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0253/2006 - O discurso do gestor federal no processo de descentralização política: obstáculos à municipalização do Sistema Único de Saúde (SUS)
The federal government discourse on the political decentralization process: obstacles to establishing the Brazilian public health system

Autor:

• Bárbara Pellegrini - Pellegrini, B. - Niterói, RJ - Instituto de Tecnologia em Fármacos - Farmanguinhos - <bpellegrini@terra.com.br>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

Trata-se de uma análise do discurso realizada sobre a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde - NOB-SUS 01/96 com o objetivo de localizar no seu enunciado sinais que permitissem a identificação das correntes de pensamento que influenciaram a política de saúde priorizada pelo gestor federal nos primeiros anos do Sistema Único de Saúde (SUS).
A autora distingue uma peculiaridade do gênero de discurso adotado na portaria ministerial: sua estruturação sobre aspectos isolados da legislação e em bandeiras defendidas por outras comunidades discursivas e a articulação com preceitos legais re-definidos – esforço para autorizar a argumentação oficial de pertinência da manutenção do controle do processo de descentralização pelo gestor federal.
A análise conclui que uma norma infralegal não pode atribuir uma superioridade hierárquica (função de mediação) aos gestores estaduais e federal sobre os gestores municipais nem dar às Comissões Intergestores a atribuição legal dos Conselhos de Saúde, transformados em meros ratificadores de decisões.
O estudo realizado para obtenção do grau de mestre em Comunicação e Cultura (UFRJ) verificou que a outorga de privilégios não previstos na Lei para os gestores estaduais e federal volta a se manifestar com mais ênfase na Norma Operacional da Assistência à Saúde – NOAS 01/01.
Palavras-chave: análise de discurso, descentralização, NOB, SUS

Abstract:

The article presents the conclusion to a study of the Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde - NOB-SUS 01/96 an infralegal act published by the Brazilian Health Ministry in 1996.
Using the French model of “discourse analysis” the author looked for signs on the text surface borrowed from other ideological groups to help building the federal government image as a strong defendant of the decentralization.
The enunciation shows a peculiar gender of discourse not frequently seen on governmental acts: combines specific aspects picked from the sector legislation with ideas long defended by groups favorable to the political and financial transference of the health system conduction, known as decentralization. As a result, has authorized the argument of the need to keep the decisions on the federal level.
The study questions the creation of the “mediation” function, given to the states health authorities over the municipalities as well as the institution of forums strictly formed by public officials representatives, ignoring the rights of the Health Counsels (Conselhos de Saúde) as the legal site to define health policies, in a tendency once again manifested in 2001, on a new ministry act.
Key words: discourse analysis, Brazilian health system, decentralization

Conteúdo:

