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Artigos

0318/2024 - Modelo biopsicossocial na avaliação da deficiência: Deficiência não é um código da CID.
Biopsychosocial model in Disability Evaluation: Disability is not an ICD code.

Autor:

• Indyara de Araujo Morais - Morais, I.A - <indydymorais@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6662-0788

Coautor(es):

• Edgar Merchan-Hamann - Merchan-Hamann, E - <merchan.hamann@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6775-9466

• Marineia de Crosara Resende - Resende, M.C - <marineiaresende@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6068-5000

• Éverton Luís Pereira - Pereira, E.L - <evertonepereira@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7771-1594



Resumo:

A identificação das pessoas com deficiência para as políticas sociais está em disputa teórica, política e social no Brasil. Em que se busca uma transição do modelo biomédico, a partir de laudos médicos com a designação de um código da Classificação Internacional de Doenças e Problemas relacionados com a Saúde (CID), para o modelo biopsicossocial com uma avaliação multiprofissional e interdisciplinar como a Lei Brasileira de Inclusão prevê. O presente ensaio teórico tem como objetivo apresentar alguns subsídios para a discussão sobre a avaliação da deficiência. Buscou-se apresentar a disputa conceitual teórica como matriz para a reflexão, os instrumentos de avaliação e os movimentos políticos relacionados atores sociais. Este ensaio busca cobrir um hiato na literatura científica brasileira, ampliando o debate de Estudos sobre Deficiência, bem como promover informações em uma linguagem simples para os profissionais de saúde e pessoas com deficiência. Argumentamos que a avaliação da deficiência deve considerar todos os determinantes como o resultado multicausal, tendo fatores funcionais, ambientais e pessoais. A abordagem deve ser fundamentada em evidências, colocando como ponto central a pessoa-ambiente e como seu resultado interativo a deficiência.

Palavras-chave:

Avaliação da Deficiência; Pessoas com Deficiência; Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde; Modelos Biopsicossociais;

Abstract:

The identification of persons with disabilities for social policies is in theoretical, political, and social dispute in Brazil. There is a transitionthe biomedical model, based on medical reports with the designation of a code of the International Classification of Diseases and Related Health Problems (ICD), to the biopsychosocial model with a multi-professional and interdisciplinary evaluation as provided for in the Brazilian Law of Inclusion. This theoretical essay aims to present some subsidies for the discussion on the assessment of disability. This text presents a theoretical conceptual dispute as a matrix for reflection, the evaluation instruments, and the political movements related to social actors. This essay seeks to cover a gap in the Brazilian scientific literature, broadening the debate on Disability Studies, as well as promoting information in simple language for health professionals, and persons with disabilities. We argue that disability evaluation should consider all determinants, such as the multicausal outcome, having functional, environmental, and personal factors. The approach must be based on evidence, placing the person-environment as the central point and disability as its interactive result.

Keywords:

Disability Evaluation; Person with Disabilities; International Classification of Functioning, Disability, and Health; Biopsychosocial Models.

Conteúdo:

