0295/2025 - Insegurança alimentar no Brasil: associação com alfabetização, desemprego e renda (2013 a 2023)
Food insecurity in Brazil: association with literacy, unemployment and income (2013 to 2023)
Autor:
• Lucas de Almeida Moura - Moura, LA - <lucasdemoura@usp.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4927-4980
Coautor(es):
• Dirce Maria Lobo Marchioni - Marchioni, DML - <marchioni@usp.br>ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6810-5779
Resumo:
Este estudo investiga a associação da insegurança alimentar com indicadores de alfabetização, desemprego e renda no Brasil, no período de 2013 a 2023. Analisou-se o efeito destes indicadores para a evolução da insegurança alimentar nas diferentes regiões do país. Estudo ecológico com dados disponíveis para os anos de 2013, 2018, 2022 e 2023, de prevalência de insegurança alimentar obtidos da PNAD, POF e II VIGISAN e de indicadores de alfabetização, emprego e renda disponibilizados pelo IBGE. Um modelo de regressão para dados em painel foi utilizado para estimar a associação entre as variáveis. A insegurança alimentar foi associada positivamente com a taxa de desocupação (? = 0,92, p-valor = 0,03) e, negativamente, com a taxa de alfabetização (? = -1,28, p-valor = 0,05). O efeito da conjuntura - representada pela região e ano - foi maior na região Norte (? = 9,31, p-valor = 0,04) e em 2022 (? = 37,61, p-valor < 0,001) e menor em 2023 (? = 5,88, p-valor <0,001). O rendimento médio da população não foi associado, mas se manteve estagnado de 2013 a 2022. A redução da taxa de alfabetização, o aumento da taxa de desocupação e a estagnação do rendimento médio contribuíram para a evolução do panorama de insegurança alimentar no Brasil de 2013 a 2023, enfatizando a influência da instabilidade de fatores socioeconômicos e do contexto regional e temporal para o agravamento da fome no país.Palavras-chave:
Insegurança alimentar; Fatores socioeconômicos; Indicadores de desenvolvimento sustentável.Abstract:
This study investigates the association between food insecurity and indicators of literacy, unemployment and income in Brazil between 2013 and 2023. The effect of these indicators on the evolution of food insecurity in the different regions of the country was analyzed. Ecological study with data available for the years 2013, 2018, 2022 and 2023 on the prevalence of food insecurity obtained from the PNAD, POF and II VIGISAN surveys and literacy, employment and income indicators provided by the IBGE. A panel data regression model was used to estimate the association between the variables. Food insecurity was positively associated with the unemployment rate (β = 0.92, p-value = 0.03) and negatively with the literacy rate (β = -1.28, p-value = 0.05). The effect of the economic climate - represented by region and year - was higher in the North (β = 9.31, p-value = 0.04) and in 2022 (β = 37.61, p-value < 0.001) and lower in 2023 (β = 5.88, p-value < 0.001). The population's average income was not associated, but remained stagnant from 2013 to 2022. The reduction in the literacy rate, the increase in the unemployment rate and the stagnation of the average income contributed to the evolution of the food insecurity panorama in Brazil from 2013 to 2023, emphasizing the influence of the instability of socioeconomic factors and the regional and temporal context for the worsening of hunger in the country.Keywords:
Food insecurity; Socioeconomic factors; Sustainable development indicators.Conteúdo:
A erradicação da pobreza para todas as pessoas em todo o mundo é o primeiro dos dezessete objetivos que compõem a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, adotada em setembro de 2015 por 193 Estados Membros da Organização das Nações Unidas (ONU), entre os quais o Brasil foi signatário. Estes 17 objetivos são acompanhados de 169 metas de ação global, abrangem as dimensões ambiental, social e econômica e dão continuidade e ampliam o escopo da Agenda de Desenvolvimento do Milênio (2000-2015), que tinha como objetivo inicial o de acabar com a fome e a miséria1.
