial devido à exposição e à discriminação racial. Todas essas exposições restringem as opções de vida e trabalho em ambientes saudáveis e estão associadas à maior adesão a comportamentos de risco30.
Quanto à perda dentária, a literatura tem demostrado que esta é um bom proxy para o estado de saúde bucal cumulativo, refletindo os impactos de circunstâncias adversas ao longo da vida dos indivíduos32,33. Os resultados evidenciaram que indivíduos pretos e pardos têm maior probabilidade de perda de 13 dentes ou mais em comparação aos brancos. O racismo estrutural expõe pessoas pretas e pardas a condições prejudiciais à saúde, além de impor e sustentar barreiras às oportunidades que promovem saúde e bem-estar34. Além disso, estudos têm mostrado que a discriminação racial enfrentada diariamente por essas pessoas, juntamente com a distribuição desigual de maus-tratos dentro e entre os grupos raciais, atua como um estressor psicossocial significativo. Esses fatores contribuem para padrões específicos de saúde bucal e para as disparidades raciais observadas nos desfechos odontológicos1. Outro fator importante demostrado na literatura é o viés clínico na tomada de decisão de tratamentos de acordo com base na raça do paciente, com evidências de indicação de procedimentos mais invasivos, rápidos e de menor custo aos negros10,35,36 e de mais exodontias de dentes posteriores entre a população negra, quando comparados a outros grupos étnicos29. É possível, portanto, que a decisão do dentista tenha um viés pró-branco para recomendar um tratamento mais complexo e mais conservador do dente, enquanto para pacientes negros na mesma condição, a extração é recomendada37. Um estudo realizado com cirurgiões-dentistas no Nordeste do Brasil mostrou que, em um cenário clínico de total igualdade de condições entre os pacientes, os profissionais recomendaram a extração dentária em maior frequência para os usuários negros do que para os brancos35. Outro estudo realizado com estudantes de Odontologia do Sul do Brasil, sugeriu um comportamento menos respeitoso e menos autonomia dada ao paciente negro em relação ao branco, bem como maior responsabilização dos pacientes negros por falhas no tratamento, quando comparados a seus pares brancos38.
A raça também exerce uma influência significativaa no acesso à assistência odontológica. No presente estudo, foi observado que indivíduos pretos e pardos têm menor probabilidade de uso de serviços odontológicos nos 12 meses anteriores à entrevista em comparação aos brancos. Constante, Marinho e Bastos6 através da análise de três inquéritos nacionais (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2003 e Pesquisas Nacionais de Saúde de 2013 e 2019), identificaram que a percepção da dificuldade de acesso aos serviços de saúde foi maior entre os negros do que entre os brancos em todo o período de observação e em todas as regiões geográficas brasileiras. A histórica desigualdade socioeconômica entre grupos de cor/ raça, os altos custos do tratamento odontológico e a menor disponibilidade de serviço odontológico público em relação ao privado no país colocam a população negra em posição de desvantagem para o uso de serviços odontológicos20. Além disso, o racismo molda o acesso da população negra aos serviços de saúde ao influenciar as relações de poder, prestígio e liberdade, além de impactar o contexto da vizinhança, estigmatização e discriminação1. Esses fatores interconectados exacerbam as disparidades raciais no acesso aos cuidados odontológicos e evidenciam a necessidade de políticas públicas mais inclusivas e sensíveis às questões raciais para promover equidade em saúde bucal no Brasil.
O racismo estrutural permeia todos os aspectos da sociedade, determinando o lugar que os indivíduos ocupam na escala social. Ele engloba todas as maneiras pelas quais as sociedades promovem a discriminação racial através de sistemas institucionais como habitação, educação, emprego, renda, benefícios, crédito, mídia, assistência médica e justiça criminal, que se reforçam mutuamente. Portanto, a influência da raça nos resultados de saúde não deve ser analisada de maneira isolada, uma vez que os determinantes e marcadores sociais operam de forma interligada19.
Os resultados aqui analisados corroboram achados de outras investigações ao mostrar piores resultados de saúde bucal24,25,32,33,37,40 e maiores dificuldades no acesso a serviços odontológicos8,39 entre indivíduos em desvantagem socioeconômica. A probabilidade de autoavaliação positiva de saúde bucal e de uso de serviços odontológicos no ano anterior à entrevista aumentou conforme aumentou a renda per capita e a escolaridade. A escolaridade também se apresentou como um importante preditor da perda de 13 ou mais dentes e do uso de prótese, indicando que indivíduos com níveis mais elevados de escolaridade apresentaram menor chance de perda dentária e, consequentemente, menor probabilidade de uso de prótese em relação aos menos escolarizados. É consenso na literatura que indivíduos economicamente desfavorecidos tendem a sofrer maiores impactos negativos dos problemas bucais e relatar maior perda de elementos dentários do que os indivíduos em melhores condições econômicas. As pessoas mais escolarizadas, por outro lado, tendem a apresentar maior envolvimento no autocuidado e buscar mais frequentemente a resolução de problemas de saúde, além de usufruírem de melhores condições sociais e econômicas, como emprego, renda, posse de bens e acesso a serviços7, 40.
