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0396/2023 - Legal recognition of homoparenthood and science: Una entrevista con Maria del Mar González Rodríguez
Legal recognition of LGB parenthood and science. An interview with Mar González

Autor:

• Rosana Machin - Machin, R. - <rmachin@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1306-4276

Coautor(es):

• Maria del Mar González Rodríguez - Rodríguez, M. M. G. - <margon@us.es>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7522-7005



Resumo:

Mar González é psicóloga e foi uma das pioneiras nos estudos sobre a homoparentalidade na Espanha. Suas pesquisas, a partir dos anos 2000, tiveram um papel relevante no debate parlamentar no país, que culminou com a aprovação do casamento homossexual, em 2005. A Espanha, um país de maioria católica, que havia deixado a ditadura franquista três décadas antes, foi o terceiro país no mundo, depois de Bélgica e Holanda a reconhecer o direito de união da população homossexual. Seus estudos versam sobre famílias não convencionais, diversidade familiar, desenvolvimento infantil e familiar e sua relação com educação e saúde. Nossa conversa tratou do tema da homoparentalidade, do estabelecimento dos direitos de filiação para esse grupo social, dos estudos sobre estas configurações familiares e as principais implicações da homoparentalidade para a saúde.

Palavras-chave:

homoparentalidade; diversidade familiar; famílias homoparentais

Abstract:

Mar González is a psychologist who was one of the pioneers in studies on LGB-parent families in Spain. Her research,the 2000s onwards, played an essential role in the parliamentary debate in the country, which culminated in the approval of homosexual marriage in 2005. Spain, a Catholic-majority country that had left the Franco dictatorship three decades earlier, was the third country in the world, after Belgium and Netherlands, to recognize the right of homosexuals to unite. Her studies deal with unconventional families, family diversity, child and family development, and their relationship with education and health. Our conversation dealt with LGB parenthood, the establishment of filiation rights for this social group, studies on these family configurations, and the leading health implications of LGB parenthood.

Keywords:

LGB Parenthood; family diversity; LGB-Parent families

Conteúdo:

Rosana – Poderia nos contar sobre sua formação e trajetória acadêmica?

Mar – Eu tenho formação em Psicologia na Universidade de Sevilha e doutorado em Psicologia também. Comecei como pesquisadora, como bolsista em pesquisa na universidade trabalhando com interações parentais e filiais e construção do desenvolvimento cognitivo linguístico desde um marco sociocultural e de como efetivamente se constroem esses desenvolvimentos. Mas, justo depois desses estudos, me interessei pela diversidade familiar e comecei a trabalhar com certos tipos de família, que não correspondem ao padrão convencional. Famílias de mães sozinhas depois de um divórcio e, a partir de então, fui me interessando por outros tipos de família.

Rosana – Quando estes estudos começaram?

Mar – Foi no final dos anos 1990, sobretudo 1997/1998, com os estudos sobre famílias pós divorcio e mães solteiras. Em 2002, nós publicamos o primeiro estudo sobre diversidade familiar e famílias de mães lésbicas ou pais gays, que começamos em 2000.

Rosana – O que te motivou a estudar as configurações familiares homoparentais?

Mar – O debate que se abre na Espanha no ano 2000, foi um debate forte em torno das famílias homoparentais. Sua raiz está na Comunidade Autônoma de Valencia, que legisla a possibilidade de acolhimento familiar não somente pessoas casadas, mas também casais vivendo em união e sem estabelecer qualquer distinção, podiam ser casais heterossexuais ou de mesmo sexo. Neste momento na Espanha, ainda não está aprovado o casamento homossexual e não há legislação neste sentido. Era um governo conservador e houve muita revolta. E já havia sido publicada, no ano de 1992, uma revisão fantástica de Charlotte Patterson em Child Development, uma revista central para a Psicologia do Desenvolvimento. Eu li e sabia o que ocorria com crianças que cresciam neste tipo de família, porque ela revisou tudo o que se havia publicado até o ano de 1992. Ela tinha um curso de doutorado em que falava sobre diversidade familiar, incluindo famílias lésbicas e gays. E eu incluí em meu próprio concurso para professora estável na universidade, no ano de 1995, as famílias homoparentais, como um tipo de diversidade familiar.