Na Agenda 2030, a superação da fome e garantia do acesso a alimentos está concentrada no objetivo 2 (Fome Zero e Agricultura Sustentável), o que requer a redução dos níveis de insegurança alimentar da população2 e, portanto, o monitoramento do alcance das metas dos demais objetivos, sobretudo aqueles relacionados à determinantes mais proximais da insegurança alimentar, como a educação, emprego e renda, que estão contidos, principalmente, nos objetivos 4 (Educação de qualidade) e 8 (Trabalho decente e crescimento econômico)3,4.
A insegurança alimentar seguia tendência de redução no Brasil de 2004 a 2013. Em 2004 aparecia em 34,9% dos lares, reduziu para 30,2% em 2009 e 22,6% em 20135. Em 2014, ao atingir nível menor que 5% de prevalência de subalimentação – proporção da população com consumo calórico abaixo do nível mínimo recomendado –, o país saiu do mapa da fome da ONU6,7. Entretanto, a prevalência verificada para 2018 evidenciou uma piora no cenário, com 36,7% de insegurança alimentar, o equivalente a 25,3 milhões de domicílios. Com isso, o nível de segurança alimentar e nutricional atingiu seu patamar mais baixo (63,3%) nesta série histórica e a insegurança alimentar leve atingiu seu ponto mais elevado (24,0%)8. Com a eclosão da pandemia de Covid-19, iniciada no mundo ainda em 2019, este cenário se agravou ainda mais. Em 2020, 55,2% dos domicílios do país conviviam com algum grau de insegurança alimentar, um aumento de 54% em relação a 2018 (36,7%)9. Em 2022, constatou-se um agravamento ainda mais dramático deste panorama, com 58,7% de prevalência de insegurança alimentar e 15,5% (33,1 milhões de pessoas) em situação de insegurança alimentar grave, um aumento de 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome no período de um ano10. E, em 2023, a insegurança alimentar reduziu para 27,6%, com 4,1% dos domicílios brasileiros em situação de insegurança alimentar grave11.
O panorama de emergência em saúde pública implicou no agravamento da insegurança alimentar, o que seguiu uma tendência do comportamento mundial. No entanto, a situação do Brasil foi agravada tanto pela crise sanitária, quanto por crises políticas e econômicas que antecederam a chegada oficial do vírus ao país. A falta de priorização das políticas e programas de manutenção da segurança alimentar e nutricional da população é um fator que se soma a tudo isto12. Inquéritos realizados neste período verificaram piores níveis de insegurança alimentar em regiões historicamente mais afetadas, com as formas mais severas de insegurança alimentar (moderada ou grave) atingindo fatias maiores da população nas regiões Norte (45,2%) e Nordeste (38,4%) do país9,10. Além disso, durante a pandemia de Covid-19 a insegurança alimentar piorou entre os 20% mais pobres, com marcada assimetria entre homens e mulheres13.
Estudos que analisaram a relação da insegurança alimentar e fatores associados ao longo do tempo no Brasil considerando, principalmente, o período de 2004 a 2013, constataram que o nível de pobreza caiu neste período e que houve associação a renda, trabalho, saúde infantil, idade, raça/cor preta e parda, baixa escolaridade, número de bens no domicílio, residir na zona urbana, entre outros fatores, todavia, com persistência nas regiões Norte e Nordeste14-16. Além disso, aqueles que consideraram um destes anos pontualmente também verificaram resultados semelhantes, com destaque para a relação das desigualdades regionais, de gênero e raça/cor, bem como para a verificação do aumento da renda e da escolaridade como instrumentos básicos de redução da insegurança alimentar no ano de 201817-19. Entretanto, investigações considerando o conjunto dos anos seguintes a 2013 e que incluam indicadores que reflitam o padrão de desenvolvimento do país são necessárias para compreender os fatores que se associam à situação de segurança alimentar da população neste período visando também o alcance das metas de desenvolvimento sustentável, sobretudo através da adoção de modelos robustos que levem em conta as características da distribuição dos dados disponíveis.