Este artigo foi elaborado para apresentar aos estudiosos do sistema público de saúde brasileiro o resultado da análise de discurso realizada sobre o texto da Portaria “Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde - NOB-SUS 01/96” (Ministério da Saúde, 1996 ), desenvolvida para obtenção de grau de mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ .
Uma característica da argumentação será logo percebida pelo leitor do setor saúde. Ela é conseqüência do trabalho original, dirigido para outro universo de leitores - especificamente da área de comunicação. Mas a pertinência do tema e os resultados verificados justificam a publicação no âmbito da saúde.
A título de esclarecimento, “análise de discurso” (na concepção da escola francesa) é uma técnica transdisciplinar de pesquisa que tem como objeto de estudo os enunciados resultantes do ato da comunicação, combinados aos contextos sociais e históricos em que foram produzidos e que pode articular “em torno de uma reflexão sobre a “escritura”, a lingüística, o marxismo e a psicanálise” (Maingueneau, 1997 ).
A análise de discursos pressupõe que os textos contêm marcas - o enunciador pode recorrer a mais de um gênero de discurso e pode combinar argumentos de um e de outro para alcançar seu objetivo – que, estudadas à luz das condições em que foram produzidas e dos textos (preexistentes) aos quais o enunciado é associado, ajudam a identificar o posicionamento ideológico dos enunciadores, aquele que atribuiu ao intérprete, o interesse imediato a ser alcançado e os grupos aos quais estão vinculados.
A prática do analista de discurso, em resumo “...é primordialmente a de procurar e interpretar vestígios que permitem a contextualização em três níveis: o contexto situacional imediato, o contexto institucional e o contexto sociocultural mais amplo, no interior dos quais se deu o evento comunicacional” (Pinto, 1999 ).
No caso do exame do enunciado da Portaria do MS, NOB-SUS 01/96, a totalidade do seu enunciado foi analisada em busca de indícios de uma possível resistência federal à implantação do sistema de saúde constitucional, com o pressuposto de que um posicionamento desta natureza do gestor nacional do SUS se traduziria em grande obstáculo à implantação do modelo de atenção integral, universal, equânime, descentralizado e democrático.
Apoiada na teoria fowleriana que reconhece a estreita vinculação ideológica e política com o funcionamento da linguagem e no pressuposto de que o consumo e a interpretação social do texto são influenciados pelas formações discursivas (Foucault, 1972 ) utilizadas – e pela forma de abordagem -, o enunciado da NOB-96 foi avaliado criticamente (Fowler et al., 1979 ) à luz do contexto social, institucional e político no momento da produção do enunciado, no contexto histórico setorial, à luz dos interesses em disputa e da posição social dos intérpretes.
A identidade social que o enunciador atribuiu a si e ao seu co enunciador, a relação de lugares (Flahault, 1978 ) que visou estabelecer e os grupos com os quais buscou se associar em diferentes etapas da argumentação foram investigados pela localização de práticas discursivas (Mainguenau, 1984 ) específicas e nos processos gramaticais e recursos lingüísticos utilizados (inferências, relações de sentido, interdiscursos, reformulações, estruturas sintáticas e outros traços verbais). O pressuposto: os argumentos mobilizados e o método utilizado na organização do material verbal evidenciam o sentido desejado pelo enunciador, a autoridade almejada e o lugar atribuído a si próprio e ao seu destinatário.
A primeira providência foi recuperar eventos históricos que pudessem ambientar o cenário antecedente e ajudar a identificar as correntes de pensamento protagonistas e as respectivas formações discursivas. As condições de produção (Pêcheux e Fuchs, 1975 ) em que a NOB 96 foi elaborada expuseram à análise a conjuntura imediata em que se deu a enunciação, enquanto a avaliação crítica do corpus da portaria contribuiu para localizar marcas formais tradicionalmente relacionadas a gêneros de discurso próprios de comunidades de posicionamentos concorrentes e para identificar o tipo de relação que a informação transmitida no enunciado poderia ter instituído entre os interactantes.
Por esta fórmula, a análise confrontou o discurso oficial do gestor federal na portaria de 1996 com a orientação dada à política de saúde pela Constituição Federal de 1988 (CF88) e pelas leis 8.080/90 e 8.142/90 , em busca de indícios de uma postura oblíqua à descentralização política e administrativa da gestão do SUS - considerando a possibilidade de haver alguma resistência federal à implantação do sistema idealizado.
A publicação da Norma Operacional de Assistência à Saúde – NOAS-SUS 01/2001 (Ministério da Saúde , 2001) antes da conclusão da pesquisa foi deveras útil para efeito da verificação de tendência ideológica do discurso do gestor federal e, para este fim, foi incluída na análise. O estudo do conjunto da legislação setorial também foi prestadio para verificar que, independente de casuísmos corporativos que as leis ainda comportam, elas são suficientes para a efetivação do Sistema Único de Saúde idealizado.
Essa suficiência foi uma das bases da argumentação do estudo.

