0164/2006 - Os sintomas vagos e difusos em biomedicina: uma revisão da literatura
The vague and diffuse symptoms in biomedical area: a rewiew on the matter
Autor:
• Carla Ribeiro Guedes - Carla Ribeiro Guedes - Rio de Janeiro, RJ - Doutoranda em Saúde Coletiva - Instituto de Medicina Social / UERJ - <carla.guedes@globo.com>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
RESUMOEste estudo tem como objetivo realizar um mapeamento do que vem sendo produzido academicamente sobre sintomas vagos e difusos em biomedicina.. Como instrumento metodológico, realizamos um levantamento bibliográfico, abrangendo o período de 1990 a 2005. Foram selecionados quarenta artigos e estabelecidos cinco eixos temáticos para investigação: nomenclaturas dadas aos sintomas vagos e difusos; definição dos sintomas vagos e difusos; relevância da temática abordada; critérios utilizados para o diagnóstico dos sintomas vagos e difusos; e ações terapêuticas adotadas. Na discussão dos resultados identificamos impasses da biomedicina ao lidar com sofredores de queixas indefinidas, tais como a diversidade e imprecisão conceitual em relação ao uso das nomenclaturas, o despreparo dos médicos ao se depararem com esses pacientes, a demanda considerada como de ordem psíquica, a dificuldade em estabelecer critérios diagnósticos e a utilização ineficaz de recursos terapêuticos. Como conclusão, constatamos que, subjacente a essas dificuldades, encontra-se um modelo biomédico que possui poucas ferramentas para se deparar com a singularidade do sofrimento humano e com sua dimensão fenomenológica experiencial.
Palavras-chave: sintomas vagos e difusos; biomedicina
Abstract:
ABSTRACTThis study has the objective to map what have been produced academically about vague and diffuse symptoms in biomedical area. As methodological tool, we have done a bibliographic study on the Internet, in books and specialized manuals about the theme, all published between 1990 and 2005. From this mapping, forty works were selected and six thematic axis were established to the investigation: the name given to design the study object; its definition, reasons for study the theme; diagnoses criteria and therapeutic acctions. On the results, we identified plenty of difficulties from biomedical area to deal with the undefined complains suffers. Between them, we can detach: the diversity and conceptual inexactness related with the nomenclature use, the doctors difficulties when they face those patients, the demand considered as psychic disorder, the difficulty to establish diagnosis classification and the bad use of therapeutic resources. As conclusion, we understand that joined with those difficulties is a biomedical model that doesn’t have sufficient tools to deal with the singularities of the human suffering and, beyond all, with its experiential phenomenological dimension.
Keywords: vague and diffuse symptoms; biomedicine
Conteúdo:
Acompanhamos no final do século XVIII uma ruptura de paradigma no interior do saber e da prática médica; a medicina segundo a conceituação de Foucault torna-se anátomo-clínica. Nessa perspectiva, passou-se a pensar a doença como localizada no corpo humano, e a anatomia, até então sem nenhuma função para uma medicina eminentemente erudita, insere-se na prática médica. Assim, o referencial da clínica médica passou a ser a doença e a lesão, isto é, o objetivo do médico é identificar a doença e a sua causa. Basta remover a causa para que haja a cura da doença. Doença e lesão estabelecem uma relação de co-dependência, uma necessita da outra para existir .
Apesar dos progressos também verificados por essa perspectiva, entendemos que esse modelo de medicina baseado preponderantemente no objetivismo trouxe algumas conseqüências e impasses para a prática médica, ao excluir as dimensões subjetivas do adoecimento humano.
Sendo assim, a relação médico-paciente é marcada pelo encontro de duas leituras diversas sobre o adoecimento. Por um lado, o paciente apresenta-se com seus mal-estares e perturbações (illness), por outro, o médico trabalha com a categoria de doença (disease) oferecida pela biomedicina - denominação utilizada para designar a medicina ocidental devido a sua estreita vinculação com disciplinas oriundas das ciências biológicas. Lidar com o conflito gerado por esses diferentes modelos explicativos tem se mostrado uma tarefa complexa, especialmente no caso de pacientes com queixas dificilmente enquadráveis no modelo biomédico.
Embora haja uma série de definições para os sintomas vagos e difusos em biomedicina, estes são freqüentemente caracterizados pela presença de sintomas físicos sem apresentar uma causalidade explicável por bases empíricas.
Um estudo organizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre somatização na atenção primária em quatorze países demonstrou uma grande incidência desse tipo de manifestação . Além disso, a pesquisa revela que essa demanda se configura num problema comum em diferentes culturas, com significantes prejuízos à saúde, constituindo-se numa relevante questão de saúde pública mundial.
Apesar da relevância epidemiológica desses transtornos, as categorias usadas, as definições, os critérios diagnósticos e terapêuticos relacionados a essa questão não parecem sistematizados, mas expostos em diversas publicações científicas, cada qual com suas orientações teóricas e metodológicas.
