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0075/2007 - O gordo em pauta: Representações do Ser Gordo em Revistas Semanais
The fatty in the head lines: Representations of being fatty on weekly magazines

Autor:

• Nara Sudo - Nara Sudo - Porto Alegre, Rio Grande do Sul - Rede Metodista de Educação do Sul - <nsudo@uol.com.br>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

A cultura ocidental valoriza a magreza, embasada principalmente pelas descobertas da biomedicina, que acabou por transformar o corpo gordo em sinônimo não apenas de falta de saúde, mas em um “corpo desumanizado”, um caráter pejorativo de falência moral. Assim, o presente trabalho teve por objetivo analisar as representações sociais acerca do ser gordo, através de uma análise qualitativa e interpretativa de 14 matérias que foram capas de duas revistas semanais brasileiras: VEJA e ISTOÉ, entre os anos de 1997 a 2002. Buscamos, através da análise bibliográfica em conjunto com o material de campo, refletir sobre as representações sociais sobre o ser gordo na atualidade. O artigo privilegiou a utilização do conceito de representações sociais, tal como é utilizado pelas ciências sociais, por nos permitir compreender por que algumas questões – neste caso o indivíduo ser gordo – ganham visibilidade em um determinado momento. Sobressaiu das análises que as revistas destacam depoimentos baseados no saber científico e biomédico que legitimam a escolha de um tipo de corpo caracterizado como supostamente “ideal”, por ser considerado sinônimo de saúde, felicidade e alegria: o magro. Assim, um cerco à gordura é declarado e estratégias de ”luta” são formuladas, recaindo, em última análise, sobre o ser gordo.

Palavras-chave: ser gordo; representações sociais; revistas semanais; cultura.

Abstract:

Western culture valorizes the skinny, mainly based on the biomedicine discoveries, which have transformed the fatty body into a synonym not only of lack of health, but of a “dehumanised body”, a pejorative character of failure morals. So, the aim of this study was to analyse social representations about the being fatty through a qualitative and interpretative analyses of 14 articles that were covers of two brazilians weekly magazines: VEJA and ISTOÉ, between the years 1997 until 2002. We have tried, through bibliography analysis together with the field material, reflect about the social representations about the being fatty nowadays. The paper has privileged the concept of social representations, on the way as it is used in the social sciences, for allowing us to understand why some issues, in this case the fatty body’s individual – become visible at a certain moment. The analyses highlighted that the weekly magazines analysed, detached speeches based on the scientific knowledge and biomedicine that legitimate the choice of a body type supposedly characterized as “ideal”, for being synonym of health, happiness and cheerfulness: The slim body. So, therefore, a siege against fat is declared and strategies of “fight” are formulated, falling back, at the last analysis, upon the being fatty.

Key-words: being fatty; social representations; weekly magazine; culture.

Conteúdo:

Introdução

“Não saia mais à noite por vergonha de seu corpo. Não pegava ônibus por medo da roleta. Ficou doente dos rins por causa da obesidade. Foi demitida do emprego e classificada como inapta por uma junta médica para ser merendeira do município mesmo tendo gabaritado as provas de seleção. Mas, em tudo que viveu, uma frase ficou gravada em sua memória: ‘Você é gorda por falta de vergonha na cara’. Era a frase repetida pelas pessoas que amava. – Um dia me olhei no espelho e pensei que era limitada para tudo, para amar, trabalhar, viver”.
(Mônica Silva Costa, “A gordura destruiu minha vida”. O Globo, 19/01/2003.).