Rosana – Quando este tema se converte numa preocupação acadêmica e em que área do conhecimento isso começa?

Mar – Quando nosso estudo estava se desenvolvendo em Barcelona, soube depois de um estudo que estava em curso a partir da Antropologia, também sobre famílias de casais de mesmo sexo. E igualmente havia um estudo em desenvolvimento no Departamento de Sociologia de Barcelona. Assim, praticamente esses estudos dos três grupos vão à luz juntos. A nossa é a primeira pesquisa a partir da Psicologia do Desenvolvimento e a realizamos para dar resposta às perguntas sociais. Porque, saiu um debate em torno da possibilidade de legislar, mas havia um forte debate social contrário, com posturas contrárias dizendo que as crianças poderiam ser afetadas, pelo fato de viver com duas mães ou dois pais e não ter uma figura paterna ou materna ou podia ser afetado por viver em um ambiente hostil, que ameaçava, que fizesse bullying na escola. Então nosso objetivo era responder a estas perguntas sociais, responder essas dúvidas, que a sociedade tinha e fazê-lo a partir da ciência, com dados. Conhecíamos dados de outros países e quando havíamos intervindo em alguns debates nos meios de comunicação, comentamos os estudos desenvolvidos em outros países. Nesse momento, sobretudo nos Estados Unidos e Reino Unido, onde havia pesquisas feitas pela equipe de Susan Golombok (Psicóloga, Professora de Pesquisa em Família e Diretora do Centre for Family Research na Universidade de Cambridge, Reino Unido), pela equipe de Charlotte Patterson (Psicóloga, lidera pesquisas sobre parentalidade LGBTI+, Universidade da Virgínia, Estados Unidos da América) e de outros pesquisadores nos Estados Unidos, também havia outros estudos na Holanda e Bélgica e algum no Canadá. Assim, já havia bastante evidência científica. Mas, na Espanha se dizia – sim, mas esses são outros países. Espanha é um povo latino, um povo mediterrâneo, nossa cultura é distinta, aqui essa parte da infância tem muito mais peso e estas famílias e estas crianças vão crescer mal neste entorno. Então, resolvemos responder a estas perguntas, fazer pesquisas para responder isso.

Rosana - Nos primeiros estudos, quais eram as questões que te preocupavam? Sobre que temas exatamente se investigavam essas famílias?

Mar – Nos interessava saber como eram seus progenitores. Se eram pessoas saudáveis, com ajuste mental, emocional e comportamental. Por quê? Porque havia muitas perguntas sociais, havia muito estigma, muito preconceito em torno das pessoas homossexuais. Portanto, queríamos saber como eram seus estilos educativos, como era sua rede de apoio. Pois, como havia preconceito queríamos saber se eram pessoas isoladas, que viviam em ‘guetos’, se relacionando somente com outras pessoas homossexuais e igualmente como organizavam a vida cotidiana das crianças. Porque também havia esta preocupação. Havia quem dizia que estas crianças tinham uma vida anômala, que não iam à parques e que ficavam todo o dia fechados em lugares e ambientes. Então, as perguntas com relação aos pais e mães era sobre organização da vida cotidiana e as práticas educativas e de desenvolvimento. Com relação às crianças era sobre sua autoestima, como era seu ajuste emocional e comportamental, como eram suas relações de gênero. Porque também se dizia que não teriam uma identidade de gênero bem definida, pela falta de dois modelos em casa. E igualmente como era a aceitação social, se tinham amigos e se estavam bem aceitos na escola, nas relações. Então, basicamente as perguntas fundamentais eram estas.

