0120/2006 - Os problemas éticos no atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino
The ethical problems in the patients attendance at the dental school clinic
Autor:
• EVELISE RIBEIRO GONÇALVES - EVELISE RIBEIRO GONÇALVES - FLORIANÓPOLIS, SANTA CATARINA - UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - <eveliserg72@hotmail.com>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
RESUMOEstudo empírico, exploratório, de abordagem qualitativa, com professores de disciplinas clínicas do curso de Odontologia da Universidade Federal de Santa Catarina, com o objetivo de identificar e analisar os problemas éticos que permeiam o atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino da respectiva universidade. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semi-estruturadas e analisados através da técnica da análise de conteúdo utilizando como referenciais os princípios bioéticos da autonomia do paciente e da confidencialidade das informações. No processo de análise emergiram quatro categorias que apontam a existência de vários problemas éticos no cotidiano do atendimento a pacientes na clínica de ensino. Entre eles estão o agendamento de pacientes-reserva, o privilegiamento do atendimento de conhecidos de professores e funcionários, a falta de informações fornecidas aos pacientes sobre a realização de procedimentos terapêuticos e de imagens fotográficas, distorções no uso do termo de consentimento informado, etc. Ficou clara a condição de vulnerabilidade a qual os pacientes da clínica são constantemente submetidos e a importância e responsabilidade dos professores no processo de formação da competência ética dos futuros cirurgiões-dentistas.
Palavras-chave: Bioética – Odontologia – Clínica Odontológica de Ensino – Autonomia Confidencialidade
Abstract:
ABSTRACTAn exploratory, descriptive and qualitative research was performed at the Dentistry Faculty of the Federal University of Santa Catarina State, Brazil, aiming to identify and analyze the ethical problems involved in the patient attendance at this dental school clinic. Data were collected through semi-structured interviews with professors of clinical disciplines and analyzed through the analysis of content technique using the bioethical principles of the autonomy of the patient and the confidentiality of the information as references. Some analysis categories were identified pointing to the existence of several ethical problems in the daily routine of the patient attendance in this dental school clinic. Among them are particularities as the use of “reserve-patients”, the privilege of attendance given to known people, the lack of information to the patients about the therapeutic and the photographic images procedures, distortions in the use of the informed consent, etc. It was clear the vulnerable condition which the patients are often submitted to and the importance and the responsibility of the professors in the formation of the ethical competence of the future dentists.
Key Words: Bioethics – Dentistry – Dental School Clinic – Autonomy – Confidentiality.
Conteúdo:
Quando se pensa em Bioética, normalmente se pensa em casos de “situações limite” como a eutanásia, a fecundação assistida e o DNA recombinante, negligenciando-se com freqüência os problemas morais e éticos que envolvem grande número de pessoas na vida cotidiana (Berlinguer, 1993). A rotina da prática odontológica, por exemplo, é marcada por conflitos éticos trazidos por questões como: o advento do HIV/AIDS, o comércio de dentes humanos, as pesquisas que descobrem novas técnicas e biomateriais, os paradoxos entre políticas públicas de saúde e justiça social e a constante busca da humanização e do respeito aos princípios éticos na relação entre profissional e paciente.
Assim, o profissional formado dentro dessa realidade deve ter uma visão integral do paciente, incorporando a sua formação a competência ética. A construção moral e ética deficitária pode trazer conseqüências para a sociedade quando o estudante passa desta condição à de profissional formado, prestando atendimento odontológico à toda população tendo como base de sua conduta profissional valores invertidos, priorizando leis e regras, em detrimento da vida e dos direitos humanos (Freitas et al, 2005). Nesse contexto, destaca-se a importância do ensino da odontologia na formação dos novos profissionais, ensino este que mesmo tendo em seu currículo disciplinas estritamente teóricas, está fortemente baseado em atividades práticas realizadas pelos alunos nas clínicas das universidades (Ramos, 2003). É nessas clínicas que o futuro profissional aprende, exerce ações, assimila condutas e adquire hábitos, fazendo delas espaços privilegiados não só para o aprendizado de procedimentos técnicos, mas também para o exercício da reflexão ética dos futuros profissionais.
