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0319/2007 - OPINIÃO Anemia como problema de saúde pública: uma realidade atual
OPINION Anemia as a public health problem: a current situation

Autor:

• cristiane campello bresani - Bresani, C.C. - recife, pernambuco - instituto materno infantil professor fernando figueira - <crisbresani@terra.com.br>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

Resumo: em 1990 as Nações Unidas promoveram a Reunião de Cúpula de Nova Iorque, onde foram traçadas metas para o decênio vindouro, dentre as quais, a redução de um terço na prevalência das anemias nas mulheres em idade fértil. Porém, apesar de percentual modesto, indícios epidemiológicos apontam no sentido inverso, ou seja, indicam a crescente e grave ocorrência de anemia em diferentes regiões do mundo, inclusive no Brasil. Ao reunir esses informes, constata-se que a anemia continua, desde a antiguidade, a ser uma das entidades nosológicas mais prevalentes e difundidas nas populações humanas. A partir daí surge uma série de questionamentos ainda sem respostas em relação à real prevalência e etiopatogenia do problema, ao grau de implantação e à efetividade das medidas de controle. Palavras-chave: anemia/diagnóstico, anemia/epidemiologia.

Abstract:

Abstract: In 1990, the United Nations held a World Summit in New York in which goals for the upcoming decade were established. One of these goals was a one-third reduction in the prevalence of anemia among women at child-bearing ages. Despite the modest percentage, epidemiological indices point in the opposite direction, indicating an increasing occurrence of anemia in different regions of the world, including Brazil. In gathering this information, it becomes evident that anemia has continued since antiquity to be one of the most prevalent and widespread diseases in human populations. Thus, a number of questions without answers arise regarding the actual prevalence and etiopathogenesis of the problem as well as the degree of implantation and effectiveness of control measures. Key-words: anemia/diagnosis, anemia/epidemiology.

Conteúdo:

Prevalência: crescente?
A anemia é uma das entidades nosológicas de descrição mais antiga na medicina e, provavelmente, uma das mais difundidas na humanidade. Dada a sua conotação pandêmica, tornaram-se incansáveis e repetitivas as citações da estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), de que mais de dois bilhões de pessoas no mundo são anêmicas, correspondendo a um terço da população mundial.1
O Fundo das Nações Unidas pela Infância (United Nations Children’s Fund - UNICEF) foi ainda mais longe e previu que a anemia ferropriva chegaria a afetar até três bilhões e meio de indivíduos no mundo em desenvolvimento, contrastando com 853 milhões para a deficiência de iodo e 300 milhões para a deficiência de vitamina A.2 Todavia, o impacto das anemias e da deficiência de ferro (com ou sem anemia) na saúde coletiva deve ser apreciado não somente pela magnitude numérica em termos epidemiológicos, mas também por suas conseqüências clínicas na saúde dos indivíduos afetados.
Sem dúvida, o caráter trans-social e pangeográfico, representa o traço mais distintivo do quadro epidemiológico das anemias carenciais, quando comparadas com outros deficits nutricionais, tais como deficiência de iodo, hipovitaminose A e desnutrição energético-protéica.1,2 Nas duas últimas décadas a anemia carencial, em especial a ferropriva, passou a ser reconhecida como a carência nutricional de maior prevalência no mundo, comportando-se como uma endemia de caráter cosmopolita, que se distribui em todos os continentes, blocos geoeconômicos e grupos sociais, embora sua ocorrência ainda conserve uma relação de dependência com a renda, a escolaridade, as condições insalubres das moradias e outras condições sócio-ambientais negativas.1,2,3
De acordo com a OMS, pode-se classificar a significância populacional da prevalência de anemia como normal ou aceitável (abaixo de 5%), leve (de 5 a 19,9%), moderada (de 20 a 39,9%) e grave (maior ou igual a 40%). Em termos mundiais, a prevalência de anemia em países industrializados é ainda inaceitável, situando-se em torno de 5 a 16%. Estimou-se que entre os anos de 1990 e 1995 nos países desenvolvidos a anemia acometeu 20% das crianças menores de cinco anos, 22% das gestantes, 10% das mulheres não grávidas, 4% dos homens e 12% dos idosos. Em contraponto, nos países em desenvolvimento essas proporções seriam de 39%, 52%, 42%, 30% e 45%, respectivamente, atingindo, portanto, razões de prevalência de até 7,5 e traduzindo sua gravidade nesses locais.1,2
Numa perspectiva continental, a prevalência de anemia em mulheres não grávidas na Índia–Ásia é de 74% e na África, de 40%. Na América Latina e Caribe, sabe-se que aproximadamente 30% das mulheres e 25% das crianças abaixo de cinco anos são anêmicas. No Brasil, segundo a OMS, 30% das crianças abaixo de cinco anos têm anemia, sendo a segunda maior prevalência da América Latina.4 Num enfoque nacional, alguns autores consideram que estas estimativas estariam subestimadas e que a prevalência efetiva do problema em crianças poderia ser 50% acima dos valores ditados pela OMS, alcançando 45%.5,6
Não existem no Brasil estudos para estimar de forma consistente a dimensão do problema, sobretudo em mulheres em idade fértil, cuja taxa seria em torno de 25%, segundo uma revisão bibliográfica do período de 1990 a 2000.7 Um outro trabalho, sobre a transição nutricional no Brasil, realizado com base em três estudos transversais das décadas de 70, 80 e 90, referencia o rápido declínio da prevalência de desnutrição em crianças e o crescimento, num ritmo mais acelerado, da prevalência de sobrepeso/obesidade em adultos, enquanto que as anemias continuam com prevalências elevadas, entre 40 e 50% em menores de cinco anos e 30 e 40% em gestantes. Este conclui que a anemia representa, em termos de magnitude, o principal problema carencial do país, aparentemente sem grandes diferenciações geográficas.7,8,9,10
Em Pernambuco, um inquérito estadual em 1997 estimou, de acordo com o critério da OMS (hemoglobina abaixo de 12 g/dL), prevalências de anemia de 46,7% entre as crianças menores de cinco anos e de 25% nas mulheres entre 10 e 49 anos (idade fértil). Na região metropolitana do Recife o percentual de anemia para essas mulheres foi de 25,5%; no interior urbano, de 19,9%, e no interior rural, de 22,9%, sendo as médias de hemoglobina (e os correspondentes DP) em cada uma dessas regiões, respectivamente de 13 g/dL (1,69), 13,2 g/dL (1,56), 12,7 g/dL (1,5).7,8,11