Em nenhuma época o corpo magro e esbelto esteve tão em evidência como nos dias atuais. O corpo nu ou vestido, exposto em diversas revistas femininas e masculinas, está definitivamente na moda; é capa de revistas e matéria de jornais. Revistas semanais brasileiras realizam constantemente matérias de capa abordando temas como: dieta; medo de engordar; estar/entrar em forma; a ciência em prol da saúde e do corpo, indicando, primeiramente, que questões envolvendo, direta ou indiretamente o corpo, e mais precisamente como evitar o corpo gordo vende, encontrando leitores ávidos pelo tema.
Vivemos em uma época de “lipofobia” associada a uma obsessão pela magreza e uma rejeição à obesidade1, estigmatizando uma grande parcela da população excluída do imaginário da cultura ocidental. Partindo desta concepção, o ser gordo passa a ter um corpo visivelmente desmedido e sem saúde. Saúde que é aqui compreendida de acordo com a ordem biomédica de “normalidade/ patologia” que ainda é hegemônica e serve como referencial na cultura ocidental2.
“Ao ser gordo recaem representações de uma pessoa que não se enquadra no modelo dominante na atualidade, imposto a partir da égide científica, que ao equacionar excesso de gordura à doença, traz para esta parcela da população uma culpabilização de si – por não ter alcançado uma silhueta magra para as mulheres e musculosa para os homens – difícil de ser encarada”3.

Sendo assim, neste trabalho discutimos as imagens, sentidos e representações acerca do ser gordo na atualidade, através de uma análise qualitativa e interpretativa de 14 matérias que foram capas de duas revistas semanais brasileiras VEJA e ISTOÉ. Para a escolha das revistas foram consideradas as expressões de venda, obtidas no Instituto Verificação e Circulação – IVC. De acordo com o IVC, cada uma vendeu em média, no último semestre de 2003, respectivamente 1.095.034 e 361.345 exemplares. Uma revista voltada exclusivamente para o tema corpo, como a BOA FORMA, tem uma circulação média de 200.000 edições.
Optamos também por trabalhar com as matérias de capa por entendermos que as imagens e legendas aí impressas assumem um caráter indutivo, constituindo-se em um conjunto, que nos diz o que devemos ler4.
As escolhas das matérias das duas revistas ocorreram por uma similitude das linhas editoriais e a existência de uma unidade temática, somando-se a isso foram levadas em consideração à questão da coerência dos conteúdos, quando comparadas entre si. Este, e não por uma questão de periodização, foi o fio condutor para a análise do material permitindo que o estudo seguisse uma perspectiva comparativa.
Como resultado, analisamos sete duplas de notícias publicadas entre 1997 a 2002. As reportagens pesquisadas foram: 1º Par: Comer sem engordar (VEJA, 21/10/1998) e Dieta Nunca Mais (ISTOÉ, 06/10/1999), com o tema geral: a reeducação alimentar, associada a novos remédios para emagrecer, como aliados na perda de peso: “o cerco à gordura se aperta”. 2º Par: Dieta sem fome (VEJA, 28/02/2001) e Vire a mesa (ISTOÉ, 17/04/2002), com o tema geral: os diversos tipos de dietas e programas para emagrecer como “estratégias de luta” para vencer a obesidade. 