Sendo assim, esse artigo visa realizar um mapeamento do que vem sendo produzido academicamente sobre identificação, critérios diagnósticos e terapêuticos dos sintomas vagos e difusos em biomedicina, tendo como objetivo oferecer uma maior sistematização do campo, ao mesmo tempo em que permita uma maior reflexividade por parte dos profissionais de saúde e pesquisadores sobre o tema.
2- METODOLOGIA
Foi realizada uma revisão da literatura em artigos científicos e livros especializados em medicina, abrangendo o período de 1990 a julho de 2005, a fim de identificar as publicações mais recentes sobre a temática. O material para análise foi selecionado a partir de três meios: (1) através de busca direta no site Google; (2) bibliotecas virtuais: biblioteca virtual Scielo, Bibliomed e BVS, com acesso à Lilacs e Medline e (3) através de artigos científicos encontrados em livros da área médica.
Para a produção veiculada eletronicamente, o acesso foi realizado com as seguintes palavras-chave: “sintomas vagos”, “sintomas difusos”, “sintomas inexplicáveis”, “somatização” e as expressões equivalentes em inglês e espanhol. Para a seleção de artigos em livros, os critérios de seleção foram semelhantes, através dos títulos que indicassem as mesmas palavras usadas no acesso eletrônico.
A partir desse levantamento inicial foram selecionados 40 (quarenta) artigos, que abordam em seus conteúdos temas diretamente relacionados aos propósitos do estudo. Os 05 (cinco) eixos temáticos escolhidos para a investigação foram: (1) nomenclaturas dadas aos sintomas vagos e difusos, (2) definição dos sintomas vagos e difusos, (3) relevância da temática abordada, (4) critérios utilizados para o diagnóstico dos sintomas vagos e difusos e (5) ações terapêuticas adotadas.
O primeiro eixo temático refere-se às nomenclaturas usadas nos artigos para designar as queixas físicas sem uma causalidade explicável em biomedicina. O segundo tópico diz respeito a como são definidos pelos autores os sintomas vagos e difusos; o terceiro relaciona-se às justificativas dadas nos artigos para a relevância da temática em questão. Por sua vez, o quarto item trata dos critérios apresentados pelos autores para estabelecer um diagnóstico desse tipo de demanda. Por fim, o quinto eixo aborda as diversas ações terapêuticas recomendadas para o tratamento das queixas vagas e difusas.
Dos 40 (quarenta) artigos selecionados, 30 (trinta) foram disponibilizados através da internet (no site de busca Google e bibliotecas virtuais) e 10 (dez) encontrados em livros da área médica, sendo 33 (trinta e três) em inglês, 05 (cinco) em português e 02 (dois) em espanhol.
As fontes usadas neste estudo foram: (1) Barsky e Borus ; (2) Bombana ; (3) Bombana et al ; (4) Caixeta et al ; (5) Escobar at al ; (6) Fabrega ; (7) Florenzano et al ; (8) Florenzano et al ; (9) Ford e Parker ; (10) Gureje et al ; (11) Hartz et al ; (12) Holloway e Zerbe ; (13) Hurwitz ; (14) Katon et al ; (15) Kellner e Psych ; (16) Kirmayer et al ; (17) Kirmayer e Robbins ; (18) Kirmayer e Robbins ; (19) Kroenk et al ; (20) Mai ; (21) Margo e Margo ; (22) Maynard ; (23) Mccahill ; (24) Morris et al ; (25) Noyes et al ; (26) Pennebaker e Watson (27) Peters et al ; (28) Poikolainen et al ; (29) Porto ; (30) Proença et al ; (31) Righter e Sansone ; (32) Ritsner et al ; (33) Robbins e Kirmayer ; (34) Roca ; (35) Schilte et al ; (36) Servan-Schreiner et al ; (37) Servan-Schreiner et al ; (38) Simon ; (39) Stone et al e (40) Waitzin e Magaña .
A análise dos dados coletados foi feita a partir de uma leitura qualitativa, onde procuramos identificar os temas mais recorrentes relacionados aos eixos temáticos citados acima. Estes foram expostos em cinco tabelas, de forma que o leitor possa ter uma melhor visualização dos principais resultados encontrados.
3- RESULTADOS
A seguir serão apresentados os principais resultados referentes aos eixos temáticos pesquisados, a saber: (1) nomenclaturas dadas aos sintomas vagos e difusos, (2) definição dos sintomas vagos e difusos, (3) relevância da temática abordada, (4) critérios utilizados para o diagnóstico dos sintomas vagos e difusos e (5) ações terapêuticas adotadas.
Tab. 1- Nomenclaturas dadas aos sintomas vagos e difusos
Nomenclatura No. de artigos
1 Somatização 26
2 Sintomas inexplicáveis 07
3 Sintomas ou síndromes funcionais 04
Quanto às nomeações dadas pelos autores, a nomenclatura “somatização” foi claramente a mais mencionada, aparecendo em 26 (vinte e seis) artigos, ou seja, 65% dos trabalhos selecionados. Em seguida foi encontrada a nomeação “sintomas inexplicáveis” em 07 (sete) artigos, que diz respeito à presença de um conjunto de sintomas físicos sem que a biomedicina encontre causas explicáveis em seu modelo para diagnosticá-los e tratá-los. As ditas síndromes funcionais, mencionadas em 04 (quatro) artigos, referem-se a uma expressão utilizada pelos autores que designa um problema relacionado ao funcionamento de um órgão sem que haja lesão no mesmo, isto é, trata-se de uma alteração na função e não um comprometimento lesional.