Rosana – E como se regulou o casamento para estes grupos na Espanha? Como esses estudos da área e, digamos, sua contribuição se relacionaram com esta discussão?

Mar – Nossos dados se publicam em 2002 e há muita agitação social com os resultados, pois há uma parte da sociedade, a parte mais conservadora que não está disposta a aceitar que estas crianças estão crescendo bem, que é basicamente o que dizem as pesquisas. Elas estão crescendo sem problemas de saúde mental, não têm problemas de autoestima, estão sendo bem acompanhadas. Levam uma vida ordenada e muito parecida a de seus colegas. Não diferem de seus colegas em praticamente nenhuma das medidas que tomamos. Exceto que são mais flexíveis com as questões de gênero. Não que tenham mais conhecimento que seus colegas, senão que entendem, por exemplo, que uma mamadeira pode ser usada tanto por homens como por mulheres. São mais flexíveis ao considerar o que é masculino e o que é feminino. Eles tendem a considerar que a função pode ser desenvolvida tanto por homens como mulheres, ainda que saibam que tradicionalmente tenha sido designada ao gênero feminino ou ao gênero masculino. Então, esses dados resultaram muito chocantes para uma parte da sociedade. Isso abre um debate e permite se apresentar aos meios de comunicação. Apresentamos os resultados no ano de 2002 e até que a lei se aprovou em 2005, foram três anos. Foram três anos indo em diferentes províncias e apresentando os resultados pelo território nacional, pelo convite das províncias. Houve muita cobertura e debate nos meios de comunicação. E, finalmente, no ano de 2004 muda o governo. Deixa o governo nacional o Partido Popular, um partido conservador e entra o Partido Socialista Espanhol de novo, com o presidente Rodríguez Zapatero. Um projeto de lei foi apresentado ao Congresso em 2004, a poucos meses de mudar o governo. Há um debate parlamentar e no Senado se paralisa o trâmite e se pede a participação de especialistas. Me convidam como especialista ou profissional e justamente no dia de minha intervenção, antes de minha fala, se apresenta um psiquiatra, um catedrático em psiquiatria da Universidade Complutense de Madri, que numa apresentação sem base científica faz afirmações de tipo os homossexuais são filhos ou filhas de abusadores e que passam a ser abusadores, são filhos de pessoas violentas ou alcoólatras, de tal calibre, que se provocou uma revolta na Comissão de Justiça do Senado. Eu logo apresento meus dados e claro, foi um contraste marcante. E esse contraste entre uma ideologia sem base científica e dados que provêm da ciência, terminam por decantar o debate parlamentar. E quando o projeto de lei passou no congresso foi aprovado por maioria, a Lei de Matrimônio Igualitário, em 2005, e acreditamos que a partir da ciência contribuímos com isso porque demos fundamentação científica a extensão de direitos civis à população LGBTI+ na Espanha. Só se alterou uma frase no Código Civil, mas teve um efeito imenso, pois se estabelece o direito ao casamento entre homens e mulheres e terá o mesmo efeito se for entre pessoas de mesmo sexo. Esta última frase foi a única que se mudou no Código Civil, mas ao estar no próprio código afetava todas as leis derivadas. Ou seja, que afetava a adoção e tudo o que o código estabelece em termos de princípios de direitos civis e a discussão em todos os âmbitos.

Rosana – Que tipo de benefícios podemos dizer que este reconhecimento legal trouxe para as famílias homoparentais?