3º Par: Golpe nos gordos (VEJA, 24/09/1997) e Não morra pela boca (ISTOÉ, 21/07/1999), com o tema geral: as descobertas científicas, ora proibindo substâncias até então utilizadas em remédios para emagrecer, ora inocentando “vilões da saúde”, como o colesterol, na alimentação. 4º Par: A Guerra das dietas (VEJA, 19/04/2000) e Dietas da moda (ISTOÉ, 13/01/1999), com o tema geral: os diferentes tipos de dieta para emagrecer: ataques e defesas. 5º Par: Saúde e vitalidade dos 8 aos 80 (VEJA, 11/07/2001) e Viva bem aos 100 (ISTOÉ, 16/01/2002), com o tema geral: Resultados de estudos inéditos evidenciando que “os hábitos são decisivos para uma vida longa e feliz”. 6º Par: A ciência da boa forma (VEJA, 28/11/2001) e A febre do fitness (ISTOÉ, 26/05/2000), com o tema geral: a ciência como aliada da boa forma, que pode ser alcançada sem perda de tempo. 7º Par: O medo da balança (VEJA, 04/02/1998) e Obesidade (ISTOÉ, 20/10/2000), com o tema geral: a luta contra a gordura corporal “se tornou uma obsessão mundial”.
Este tipo de análise comparativa mostrou-se relevante, pois como salientou Bourdieu4, os produtos jornalísticos são homogêneos, expostos e dominados pela lógica da concorrência que acaba por homogeneizar, gerando uma similaridade dos produtos, é o chamado “Jogo de Espelhos”.
Um outro aspecto importante para a escolha das revistas foi a de que elas possuem como principal público leitores de uma mesma classe social, ou seja, pessoas incluídas em uma mesma categoria de um grupo de indivíduos, tendo por critérios aspectos sócio-econômicos descritivos como renda, ocupação e educação5.
As diferenças que cada grupo social tem ao se relacionar com o corpo, com a dietética, exprimem não só as questões econômicas, mais principalmente a regras e valores que regem cada classe social6.
Destarte, ao estudarmos as imagens atribuídas ao ser gordo e ao seu corpo buscamos analisar como são elaboradas as percepções sobre esta parcela da população gerando representações sociais que assumem, então, um caráter coletivo e enfatizar como os discursos são construídos acenando para o que serve de suporte para os valores culturais dominantes - em relação ao corpo - na sociedade contemporânea.
1. O Corpo na Mídia
A mídia é aqui entendida como um sistema cultural complexo que possui uma dimensão simbólica que compreende a (re)construção e circulação de produtos repletos de sentidos, tanto para quem os produziu (os media) como para quem os consome (leitores, telespectadores)7. Ela tem um papel fundamental nesse processo ao enfatizar ao mesmo tempo uma capacidade de consumo associado a uma crescente responsabilização do indivíduo perante o seu corpo. Embutidos de investimentos sociais o que se vende é a possibilidade de se permanecer vivo e belo: “o corpo consome a si mesmo”8.
“Se você está sozinho no quarto fique à vontade e vá para a frente do espelho. Esta é a hora da verdade. Muito provavelmente você não está contente com o que vê. Os pneuzinhos nos flancos, o abdome flácido, os braços finos, as pernas rechonchudas – nada disso combina com a imagem que gostaria de ter e desfilar na praia ou na piscina. Mas não desanime. Dá para melhorar bastante seu corpo se você se dispuser a malhar imediatamente” (“A ciência da boa forma”. VEJA, 28/11/2001).