As clínicas odontológicas de ensino têm no seu cotidiano algumas situações peculiares que tendem a potencializar problemas e conflitos que normalmente fazem parte da rotina de instituições que prestam atendimento de saúde à população através de estudantes (Beauchamp & Childress, 2001). Isto acontece principalmente porque as pessoas ali atendidas são colocadas na condição, mesmo temporária, de objeto de ensino para os futuros profissionais.
O uso de pacientes para ensinar estudantes da área da saúde não viola necessariamente princípios éticos de relacionamento desde que: se tenha certeza de que os pacientes estão devidamente informados sobre a realidade das instituições de ensino, que não sejam submetidos a riscos desnecessários e que existam e sejam cumpridas regras rígidas quanto aos princípios do respeito à autonomia do paciente e da confidencialidade das informações obtidas durante o tratamento (Beauchamp & Childress, 2001).
Dessa forma, é importante refletir sobre as implicações éticas envolvidas na relação terapêutica na qual três sujeitos são protagonistas – o paciente, o aluno e o professor – e questionar: qual a autonomia desses pacientes durante o atendimento? Eles têm participação nas decisões relativas ao seu tratamento? Podem recusar determinados procedimentos? São respeitados em relação à confidencialidade das informações obtidas durante o atendimento? Como se processa, nas relações paciente/aluno/professor, o confronto de diferentes interesses, de um lado, a necessidade terapêutica e, de outro, o interesse acadêmico? Há a supremacia de um em detrimento do outro, havendo o desrespeito de direitos individuais em nome do ensino?
Frente a essas questões, este estudo se propôs a identificar e analisar os problemas éticos que permeiam o atendimento a pacientes em uma clínica de ensino. Preliminarmente, procurou-se investigar as estratégias utilizadas para viabilizar o acesso do paciente à clinica; conhecer as estratégias utilizadas para informar, esclarecer e assegurar o consentimento do paciente quanto à realização de procedimentos terapêuticos e de imagens fotográficas; caracterizar as estratégias utilizadas para arquivamento, acesso, uso e reprodução das informações geradas durante o atendimento; e por fim, analisar o processo de assistência prestada em relação aos princípios bioéticos do respeito à autonomia do paciente e da confidencialidade das informações, que serviram como ancoragem teórica da pesquisa.
Procedimentos Metodológicos
Trata-se de uma pesquisa empírica, exploratória, qualitativa, realizada em setembro de 2004 junto a dez professores do curso de Odontologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Os professores integram o corpo docente de disciplinas que desenvolvem parcial ou totalmente suas atividades nas clínicas de atendimento da referida universidade, sendo essa característica um pré-requisito, estipulado pelas pesquisadoras, para a inclusão das disciplinas no estudo. Foi sorteado um professor por disciplina, sendo elas: Cirurgia, Clínica Integrada, Dentística, Endodontia, Estomatologia, Odontopediatria, Ortodontia, Periodontia, Prótese Parcial e Prótese Total. As informações foram coletadas através de entrevistas semi-estruturadas incluindo 9 perguntas abertas registradas por gravação em fitas-cassete e posteriormente transcritas na íntegra. As transcrições foram analisadas através da técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (1994). As transcrições foram lidas para a identificação dos problemas éticos apontados e o conjunto desses formou uma grade temática de análise para a leitura transversal de todos os depoimentos, ou seja, cada relato foi lido visando recortá-lo em torno dos temas listados. O critério de representatividade da amostra foi o da variabilidade, o que permitiu abranger a totalidade do problema investigado em suas múltiplas dimensões até se chegar à saturação do discurso, o que limitou o tamanho da amostra.
Atendendo a resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Conselho Nacional de Saúde, 1996), o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina sob parecer 043/2003. Objetivando manter o sigilo da identidade dos participantes foram utilizados os nomes de dez capitais européias colocadas em ordem aleatória correspondendo cada uma delas a um entrevistado.