Etiopatogenia: estabelecida?
A deficiência de ferro, principalmente a alimentar, tem sido apontada como a causa mais comum de anemia, em proporções ainda não conhecidas de forma segura, mas que têm relação direta com a própria prevalência de anemia e variam entre as populações a depender da idade, do sexo, das condições sócio-econômicas e da prevalência regional de outras causas de anemia, tais como malária, hemoglobinopatias hereditárias e deficiência de outros nutrientes (vitaminas A, B12, C e ácido fólico).1
A proporção atribuída à ferropenia é das mais altas, sendo normalmente considerada a responsável pela grande maioria dos casos de anemia em populações de pobres condições sócio-econômicas, entre as quais é baixa a ingestão de ferro biodisponível (produtos de origem animal) e/ou é comum a perda sangüínea devido à ancilostomíase ou esquistossomose, a exemplo do estado de Pernambuco, na região do Nordeste brasileiro.8 Nessas condições, mesmo quando outras causas de anemia são reconhecidas, a carência de ferro deveria estar presente como fator principal ou coadjuvante.1 Dessa forma, a prevalência geral de anemia tem sido comumente utilizada como proxi da anemia ferropriva nas populações, mais apropriadamente naquelas que apresentam baixa freqüência das outras causas de queda na concentração de hemoglobina.3 Em contrapartida, resultados do Global Burden of Disease Project 2000 da OMS permitem concluir que a ferropenia seria responsável por modestos 50% das anemias em termos mundiais.12
Não se pode esquecer que a anemia ferropriva é apenas o extremo mais grave do espectro evolutivo da carência de ferro. Baseando-se em dados do primeiro mundo, a prevalência estimada pela OMS de deficiência de ferro corresponderia a duas vezes e meia a prevalência de anemia ferropriva numa dada população.1
Ainda que a deficiência de ferro seja a carência de micronutriente mais comum e mais disseminada no mundo e a única com prevalência também importante em praticamente todas as nações industrializadas, não existe nenhum quadro descritivo bem consolidado de sua situação global.1,3,4 Baseando-se no conceito de proxi e no critério matemático acima, poder-se-ia utilizar a anemia como um indicador indireto e extrapolar para outras populações, que não tivessem outras etiologias marcantes de anemia, a relação 1:2,5. Assim, poder-se-ia estimar que a grande maioria dos pré-escolares e das mulheres em idade fértil nos países menos desenvolvidos e, pelo menos 30 a 40% nos países desenvolvidos seriam ferrodeficientes.1
No entanto, a real distribuição etiológica das anemias nas diferentes populações não é conhecida e alguns dados da literatura não coincidem com as estimativas da OMS, por outro lado, questionam-se a acurácia dos testes diagnósticos utilizados e de seus pontos de corte. Exemplificando, no grande inquérito americano Second National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES II), através da combinação de múltiplos exames, a prevalência de anemia e de anemia ferropriva foi inesperadamente baixa, respectivamente, 4% e 1,6% entre mulheres de 20 a 44 anos.13 Por sua vez, Stoltzfus (1997), ao confrontar dados de diferentes inquéritos em alguns países em desenvolvimento, observou que as prevalências de anemia (hemoglobina abaixo de 11,0 g/dL) eram muito elevadas e semelhantes entre si; porém, quando se baixava o ponto de corte para 9,0 g/dL ou menos, surgiram diferenças importantes que coincidiram com os graus de implantação dos programas de combate à carência de ferro.14