As orientações contidas nas leis do SUS

A legislação sobre a organização do SUS é abrangente. Já estão definidos na Lei 8.080/90: os princípios e diretrizes do SUS; as formas de organização, direção e gestão; as competências e atribuições comuns às três esferas; as competências e atribuições específicas de cada gestor; a possibilidade de participação complementar da iniciativa privada no SUS e fora dele e as regras que vigem para os servidores que trabalham no SUS.
O financiamento do sistema, os critérios para repartição dos recursos, as normas para a gestão financeira e o planejamento do orçamento foram definidos na Lei 8.080/90 e complementados na Lei 8.142/90, introduzida para solucionar o impasse criado com o veto presidencial aos capítulos sobre participação social e sobre financiamento.
Estados e municípios são submissos à exigência legal de cumprir determinados requisitos para fazerem jus aos recursos (Lei 8.142/90 Art. 4º) e, conquanto o artigo 5º da mesma Lei autorize Ministro da Saúde a estabelecer condições para a sua aplicação, não lhe foi outorgado o direito de interferir na autonomia municipal.
A inclusão de tal artigo, de redação ambígua, parece ter contribuído para contornar a resistência ao modelo proposto na Lei 8.080/90, considerando sua aprovação menos de três meses depois do veto. O seu uso, entretanto, vem expondo uma movimentação para a centralização da gestão e dos recursos, para a instituição de superioridade hierárquica do MS e contra a participação social na definição das políticas e no controle da gestão.
A legislação setorial dá relevo à “cooperação” entre as três esferas de governo: “participação”, “articulação”, “conjugação de esforços”, “evitar duplicidade”, são expressões insistentemente referidas para definir a relação intergestores e a relação dos gestores com os demais setores governamentais e com a sociedade.

Síntese do contexto em que foi publicada a NOB 96

Desde a aprovação das Leis Orgânicas da saúde aguardava-se a criação dos mecanismos operacionais para o cumprimento das determinações legais. As ações de competência municipal ainda se concentravam nas esferas federal e estadual de gestão.
Portarias publicadas em 1991 e em 1993 (NOBs 91 e 93 ) iniciaram timidamente o processo de descentralização do SUS, mas até o final de 1997 apenas 144 municípios haviam sido habilitados (nas condições da NOB 93) para recebimento de recursos diretamente em seus fundos de saúde.
O gestor federal reformulou as regras e as condições para a descentralização em 1996. Na ocasião, o Ministério da Saúde era comandado pelo cirurgião Adib Jatene (pela segunda vez à frente da pasta) defensor da Contribuição Provisória por Movimentações Financeiras (CPMF) aprovada no ano de 1996, com cobrança iniciada em 1997.
A nova portaria foi publicada exatamente no dia da abertura da X Conferência Nacional de Saúde (2/9/96), sem validação naquela instância colegiada de representação social. A iniciativa custou ao MS uma enérgica repreensão da plenária da Conferência , registrada em carta com incisiva determinação para a sua revisão. Uma segunda versão da NOB SUS 01/96 foi publicada na véspera da exoneração do Ministro Jatene (7/11/96) - o texto da apresentação informava ser a portaria resultado de “amplo e participativo processo de discussão”.

“Artifícios retóricos de sedução” (PINTO, 1999 )