Resultados e discussão
Os problemas éticos que emergiram a partir da percepção docente foram analisados em quatro categorias diferentes apresentadas a seguir:
O Acesso dos Pacientes à Clínica Odontológica de Ensino:
Motivação, Atalhos e Desvios
Ao abordar a questão do acesso de pacientes à clínica odontológica de ensino, os professores manifestaram-se sobre os motivos que levam as pessoas a procurar atendimento odontológico nessas instituições e o caminho, freqüentemente difícil, que elas têm que percorrer até conseguirem ser atendidas. Entre as diferentes manifestações identificou-se duas questões predominantes e unânimes: a condição econômica desfavorável das pessoas e a gratuidade dos serviços prestados, como fica evidenciado na percepção deste entrevistado: “As razões são na sua maioria socioeconômicas, porque o atendimento é de graça.” (Copenhague).
Devido a fatores econômicos, sociais ou mesmo de necessidade especial à saúde bucal, tem-se observado crescente procura por atendimento odontológico nessas instituições (Trindade et al., 1999). No entanto, chama a atenção o caráter de gratuidade atribuído pelos professores ao serviço e a relação que eles estabelecem com a dificuldade econômica da população que o procura. As clínicas odontológicas de ensino das universidades federais são instituições públicas financiadas pela sociedade via pagamento de impostos e, portanto, prestam atendimentos previamente pagos pelos cidadãos. Dessa forma, embora caracterizado como gratuito, o serviço prestado, não é, nem deve ser entendido, como um favor ou caridade feitos à população, mas sim como um direito adquirido.
Um outro motivo apontado pelos professores é a cobertura insuficiente da rede pública de atendimento. As unidades locais de saúde prestam, na sua maioria, atendimentos odontológicos básicos que não suprem integralmente as necessidades da população. Talvez por este motivo os serviços especializados como os de ortodontia, cirurgia de terceiros molares, periodontia cirúrgica, endodontia e próteses, estão entre os mais procurados na clínica pesquisada. O atual sistema de saúde do Brasil não apresenta condições para dar conta da integralidade das necessidades de todas as pessoas (Fortes, 2002), situação esta que, conseqüentemente, leva ao descumprimento do direito à saúde, assegurado a todos os cidadãos brasileiros pela Constituição de 1988.
Os professores também relataram situações peculiares as quais as pessoas que procuram a clínica de ensino se submetem para serem atendidas. Entre elas está o comércio de vagas: “É complicado, primeiro ele tem que entrar em uma competição pra poder conseguir uma vaga. Houve uma época que existia um comércio, as pessoas vinham pra cá de madrugada, conseguiam a vaga e depois vendiam pra comunidade.” (Roma)
Essa é uma situação que coloca as pessoas em condição vulnerável e inaceitável, quando se considera que o serviço prestado nas clínicas de ensino é um direito da população, cujo acesso não deveria exigir sacrifício algum. Quem sofre de necessidades não atendidas fica em situação vulnerável, frágil e passível de sofrer danos (Kottow, 2000). As pessoas que procuram a clínica odontológica de ensino encontram-se em tal situação pois o fazem freqüentemente em busca de serviços que não estão disponíveis na rede pública de atendimento odontológico e pelos quais não têm condições de pagar.
Além da grande dificuldade para conseguir uma vaga para atendimento, as pessoas que a conseguem ainda passam por outras situações que fazem o caminho até o atendimento ser permeado por atalhos e desvios. Uma delas é o privilegiamento de atendimento que é dado a pessoas conhecidas de professores e funcionários: “(...) muitas vezes alguns pacientes nos vêm encaminhados por outros colegas de dentro da faculdade que nos pedem ajuda para atender esse ou aquele paciente: um parente, um amigo.” (Oslo)
O privilegiamento do atendimento de amigos, conhecidos ou parentes expõe o uso de outros critérios para a distribuição de vagas que não os previamente determinados pela instituição, ficando caracterizado um abuso da autoridade dos professores e dos funcionários que desrespeitam as pessoas que aguardam por atendimento.