1. Introdução

As definições de deficiência são derivadas dos diferentes modelos teóricos e há diversas abordagens para explicar o fenômeno da deficiência com propósitos variados, resultando em conflitos, contradições e confusão entre os termos1. No plano teórico, definir deficiência é mais que simplesmente um exercício de semântica, alterar a definição teórica de deficiência pode ter implicações sociais, econômicas e políticas de grande alcance2,3.
A deficiência não é uma doença; é uma característica dos sujeitos resultado de múltiplos fatores4. Entretanto, essa população foi estigmatizada e inferiorizada por séculos dentro da sociedade5, levando a necessidade de se estabelecer políticas sociais para que esses sujeitos possam ter acesso aos seus direitos fundamentais e atingir a igualdade de oportunidades.
A identificação das pessoas com deficiência para as políticas sociais está em disputa teórica, política e social no Brasil. Em que se busca uma transição do modelo biomédico, a partir de laudos médicos com a designação de um código da Classificação Internacional de Doenças e Problemas relacionados com a Saúde (CID), para o modelo biopsicossocial com uma avaliação multiprofissional e interdisciplinar como a Lei Brasileira de Inclusão prevê.
No Brasil, a identificação das pessoas com deficiência, para fins de concessão de benefícios sociais, desde a Constituição Federal foi a partir de um laudo médico com atribuição de um código da CID2,4,6,7. Entretanto o principal objetivo da CID, como o próprio nome já diz, é a classificação diagnóstica de uma doença, tendo aplicações para definir a conduta médica, gerar dados epidemiológicos e administrativos em saúde8.
A CID é publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), assim como a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), sendo essa última voltada a propor um modelo de compreensão biopsicossocial dos estados de saúde8. Um exemplo, é a paralisia cerebral que possui do CID G80, que aplicado o modelo da CIF é possível identificar qual a relação dessa condição de saúde com as funções/estruturas do corpo, atividades, participação e os fatores contextuais dos sujeitos. Assim, a CID identifica a origem do impedimento, que pode ter natureza física, intelectual, sensorial (auditiva e/ou visual) e mental, como consequência de doenças genéticas, lesões congênitas e/ou agravos externos9.
No campo dos estudos sobre a deficiência, a CID e a CIF são usadas como ferramentas para avaliar e caracterizar quem é uma pessoa com deficiência em diversos países, sendo esse processo necessário quando se busca o acesso a políticas sociais10. Deste modo, a deficiência se tornou uma característica multidimensional que pode ser avaliada, mensurada, classificada e apresentada como uma estatística9, mas para isso, se faz necessário definir o básico: o conceito a ser usado para dizer quem é a pessoa com deficiência.
O presente ensaio teórico tem como objetivo apresentar alguns subsídios para a discussão sobre a avaliação da deficiência. Buscou-se apresentar a disputa conceitual teórica como matriz para a reflexão, os instrumentos de avaliação e os movimentos políticos relacionados atores sociais. Este ensaio busca cobrir um hiato na literatura científica brasileira, sendo inédito no sentido de resgatar o processo construído da avaliação biopsicossocial no país, ampliando o debate de Estudos sobre Deficiência, bem como, promover informações em uma linguagem simples para os profissionais de saúde e pessoas com deficiência.

2. Metodologia

Foi realizada uma revisão narrativa artigos, livros e documentos nacionais e internacionais relacionados as teorias sobre deficiência. Bem como foram incorporados relatórios publicados pelo Governo Federal relacionados a avaliação biopsicossocial. Destacam-se o Relatório da Pesquisa de Validação pela Universidade de Brasília do Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado11, o Relatório de Análise Ex-Ante Implantação do Sistema Unificado da Avaliação Biopsicossocial da Deficiência4, o Relatório Final do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência12, e o “Documento 8 - Propostas para o instrumento e o modelo u?nico de avaliac?a?o da deficie?ncia” anexo ao Relatório final do GTI.

3. Resultados

O conceito parte de debates teóricos que são compartilhados socialmente e incorporados em legislações, sendo essas importantes para o processo de avaliação da deficiência. Atualmente, no Brasil há duas legislações concorrentes com conceitos de deficiência distintos a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/ 2015)8 e o Decreto nº 5.296/20049, baseados em modelos teóricos que se traduzem em formas de avaliar a deficiência de maneiras distintas, conforme apresentado no Tabela 1.

Tabela 1. Legislações sobre o conceito de deficiência vigentes e concorrentes no Brasil, 2024.

Anteriormente ao Decreto nº 5.296/2004, entendia-se que a pessoa com deficiência era aquela que apresentava “em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”13 e sua identificação era por meio de avaliação e laudo expedido14. Essa conceituação e avaliação é uma característica do modelo biomédico, que reforçava o preconceito com as pessoas com deficiência com a ideia de que eles não eram pessoas “normais”, portanto era um “problema” individual desses sujeitos.
Com o Decreto nº 5.296/2004, as mudanças sociais, políticas e econômicas implicaram na padronização em uma lista das condições de saúde que poderiam acessar direitos, auxiliando os médicos na emissão dos laudos4. Nos anos posteriores, surgiram diversos movimentos para inclusão de outros CID neste Decreto, para ampliar o escopo de pessoas que podem ser consideradas pessoas com deficiência3,6.
Tais normativas referendam a conceituação biomédica da deficiência como doença, trauma, e/ou problema corporal e/ou mental, a partir da funcionalidade corporal. Assim, tem se culturalmente a deficiência enquanto um problema puramente individual, sendo que o “erro” ou “falha” nas funções e nas estruturas do corpo são denominadas como impedimento15.
Deste modo, ter o Decreto nº 5.296/2004 vigente reforça a ideia coletiva de que deficiência é a presença ou ausência de um CID. Os modelos teóricos social e o biopsicossocial da deficiência vem na contramão desse argumento, trazendo os contextos sociais para a reflexão.