Mar – Possibilitou legalizar os vínculos afetivos que já tinham. Ou seja, a família não começa a existir à raiz da lei. Nós havíamos estudado, elas eram preexistentes e tinham um vazio de reconhecimento legal que explicava, por exemplo, que um pai e uma mãe real, que não tivesse vínculo legal com seu filho, porque não havia podido legalizar o vínculo, os laços, não podia acompanhar seu filho em uma urgência ou podia não ser atendido pelo tutor escolar do seu filho/filha por não ter vinculação legal com ele/ela. E isto já havia ocorrido com estas famílias. Não ter vinculação legal, restringia os direitos dessas pessoas em grande parte, porque não tinham direito a ser atendidos e cuidados por seu pai não legal, seu pai real. Havia toda uma série de direitos que essas crianças estavam sendo privadas. E seus pais também, ao não poderem exercer legalmente a paternidade e a maternidade. Então, esta lei veio a dar legalidade à realidade. Dar legitimidade ao que já era uma realidade social e contribuiu, e isso é muito interessante do meu ponto de vista, a avançar a aceitação da população LGBTI+ em nossa sociedade. Como sabem, Espanha teve uma ditadura até o ano de 1975. Até a constituição democrática de 1978, a homossexualidade era perseguida penalmente na Espanha. E em menos de trinta anos, de 1975 a 2005, mudamos a população homossexual, a população LGBTI+ do Código Penal para o Código Civil. Isto é uma revolução para qualquer sociedade e fez com que se agilizasse os processos de aceitação dos direitos LGBTI+. Assim, Espanha é junto com Suécia e Dinamarca, o país com maior aceitação dos direitos LGBTI+ no mundo, sendo um país de tradição católica, sendo o país que tinha a homossexualidade no Código Penal fazia muito pouco tempo. Essa legalização precoce, foi o terceiro país no mundo a legalizar, deu legitimidade, segurança e tranquilidade às famílias e uma mensagem pedagógica muito clara à sociedade. Que estas famílias deveriam gozar dos mesmos direitos que as pessoas heterossexuais.

Rosana – Você estudou sobre como este reconhecimento legal produziu mudanças nas famílias homoparentais. Poderia falar um pouco sobre isso?

Mar - Foi uma investigação que realizamos quando mudou o governo. Havíamos tido dois mandatos do governo socialista e em 2011 chega ao governo o Partido Popular de novo, que tinha recorrido considerando como inconstitucional a lei do matrimônio e havia ameaçado revogá-la. O Tribunal Constitucional negara o apoio. Então as famílias se sentiam absolutamente nervosas e ansiosas. E decidimos estudar sua experiência antes do matrimônio aprovado, depois que se aprovara e quando nos encontrávamos, esse momento de incerteza legal quanto ao seu futuro. E foi muito bonito ver, como o casamento os havia dado não somente segurança, legitimidade, como também um sentimento de cidadania de primeira classe em nossa sociedade, que é muito importante. E, ademais, havia dado aceitação social e abertura. Ou seja, que depois de ser aprovado o casamento, em todas as famílias que entrevistamos, pelo menos uma que aguardava processo de adoção internacional havia casado, onde este vínculo estava pendente. Mas, diziam que com a aprovação do casamento se mostraram muito mais abertamente ao seu entorno, frente a sua família extensa, as amizades e pessoas conhecidas e sobretudo no âmbito do trabalho. Por exemplo, que passaram a se assumir abertamente como pessoas LGBTI+ (antes eram 30% dos entrevistados), a ser abertamente pessoas LGBTI+ com todos, mais de 60%. Ficava claro um reduto de cinco a dez por cento, que não comentava com um entorno muito patriarcal, que perseguia muito a homossexualidade. Mas, a grande maioria falava disso abertamente e, claro, na família. As amizades passaram a falar de modo aberto e foi uma mudança muito clara.

Rosana – Que efeitos pode acarretar a homofobia a estas famílias?