Outra situação identificada foi a existência de “pacientes-reserva”. A dinâmica de trabalho adotada pelas disciplinas clínicas prevê que o número de pacientes a terem acesso ao atendimento deve corresponder ao número de alunos disponíveis para realizá-lo. Os “pacientes-reserva” são assim chamados porque representam um número excedente de pacientes marcados para ficar aguardando atendimento em caso, principalmente, da falta de algum paciente que foi agendado para aquele dia: “(...) tem um aluno que tem um paciente que não compareceu, aí a gente preenche a vaga. (...) muitos desses pacientes estão esperando e aceitam ser presenteados pela chance de entrar no processo.” (Roma)
Tal situação torna explícita a contradição que existe no processo: a de pessoas que se submetem a situações peculiares para ter acesso a um serviço que na verdade é seu por direito. Nessa realidade foram identificadas duas situações distintas: os pacientes-reserva informados e os não-informados. Entre os pacientes-reserva informados, identificamos também duas situações diversas. Uma delas diz respeito aos que são informados que serão reserva quando agendados pelo setor de triagem: “(...) sempre tem pacientes-reserva, mas ele é avisado por telefone que ele pode não ser atendido.” (Copenhague)
A outra situação diz respeito aos pacientes-reserva informados que procuram a clínica de ensino por conta própria, sem estarem cadastrados ou agendados. Muitos deles são aconselhados pelos próprios funcionários da universidade a ficarem “rondando” nas salas de espera das clínicas de ensino em busca de atendimento, que pode ser oferecido devido à falta de algum paciente marcado para aquele dia.
Em ambos casos poderia-se dizer que o princípio do direito à autonomia é respeitado, já que eles têm a informação e escolhem ir à clínica e esperar por um possível atendimento. No entanto, a autonomia de sujeitos que pertencem a sociedades desiguais tem um tecido mais complexo e quem está destituído do poder pode sofrer desrespeitos a sua autonomia (Anjos, 2000). Neste caso, quem está com o poder são os professores e o setor de triagem que decidem quem receberá ou não atendimento.
Os pacientes-reserva não-informados encontram-se em situação de maior fragilidade e vulnerabilidade, principalmente por serem desrespeitados quando não lhes é fornecida a informação necessária para poderem tomar uma decisão autônoma. É interessante observar que os próprios professores percebem essa vulnerabilidade: “Sempre se pede mais, às vezes não dá para atender, aí eles voltam na semana que vem. (...) eles ficam chateados, mas normalmente são pessoas humildes que estão acostumadas com esse tipo de coisa.” (Lisboa)
Chama-nos a atenção a “coisificação” das pessoas que está explícita nessa prática. O paciente é claramente visto como um meio pela sua necessidade de tratamento, para um fim que é o atendimento que deve ser realizado pelo aluno. Todo ser humano quando na posição de paciente deve ser tratado em virtude de suas necessidades de saúde e não como um meio para a satisfação de interesses de terceiros, da ciência, dos profissionais de saúde ou de interesses industriais e comerciais (Fortes, 2002).
O número de pessoas que procura por essas instituições de ensino tem-se mostrado superior ao necessário para o cumprimento da grade curricular e à disponibilidade de vagas proporcionadas pelas diferentes disciplinas clínicas, daí serem compelidas a limitar ou mesmo direcionar o atendimento (Trindade et al., 1999). Tal fato evoca a necessidade de discussão da questão da prioridade de atendimento que é dada para os casos de interesse acadêmico.
Vários professores se manifestaram neste sentido, argumentando que a instituição, apesar de conveniada com o Sistema Único de Saúde (SUS), é uma escola e tem como finalidade a formação de novos profissionais. Por esse motivo, os casos de interesse acadêmico são sempre tratados como prioritários à lista de espera e às necessidades dos pacientes. No entanto, convém ressaltar que toda pessoa na condição de paciente, ou seja, quando apresenta necessidades relativas a sua saúde, deve ser tratada para suprir tais necessidades e não ser prejudicada ou preterida por não apresentar a “necessidade certa” que lhe possibilitaria obter o tratamento. Essa situação caracteriza um claro desrespeito, em primeira instância, aos princípios do SUS que garantem o acesso aos serviços de saúde sem qualquer discriminação e em última instância, é a negação de um direito humano básico, que é o direito à saúde.