4. A disputa conceitual como matriz para a reflexão sobre a avaliação da deficiência

A dualidade entre o “normal” e o “anormal” tornou-se evidente ao longo dos últimos séculos, sobretudo ao se observar os corpos humanos diversos, e que o objetivo central da medicina era trazer esses corpos a um padrão15,16. A medicina tinha como finalidade a cura ou reabilitação de forma individualizada, pois essas pessoas eram variantes da normalidade, portanto, colocando-a como doença, com seus cuidados nos impedimentos nas funções e estruturas do corpo de forma exclusiva, sem considerar os contextos que as pessoas vivem16–20. É interessante perceber que esse olhar medicalizado é feito de sujeitos que não possuem deficiência para as pessoas com deficiência, ou seja, o outro julga e afeta a realidade do outro. Contudo a experiência da pessoa com deficiência na sociedade é mais complexa, e em vários casos não necessita de interferência médica.
O modelo biomédico da deficiência tem como ponto de partida inicial a realidade corporal (biológica ou psicológica) do impedimento, onde é dada ênfase às capacidades e limitações dos indivíduos, a presunção de inferioridade biológica ou fisiológica21. Esse modelo teórico influenciou a construção do International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps (ICIDH), embora tenha sido uma estratégia de tentativa de fuga desse modelo, este documento também afirma a deficiência como um desvio de normas, considerando o desempenho dos sujeitos em oposição a algum mecanismo ou órgão biológico22. Alguns autores trazem a dificuldade de tradução ao Brasil, por exemplo, por muito tempo “handicap” foi traduzido como incapacidade, contudo diversos autores debateram que a tradução adequada seria ‘deficiência’23.
Segundo Beaundry 24, alguns países podem ter uma definição médica de deficiência como uma responsabilidade individual, mas assumiram a responsabilidade de "ajudar" com esse "problema" nas últimas décadas.
Outro modelo teórico, o Modelo Social de Deficiência, começou a crescer ao lado de movimentos sociais das próprias pessoas com deficiência, iniciado entre o fim de 1960 e início dos anos 197011. Segundo Oliver21, nos estudos sobre políticas sociais, a Academia ignorou a deficiência, por entender que a deficiência é uma tragédia pessoal. Neste modelo, a deficiência deve ser entendida como opressão social e deve reconhecer que as pessoas com deficiência têm desvantagens sociais, financeiras, ambientais e psicológicas e que essas desvantagens têm origem social como um produto histórico22.
Para Shakespeare11, o modelo social da deficiência é simples, eficaz e memorável, sendo uma ferramenta de mudança social, tendo três áreas principais de alcance: 1) o modelo é fácil de ser explicado para uma agenda de mudanças políticas; 2) ao identificar barreiras sociais, o modelo social se mostra como uma ferramenta prática para a remoção dessas barreiras e como promoção da inclusão e 3) esse modelo teve um efeito psicológico nas pessoas com deficiência na construção de uma identidade coletiva, evidenciando que a deficiência não é um fracasso individual, mas social.
Esses dois modelos teóricos são dicotômicos e refletem modos de analisar a deficiência, no modelo biomédico, a deficiência é exclusivamente entendida como um déficit individual, enquanto no modelo social, a deficiência é meramente um construto social11.
Essa dicotomia entre modelos sociais e médicos têm um longo debate, por isso têm surgido diversos de modelos teóricos internacionalmente, sendo o mais relevante no Brasil o Modelo Biopsicossocial. Esse modelo teórico se propõe a considerar as duas perspectivas conceituais, conciliando o biomédico (focado em impedimentos nas funções e estruturas do corpo) e o social (origens sociais, políticas, culturais e de impacto) 7,20,25. A distinção entre pessoa com deficiência e pessoa sem deficiência não é tão simples, pois questões culturais, sociais, biológicas e psicológicas devem ser consideradas de acordo com o modelo biopsicossocial 21.
Embora comumente seja atribuída a criação do modelo biopsicossocial ao médico George L. Engel, em 1977, Lugg 26 faz o histórico da sua criação no ano de 1952 com Roy Grinker, onde é apresentada a primeira discussão enquanto uma perspectiva de ampliar a lógica de cuidado para além da doença. A primeira publicação sobre o Modelo Biopsicossocial foi em 1974, com o nome “An Alternative: the bypsychosocial model” por Mosey, uma Terapeuta Ocupacional26,27. Embora possa haver essa confusão de origens, George Engel fez diversas publicações a partir de 1977, a fim de propor uma nova compreensão sobre a saúde pelas dimensões biológica, pessoal ou psicológica e social, em busca de humanizar os procedimentos médicos e a ciência clínica no processo de saúde-doença 21,28.