Estabelecer uma relação de interação com os receptores, convencê-los de seu ponto de vista é o objetivo natural da enunciação. O receptor tem papel fundamental na enunciação e dela participa porque a apreensão depende do seu “conhecimento de mundo”. Dessa forma, para estabelecer a relação com o interlocutor o enunciador recorre a formações discursivas (explícitas: marcas na superfície do texto - “heterogeneidade mostrada”, ou implícitas: sinais que podem ser considerados característicos de determinadas comunidades discursivas - “heterogeneidade constitutiva”) (Althier- Revuz, 1982 ).
No caso da NOB 96, o discurso é constituído pela citação de ou pela alusão a diferentes textos, articulados ora de forma complementar, ora contraditória, até alcançar o sentido almejado. A criteriosa seleção de temas também é evidência, na dinâmica da enunciação, dos obstáculos que os enunciadores previram ter que ultrapassar: os temas mobilizados contribuíram para associar a portaria ao prestígio conferido pelos co-enunciadores às normas legais.
Uma variedade de sinais encontrados no texto indica que os enunciadores avaliaram faltar familiaridade do receptor com o tema e se posicionaram no lugar de detentores do saber (a apresentação dos princípios e diretrizes do SUS; a classificação dos gestores municipais como exclusivos prestadores de serviço; a freqüente referência à falta de capacitação técnica e administrativa...). Outra evidência do lugar atribuído ao interlocutor é a utilização do recurso de “advertência”, adotado de forma sistemática. O expediente é útil para colocar o enunciador na posição daquele que tem autoridade para “dar ordens”.
O interlocutor da NOB 96 é submetido à autoridade do enunciador, que anuncia o risco de imobilizar o processo e adiar a municipalização, por exemplo. Os textos eventualmente complexos, os enunciados autoritários; a recordação das dificuldades estruturais do sistema; a insistência da importância da mediação do estado; a exigência de aprovação do pleito de habilitação nas comissões intergestores, entre outros, podem ter a expectativa de gerar reações como a incompreensão, o receio às exigências impostas, a verificação das dificuldades políticas regionais e, por fim, a submissão.
Com um enunciado diferente daquele burocrático tradicional, o discurso da NOB foi estruturado em valores específicos de duas comunidades discursivas: as dos movimentos municipalista e sanitário - evidência de uma pressuposição dos enunciadores a respeito das prioridades e valores dos seus co-enunciadores e a constatação de que o recurso poderia servir para estabelecer a interação. Tais valores, no entanto, foram combinados com outros do próprio ideário centralizador (ou desconcentrador).
A escolha levou à construção de uma representação capaz de validar a política federal (não exatamente favorável aos interesses municipais) pela transferência, para o próprio discurso, da autoridade conferida pelos co enunciadores aos movimentos sociais (que se destacavam no setor saúde) e às causas que defendiam.

Os discursos na NOB 96

A enunciação da NOB 96 deu preferência à apresentação dos princípios e diretrizes legais do SUS em abordagem primária, alternada com um discurso especializado (Mainguenau, 1997 ), combinação que caracteriza uma interação complementar (Watzlawick et al., 1972 ) entre enunciador e co-enunciador, com superioridade do primeiro.
Em diferentes oportunidades, o texto da Norma de 1996 deixou de fazer referências ou de detalhar aspectos de relevância em temas abordados, para arregimentar, exclusivamente, os conteúdos necessários para legitimar a situação da enunciação ou da totalidade do enunciado. O gênero de discurso, heterogêneo, apresenta vozes simultâneas: um discurso excessivamente pedagógico que aborda de forma primária assuntos elementares (inaugurou um novo modelo de enunciação nas portarias do MS) alternado com um discurso especializado em enunciação excessivamente técnica e hermética. Tal constatação conduz a suposições iniciais como a de que os enunciadores (a) poderiam ter se equivocado na escolha da formação discursiva utilizada para o lugar (Flahault, 1978 ) que atribuíram aos seus co enunciadores – um interlocutor que ignoraria os princípios básicos do SUS e teria dificuldade para interpretá-los; (b) não teriam acertado na abordagem de assuntos elementares em texto dirigido para especialistas ou (c) teriam optado por esta via. Todas alternativas, entretanto, prejudicam a interação, caracterizam uma falha na competência comunicativa dos enunciadores ou expõem uma exacerbação da autoridade que lhes é atribuída.