Normalmente, o paciente da clínica de ensino é considerado um objeto com necessidades de tratamento, que vão sendo alocadas de acordo com a demanda das diferentes disciplinas por determinados procedimentos. É ignorado o fato de que todas as necessidades dos pacientes estão interligadas e devem ser atendidas em uma ordem que leve em consideração a promoção da saúde bucal deles e não apenas a satisfação das necessidades das disciplinas. Assim, tanto os aspectos relativos à dimensão organizativa quanto os aspectos referentes à dimensão relacional entre os principais atores deste processo (paciente/aluno/professor), indicam uma ênfase nos aspectos técnicos em detrimento dos aspectos humanos nesta instituição de ensino.
As Informações no Atendimento:
o Dar, o Receber e o Compartilhar
Aqui é discutida as informações envolvidas no atendimento dos pacientes: como são fornecidas e obtidas das pessoas atendidas e como são arquivadas, acessadas e, eventualmente, reproduzidas, incluindo o uso do termo de consentimento para tratamento e a realização de imagens fotográficas.
De acordo com a maioria dos professores, os pacientes atendidos na clínica odontológica de ensino não estão bem esclarecidos sobre a realidade e o funcionamento da clínica, sendo que a prioridade das disciplinas reside no atendimento clínico: diagnóstico, planejamento e tratamento. Considerando que a informação é a base de decisões autônomas (Muñoz & Fortes, 1998) é importante que os pacientes atendidos na clínica de ensino sejam esclarecidos sobre a realidade e o funcionamento da instituição, que devido a sua característica formadora, funciona de forma diferente dos consultórios odontológicos privados e das unidades locais de saúde. Omitir ou negar esse direito resulta no risco do desrespeito ao princípio da autonomia.
Em relação ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido utilizado na clínica de ensino, observou-se que se constitui em um termo de autorização para diagnóstico e/ou execução de tratamento não se caracterizando como um documento específico, pois está localizado no rodapé da ficha cadastral, vinculando, explicitamente, a sua assinatura com o acesso do paciente ao serviço. Os professores declararam que suas disciplinas não utilizam nenhum termo de consentimento específico para a realização de procedimentos terapêuticos, referindo-se, via de regra, a assinatura desta autorização, comum a todas disciplinas, como “prova” do consentimento do paciente. No entanto, questiona-se se a pessoa que tem que assinar uma autorização para ter acesso ao serviço de saúde pode realmente exercer sua autonomia quando teme que a recusa em assinar tal documento possa representar demora no atendimento ou mesmo perda da vaga tão arduamente conquistada. Na maioria das vezes em que um termo de consentimento é exigido como requisito para permitir acesso aos serviços públicos de saúde, o documento é assinado sem que as pessoas estejam cientes de seu conteúdo e normalmente quando perguntadas sobre o que assinaram, não se lembram (Fortes, 2002).
A questão do consentimento também envolve a realização de imagens fotográficas durante atendimento na clínica de ensino. Os professores declararam ser este um procedimento rotineiro e que suas disciplinas não possuem, nem utilizam, nenhum termo de consentimento específico. Argumentaram que na autorização para tratamento que o paciente assina, como condição para ter acesso às disciplinas clínicas, este consentimento já está contemplado, não havendo necessidade de esclarecimentos específicos sobre o procedimento, bem como sobre o uso e reprodução dessas fotos. Percebe-se que a realização de imagens fotográficas é considerada como um direito da instituição: “(...) eu acho que não é pedido o consentimento da pessoa. Acha um caso interessante, alguém pega a máquina, bate a foto e pronto(...)” (Berlim)
Essa conduta, adotada por quase todas as disciplinas, revela um desrespeito ao princípio da autonomia devido a falta de informação do paciente em relação ao procedimento, bem como a falta de obtenção do seu consentimento livre, esclarecido e voluntário, específico para esse procedimento. O princípio da confidencialidade também é violado quando o paciente é simplesmente comunicado sobre a realização das fotos, sem explicitar seu consentimento sobre o uso, reprodução e divulgação das mesmas, feitos normalmente através de slides para aulas, congressos, encontros acadêmicos e artigos científicos.