Mar – Bem, já existem bastantes estudos que demonstram o efeito de pertencer a uma minoria estigmatizada e viver em uma sociedade que tem preconceito. Assim, no entorno sociocultural mais próximo de sua família, amigos, vizinhos e também nos grupos mais distantes, que não aceitam a homossexualidade, que é homófobo, que persegue a homossexualidade, como está passando agora institucionalmente na Itália com a chegada ao poder de um partido homófobo, isso provoca claramente alterações na saúde mental nessas minorias. Pertencer a uma minoria, mas viver num entorno que aceita, que a incluí, que permite viver sua diversidade sexual facilita, digamos, serve de contrapeso como fator de proteção para essas famílias que têm que enfrentar em algum momento determinado a homofobia. Não um entorno sociocultural homófobo. Isso serve de contrapeso, como fator de proteção. A homofobia institucionalizada, a homofobia crescente pelas leis, que discriminam tanto o próximo como o distante, tem consequências claramente perniciosas para estas famílias, tanto para os pais, mães como para as crianças. Outro dia entrevistamos uma menina de dez anos, mas muito madura, que me dizia haver crescido numa escola onde todos a conheciam. Seus pais haviam escolhido um centro educativo muito aberto, público, com uma ideologia aberta à diversidade. Seus colegas conheciam sua situação, de ter dois pais e de ter nascido de gestação por substituição. Ela estava terminando a escola e iria para um instituto, que recebe jovens de distintos centros educativos. Muitos deles e delas não iriam lhe conhecer e tinha medo de ter de enfrentar a homofobia e o rechaço a famílias como a sua. E isso já com dez anos. Dois anos antes de chegar aos estudos secundários, já haviam lhe retirado esse sonho.

Rosana – Acredita que estudar este tema na academia pode ser entendido como uma ação política?

Mar – Sem dúvida o é. Sem dúvida tem um valor político claríssimo e no debate que houve em torno da lei na Espanha nos sentimos claramente parte dessa luta política. Para nós era a partir da ciência, que era nosso papel. Os coletivos tiveram um papel de reivindicação, de ativismo. Os meios de comunicação tiveram um papel muito relevante de divulgar distintas posturas, dos tipos de investigações sobre o tema. Também a academia e a universidade. Mas, a nosso juízo, também é um papel político, um papel que nos situa como uma referência social, já que estamos dando respostas científicas a preconceitos sociais.

Rosana – Que tipo de necessidade trazem estas famílias para a área da saúde? Que especificidades se poderia destacar?