Este trabalho teve como objetivo investigar a associação da insegurança alimentar com indicadores de alfabetização, emprego e renda que compõem a dimensão socioeconômica do desenvolvimento sustentável no Brasil, no período de 2013 a 2023. Levantou-se hipóteses acerca dos principais fatores associados à transição da situação da segurança alimentar no Brasil, visando cobrir a lacuna na literatura sobre fatores associados ao aumento da insegurança alimentar nos últimos 10 anos.
Metodologia
O estudo utilizou dados de prevalência de insegurança alimentar e de indicadores socioeconômicos do desenvolvimento sustentável nos anos de 2013, 2018, 2022 e 2023. Foram incluídos dados disponíveis abertamente para as 27 Unidades Federativas do Brasil.
Os dados de prevalência de insegurança alimentar foram obtidos a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD - 2013; PNADC 2023), da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF - 2017/2018) e do II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN - 2021/2022). Nestes três inquéritos a (in)segurança alimentar foi avaliada por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA)20. Embora as pesquisas realizadas pelo IBGE (PNADs, PNADC e POF 2017/2018) tenham usado a versão de 14 itens da EBIA e os inquéritos do VIGISAN tenham usado a versão de 8 itens, ambas as versões são aplicáveis a domicílios com ou sem menores de 18 anos e possuem os mesmos pontos de corte para classificação da situação de segurança alimentar e níveis de insegurança alimentar21. Além disso, comparação entre as pesquisas realizada pela Rede PENSSAN mostrou que ambas produzem estimativas muito próximas sobre a magnitude da insegurança alimentar, permitindo chegar a resultados comparáveis21,22. Todas as análises foram realizadas com base nos indicadores de insegurança alimentar previamente calculados e disponibilizados pelas instituições responsáveis por cada inquérito (IBGE e Rede PENSSAN), os quais já consideram os pesos amostrais e o desenho amostral complexo das respectivas bases de dados.
Os indicadores de desenvolvimento sustentável foram obtidos das bases organizadas pelo Governo Federal do Brasil (odsbrasil.gov.br/) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (sidra.ibge.gov.br/pesquisa/ids/tabelas) e são calculados a partir de dados das pesquisas e inquéritos populacionais realizados no país, como as PNADs e PNADs Contínuas. Os indicadores são organizados de acordo com os 17 objetivos da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável e segundo quatro dimensões (Ambiental, Social, Econômica e Institucional) e possuem, quando disponíveis, dados atualizados para o ano mais recente. A descrição, conceituação e metodologia de cálculo de cada indicador incluído neste estudo são disponibilizados no Quadro 1.
Foram obtidas, para os anos de 2013, 2018, 2022 e 2023, as estatísticas descritivas da prevalência de insegurança alimentar e dos indicadores socioeconômicos de desenvolvimento sustentável, bem como os mapas de distribuição de cada uma dessas variáveis. Considerando a distribuição assimétrica da variável dependente (insegurança alimentar) e a presença de autocorrelação e heterocedasticidade nos dados, para a análise da associação entre a insegurança alimentar e os indicadores, utilizou-se um modelo de regressão para dados em painel, com efeitos aleatórios e correção robusta, através da técnica de obtenção de estimadores robustos à heterocedasticidade de White. A adequação desse modelo foi avaliada por meio de diferentes testes diagnósticos: teste F de Chow, teste multiplicador de Lagrange (Breusch-Pagan) e teste de Hausman. Inicialmente, o teste F de Chow foi utilizado para avaliar a necessidade de adoção de um modelo de efeitos fixos em relação ao modelo pooled. O critério de decisão foi o nível de significância de 5%; p-valores superiores a 0,05 indicaram preferência pelo modelo de efeitos aleatórios. Em seguida, o teste de Breusch-Pagan (LM test) avaliou a adequação de um modelo de efeitos aleatórios em relação ao pooled, adotando o mesmo nível de significância (5%). Por fim, o teste de Hausman foi aplicado para decidir entre efeitos fixos e aleatórios, considerando a hipótese nula de que os efeitos individuais não estão correlacionados com as variáveis explicativas. Com p-valor superior a 0,05, o teste indicou a escolha pelo modelo de efeitos aleatórios. A presença de autocorrelação serial foi avaliada com o teste de Breusch-Godfrey/Wooldridge e a presença de heterocedasticidade foi avaliada por meio do Studentized Breusch-Pagan test. Os dados foram tabulados e analisados utilizando o software estatístico R versão 4.2.1, com nível de significância de 95%. O modelo foi ajustado usando o pacote estatístico plm® para estimação de modelos lineares para dados em painel.