Deve-se atentar também para o conflito criado pelo uso da assinatura da autorização para tratamento utilizada pelo curso como forma única de esclarecimento e concordância do paciente com a realização de todos os procedimentos que vão acontecer dentro da clínica, incluindo fotografias. Isso porque, essa assinatura, além de vincular-se explicitamente com o acesso ao serviço, freqüentemente acontece muito tempo antes da realização dos procedimentos, devido ao longo tempo de espera entre a triagem dos pacientes e o atendimento propriamente dito.
De acordo com os professores, a temática do consentimento da reprodução de imagens não é abordada em sala de aula com os alunos da graduação. Considera-se tal postura inaceitável, já que essa prática está presente no cotidiano das diferentes disciplinas e os próprios alunos estão envolvidos, já que eles mesmos publicam muitas dessas fotos. O argumento mais utilizado para justificar essa ausência de discussão é a falta de tempo disponível.
No que diz respeito ao arquivamento e acesso de informações pessoais de anamnese e de radiografias de pacientes, verificou-se que são respeitados os princípios da confidencialidade e da privacidade. No entanto, identificou-se uma situação que pode estar criando conflitos e submetendo alguns pacientes a riscos desnecessários: a prática de algumas disciplinas de manter arquivos radiográficos de acesso exclusivo. O conflito ético é criado quando radiografias que estão sendo mantidas em arquivos privados são necessárias para dar continuidade a um tratamento ou para a realização de outros por outras disciplinas. Devido ao acesso restrito, o que normalmente acontece é que os pacientes são submetidos, desnecessariamente, e normalmente sem saber disso, à realização de novas radiografias.
A questão da confidencialidade das informações obtidas durante o tratamento odontológico sempre trará o conflito sobre o que deve ser público e o que deve ser respeitado como privado ou restrito ao paciente ou a algumas pessoas de sua confiança (Cohen,1999). No caso das instituições de ensino, tal conflito será sempre entre o princípio da autonomia do paciente, que lhe garante o direito de manter informações pessoais em sigilo e a necessidade de compartilhar informações inerente a essas instituições.
As Manifestações do Paciente durante o Atendimento:
“Liberdade Vigiada”
Aqui discute-se a liberdade que os pacientes da clínica odontológica de ensino têm, ou não, de se manifestar durante o atendimento, incluindo a recusa ao tratamento proposto e ao atendimento por determinado estudante, e, também, a relação da recusa com a necessidade do cumprimento da produção acadêmica.
Buscou-se saber se é facultado ao paciente manifestar-se tanto sobre o plano de tratamento proposto quanto sobre a escolha do aluno que vai atendê-lo: “Na teoria ele tem, mas isso aí é muito difícil de fazer. O paciente praticamente não fala nada porque ele já estava esperando há muito tempo, então imagina se ele começar a fazer certos questionamentos que seriam normais, ele pensa que naturalmente vai perder a vaga.” (Copenhague). A vulnerabilidade do paciente emerge quando ele é colocado na situação de ter que “escolher” se deve submeter-se a algo que possa incomodá-lo de alguma forma ou enfrentar a situação e correr o risco de perder a chance de ser atendido.