As revistas VEJA e ISTOÉ dedicam extensas reportagens sobre o ser gordo e abordam o tema, muitas vezes, de maneira contundente. Destacam-se, nessas matérias, entrevistas e relatos de pessoas quem eram gordas e conseguiram emagrecer, estatísticas associando o excesso de gordura a inúmeras doenças e fotos dos chamados, agora, ex-gordos. Não raro, surgem imagens de mulheres vestindo biquínis ou roupas curtas, muitas vezes pessoas famosas, e homens com o tórax desnudo. Vejamos, por exemplo, o caso de Érika:
“Foi com a ajuda de seu endocrinologista que a advogada carioca Érika Valente, 31 anos, emagreceu 15 quilos. – Aprendi estratégias. Hoje peço pizza de mussarela em vez de calabresa (...) Recuperei minha auto-estima e voltei a usar biquíni (a frase é acompanhada por uma foto à beira da piscina)” (“Dieta Nunca Mais”. ISTOÉ, 06/10/1999).

As reportagens de maneira pretensiosamente neutra vendem, ao tomar emprestado o discurso científico dos especialistas, a obtenção de uma “perfeição estética”9. E, quando o assunto é saúde, imperam nas circulações de informação concepções médico-científicas, instaurando um processo de associar o científico à verdade onde os meios de comunicação de massa exercem papel fundamental 10.
Nesta ditadura da magreza, a mulher é mais atingida do que os homens11. Os conselhos de beleza propalados são destinados na sua maioria às mulheres, todavia, uma fatia do mercado masculino já é permeada por estes conselhos, principalmente, no que tange aos regimes e à ginástica12.
Isto nos remete à análise das capas. A imagem do corpo é precisada e difundida nas capas, ilustrada, na grande maioria, por mulheres jovens e belas cujos corpos incitam ao emagrecimento e determinam o aspecto que o corpo deve ter. Muitas vezes, as expressões utilizadas nas suas chamadas, como por exemplo “Golpe nos gordos” (VEJA, 24/09/1997) ou “O medo da balança” (VEJA, 04/02/1998), em conjunto com as fotos ali impressas: silhuetas de mulheres desnudas; imagens que se confrontam como o gordo versus o magro, fazem menção direta ao tema.
Dessa maneira, percebemos que as capas funcionam no sentido de sugerir e estimular o leitor à compra da revista, apesar de ninguém poder obrigá-lo. A lógica da persuasão se impõe como um mecanismo para atender às necessidades que operam e são dominantes na sociedade atual. Neste sentido, as revistas ao abordarem temas como o surgimento de novos medicamentos utilizados no tratamento para emagrecer antes mesmo de sua comercialização no Brasil - como o agente farmacológico derivado da lipstatina (“Comer sem engordar”. VEJA, 21/10/1998), até a obtenção, em tempo recorde, de silhuetas “bem menos roliças e com musculatura mais rija e definida” (“A ciência da boa forma”. VEJA, 28/11/2001), estariam tentando dar reposta a angústias que o excesso de peso representaria para um indivíduo, e que muitas vezes são difundidas pelos próprios meios de comunicação que utilizam um discurso da saúde para impor um padrão de beleza:
“Como se sabe, quilos a mais não maculam somente a estética. Eles aumentam as chances de doenças cardiovasculares, diabetes e lesões articulares entre outros problemas” (“Dieta nunca mais”. ISTOÉ, 06/10/1999).

2. O Gordo em Pauta!
O corpo está incessantemente exposto ao olhar e discurso dos outros, é o corpo a ser percebido. Na atualidade, o indivíduo gordo apresenta um atributo que o torna diferente de outros, sendo considerado uma pessoa com uma característica que o marca negativamente: “Nada de errado com a aflição que as pessoas demonstram por ter uma manta de gordura que as coloca em desacordo com os padrões estéticos em vigor” (“Golpe nos gordos”. VEJA, 24/09/1997).
O ser gordo passa a ser encarado como um indivíduo que carrega um “estigma”, um conceito assim definido:
“Um atributo que o torna (o estranho) diferente dos outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem”13.

O gordo surge, em algumas reportagens, opondo-se ao obeso, que é considerado uma pessoa doente. Porém, é possível perceber que há uma ambivalência em relação aos termos utilizados entre os que possuem os “quilos indesejados” e os que são enquadrados como doentes. Gordo, roliço, gordinho, gordão, gorducho, rechonchudo, balofo e obeso acabam por definir uma mesma pessoa.
“Que se faça aqui a diferença entre gordos e obesos. Pesadas são pessoas com índice de massa corpórea (IMC) entre 25 e 30. Obesas, as que apresentam IMC superior a 30 (e a obesidade é) um problema estético que se converte em mal orgânico apenas se em excesso, ou quando acompanhada de sedentarismo e doenças pré-existentes” (“O medo da balança”. VEJA, 04/02/1998).

“Quem já foi à Disney World percebe com clareza que se os americanos não viajassem para fora do país poderiam pensar que pesar 120 quilos é normal. É uma constante entre os moradores de países ocidentais desenvolvidos e daqueles em desenvolvimento que copiam o modo de vida americano. Na população brasileira, 40% encontram-se acima do peso. Desses, 11% são obesos, ou seja, gordos para quem carregar quilos a mais gera prejuízos à saúde” (“A guerra das dietas”. VEJA, 19/04/2000).