O Modelo Biopsicossocial da Saúde, proposto por Engel e outros autores, voltava-se ao campo da medicina de forma geral, mas se tornou dominante na clínica da psiquiatria. Nesse modelo original não há a exploração da natureza da interação entre os níveis o biológico, psicológico e social, tendo ainda a dificuldade de apresentar um modelo conceitual para testar a hipóteses de como esses aspectos se relacionam com as condições de saúde 29.
O termo biopsicossocial se tornou um modelo teórico no campo da deficiência em 1987, com o pesquisador Gordon Waddel, em que incrementou a proposta de Engel ao fazer a relação causal entre os níveis bio-psico-social, para além de apensa descrevê-los, para ele "a desordem física, a angústia e o comportamento de doença combinam-se para produzir a deficiência"30,31.
Posteriormente, Waddell e Aylward 32 argumentaram que o modelo biopsicossocial é necessário, por entender que os modelos predominantes de deficiência não eram suficientes. Segundo os autores, o modelo biomédico reducionista; o modelo social da deficiência representa a perspectiva das pessoas com deficiência, que não está embasado em evidências científicas, tendo como insumo a experiência pessoal e nas opiniões das pessoas com deficiência, tendo como consequência a aceitação social e política consideráveis.
O Modelo Biopsicossocial foi incorporado a CIF, publicada pela OMS em 2001, trazendo o debate amplo do que é saúde, considerando os determinantes sociais e os impedimentos biológicos, mentais e psicológicos, trazendo a deficiência como resultado uma complexa relação de indivíduo e ambiente, traduzida em uma ferramenta capaz de avaliar situações de saúde globais em que as pessoas estão inseridas8,23,25.
No Modelo Biopsicossocial há uma abordagem interacionista, no sentido de contemplar a interação entre os aspectos biológicos e o contexto social dos sujeitos, considerando os fatores individuais e ambientais, baseada na CIF. Nesse sentido, as categorias de fatores pessoais como gênero, sexualidade, raça, etnia e classe, por exemplo, podem ser determinantes na avaliação biopsicossocial da deficiência, tendo assim a caracterização enquanto “pessoa com deficiência” para políticas sociais 33.
Segundo Shakespeare19, para o modelo biopsicossocial o conceito de deficiência pode ser entendido como o “resultado das interações de fatores individuais e contextuais, que incluem impedimentos, personalidade, atitudes individuais, ambiente, política e cultura”.
Destaca-se que no Brasil o debate sobre o modelo teórico biopsicossocial da deficiência ainda é insipiente, devendo este ensaio abrir o diálogo com demais pesquisadores.
No campo legal, houve a aprovação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007, ratificada no Brasil, com valor de emenda constitucional em 200934 e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) em 201535, descrita no Quadro 1, para regulamentar a Convenção. Esses documentos reconhecem o mais amplo campo de direitos sociais e humanos para a população com deficiência.
Com a entrada da LBI em vigor, se tornou imperativo a implementação de um modelo de avaliação biopsicossocial para a concessão de benefícios sociais. No Governo Federal, até 2023 havia 31 políticas voltadas para as pessoas com deficiência, sendo que 22 delas necessitavam da avaliação biopsicossocial obrigatória em que a forma de se avaliar tem implicações36.
Entretanto, apesar de se ter um texto legal claro do conceito de deficiência e de diretrizes da avaliação, as interpretações são distintas e estão em disputa no País. No plano acadêmico, o conceito é compreensível. Maior traduziu em linguagem simples: “deficiência é a soma das oportunidades perdidas”37. Esse conceito se aproxima do modelo social que segundo Oliver38 pode ser definido como tudo o que impõe alguma limitação às pessoas com deficiência. Seguindo este raciocínio, a avaliação para a caracterização da deficiência não pode ser meramente uma designação de uma CID. A LBI indicou que, quando necessária, a avaliação deve ser realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar considerando: “os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; a limitação no desempenho de atividades; e, a restrição de participação”35.
Essa definição legal da LBI se aproxima do conceito de Shakespeare39, em que a deficiência é o resultado da interação de diversos fatores de nível individual e social. No nível individual, deve-se considerar o impedimento e seu impacto na funcionalidade, as consequências psicológicas de ter um impedimento, a personalidade, as crenças, valores e expectativas dos sujeitos, bem como as consequências psicológicas ou emocionais da forma como o indivíduo é tratado na sociedade. Em um nível mais amplo, da sociedade, precisa-se considerar os fatores ambientais e sociais, abrangendo renda, acesso a tecnologias assistivas, acesso a escolas, entre outras.
Deste modo, a avaliação biopsicossocial se propõe a englobar os diversos aspectos dos sujeitos avaliados, a fim de que as políticas sociais cheguem de forma equitativa nas pessoas com deficiência que necessitam.