Quando se trata de recusa em ser submetido a realização de imagens fotográficas a situação não é diferente, com o agravo de mais uma vez o serviço prestado ser caracterizado como caridade feita pela instituição de ensino à população: “As pessoas se sentem honradas de se submeter a documentação fotográfica, as pessoas se sentem gratificadas de estarem recebendo tratamento e a documentação fotográfica é quase um atestado de qualidade daquilo que está sendo realizado.” (Estocolmo)
Embora a questão da documentação fotográfica como atestado de qualidade seja aceita no meio acadêmico e até motive os pacientes, nesse caso ela caracteriza muito mais uma forma de manipulá-los para que colaborem com uma prática que não é tratada conforme os princípios éticos da autonomia do paciente e da confidencialidade das informações. Outros professores questionaram o direito do paciente de recusar a realização de imagens fotográficas, utilizando mais uma vez como argumento a característica de instituição formadora da clínica de ensino: “ (...) eu não sei se ele tem esse direito. Eu acho que não. Porque ele assina lá consentindo, a partir do momento que ele entrou em uma universidade ele já está sabendo que este é o preço que ele vai pagar, esse desconforto da fotografia, de ele ser objeto de ensino(...).” (Copenhague)
Evidenciam-se a realidade peculiar das clínicas de ensino e a sua finalidade de formar novos profissionais e, neste contexto, o que se discute, são as ações realizadas dentro delas durante o processo de formação. Questiona-se se os fins justificam os meios e o que importa é a formação do futuro odontólogo não interessando como o paciente, aqui na condição de objeto de ensino, é tratado durante o processo. O relato expõe claramente a idéia de que a universidade e o serviço que presta à população estão acima de qualquer direito do paciente, sendo que tudo que é feito nas clínicas de atendimento das universidades pode ser justificado em nome do ensino.
Com base nessas colocações cabe questionar até que ponto o paciente exerce plenamente sua autonomia durante o processo terapêutico e se a suposta liberdade que ele tem não é sempre uma “liberdade vigiada”. Isso porque, o temor de perder a vaga para atendimento parece estar sempre muito presente durante todo o processo de realização das atividades. Como se não fosse suficientemente inadmissível ele sentir esse medo, tal sentimento ainda é usado por algumas disciplinas para manipulá-lo de acordo com seus interesses, já que a decisão do paciente pode ter influência no funcionamento de algumas delas.
Uma situação que pode ser relacionada com a decisão do paciente é a produção acadêmica do aluno. Algumas disciplinas exigem dos alunos uma produção mínima como requisito necessário para a aprovação. Então o aluno, eventualmente, fica dependendo da colaboração do paciente para poder finalizar um tratamento e completar a sua produção. Dois diferentes pontos de vista são evidenciados: “Se ele não quiser fazer, paciência, a gente tem que respeitar(...). Por outro lado, o aluno tem que ter uma certa produção dentro da disciplina e ele pode ser penalizado pela recusa do paciente(...).” (Paris) “Na nossa disciplina nós temos muito cuidado em não exigir dos nossos alunos produção mínima, porque às vezes o aluno trabalha muito e pode ser que ele chegue no final do semestre e não tenha produzido exatamente o número certo de procedimentos que a gente eventualmente considere ideal e a gente atribua a ele uma nota inferior a de um indivíduo que tenha feito desnecessariamente o dobro.” (Estocolmo)
A vulnerabilidade do paciente é evidente se for considerado que da mesma forma que algumas disciplinas se preocupam em coibir a “inclinação” de certos alunos de sobretratar alguns pacientes para cumprir a meta estipulada pela disciplina, outras podem não ter a mesma orientação ou ter um corpo docente menos atento a esses acontecimentos. Quando o estudante sugere ao paciente um tratamento que seja o indicado para o caso e também seja “útil” para completar a sua produção acadêmica, ele não está necessariamente violando a autonomia do paciente ou ferindo o seu próprio dever de beneficência, mas para isso o paciente deve estar informado a respeito de toda a situação e dar seu consentimento voluntário para que o tratamento realmente aconteça (Van Dam & Welie, 2001).
O Ensino sob o Ponto de Vista do Professor:
O Olhar para a Bioética
A necessidade de discussão da ética e da bioética no cotidiano das práticas pedagógicas da clínica odontológica de ensino, suas dificuldades, necessidades de mudanças e algumas sugestões, também emergiram das manifestações dos professores.