Anemia: uma doença negligenciada
Ao lado de sua importância como evento epidemiológico, as anemias e, tipicamente, a ferropênica, configuram um problema de marcante expressão na prática clínica e de impacto socioeconômico. No primeiro aspecto pode-se citar que normalmente as anemias carenciais vêm associadas a outras carências nutricionais, sobretudo no grupo infantil, e que a ferropenia, mesmo sem anemia, pode malograr a homeostase de vários sistemas orgânicos. No último aspecto a deficiência de ferro atua nos custos públicos e privados da saúde, nas conseqüências sociais do aumento da mortalidade materna, na redução de produtividade e nas conseqüências em longo prazo no desenvolvimento mental.1
Em todos os estágios da vida a condição em pauta pode interferir negativamente no funcionamento cognitivo, na capacidade física, na produção de hormônios tireoidianos e regulação da temperatura corporal e no estado imune, aumentando os riscos de infecções. Nas pessoas produtivas, pode reduzir o rendimento no trabalho em 30%.1,2
Mais especificamente, a anemia no ciclo gestatório, especialmente por carência de ferro, pode estar associada a aumento da mortalidade materna, mortalidade perinatal, prematuridade, baixo peso ao nascer e morbidade do infante. Quarenta por cento de todas as mortes maternas perinatais estão ligadas à anemia.1,15,16,17 Paralelamente, desfecho favorável da gravidez ocorre 30 a 40% menos em anêmicas, e seus conceptos têm menos da metade da reserva normal de ferro, podendo apresentar maior freqüência de anemia no primeiro ano de vida.1
Apesar dessas e mais outras implicações na saúde coletiva, o interesse dos governos pelo problema das anemias como tema de políticas públicas é relativamente recente Assim, só em 1990, com a realização da Reunião de Cúpula de Nova Iorque promovida pelas Nações Unidas, as anemias passaram a figurar no elenco das prioridades mundiais de saúde e nutrição e, ainda assim, com um peso bem modesto em relação a outros problemas menos prevalentes.2,18
As metas do UNICEF foram estipuladas em 33% de redução das anemias nas mulheres em idade fértil, enquanto que objetivaram, o controle do bócio endêmico e da hipovitaminose A e a redução em 50% da prevalência da desnutrição infantil moderada e grave no decênio que se seguiria.2,18 Provavelmente a intenção não era desavisada, mas envolvia inseguranças em se tentar o controle ou a erradicação do problema, tais como dificuldades na implantação dos planos de ação e a incerteza da real resposta à fortificação e à suplementação em larga escala comunitária (efetividade).
A sub-valorização das anemias como problema de saúde pública em nível de políticas de governo de certa forma se reproduz no plano dos estudos científicos em escala epidemiológica ou clínica. O primeiro aspecto pode ser ilustrado levando-se em conta que, apesar das facilidades técnicas e dos custos relativamente baixos requeridos para a avaliação quantitativa do problema, ainda não se dispõe, na maioria das nações, inclusive no Brasil, de estudos efetivamente representativos sobre sua ocorrência, muito menos sobre o status populacional de ferro e sobre avaliação de implantação e impacto dos programas de controle.7
Muito provavelmente, tal desinteresse seria explicado pelo aparente consenso de que o problema estaria esgotado como tema de investigação. Admite-se, de uma forma um tanto arbitrária, que a grande maioria das anemias decorre simplesmente da carência primária de ferro. Esta avaliação simplificada teoricamente satisfaz a compreensão da situação etioepidemiológica das anemias e das diretrizes estratégicas universais recomendadas para seu controle, como o enriquecimento das massas alimentares com ferro e folato, na presunção de que estariam cobertas suas duas grandes vertentes etiológicas sob o ponto de vista de carência nutricional primária.