Esta pesquisa utilizou exclusivamente dados secundários, disponíveis publicamente em bases de dados abertas e sem identificação de indivíduos. De acordo com a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), não se faz necessária a submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) para projetos que utilizam informações de acesso público, conforme disposto no artigo 1º, inciso VIII.
Resultados
A Tabela 1 apresenta os resultados da análise descritiva dos dados de insegurança alimentar e dos indicadores socioeconômicos de desenvolvimento sustentável analisados neste estudo. Entre 2013 e 2022, a média de insegurança alimentar passou de 27,9% para 62,6% no Brasil, com maior prevalência no estado do Maranhão em 2013 (60,9%) e, em 2022, no estado do Ceará (81,8%). Em 2023, a média da insegurança alimentar reduziu 48,7% em relação à 2022, com menor prevalência no estado de Santa Catarina (11,2%) e maior prevalência em Sergipe (49,2%). A média da taxa de alfabetização variou de 89,3% a 91,2% no período de 2013 a 2023, com menores taxas em 2013 e 2023 em Alagoas (78,3% e 82,3%, respectivamente), e com maiores taxas no Distrito Federal (96,9%) e em Santa Catarina (97,3%).
Houve pouca variação na média do rendimento médio da população de 15 anos ou mais de idade entre 2013 e 2022, de 14,22R$/h em 2013 para 14,27R$/h em 2022, com maior rendimento no Distrito Federal em todos os três anos analisados (28,20R$/h em 2013; 27,30R$/h em 2018; e 25,30R$/h em 2022) e menor rendimento médio no Maranhão em 2013 (9,10R$/h) e em 2018 (10,40R$/h) e na Bahia em 2022 (10,10R$/h). Em 2023, a média do rendimento médio aumentou 11,49% em relação à 2022, com menor rendimento verificado para o estado da Bahia (11,40R$/h) e maior rendimento no Distrito Federal (27,90R$/h).
A menor média da taxa de desocupação foi verificada para 2013 (7,6%) e a maior em 2018 (12,2%), respectivamente, com um aumento de 60,2% nesse período. As menores taxas foram verificadas para o estado de Santa Catarina em 2013 (3,4%), 2018 (6,3%) e 2022 (3,8%) e maiores taxas no Amapá em 2013 (12,5%) e 2018 (20,7%) e no Pernambuco em 2022 (15,8%). Em 2023 a taxa média de desocupação foi de 7,8% e reduziu 18,5% em relação a 2022 e 36% em relação a 2018, com menor taxa em Rondônia (3,1%) e maior taxa em Pernambuco (13,4%) (Tabela suplementar).
A Figura 1 ilustra a distribuição espacial da insegurança alimentar e dos indicadores socioeconômicos de desenvolvimento sustentável nas Unidades Federativas do Brasil para 2023, ano mais recente analisado. De modo geral, a distribuição espacial evidencia pior desempenho dos indicadores entre os estados das regiões Norte e Nordeste do país, ou seja, regiões nas quais ainda persistem maiores prevalências de insegurança alimentar e taxas de desocupação, e menores taxas de alfabetização e rendimento médio da população.