Distingue-se na análise, o caráter subentendido do corpo ideal e que muitas vezes na sua busca acaba por gerar uma sensação que na maioria das vezes não é pautado pelo peso na balança, mas pela noção subjetiva do estar gordo.
Tal questão aponta para uma eterna insatisfação com a imagem corporal, muitas vezes induzida pelas reportagens, ocasionando uma negação e insatisfação com o próprio corpo traduzido em uma “ruptura entre si e o que se exige de si”, revelando insatisfações permanentes, uma tradução da opressão social que surge mesmo quando apenas o indivíduo e o espelho estão em cena 13.
“Todo dia ela faz tudo sempre igual. Defronte do espelho, enquanto se veste para ir ao trabalho, avalia milimetricamente a curvatura da barriga, confere a linha dos culotes, compara o volume das pernas diante das formas de gazela da modelo da capa da revista. Checa a densidade dos seios e nádegas e conta o número de buraquinhos da celulite. O exame é meticuloso e o resultado sempre condenatório: - Preciso emagrecer”. (“O medo da balança”. VEJA, 04/02/1998).

As pessoas que apresentam “horrorosos pneus” expressariam, através de sua forma física, uma séria de informações: um indivíduo sem controle, sem disciplina que não resiste aos prazeres da vida como o comer e o beber.
“Num período de até cinco anos, 97% recuperam a velha forma roliça. Isso significa que, independentemente da dieta que se escolha, é preciso saber que o sacrifício tem de ser feito continuamente, Caso contrário, os quilinhos indesejáveis vão voltar a incomodar e não haverá doutores Atkins ou Ornish que dêem jeito” (“A guerra das dietas”. VEJA, 19/04/2000).

O processo de experiência de aprendizagem da condição do ser gordo, em geral, é semelhante para todos que carregam tal estigma, e exigiria ajustamentos pessoais. Uma das fases no processo de socialização seria aquela em que a pessoa estigmatizada:
“aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma idéia geral do que significa possuir um estigma particular. Uma outra fase é aquela na qual ela aprende que possui um estigma particular e, dessa vez detalhadamente, as conseqüências de possuí-lo”13.
A existência do gordo faz surgir à idéia, nas reportagens, de que há na sociedade os “normais”, aqueles com um corpo magro, fazendo com que todos expressos na categoria do gordo passem por um processo de aceitação13. O indivíduo que apresenta algum atributo que o faz não ser aceito socialmente buscará opções para “corrigir” diretamente o defeito, seja através de plásticas, uso de remédios etc. A partir de tal atitude pode-se dizer, sim, que há uma aquisição de status normal, acompanhado de uma transformação no ego “alguém que tinha um defeito particular se transforma em alguém que tem provas de tê-lo corrigido”13 revelando que para escapar de uma situação angustiante, os estigmatizados chegam aos extremos para corrigir sua condição:
“As cirurgias do estômago são as formas mais contundentes contra a obesidade, mal que coloca as vítimas na berlinda. A cobrança por uma silhueta perfeita beira o insuportável” (“Obesidade”. ISTOÉ, 2/10/2000).



3. O Século da Saúde!
A saúde transformou-se no século XXI em uma utopia, um projeto de caráter universal denominado de a “Grande Saúde”14. O homem perfeito é pensado, liberto dos inimigos que estão em toda a parte, em nossos genes, nas cidades poluídas, nas drogas, no colesterol. “Saúde perfeita como objetivo e como meio. Saúde para a vida. Mas também viver para estar em saúde. Viver para fazer viver as biotecnologias e as tecnologias da ecologia, sem as quais a Grande Saúde não existiria”14.
Deste modo, presenciamos uma verdadeira “caça à saúde, sempre baseada em falas de especialistas ou em resultados inéditos2. Um estilo de vida é, então, reforçado por representar saúde que por sua vez se reflete no corpo:
“(...) tanto agentes institucionais, como grupos sociais tendem a afirmar que o fundamental é adquirir, ter, conservar, promover a ‘saúde‘, ou ‘mantê-la em forma´. A caça à saúde tornou-se, no presente, um verdadeiro mandamento para os cidadãos de todas as classes, todas as idades, ocupações e gêneros”2.