Mar – Esse me parece um ponto muito interessante. Sabemos que a maior parte dos profissionais de saúde não se formaram sobre diversidade familiar, nem em sua formação primária, nem na formação permanente. Portanto, o primeiro que trazem é uma realidade desconhecida, da qual têm muitas dúvidas e desconhecem em muitos aspectos. E uma realidade, não é isenta de preconceitos na sociedade geral e sabemos que muitos profissionais podem estar imbuídos também, porque está crescendo em nossa sociedade. Então, portanto, há preconceitos nos profissionais que estão trabalhando com estas famílias na saúde, na educação, no trabalho social, na psicologia. Assim, temos um dever, a autoridade de saúde pública, de avançar na formação em diversidade familiar e famílias LGBTI+ e do que ocorre aí no desenvolvimento de crianças e jovens. Em segundo lugar, eu creio que há que retirar dúvidas, pois não temos conhecimento de que haja quaisquer afetações no desenvolvimento considerando os dados e sociedades internacionais de pediatria, de psiquiatria, de psicologia, de trabalho social e da psicanálise. São posições muito claras das sociedades profissionais. A evidência científica diz que crianças que crescem nessas famílias têm as mesmas possibilidades de desenvolvimento harmônico e saudável que em famílias heterossexuais e que seus pais são capazes de dar as mesmas condições para favorecer o desenvolvimento. E isso, por exemplo, a Academia Americana de Pediatria afirmou já em 2002. Ou seja, faz muitos anos que há pronunciamentos muito claros de todas as sociedades profissionais relevantes. E isso precisa ser traduzido em formação para profissionais, adaptação de protocolos da área e do nosso ponto de vista, deve fazer uma mudança no modelo de patologia e déficit, que traz consequências para estas famílias, a um modelo de desafios. No sentido de que estas famílias enfrentam 80% de desafios comuns a outras famílias e outras questões distintas, que devem resolver de outra maneira. E isso se traduz em fortaleza e dificuldades específicas, que acredito que devem ser conhecidas. Começo pelas dificuldades. Uma delas é enfrentar a homofobia. Esses familiares enfrentam a homofobia e profissionais da saúde e de outros âmbitos nem sempre os entendem. Portanto, devem ser fortalecidas, devem ser acompanhadas, devem ser legitimadas por profissionais da saúde. Pois, como sabemos enfrentar a homofobia acaba tendo consequências claras como incremento da ansiedade, de sinais depressivos, de diminuição na autoestima, aumento de estresse. Então, há consequências claras para a saúde dos pais e das crianças, que também podem ter de enfrentar a homofobia. E, nesse sentido, parece claro em nossos dados e muitos outros países indicam claramente, que quando se legitima, se legaliza o casamento, quando se dá carta de legalidade e legitimidade a estas famílias, aumenta o bem-estar e diminui o estresse e problemas de ansiedade nelas. Portanto, essa seria uma boa ideia política, a legalização e a legitimação, pois promove o bem-estar desse público. Digamos que as dificuldades de legislar sobre estas famílias está sem dúvida no marco sociocultural. Este marco que acompanha, legaliza e legitima seu devir é parecido àquele que enfrentam outras famílias, são problemas habituais ligados a ter um filho e as questões relacionadas ao dia a dia. No entanto, quais são as fortalezas que podem se considerar? São famílias que amadureceram muito e refletiram muito sobre sua decisão de parentalidade, porque não se chega a construir esse projeto com pessoas do mesmo sexo sem isso. Tiveram uma decisão muito madura e refletida e, portanto, tem um compromisso muito claro com a parentalidade. Ou seja, como no caso das famílias que adotam, qualquer tipo de famílias adotivas, são pessoas comprometidas com a parentalidade. Passa algo parecido com essas famílias. Assim, isso é uma fortaleza dessas famílias. Outro dado importante que os estudos na Espanha revelam é que tem uma maior corresponsabilidade na distribuição das tarefas, uma divisão mais igualitária. Há estudos feitos na Sociologia em vários países da Europa, América e metanálises, que demonstram serem claramente mais igualitárias na divisão das responsabilidades domésticas e no cuidado infantil em comparação com famílias heteroparentais. E igualmente educam seus filhos e filhas num ambiente de igualdade. Seus filhos são mais flexíveis quanto a questões de gênero. Essa divisão mais igualitária das tarefas tem uma vinculação significativa com maior satisfação vital. Ou seja, encontramos tanto em famílias lésbicas como em famílias heterossexuais igualitárias, mas em porcentagem encontramos muito mais em famílias lesbianas esse igualitarismo no dia a dia, na distribuição de tarefas e cuidado infantil, e isso está claramente vinculado ao bem-estar da família. Outro elemento encontrado como de fortaleza e parece muito relevante nestas famílias, é que educam a seus filhos e filhas com maior liberdade para definir sua orientação sexual. E isso sabemos por que nos disseram os próprios pais e mães, que nos contaram uma cena muito bonita. Conversamos com um pai de uma filha de cinco anos e lhe perguntamos como educava de forma afetiva sua filha. Ele dizia que a mensagem era pequena, mas quando está brincando com as Barbies, por exemplo, que estava na moda e com o Ken, às vezes lhe digo – “as Barbies podem ser namoradas e podem casar-se, porque se gostam e se querem podem ser namoradas”. E às vezes quando ela estava brincando com as Barbies, Ken e outras amigas, ela falava para as amigas - “as Barbies também podem ser namoradas”. Porque é como dizem os filhos e filhas adultas que estudamos, quando analisamos sua orientação sexual. Esta era uma das grandes preocupações de nossa sociedade, se também seriam homossexuais como seus pais e mães e viam isso como uma preocupação. O que encontramos é que 88% deles são pessoas que têm relação com jovens de outro sexo; 10% se definem gays ou lesbicas como seus pais e mães e 2% se definiam como bissexuais. Ou seja, é um percentual muito parecido ao que encontramos na população em geral. Os filhos acreditam que podem viver a sexualidade com liberdade e que serão aceitos pela forma como se definem. De fato, uma das filhas que se percebia heterossexual, com 14 anos acreditou estar apaixonada pela professora e falou com suas mães, pois quem sabe podia ser lésbica. E as mães disseram que pode ser, mas também pode ser que a olhe e pareça uma pessoa que você goste pela forma de ser. Eu não conheço uma só pessoa não hetero, que tenha pais heterossexuais e que os consultou nas primeiras dúvidas. Consulta uma amiga, uma irmã, não os pais. Nesse sentido, educam seus filhos em uma maior liberdade para decidir sua orientação sexual e isso acredito que seja importante ter em conta.