A Tabela 2 apresenta os resultados da associação entre insegurança alimentar e indicadores socioeconômicos do desenvolvimento sustentável no Brasil, de 2013 a 2023. Quando analisada a conjuntura - representada pelos anos - houve associação positiva para 2018 (? = 19,08, p-valor = <0,001), 2022 (? = 37,61, p-valor = <0,001) e 2023 (? = 5,88, p-valor = <0,001) e também com a taxa de desocupação das pessoas de 15 anos ou mais de idade (? = 0,92, p-valor = 0,03). Por outro lado, houve associação negativa com a taxa de alfabetização das pessoas de 15 anos ou mais de idade (? = -1,28, p-valor = 0,05). Na avaliação da qualidade do ajuste do modelo, o teste de Breusch-Godfrey/Wooldridge (chisq = 5,18, p-valor = 0,27) sugeriu ausência de autocorrelação e o Studentized Breusch-Pagan test (BP = 13,98, p-valor = 0,17) sugeriu ausência de heterocedasticidade.
Discussão
Este estudo analisou a associação entre insegurança alimentar e indicadores socioeconômicos da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável no Brasil, no período de 2013 a 2023. Os principais resultados apontaram a taxa de alfabetização e taxa de desocupação como principais variáveis associadas. Além disso, o rendimento médio da população permaneceu estagnado principalmente entre 2013 e 2022, com maior predominância de pior desempenho dos indicadores nas regiões Norte e Nordeste do país.
Estudos anteriores também analisaram a associação entre insegurança alimentar e indicadores socioeconômicos no Brasil14-19, porém, em sua maioria, as abordagens consideraram um ano específico ou utilizaram dados de um único inquérito, sem avaliar essas relações em nível territorial e ao longo do tempo, concomitantemente, e sem considerar diretamente as dimensões do desenvolvimento sustentável como norteadoras da investigação.
No presente estudo, a taxa de alfabetização se associou negativamente com a insegurança alimentar no período de 2013 a 2023. Altos níveis de baixa escolaridade estão globalmente associados à insegurança alimentar, sobretudo em países do sul global, o que também possui relação com fatores como renda, escolaridade da pessoa de referência no domicílio, região de moradia, preço dos alimentos, entre outros23-26, reforçando a importância do investimento em educação para a superação da fome. As mudanças nos panoramas político e econômico no Brasil, sobretudo no período considerado neste estudo, favoreceram uma situação de pleno desinteresse pela agenda de expansão da educação pública, com proposição de congelamento de gastos principalmente para a saúde e educação27, impactando também as políticas direcionadas à permanência na escola e de oferta da alimentação escolar. Situação especialmente agravada no período da pandemia de Covid-1928.
A associação positiva entre insegurança alimentar e taxa de desocupação tem como explicação parcial as mudanças nos panoramas político e econômico já mencionados anteriormente, mas também a descaracterização dos direitos trabalhistas ocorridos ao longo dos anos a partir de emendas à constituição e mudanças nas regras de direcionamento de recursos anteriormente previstos à garantia de emprego aos trabalhadores29,30. Além disso, o modo como a pandemia de Covid-19 foi conduzida no país prolongou as dificuldades impostas pela necessidade do isolamento e pelos impactos da emergência sanitária para os diferentes setores da economia e, consequentemente, para o mercado de trabalho31-34.