O corpo magro surge sempre como referencial, o objetivo a ser alcançado não em nome de uma estética ou de uma escolha social, mas sim em nome do ter saúde; deve-se estar atento aos menores sintomas físicos:
“Mário Matsukura Júnior, 23 anos, de São Paulo. Ele pesa 82 quilos, cultiva uma barriguinha e não abre mão das sobremesas. Para perder quatro quilos, quer diminuir as idas a restaurantes - em média, vai quatro vezes por semana: - Um dos meus maiores prazeres é comer bem, admite” (“Vire a mesa”. ISTOÉ, 17/04/2002).

Sob a égide da saúde, a sociedade civil é chamada a combater o mal do século: o excesso de peso: “O cerco à gordura se aperta. Nunca se conheceu tanto as raízes da obesidade” (“Dieta nunca mais”. ISTOÉ, 06/10/1999). Os especialistas repensam “as estratégias de luta”:
“(...) diz o comunicado do FDA (sigla do departamento americano que regula a venda de alimentos e remédios no país) que acabou com a mais eficiente forma de emagrecer já produzida pela medicina. Com a proibição da venda (dos remédios a base das drogas dexfenfluramina e fenfluramina), chegou também ao fim o sonho de conquistar um corpo esbelto com a ajuda de uma pílula comprada na farmácia da esquina” (“Golpe nos gordos”. VEJA, 24/09/1997).

Em nome do adquirir saúde, de ter um corpo magro, o indivíduo deve ser enquadrado em programas de emagrecimento, que apesar de serem chamados de flexíveis, não comportam mais o prazer, exigem disciplina e persistência. Neste esquema de emagrecimento da sociedade ocidental, impera um hedonismo, misturando o prazer a uma disciplina15:
“(a nutricionista) afirma que muita gente não quer abrir mão de prazeres (como a gordura e o doce), preferindo viver menos a ser comedido à mesa. – A questão não é essa. Não cuidar da alimentação significa mais do que viver menos. Significa viver pior, alerta a nutricionista Maria de Fátima Marucci” (“Viva bem aos 100”. ISTOÉ, 09/01/2002).

As pessoas que estão tentando emagrecer devem negar os convites a restaurantes, os jantares a luz de velas, os presentes como caixa de bombom, pois estes não significam mais um convite à socialização, ao romance, ao contrário, indicam que o gordo está sendo “vítima de pessoas ou circunstâncias engordativas”:
“O psiquiatra Artur Kaufman, do Projeto de Atendimento ao Obeso do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/ SP), aponta a existência do parceiro, da casa, do amigo, do trabalho engordativos. São pessoas ou circunstâncias que estimulam o indivíduo a engordar. É o marido que presenteia com bombons a esposa que acaba de perder um quilinho, o amigo que convida o outro para uma bela picanha mesmo sabendo de sua luta contra a balança, a cantina da empresa que só oferece pratos calóricos...” (“Vire a mesa”. ISTOÉ, 17/04/2002).

Deve-se vencer as tentações, resistir as delícias do comer bem, em nome de ter um corpo divulgado como perfeito e saudável.
“É uma batalha que exige privações e sofrimento. Quase 60% das entrevistadas fazem dieta para perder peso. Abriram mão da sensação de saciedade e não conseguem olhar sem culpa para um bolo de chocolate” (“O medo da balança”. VEJA, 04/02/1998).