Estratégias de controle: o insucesso
Em termos de melhora do status de ferro e de níveis de hemoglobina, a despeito da implementação dos programas de fortificação dos alimentos em muitos paises, dispõe-se de poucas evidências de sua melhora na população, tanto pela falta de produção de dados, como pela não consolidação dos programas no que concerne à regulamentação, implementação, insumos e fiscalização.4 Bastante ilustrativo é o caso das mulheres no ciclo grávido-puerperal, que ainda hoje expressam os maiores índices de anemia, mesmo após as recomendações de suplementação universal nesse estrato populacional.1,2
Um dos exemplos do insucesso da meta proposta para a década final do último século, está citado no relatório da comissão técnica da divisão CARK (Central Asian Republics and e Kazakhstan) do UNICEF de 1996, que elevou o problema na região ao nível de “crise na saúde pública”, exigindo medidas imediatas, diante das altas prevalências de anemia ferropriva em crianças (60%) e mães (80%). Esse grupo de trabalho foi fase preliminar de um plano de ação nutricional regional integrada, a Estratégia de Controle e Prevenção de Anemia da CARK.2
Outro indício da endemia é citado oficialmente no Relatório Regional para Prevenção e Controle da Anemia por Deficiência de Ferro em Mulheres e Crianças do UNICEF∕OMS - Divisão da Europa Central e Oriental, Comunidade dos Estados Independentes e Países Bálticos, de 1999. Neste documento estima-se que o problema afeta 40 a 50% das mulheres grávidas e 50% das crianças abaixo dos cinco anos na região, traçando e aconselhando estratégias regionais integradas para o enfrentamento da situação atual.2
Adicionalmente, o Global Burden of Disease Project 2000 da OMS, através de metanálises e de estimativas da OMS, traçou o impacto da anemia por deficiência de ferro na saúde em termos mundiais, concluindo que, 841.000 mortes e 35.057.000 anos de vida incapacidade-ajustados (disability-adjusted life years – DALYs) são atribuíveis a essa doença e que a relação entre anemia materna e mortalidade perinatal é responsável por 56% dessas cifras.12
Nesse ponto, é importante conhecer a relação custo-benefício de cada intervenção de campo para o controle da carência de ferro. Se devidamente implantados, os programas de suplementação atingem uma efetividade de 70% em curto prazo com um custo dos componentes de ferro de apenas 7% do total do programa. Os programas gerais de fortificação de ferro são considerados 93% efetivos em longo prazo com 27% do custo total dos produtos manufaturados advindos do fortificante de ferro.1
Imaginando-se que, quando taxas de anemia estão acima de 30 a 40% num grupo idade-sexo definido, a maioria dos não anêmicos seria suficientemente ferropênica para estar sob risco de conseqüências funcionais adversas, medidas amplas para melhorar a nutrição de ferro dessa subpopulação são justificadas, até mesmo quando se considera a presença de outros fatores contribuintes para a anemia. E, teoricamente, nessa situação, seria mais efetiva e eficaz a suplementação universal de ferro, e não o manejo caso a caso. A proposta de abordagem programática com suplementação seletiva e fortificação alimentar é adequada para prevalências de anemia entre 5% e 20%. Essa lógica é reforçada quando se assume que os três níveis de disponibilidade de recursos diagnósticos (pobre, intermediário e adequado) correspondem aos graus de prevalência de anemia (grave, moderada e leve) para uma dada região.1,3
Essas recomendações, entretanto, parecem não fazer parte da política de saúde pública em muitos locais.14 E, efetivamente, a limitação da meta para redução das anemias em 33% restrita ao grupo de mulheres em idade fértil, já se delineia uma proposição aquém da necessária. Porém, diante da boa efetividade estimada pela OMS para os programas de suplementação e fortificação, é possível ainda conjecturar que as respostas reduzidas obtidas com intervenções populacionais e experimentais possam, pelo menos em parte, ser atribuídas a alguns pressupostos ainda não devidamente consolidados, entre os quais se incluiria a caracterização etiopatogênica, morfofuncional e diagnóstica das anemias; interrelação entre eficácia/efetividade e efeitos adversos/adesão terapêutica; e o estágio de implantação dos programas de controle das anemias.
São lacunas que demandam respostas na busca do controle do problema e que poderão ser preenchidas pelas seguintes alternativas: realizar inquéritos populacionais para se determinar a distribuição das etiologias nos diversos povos de acordo com idade, sexo e peculiaridades fisiológicas; realizar estudos clínico-laboratoriais a fim de determinar a real participação da carência de ferro e a eficácia da reposição de ferro.



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