Ao longo das entrevistas todos os professores manifestaram uma certa frustação por não abordarem com os alunos, no cotidiano de suas disciplinas, assuntos que eles consideram importantes para a formação dos novos profissionais. Apesar disso, muitos deles acham que discussões voltadas para as questões éticas no relacionamento entre o profissional e paciente não fazem parte do conteúdo de graduação: “Eu acho que uma aula específica pra toda a turma desse tipo de abordagem até seria interessante, mas acontece que nós não temos tempo. (...) mas também, isso não é um conteúdo de graduação, é um conteúdo de pós-graduação. Na graduação existem outros conteúdos que são inadiáveis.” (Copenhague)
É inadmissível que práticas do dia-a-dia da clínica de ensino da graduação, que envolvem diretamente pacientes, alunos e professores, não mereçam o devido esclarecimento e discussão com os alunos em sala de aula. No entanto, para que haja mudança no modelo de ensino, os professores também precisam mudar, o que não é tarefa fácil e depende da conscientização do corpo docente: “ (...) a parte básica é a conscientização do professor, daqueles que não tiveram oportunidade. Nas especializações a gente procura às vezes assistir à disciplina de Bioética com os alunos e tal, isso já me deu uma visão diferente das coisas, mas eu vejo que às vezes a gente carrega lá dentro umas teimosias difíceis de trocar (...)” (Copenhague)
Decisões importantes no âmbito de instituições de ensino freqüentemente não dependem apenas do interesse e da vontade dos professores, mas cabe aqui chamar a atenção para a importância do tema e para a necessidade da mobilização da classe acadêmica nesse sentido. O respeito à pessoa humana é um dos valores básicos da sociedade moderna fundamentando-se no princípio de que cada pessoa deve ser vista como um fim em si mesma e não somente como um meio, princípio este, freqüentemente infringido nas instituições de assistência à saúde.
Para alguns professores, a importância do tema e a influência dessa discussão na formação dos alunos é clara. Não se pode desvincular o ensino da ciência, nesse caso da odontologia, da formação ética e social dos alunos (Galindo, 2001). O ensino e a reflexão bioética nos cursos de odontologia possibilitam o prevalecimento do paradigma humanitário sobre o financeiro, científico e jurídico, além de favorecerem o equilíbrio entre os interesses da sociedade e os interesses da pessoa, quer se encontre ela na posição de profissional da saúde ou de paciente (Galindo, 2001).
Dito isso, quer-se reforçar a necessidade da discussão ética e bioética nos cursos de graduação em odontologia, em particular neste pesquisado. Esse debate poderia acontecer formalmente em sala de aula, tão somente com o objetivo de torná-la acessível a todos alunos e não privilégio de uns, que são escolhidos para desenvolver trabalhos científicos em conjunto com alguns professores, e são, conseqüentemente, melhor orientados; ou de outros, que são supervisionados por professores que abordam informalmente o tema no dia-a-dia das atividades clínicas. Dessa forma, ressalta-se a responsabilidade de todos os professores do curso de Odontologia com a formação da competência ética dos alunos. O objetivo do ensino e da discussão bioética na Odontologia é o de contribuir para a formação integral do futuro profissional, orientando-o para uma prática profissional pautada pela ética, princípios, regras e virtudes gerais e comuns às diferentes áreas das ciências da saúde, dando ênfase à visão do paciente como um todo e contribuindo para a correta relação profissional-paciente (Marcos, 2004).
Não obstante esses problemas, espera-se que a discussão feita aqui represente uma efetiva contribuição ao debate que se trava na atualidade sobre a formação de profissionais de saúde no Brasil. Acredita-se que o olhar crítico que foi lançado sobre a realidade do atendimento a pacientes nesta clínica de ensino tenha um potencial transformador e vá atuar efetivamente na indução de mudanças que irão certamente tornar os novos cirurgiões-dentistas não apenas profissionais de excelência técnico-científica, mas sobretudo, profissionais que ao olhar o paciente vão enxergar também o ser humano e não só a doença.