5. Instrumentos de avaliação: disputas e possibilidades de mudanças sociais e nas políticas públicas

A discussão sobre o instrumento de avaliação biopsicossocial não é nova. Desde 2007, o Governo brasileiro vem investindo na criação e aprimoramento em diversas iniciativas na construção do método e instrumento de avaliação3,4,36,40. A Tabela 2 detalha o percurso da Avaliação Biopsicossocial no Brasil.

Tabela 2. Percurso brasileiro da Avaliação Biopsicossocial para caracterização das pessoas com deficiência, Brasil, 2024

Conforme percurso descrito na Tabela 2, foram anos de discussão até a elaboração e aprovação do Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBrM) pelo Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CONADE), que recomendou seu uso como a base da construção do Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência41.
O IFBr Original foi validado duas vezes, sendo a primeira pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS)42 e a segunda por uma pesquisadora da Universidade de São Paulo43. A segunda versão o (IFBrA) foi validado pela Universidade de Brasília, e está sendo utilizado atualmente para avaliar a redução do tempo de contribuição das pessoas com deficiência que solicitam aposentadoria36. A terceira versão, denominada IFBrM foi validado pela UnB, com investimento em recursos financeiros federais.
Esse instrumento foi criado com base no capítulo de atividades e participação da CIF e as pontuações são feitas tendo como fundamento a Medida de Independência Funcional (MIF). O IFBrM passou pelo processo de validação entre 2017 e 2019, com uma amostra de 8.795 pessoas, incluindo pessoas dos povos originários e quilombolas, em todas as regiões geográficas do País. O objetivo era aferir a acurácia do instrumento, para classificar se o indivíduo era uma pessoa com deficiência e, caso fosse, o grau de deficiência (leve, moderado ou grave). Ao final, o instrumento foi considerado válido nos aspectos científicos e técnicos, passando pelas três fases da validação (conteúdo, face e acurácia), podendo ser aplicado para qualquer tipo de deficiência, qualquer faixa etária e em qualquer local do País11.
A inovação trazida por esse instrumento é a forma biopsicossocial de se avaliar, considerando que a deficiência é a soma dos impedimentos corporais com as barreiras ambientais, ao contrário do modelo anterior de avaliação, onde o primordial era a existência da CID, enquanto no IFBrM ele é um dos elementos a ser considerado, mostrando a mudança dos modelos teóricos. Na avaliação pelo IFBrM, a pessoa pode ser avaliada por qualquer profissional de saúde, entretanto diversos debates políticos ocorreram ao longo dos anos em que o impedimento precisaria ser caracterizado anteriormente da avaliação, para não infringir a legislação do ato médico44. Assim, o indivíduo é avaliado, através do instrumento, por dois profissionais de nível superior de categorias profissionais distintas, ao mesmo tempo, e cada um atribui as pontuações que entenderem adequadas. Ao final, o sistema digital em que a avaliação foi realizada atribuiu a pontuação e a classificação.
A avaliação é sobre a funcionalidade das pessoas, que podem ter o mesmo CID e resultados diferentes na avaliação, já que os contextos sociais distintos são considerados por meio das barreiras que lidam em seu dia a dia. Essa é a característica marcante do modelo biopsicossocial. Não se parte apenas de impedimentos específicos para um resultado; parte-se da realidade individual de cada um, respeitando a história dos sujeitos e os contextos em que vivem.
Em 2020 foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) com o objetivo de propor um novo instrumento de avaliação com base no IFBrM e a forma de implantação do Sistema Unificado da Avaliação Biopsicossocial da Deficiência no Brasil6. O Relatório Final desse GTI contou com duas propostas de instrumentos baseados no IFBrM, a primeira, oriunda da Secretaria de Previdência, Ministério da Cidadania e Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que incluiu uma tabela combinatória de outras duas avaliações para dar o resultado final; enquanto a segunda proposta, da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (SNDPD), que mantém a avaliação de participação e restrição de participação do IFBrM com a inclusão de outros formulários que fazem a ponderação de acordo com fatores contextuais12.