O passo-a-passo da criação do papel de mediação


A criteriosa seleção de temas na dinâmica da enunciação evidencia, desde a introdução, os obstáculos que os enunciadores previram ter que ultrapassar. Os temas mobilizados indicam uma tentativa de se investirem da qualidade de especialista de forma a conferir à norma a autoridade ambicionada: o discurso foi tecido de discursos tirados da tradição de outras comunidades cuja autoridade é sabidamente reconhecida pelos interlocutores.
Os argumentos apropriados de diferentes grupos sociais foram combinados com as redefinições introduzidas pela Norma de forma a que a autoridade conferida aos movimentos sociais e às suas bandeiras ajudasse a validar a política federal. Aspectos selecionados da legislação foram combinados a argumentos de diferentes tendências regulando o deslocamento das fronteiras desejadas pelo enunciador até criar a própria tradição.
Os enunciadores da portaria de 96 “ensinaram” que o novo sistema municipal implicava muita capacidade técnica, administrativa e financeira e enquadraram os municípios como meros prestadores de serviço (o papel legal de gestão da saúde no município é “reformulado” e passa a se resumir à “função da atenção”, ou seja, de prestação de serviços). A previsão de grande dificuldade a ser enfrentada pelos municípios serviu para sustentar o argumento da necessidade dos níveis de gestão e justificou a “mediação” - valorizada como fundamental - e a atribuição às Comissões Intergestores Bipartite (CIB) e Tripartite (CIT) do direito de decidir sobre a habilitação municipal. Igualmente, viabilizou o condicionamento da obrigação legal (dos gestores estaduais e federal) de prestar cooperação técnica e financeira a uma re-definição dos papéis dos três gestores, consolidando a superioridade hierárquica e ampliando o sentido de “mediação” para “arbitragem”.
Por fim, o fortalecimento da participação das instâncias intergestoras e a retirada do “obstáculo” dos consórcios municipais, substituído pela Programação Pactuada e Integrada (PPI), debilitaram os Conselhos de Saúde.
O enunciado não cita, por exemplo, a participação social entre os princípios ideológicos e doutrinários do SUS (uma pequena menção é feita sobre a responsabilidade individual e coletiva sobre a saúde, não no sentido da participação formal nos Conselhos e Conferências de Saúde) e tampouco foram citados a descentralização, a direção única em cada esfera de governo ou o planejamento ascendente do Sistema entre os princípios reunidos sob o rótulo de princípios organizacionais. Também o papel que exercem os Conselhos de Saúde não foi citado na abordagem a respeito do sistema de saúde municipal e as palavras “descentralização” ou “municipalização”, foram substituídas e reduzidas à promoção e consolidação do “...pleno exercício, ..., da função de gestor da atenção à saúde dos seus munícipes”.
A NOB 96 insistiu na necessidade de re-definir determinações legais. A análise das redefinições propostas e do gênero do discurso da norma (educativo) evidencia algumas incoerências que o co-enunciador com experiência no setor pode distinguir ou, se menos experiente, assimilar. (1) Não é possível um instrumento infralegal (portaria ministerial), redefinir os papéis das esferas de governo (expressos em lei); (2) também a re-definição dos mecanismos e fluxos de financiamento desconhece a legislação e poderia causar atraso à descentralização; (3) a superação da “condição de prestadores de serviço” referida na NOB depende da descentralização de recursos, de unidades de serviço e da gestão do SUS. Quanto à afirmativa de a NOB 96 “apontar para uma reordenação do modelo de atenção”, a iniciativa é extemporânea, posto que o novo modelo de atenção foi determinado (não “apontado”) na CF88.
A organização do enunciado é significativa da relação que se pretendeu instituir com os interlocutores. Exemplificando: apenas três de quatorze parágrafos de capítulo destinado a apresentar o sistema de saúde municipal trataram do assunto que dava nome ao título. O restante, em formação discursiva de característica autoritária, fundamenta a necessidade de criação dos níveis de gestão que irão classificar os municípios de acordo com a sua condição; registra o papel do estado e do MS, alerta sobre a grande responsabilidade a ser assumida pelo município e adverte sobre os riscos que a nova organização implica, até alcançar justificar a “mediação” das outras “instâncias de poder”.
A classificação da re-definição dos papéis dos gestores estadual e federal como “fundamental” demonstra coerência entre as regras criadas e os objetivos identificados neste estudo. Sempre recorrendo à combinação de regras estabelecidas por meio de portaria ministerial com trechos contidos nas leis orgânicas, a norma vai fundamentando, de forma indireta, o poder dos outros gestores sobre o gestor municipal (em especial o poder de “mediação” dos estados) e fortalecendo o argumento oficial da possibilidade – inexistente - de uma subordinação hierárquica.