“(Ao aderir ao programa de emagrecimento do Dr. Atkins) Não existe aquela sensação constante entre os que fazem dieta de que se está perdendo uma das dimensões da vida que é comer bem” (“A guerra das dietas”. VEJA, 19/04/2000).

Nessa busca pela saúde, nota-se que as atividades são ressignificadas como o esporte, a dança, o namoro, as relações sexuais, o alimentar-se, o dormir, o trabalhar. Se em outras épocas eram entendidas como atividades lúdicas, de lazer ou recreação, ou mesmo eróticas, são agora entendidas como “práticas de saúde”2.
“As emoções também merecem atenção. No processo de envelhecimento, fatores como a depressão, stress e ansiedade encurtam a longevidade. Essas situações comprometem a qualidade de vida, implicando riscos à saúde. Para combatê-las, é fundamental valorizar os sentimentos positivos (...) A prática do sexo, promove dois benefícios em qualquer idade: emocional e orgânico (...) O ginecologista Nelson Vitielo da Sociedade Brasileira de Estudos da Sexualidade, explica que o relacionamento pressupõe algum tipo de atividade física. Por isso, ajuda a perder peso” (“Viva bem aos 100”. ISTOÉ, 09/01/2002).

De maneira coercitiva, o sujeito é intimado a seguir um determinado padrão de comportamento, que o fará alcançar a utopia chamada saúde14:
“A megapesquisa do Brigham and Women´s Hospital detectou sete comportamentos sobre os quais é possível ter controle pessoal e que, se adotados antes dos 50, são decisivos para a boa saúde física e mental depois dos 65. São eles: parar de fumar, beber com moderação, controlar o peso, fazer exercícios físicos com regularidade, concluir os estudos, manter um casamento estável e desenvolver um modo eficaz de lidar com o stress” (“Saúde e vitalidade dos 8 aos 80”. VEJA, 11/07/2001).

Há na cultura contemporânea, pautada pelos valores dominantes na sociedade, um conjunto de representações como o individualismo, a competição, o consumismo e “o cuidado do corpo como unidade central (e muitas vezes única) delimitadora do indivíduo em relação aos outros, bem como de estratégias de valorização deste corpo para obter, a partir dele, dinheiro, status e poder”2:
“Para seguir adiante, é preciso que você encare o exercício físico não apenas como obrigação. Ele deve ser também um divertimento. Está certo que é difícil encarar uma esteira como uma opção de lazer. Mas, se você competir consigo mesmo na ginástica, tudo fica mais fácil. Crie objetivos a ser superados. E não fique com vergonha de avaliar os resultados ao espelho. É o tipo de narcisismo estimulante” (“A ciência da boa forma”. VEJA, 28/11/2001).

A estética tornou-se mais do que a racionalidade médica, o critério sócio-cultural de determinação do ter saúde2. Esta determina também se o sujeito precisa exercer alguma “atividade de saúde”, conter sua alimentação, ou submeter-se a uma cirurgia estética:
“Eficazes como nenhuma outra droga antes deles (a dexfenfluramina e fenfluramina), esses remédios vinham se tornando uma espécie de cosmético. Seu uso se relacionava mais com a beleza do que com a saúde” (“Golpe nos gordos”. VEJA, 24/09/1997).