As justificativas aduzidas pelo GTI, para a alteração do IFBrM validado pela UnB, voltaram-se à necessidade de se adequar à realidade brasileira nos aspectos sociais, legislativos e principalmente econômicos. Na primeira proposta do GTI, os especialistas da Secretaria de Previdência partiram da premissa de que os impedimentos corporais (com designação de CID) necessitavam de avaliação com maior peso que o resultado do IFBrM, pois ele só avaliava a restrição de participação12. A Secretaria de Previdência também adicionou um terceiro formulário de barreiras ambientais retirado da avaliação realizada para fins de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). A primeira avaliação é a médica, avalia apenas o impedimento corporal e, caso seja negado, a pessoa não será avaliada nas demais etapas.
Caribé6 debateu que a valorização na pontuação do impedimento na proposta da Secretaria de Previdência não condiz com o modelo biopsicossocial, por desconsiderar que pessoas experimentam a deficiência em gradações diferentes tendo os fatores contextuais relacionados que podem atuar enquanto facilitadores ou barreiras das atividades da vida diária. De acordo com Oliver17, esse tipo de perspectiva volta-se para a construção cultural da deficiência enquanto doença que precisa de tratamento, dando um poder desproporcional aos profissionais da medicina que passariam a tomar decisões sobre o que as pessoas fazem, onde moram ou como vivem suas vidas.
Na segunda proposta, advinda da SNDPD, incluiu-se um novo formulário de identificação de fatores contextuais (sem outorga de peso), reformulação do formulário de impedimentos (também sem peso) e um segundo qualificador ao final, no qual muda-se a nota final da gradação sobre a deficiência. Esta alteração desconsidera a metodologia fuzzy como um elemento de ponderação utilizado na validação12.
Nas duas propostas, justificaram-se as modificações porque a régua de pontuação da validação aumentaria o número de pessoas com deficiência no Brasil, considerando que as legislações brasileiras estão construídas de forma binária (é ou não é uma pessoa com deficiência). O acesso ao benefício não seria equitativo entre as pessoas com deficiência e se tornaria oneroso para o poder público12.
Ao final, o Relatório do GTI é claro na indicação de que não houve consenso sobre a decisão da avaliação e que não houve participação do CONADE na decisão que afetaria milhões de brasileiros2,12. Foi indicado que o impacto orçamentário e financeiro foi o fator determinante para aprovação da proposta da Secretaria de Previdência. Entretanto, a base da discussão foi um estudo metodologicamente inadequado comparando o resultado da avaliação da deficiência pelo IFBrM e pelo instrumento do BPC45, além de não respeitar a legislação vigente sobre as pessoas com deficiência, que garantem a participação das pessoas com deficiência em todas as instâncias de decisão. Cabe ressaltar que a comparação de dois instrumentos que possuem métricas e formatos diferentes é inconcebível para tirar conclusões com validade interna e externa.
Em abril de 2023, com o início de um novo governo brasileiro, foi instituído um novo Grupo de Trabalho sobre a Avaliação Biopsicossocial Unificada da Deficiência46, no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, com a competência de elaborar uma nova proposta de implantação e implementação da avaliação unificada, avaliar e finalizar o IFBrM; e planejar os processos formativos de equipes multiprofissionais que irão realizar as avaliações. Em maio de 2024 os trabalhos do GT foram encerrados com apresentação dos resultados, de forma virtual. Foi indicado a proposta da SNDPD apresentada no GT anterior do IFBrM foi mantida, com ajuste de nomenclatura de “Índice” para “Instrumento”, mas mantendo a sigla IFBrM47.
Por fim, foi divulgado pela SNDPD que será estabelecido o Sistema Nacional de Avaliac?a?o Unificada da Deficie?ncia, tendo por base os resultados do GT estabelecido e o instrumento correlato da avaliac?a?o biopsicossocial referido no art. 2° da LBI, com a assinatura do Decreto de regulamentação durante a 5º Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, em julho de 2024.