Rosana – Você coordenou o projeto APEGO sobre promoção de competências parentais no sistema de saúde público andaluz. Poderia nos contar um pouco sobre este projeto? Quando surge a iniciativa e qual a importância para o sistema de saúde público espanhol implicar-se com o trabalho com famílias homoparentais?

Mar – Eu fui parte do grupo que o coordenou. A coordenação esteve a cargo da Profa. Jesús Palácio González, que trabalha muito com o Brasil sobre infância. Éramos uma equipe de pessoas que trabalhavam com família há algum tempo e já havíamos realizado um programa de intervenção com profissionais da educação, com pais e mães, que agora se compreende como parentalidade positiva. É o termo mais amplamente utilizado. Em finais dos anos 1980, inícios dos anos 1990, realizamos um projeto com o Governo Andaluz na saúde. Mas, esse programa estava um pouco antigo, obsoleto e não contemplava a diversidade. Foi feito um ajuste necessário, demandado pelo Conselho de Saúde da Junta de Andaluzia era um projeto ao nível do governo andaluz. Nos pediram algo muito simples que era fazer um projeto, materiais para pediatras, enfermaria pediátrica, sobre o apego e os transtornos do apego. Nos parece fundamental fazer isso. No entanto, nós lhe dissemos que gostaríamos de fazer algo mais amplo voltado a parentalidade positiva, de como acompanhar da melhor maneira possível o desenvolvimento em todos os âmbitos, não somente no âmbito do apego, da vinculação, mas do linguístico, do social, do emocional, enfim queríamos tocar em outros âmbitos da personalidade. Então, eu me ocupei em parte de uma etapa, focando desde a diversidade, da etapa de 2 a 12 anos. Isso se traduziu em umas guias para profissionais e guias para as famílias. Guias para acompanhar o desenvolvimento de todas as etapas, desde o nascer até a adolescência, 16 anos. Deveria ser traduzido também em formação para os profissionais, em cursos ou grupos de trabalho. Mas, o governo mudou e isso deixou de ser uma prioridade. Não pudemos fazer mais e gostaríamos de termos feito muito mais, pois era uma demanda dos próprios profissionais.

Rosana – Apesar dos avanços e reconhecimento legal das famílias homoparentais em vários países do mundo, assistimos atualmente ao crescimento da resistência a essas configurações familiares e, em alguns casos, da revogação de leis, especialmente, por parte de grupos políticos de extrema direita. Como você entende esses processos?

Mar – Eu creio que é um processo acalentado por uma ideologia ultraconservadora e de ultradireita, que está lesionando gravemente os direitos e está afetando a saúde e bem-estar dessas famílias. Tenho que dizer assim. Fizemos uma investigação específica relacionada com este tema, mas há muita investigação desenvolvida em torno da segurança dos debates sobre regulação na Austrália e nos Estados Unidos. Todas as pesquisas, que existem em torno da experiência familiar quando há um grande debate em torno delas, quando são o foco, que se permite duvidar e negar-lhes os direitos, negar sua capacidade como pais e mães, discutir se suas famílias são legítimas, temos problemas de bem-estar, de saúde, nas famílias e nas crianças. Alimentado por este debate social, podem surgir bullying por parte de colegas que estão encontrando esses argumentos nas redes, nos parlamentos. Encontramos um político que fez afirmações homófobas. A legitimação política desse discurso homófobo, sem dúvida, é um fator de risco muito claro para o bem-estar e a saúde dos coletivos LGBTI+ e, em particular, das famílias e de seus filhos e filhas, que são a parte mais vulnerável no momento e temos o dever de salvaguardar. Precisamos de um posicionamento claro de organismos internacionais e dos governos em defesa da infância, em defesa dos direitos humanos. Devemos ter um pronunciamento muito claro a esse respeito.