A função de mediação instituída pela NOB 96

A finalidade - expressa no texto - de introduzir a função de “mediação” nas atribuições das Secretarias Estaduais de Saúde (e para o MS) se constitui no foco do problema: a mediação pode impedir o livre arbítrio, embaraçar negociações entre as partes diretamente envolvidas, representa um poder não legalmente instituído e confirma a pretensão de “aperfeiçoar as normas legais” (por meio de portarias), conforme expressão retirada do texto da NOB.
Sem desmerecer a importância de integração e negociação entre gestores, a diferença entre a diligência do discurso a respeito do papel das CIBs e CIT e a intensidade dada ao papel dos Conselhos permite inferir que há um vício na informação transmitida e uma proposição implícita de enfraquecimento dos últimos. Sendo a composição do sistema municipal uma atribuição do município, não haveria necessidade de apreciação da sua composição pela CIB ou pela CIT, mas pelos Conselhos. A concepção do lugar do Conselho de Saúde, de instância secundária do SUS, é evidenciada no desenvolvimento do argumento sobre as Comissões, porque a função de “ratificar” atribuída aos Conselhos se realiza a posteriori e não é a única participação desse colegiado.
Igualmente, os pactos realizados nas Comissões Intergestores podem viabilizar os princípios da unicidade e da eqüidade, mas a enunciação omitiu que os fóruns adequados para realizar pactos são os Conselhos – nas três esferas. A NOB 96 omitiu, também, a sugestão legal para que municípios recorram a consórcios intermunicipais para estabelecer acordos com outros municípios.
Os argumentos sobre a importância das negociações intergestores e da mediação da secretarias estaduais de saúde (SES), inclusive na apreciação dos sistemas municipais, foram encadeados no discurso com a criação das redes regionais, apresentadas como uma das razões da necessidade daqueles fóruns, para evitar a concentração de recursos em determinados municípios (sendo que também influenciam tal acumulação a manutenção do cálculo dos tetos financeiros com base no faturamento histórico, do instrumento convênio para a prestação de serviços tipicamente municipais e o tempo transcorrido desde a regulamentação do SUS).
A consolidação da função de “mediação” como arbitragem e a subjugação dos Conselhos de Saúde foram alcançadas pelas re-definições feitas pela NOB da relação entre gestores municipais. São exemplos as determinações de que (a) os acordos passassem a ser registrados numa programação pactuada e integrada (PPI) – explícita desvalorização da indicação da Lei 8.080/90 para a constituição de consórcios intermunicipais; (b) as divergências fossem decididas pelo gestor estadual; (c) o valor do teto financeiro global fosse definido conforme a PPI (“mediada” pelo Estado); (d) se exigisse para a habilitação municipal a participação na elaboração e na implementação da PPI do estado e (e) a redução do papel dos Conselhos à ratificação das programações e decisões.
De outro aspecto, a apresentação dos novos tipos de habilitação - a Gestão Plena da Atenção Básica (GPAB) e a Gestão Plena do Sistema Municipal (GPSM) acompanhada da informação de que os municípios seriam “avaliados” e “classificados” de acordo com o estágio já alcançado (podendo a habilitação ser negada quando não há consenso entre Estado e municípios na Bipartite a respeito da “capacidade” de assumir a gestão do SUS) sedimenta o argumento da incapacidade dos municípios para assumir a gestão do SUS em seus territórios, incapacidade referida amiúde na redação da NOB 96.

Obstáculos à descentralização

Desde a sua criação pela NOB 96 até janeiro de 1998 a habilitação dos municípios à condição de gestão plena do sistema municipal não apresentou movimentação significativa, quando foram regulamentadas as regras de habilitação. Naquele ano, o número de municípios que passou a receber recursos diretamente em seus Fundos de Saúde elevou-se mais de 35 vezes. Mas a habilitação caminhou muito pouco e praticamente estacionou para a condição “Plena do Sistema”, que permaneceu quase inalterada nos anos de 1999 e 2000.

Tabela 1 - Número de municípios recebendo recursos fundo-a-fundo, Brasil (Total 5.507)

1997 144
1998 4600 (GPAB) 4854 (GPAB)
1999 4927 (GPAB) 449 (GPSM)
2000 496 (GPSM) 523 (GPSM)
Fonte: Ministério da Saúde. Base: dezembro de cada ano.