6. Considerações Finais

Mesmo sendo um tema debatido há mais de uma década, a avaliação biopsicossocial da deficiência permanece sem regulamentação até a finalização desse artigo. O propósito deste texto é trazer de forma rápida alguns subsídios para a discussão acadêmica, reforçando que a deficiência não é um CID, logo, a avaliação da deficiência deve preconizar a análise multifatorial, conforme define a LBI.
No campo popular, as pessoas têm suas próprias percepções do que é deficiência, sendo conceituada, para alguns, como uma tragédia pessoal. Mais que isso, quase todas as culturas entendem a deficiência como um problema que precisa ser resolvido9,19. Avaliar primeiro o impedimento (CID) e ver o contexto depois reforça essa narrativa preconceituosa dentro da sociedade.
O Brasil se compromete internacionalmente a aplicar a Convenção no País, reconhece as pessoas com deficiência como cidadãos e aceita seu dever de garantir os direitos constitucionais. Entretanto, o acesso aos seus direitos está sendo negado, seja pela peregrinação entre políticas públicas, com diferentes lógicas de avaliação e parâmetros, ou pela ausência de recursos financeiros públicos levando à priorização de auxílios4.
A avaliação deve considerar todos os determinantes da deficiência, como o resultado multicausal, tendo fatores funcionais, ambientais e pessoais envolvidos19. A abordagem deve ser fundamentada em evidências, colocando como ponto central a pessoa-ambiente e como seu resultado interativo a deficiência. O atual Governo brasileiro parece que entendeu a urgência dessa avaliação e precisa resolver rápido como efetivá-lo na prática.
Entre os pontos urgentes que precisam ser definidos estão a construção do Sistema Unificado da Avaliação Biopsicossocial da Deficiência, com a constituição de uma rede de capacitação e certificação no País, onde se atrele os resultados ao Cadastro Inclusão, com uma interoperabilidade entre as políticas sociais, atendendo ao que se encontra previsto na LBI.
Existe uma recomendação do Grupo de Pesquisa da UnB11, que validou o IFBrM que a avaliação seja realizada por profissionais de nível superior de diferentes categorias, desde que sejam qualificados com as mesmas diretrizes, parâmetros e procedimentos, com a formação continuada dos profissionais avaliadores, bem como o monitoramento dos resultados da implantação da avaliação biopsicossocial. A capacitação dos profissionais avaliadores é fundamental, para que entendam a lógica da avaliação biopsicossocial e a importância do seu papel como meio de prover a equidade de oportunidades às pessoas com deficiência.
Mesmo com todos os desafios da construção e da implementação de um instrumento de avaliação da deficiência, é urgente e é preciso implementar a Avaliação Unificada Nacional, tornando uma realidade a visão integral proporcionada pelo modelo biopsicossocial na avaliação da deficiência e garantindo o respeito à legislação vigente, fruto de luta e conquista pelo movimento social das pessoas com deficiência.

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Morais, I.A, Merchan-Hamann, E, Resende, M.C, Pereira, E.L. Modelo biopsicossocial na avaliação da deficiência: Deficiência não é um código da CID.. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/ago). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/modelo-biopsicossocial-na-avaliacao-da-deficiencia-deficiencia-nao-e-um-codigo-da-cid/19366?id=19366

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