Rosana – Que efeito pesquisar este tema teve para você e sua equipe?

Mar – Até agora eu vivi como uma pessoa heterossexual. Sou casada, tenho filhos e nunca havia enfrentado homofobia. Ela existia, eu havia visto no dia a dia, me posicionava contra quando via que faziam brincadeiras e afirmações homofóbicas perto de mim. Mas, a partir da primeira pesquisa tivemos uma campanha contrária muito forte dos meios de comunicação mais conservadores. Fizeram uma campanha que estivemos a ponto de fazer a minha universidade sair em minha defesa, pelo tipo de afirmação que estavam fazendo, duvidando do rigor científico, duvidando da validade da pesquisa e de nossa trajetória. E uma associação ultraconservadora ligada a linha ultra conservadora da igreja católica, fez uma campanha a nível nacional pedindo que nunca mais se financiassem estudos desse tipo e nem publicassem os dados, estimulando as pessoas a escreverem ao Presidente do Governo da Junta de Andaluzia, para que não financiasse a investigação e nunca mais se publicasse nossos dados. E me chamaram na Presidência do Governo para dizer-me que isto estava ocorrendo e para me tranquilizar, que não iam prestar atenção, mas estavam recebendo estas manifestações. Tivemos também ameaças por telefone, mensagens nos ônibus, panfletos na porta dos congressos onde íamos apresentar os dados e cartas. Até um cartaz colocado na minha porta na universidade fazendo referência a um termo popular de ser lesbiana. Eu não retirei o cartaz e depois de um tempo o levei para a sala de aula. Tudo isso me deixou ainda mais consciente, do efeito pernicioso da homofobia para as pessoas LGBTI+ e passei a fazer parte de um coletivo. Pois, ainda que eu goste dos homens, me alegro com as alegrias, sofro com as tristezas, sofro com os sofrimentos do coletivo. Assim, passei a fazer parte do coletivo, das famílias que se sentem parte do coletivo. Colaboro com eles sempre que necessário. Foi um modo de enfrentar a homofobia. Digamos que é o preço de fazer ciência e não deveria ser assim. Naquele tempo foi realmente duro e ademais houve uma mudança de governo em Madri. O que fazíamos, foi realizado primeiro em Andaluzia e Madri. Com as mudanças em Madri (do defensor público) queriam impedir que se publicassem os dados, a própria instituição que os financiou. Foi uma coisa muito vergonhosa. A universidade que nos ampara deve seguir sendo livre e sem determinação política, e a sociedade científica nos ampara também e isso nos dá uma liberdade que não podemos perder. A responsabilidade de seguir mantendo essa liberdade de cátedra e de ciência, que é o que a sociedade precisa. Na Espanha, os cientistas são uma das pessoas mais valorizadas pela sociedade, uma das profissões mais reconhecidas e valorizadas. E esse crédito é importante para não ceder a essas pressões.

Rosana – Muito obrigada!



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Machin, R., Rodríguez, M. M. G.. Legal recognition of homoparenthood and science: Una entrevista con Maria del Mar González Rodríguez. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2023/Dez). [Citado em 07/10/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/legal-recognition-of-homoparenthood-and-science-una-entrevista-con-maria-del-mar-gonzalez-rodriguez/19022?id=19022&id=19022

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