Fatores demográficos também apresentaram associação com os desfechos neste estudo. Foi observado que a prevalência de perda de 13 ou mais dentes e de uso de prótese aumenta com a idade, enquanto a prevalência de uso recente de serviços odontológicos diminui à medida que a idade avança. Esses achados estão alinhados com resultados de outros estudos que indicam que populações mais velhas acumulam problemas bucais ao longo da vida, tornando-se mais suscetíveis à perda contínua de dentes.39,40. Com relação a autopercepção de saúde bucal, assim como no presente estudo, a literatura mostra que há uma maior probabilidade de autoavaliação negativa da saúde bucal nas faixas etárias intermediárias, especialmente entre 40-59 anos7,41,42. Isso sugere que as desigualdades na saúde bucal subjetiva tendem a ser mais pronunciadas no início e no meio da vida adulta e tendem a diminuir em idades mais avançadas. Este fenômeno pode ser atribuído ao fato de que os idosos podem naturalizar certas dores e incapacidades bucais como parte inevitável do envelhecimento. Além disso, a substituição de dentes naturais por próteses parciais ou totais pode ser percebida como uma melhoria na condição bucal, o que influencia positivamente na autopercepção de saúde bucal7.
Em consonância com outros estudos8,25,43, o sexo feminino foi associado a uma maior utilização de serviços odontológicos, uso de prótese e autopercepção positiva de saúde bucal. O papel universal e histórico conferido às mulheres pela sociedade patriarcal como responsáveis pelos cuidados dos filhos e de outros membros da família provavelmente determina uma maior atenção às questões de saúde e doença, resultando em uma percepção mais aguçada dos próprios problemas de saúde. Além disso, os homens são geralmente são responsáveis pela renda familiar e frequentemente trabalham paralelamente ao funcionamento dos serviços de saúde, o que também dificulta a busca por tratamentos de saúde. Outras possíveis explicações para o menor uso de serviços de saúde por parte dos homens estão relacionadas às amarras culturais da masculinidade (homem visto como viril, forte e invulnerável), ao medo da descoberta de doenças e à vergonha da exposição corporal por este grupo25.
O local de moradia também demostrou ter um papel determinante nos desfechos investigados, sendo que os indivíduos que residem em zonas rurais apresentaram maior probabilidade de perda de 13 ou mias dentes e uso de prótese. As áreas rurais brasileiras frequentemente apresentam piores indicadores de renda, saneamento básico e níveis de escolaridade, cenário que pode favorecer o aumento da carga de morbidades e agravos à saúde. Além disso, a assistência à saúde bucal no Brasil historicamente tem sido mais limitada nas zonas rurais, com uma oferta restrita de procedimentos em comparação aos grandes centros urbanos, onde há uma maior concentração de serviços tanto públicos quanto privados 44, 45. Neste ponto, deve-se levar em consideração que a desigualdade ambiental tem também especificidade racial. Populações pobres, despossuídas e pertencentes a minorias raciais são mais comumente alocadas em condições de moradia precárias, com condições inadequadas de saneamento e acesso dificultado aos serviços de saúde46.
O presente estudo apresenta pontos fortes e limitações que merecem consideração. Entre as limitações, destaca-se o fato de que todos os dados foram autorreferidos pelos participantes da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, o que pode introduzir viés de memória no relato do uso de serviços odontológicos e viés de informação, com possíveis super ou subestimações da perda dentária. Além disso, de acordo com as diretrizes do IBGE, os indivíduos pertencentes aos grupos raciais minoritários de amarelos e indígenas foram excluídos da análise devido ao pequeno número de respostas e ao elevado coeficiente de variação, o que limitou a capacidade de investigação dessas populações. Um ponto relevante é que um estudo multinível teria sido ideal para a análise do impacto do racismo estrutural sobre a saúde dos indivíduos, o que não foi possível apenas com os dados oriundos da PNS. Portanto, sugere-se que estudos futuros sejam conduzidos para permitir uma análise mais aprofundada dessas questões. Além disso, por se tratar de um estudo transversal, inferências causais não puderam ser realizadas.
Apesar das limitações, o presente estudo fornece uma análise importante das disparidades raciais na saúde bucal e no uso de serviços odontológicos baseando-se em dados de abrangência e representatividade nacional. Isso proporciona uma visão abrangente das desigualdades em saúde bucal relacionadas à raça e outros determinantes socioeconômicos, contribuindo significativamente para o entendimento dessas questões no contexto nacional. Outrossim, contribui para o fortalecimento da agenda científica antirracista, fortalecendo a luta contra essa desigualdade generalizada e persistente em todas as áreas.
Os achados evidenciaram iniquidades raciais em saúde bucal no Brasil na autoavaliação positiva de saúde bucal, perda de 13 ou mais dentes e uso recente de serviços odontológicos, com maior desvantagem da população negra (pretos e pardos) em relação aos brancos, evidenciando o racismo como um determinante da saúde bucal e do acesso a serviços odontológicos. Foram identificadas também disparidades intragrupo, com maior vulnerabilidade da população preta em comparação à parda, caracterizando um gradiente de privilégios em saúde bucal de acordo com a cor da pele. A persistência dessas associações após ajuste possibilita identificar o racismo como a raiz dessas iniquidades. Além disso, destaca-se o papel de outros marcadores sociais que interagem para produzir desigualdades em saúde bucal, nomeadamente renda, escolaridade, sexo, idade e região de moradia. Conclui-se que para mitigar as iniquidades raciais que são perpetuadas no país, é fundamental promover políticas públicas direcionadas à redução do racismo estrutural, principal causador e perpetuador das iniquidades raciais em saúde.
Referências
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Cunha, R.O, Correia, P.S.M, Nogueira, M.C, Leite, I.C.G. Iniquidades raciais em saúde bucal na população brasileira: uma análise da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/set). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/iniquidades-raciais-em-saude-bucal-na-populacao-brasileira-uma-analise-da-pesquisa-nacional-de-saude-de-2019/19377?id=19377&id=19377

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