De 2013 a 2022, as taxas de pobreza e extrema pobreza no Brasil variaram, respectivamente, de 32,6% e 5,5% (2014) a 38,2% e 9,4% (2021)35. Em 2023, entretanto, a proporção da população do país abaixo da linha de pobreza adotada caiu de 31,6% para 27,4% e foi a menor proporção desde 2012, segundo dados do IBGE36. Estudo realizado por Baccarin, Del Grossi e Magro (2024), estimou que a manutenção do nível de emprego condicionou a manutenção dos níveis de insegurança alimentar no Brasil entre os anos de 2016 e 2019, com desestabilização dessa relação entre 2019 e 2021 e redução do desemprego ao patamar de 2019 neste último ano, assim, sugeriu-se que a interação entre as mudanças na taxa de desemprego, o aumento da inflação e a crescente pressão sobre os grupos sociais mais vulneráveis pode ter tido um impacto substancial na prevalência da insegurança alimentar e nutricional entre os brasileiros37. Amaral et al.38 apontaram ainda impactos negativos da austeridade fiscal no período de 2004 a 2018, que foram expressos, principalmente, na rigidez das tendências de gastos e da abrangência do Programa Bolsa Família, com reflexos principais sobre a insegurança alimentar grave. Os autores projetaram um aumento da insegurança alimentar no país e um consequente distanciamento das metas para o alcance do objetivo 2 da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável no Brasil, que enfatiza o alcance da segurança alimentar da população.
Nosso trabalho não encontrou associação com o rendimento médio da população no período analisado. Como visto na descrição dos resultados, o rendimento médio teve pouca variação, sobretudo entre os anos de 2013 e 2022. Além disso, junto à precarização do trabalho formal decorrente das reformas mencionadas, o crescimento de novas formas de trabalho, especialmente pela utilização de aplicativos de mobilidade e de entregas, contribuiu para a expansão do trabalho informal no Brasil39,40. Se por um lado isto surge como uma alternativa à obtenção de renda, por outro, trouxe à tona uma problemática acerca das condições de trabalho na informalidade, como extensas jornadas de trabalho, exposição a riscos à saúde e segurança pessoal e maior insegurança alimentar entre estes trabalhadores41.
O presente estudo levanta hipóteses acerca dos principais fatores associados à transição da situação da segurança alimentar no Brasil e cobre uma lacuna importante na literatura sobre fatores associados ao aumento da insegurança alimentar nos últimos 10 anos no país e o realiza através de análise que leva em consideração a estrutura espaço-temporal do problema e dos dados; utilizando dados provenientes de pesquisas com delineamento amostral complexo e representativos da população; e com a inclusão de indicadores de importância para realidade brasileira, alinhados às metas para o alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentável definidos na Agenda 2030. Apresenta como principal limitação o fato de se tratar de um estudo em nível ecológico, o que sugere cautela na interpretação dos resultados observados para o nível de agregação (Unidade Federativa), uma vez que não podem ser extrapolados para o nível individual, sujeitando-se ao viés de falácia ecológica. Além disso, o período referente à pandemia de 2022 - incluído neste estudo - pode adicionar um possível efeito de confundimento, entretanto, um possível maior impacto deste ano é claramente evidenciado pelo coeficiente de associação obtido na nossa modelagem.
Conclusão
A redução da taxa de alfabetização e o aumento da taxa de desocupação contribuíram para a evolução do panorama de insegurança alimentar no Brasil no período de 2013 a 2023, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, historicamente mais afetadas do país. A conjuntura, representada pela região e o ano, evidenciou um maior efeito da região Norte e do ano de 2022, o que em parte pode ser explicado pelo contexto de crise vivenciado durante a pandemia de Covid-19 no Brasil, sobretudo nesta região. Além disso, a estagnação do rendimento médio da população, sobretudo entre 2013 e 2022, enfatiza a importância da renda para a superação da insegurança alimentar no país. Portanto, a educação, o emprego e a renda ainda são fatores que precisam estar no centro da agenda de redução da insegurança alimentar no Brasil, o que também está alinhado ao alcance das metas da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável.
Agradecimentos
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP; processo nº 2022/13640-7) pelo financiamento para a realização do estudo. E ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processos nº: 305750/2023-2 e 406774/2022-6).
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