O fenômeno é indicativo da determinação política encontrada no Ministério da Saúde em dois períodos – no ano de 1998, quando o número de municípios habilitados a essa condição de gestão elevou-se em 212% (de 144 para 449) - mais de 8% dos 5.507 municípios brasileiros em 1998 – e desde então: de dezembro de 98 até o ano 2000 apenas outros 74 municípios haviam obtido a habilitação à condição de autonomia plena na GPSM (aumento de 16%).
Atualizando os dados do estudo para fins de comparação, em 2005 são 661 municípios habilitados à GPSM, menos de 12% do total - uma elevação inferior a 1% sobre o número de municípios com plena autonomia (no conceito definido para a GPSM) em 2000.

Tabela 2 - Número de municípios habilitados à GPSM, Brasil, 2005 (Total 5.564)

NOB (GPSM) 428
NOAS (GPSM) 233
Total 661
Fonte: Ministério da Saúde, 2005

O pouco empenho supra referido foi expressamente consubstanciado nas alterações efetuadas pelo MS na política nacional de saúde em 2001 em nova Norma Operacional, mas a preocupação federal com a repartição do poder também foi registrada no documento intitulado “Sistema Único de Saúde - SUS Descentralização” (Ministério da Saúde, 2001 ) no qual o federalismo brasileiro, apresentado como “sui generis”, propiciaria um choque de interesses no caso de descentralização, em vista da necessidade de “repartir o seu poder”. O argumento entremostra a resistência à renúncia da superioridade na gestão do SUS e autoriza a inferência de que a transferência de poder era considerada pelo gestor federal uma concessão (um poder federal a ser repartido), não um direito legítimo.

NOAS 01/01 e NOB 96: sintonia retórica

A publicação da Norma Operacional de Assistência à Saúde 01 em 2001 deu novo vigor ao poder de interferência das esferas federal e estadual na política de saúde local.
As semelhanças encontradas no discurso da NOAS 01 e da NOB 96 indicam uma sincronia ideológica e, mesmo, retórica entre as enunciações: ambas apresentaram a mesma estrutura e buscaram a interação com o receptor por discursos pedagógicos; recorreram à legislação orgânica do setor argumentos para validar as alterações introduzidas e referiram, na apresentação, à importância da “experiência” acumulada para o aprofundamento (a idéia de transferência gradual da autonomia) da descentralização. As duas normas utilizaram, com freqüência, a palavra “assistência” em substituição a “atenção”; uma e outra limitaram (embora afirmem ampliar, “à medida que o processo de gestão amadurece”) a autonomia dos municípios prevista em lei e, tal e qual ampliaram a capacidade dos estados de interferir na política municipal de saúde. Da mesma forma, as duas normas valorizaram o papel de mediação (arbitragem) do Estado e da União sobre os municípios e ambas as portarias foram publicadas sem regulamentações complementares imprescindíveis à sua implementação.
Notadamente, as duas normas infralegais receberam críticas de diversas áreas de representação social por terem sido elaboradas no âmbito do Ministério da Saúde com pouca ou desprezível participação social.
A NOAS 01/01 enfatiza a regionalização da “assistência” à saúde desde o próprio título. A iniciativa do gestor nacional do SUS para montar o sistema regionalizado e hierarquizado baseou-se na estratégia das SES dividirem o território estadual em microrregiões/regiões de saúde e estas em módulos assistenciais, geograficamente e demograficamente definidos em processo liderado pelas secretarias estaduais, devendo as microrregiões/regiões serem, posteriormente, aprovadas pelo Ministério da Saúde.
Tal aspecto preocupa, pela possibilidade de centralização não apenas nos dois pólos, Estadual e Federal – que já restringem e dificultam a gestão local – mas, também, em determinados municípios que vierem a assumir atribuições-chave nos módulos assistenciais e nas microrregiões de saúde, visto que serão investidos de um poder (ilegal) sobre os seus pares e serão substancialmente mais guarnecidos de recursos.


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Citar

Pellegrini, B.. O discurso do gestor federal no processo de descentralização política: obstáculos à municipalização do Sistema Único de Saúde (SUS). Cien Saude Colet [periódico na internet] (2006/ago). [Citado em 11/12/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/o-discurso-do-gestor-federal-no-processo-de-descentralizacao-politica-obstaculos-a-municipalizacao-do-sistema-unico-de-saude-sus/210?id=210

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