É preciso acrescentar que a noção de comedimento se impõe como um mandamento da saúde, pautado por um padrão rígido de boa forma do corpo. Deriva destas representações que as práticas de saúde estão atravessadas por representações estéticas do corpo, ancorados nos valores dominante já mencionados. Apesar de não serem os únicos valores presentes na sociedade, podemos apontar que o consumismo, o sucesso, o status associado a um “corpo saudável” e em forma, entre a classe média são valores dominantes. O corpo representa, neste caso, um bem material, um investimento que deve ter retorno. “Fica patente, neste contexto, que o corpo individual ‘modelado’ é o centro do universo simbólico deste público, independente até de gênero”2.
Nos meios de comunicação de massa há uma ampla divulgação da idéia de que atividade física produz saúde, e que é assim apreendida pelo senso comum, e através da evocação do discurso da ordem biológica e sua neutralidade, são ocultadas as ligações entre a indústria cultural, a moda e o mercado, estando todos ligados a um determinado tipo de beleza corporal16.
“A tendência (de incorporar a atividade física no dia-a-dia) está fortemente calcada no objetivo de ganhar um corpo bonito – obsessão mundial – mas aumenta o número dos que procuram o fitness para melhorar a saúde do corpo e da mente. Os malhadores se baseiam principalmente nas pesquisas, comprovando que malhar ajuda a controlar doenças, eleva o ânimo e ainda combate o stress. Os especialistas comemoram o momento” (“A febre do fitness”. ISTOÉ, 26/05/2000).

4. As Biociências na Legitimação de um Corpo Perfeito!
As matérias divulgam que se há aqueles que são diferentes do padrão estético vigente na cultura contemporânea, há também inúmeras maneiras para que todos sejam enquadrados nele, cabendo às revistas, de maneira pretensiosamente neutra, disponibilizar tais informações, seja através da fala de especialistas, de resultados de pesquisas ou de novas descobertas científicas. O freqüente recurso à ciência e ao saber da biomedicina imputaria ao indivíduo um determinado tipo de corpo como algo natural. E, para aqueles que se opusessem, ao naturalmente dado, sobraria uma escolha permeada pela culpa:
“Ganha-se peso, desperdiça-se dinheiro. O custo social de tanta gordura é indigesto. Em 1995, nos Estados Unidos, os gastos relacionados a problemas de saúde decorrentes da obesidade quase chegaram a 100 bilhões de dólares. Por causa dos quilos extras, despendem-se anualmente 11 bilhões de dólares com o tratamento de doenças cardíacas e 22 bilhões de dólares com o diabetes. Queda de produtividade no trabalho é outro problema associado à obesidade. E a gordura influi tremendamente na longevidade do ser humano (...) Um cálculo feito pelo governo americano mostra que, se os rechonchudos perdessem apenas 10% de seu peso em média, o orçamento do sistema americano de saúde poderia ser reduzido em 3 bilhões de dólares”. (“Comer sem engordar”. VEJA, 21/10/1998).

Uma análise sugere a existência de uma reprodução nas informações que favoreceriam a opressão em relação a um tipo de indivíduo que possui no seu corpo um marca que o põe em oposição a um corpo considerado ideal, belo e saudável. Desta maneira, através de muitos investimentos é possível alcançar a saúde, imputada como um dever do indivíduo.
Por conseguinte, as biociências assumem, nas matérias, um papel de legitimar a imposição de regras e normas de comportamento que seriam apropriadas e impostas de forma autoritária, fundamentando seus discursos no campo biomédico:
“Até dez anos atrás, freqüentar uma academia para entrar em forma rápido, a ponto de fazer diferença ao espelho, era jogar dinheiro fora. Deixou de ser graças aos avanços nas áreas da fisiologia do esporte e da nutrição e ao aprimoramento dos aparelhos de ginástica. Dez ou doze semanas agora é tempo suficiente para tonificar os músculos, firmar a barriga e diminuir a quantidade de gordura” (“A ciência da boa forma”. VEJA, 28/11/2001).

Vê-se delinear um dos aspectos considerados como um dos mais perversos neste processo de estigmatização do gordo: a noção propagandeada pelos meios de comunicação da existência de um corpo perfeito e que é fácil de ser adquirido, basta querer11. O gordo passa a ser encarado como possuindo um corpo intolerável, em uma sociedade em que todos os meios de se alcançar este corpo perfeito são divulgados: “E, se dinheiro anda curto para a academia, é possível seguir um programa de exercícios efetivo em casa ou no salão de seu prédio” (“A ciência da boa forma”. VEJA, 28/11/2001).


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