Entendemos que o uso de nomenclaturas como sintomas “inexplicáveis” ou “funcionais” retratam os limites do modelo biomédico em lidar com esse tipo de demanda, uma vez que o primeiro termo expressa explicitamente que os sintomas não são explicáveis a partir dos referenciais dados pela medicina e o último afirma que o problema somente pode referir-se à função, visto que não há nenhuma causalidade que possa explicá-lo a partir dos padrões biomédicos.
Tab- 2 - Definição dos sintomas vagos e difusos
Definição No. de artigos
1 Definição que inclui fatores psicossociais 20
2 Definição descritiva do fenômeno 12
Em relação a definição dos sintomas vagos e difusos utilizada pelos autores, foram encontrados dois grupos predominantes: aqueles que incluem os fatores psicossociais como capazes de influenciar os sintomas físicos e aqueles que meramente descrevem o fenômeno. Em 20 (vinte) artigos, isto é, em metade dos textos selecionados há explanações sobre as relações existentes entre a sintomatologia física e aspectos psicológicos e sociais, tal como ilustra a afirmação de Servan-Shreiner, Kolb e Tabas “persistentes queixas físicas sem que uma explicação fisiológica seja encontrada. Os pacientes experimentam seus sofrimentos emocionais ou dificuldades de vida como um sintoma físico” . Ou, como relata Barsky e Borus, “é mais caracterizado por sintomas, sofrimento e inabilidade do que demonstrável anormalidade no tecido” . Assim, neste grupo a explicação encontrada para estes sintomas está diretamente ligada aos fatores psicossociais.
Em contraposição à essa vertente, foram localizados 12 (doze) artigos com definições puramente descritivas do fenômeno, como demonstra Florenzano, Fullerton, Acuña e Escalona “sintomas corporais sem causas orgânicas documentáveis” .
Entendemos que o alto índice de definições que incluem os fatores psicossociais – psicológicos, sociais e culturais – explicitam a insuficiência da unicausalidade do modelo biomédico para explicar esse tipo de demanda. A inclusão desses outros fatores revela que para esses sintomas serem diagnosticados e tratados convenientemente é preciso explicá-los a partir de outros critérios que extrapolem a causalidade biológica oferecida pela biomedicina.
Tab 3- Relevância da temática abordada
Relevância do tema No. de artigos
1 Dificuldade de diagnóstico e tratamento 19
2 Grande procura dos pacientes aos serviços de saúde 17
3 Sofrimento ou incapacidade gerados nos pacientes 09
4 Altos custos para os serviços de saúde 07
5 Alto índice de internações e solicitação de exames 07
A justificativa dos autores sobre a relevância de se investigar essa temática recaiu primeiramente na “dificuldade de diagnóstico e tratamento”, citados em 19 (dezenove) artigos. Em seguida encontramos “grande procura aos serviços de saúde”, mencionados em 17 (dezessete) artigos, seguido pelo “sofrimento ou incapacidade gerados nos pacientes” apontado em 09 (nove) trabalhos, como ilustra o trecho a seguir: “a somatização (sintomas corporais sem causas orgânicas documentadas) é freqüente na prática médica geral, apresentando sintomas físicos múltiplos que geram incapacidade nos pacientes e sobrecarga nos serviços de saúde.” . Foram também usados como argumentação expressiva “altos custos nos serviços de saúde” e “alto índice de internações e solicitações de exames”, ambos citados em 07 (sete) artigos.
A análise desse eixo temático nos mostra os impasses com os quais a biomedicina se depara ao lidar com os sofredores de sintomas vagos e difusos, revelando como os médicos tem dificuldade em responder de forma efetiva a esses pacientes. A partir disso, podemos aventar a hipótese de que pelo fato das ditas “somatizações” ludibriarem o princípio fundamental da biomedicina, a relação de causalidade entre doença-lesão e seus correspondentes, e pela existência de fatores subjetivos que participam desse processo, os médicos se vêem despreparados para oferecerem soluções eficazes a essa demanda.
Assim, uma das principais formas dos médicos responderem a esses pacientes é através da solicitação de exames e de hospitalizações, como nos demostram muitos dos artigos investigados. Contudo, esses instrumentos oferecem resultados insuficientes, causando frustração tanto nos pacientes quanto nos médicos, e além disso geram altos custos para os serviços de saúde.
Tab-4- Critérios utilizados para o diagnóstico dos sintomas vagos e difusos
Critérios No. de artigos
1 Sintomas físicos sem causa explicável ou específica 14
2 Sintomas físicos presentes no DSM 3/ DSM 4 08
3 Presença de algum transtorno psiquiátrico 08
4 Ampliação das sensações corporais 08
O principal critério utilizado pelos autores para o diagnóstico dos sintomas vagos e difusos foi a presença de “sintomas físicos sem causa explicável ou específica” mencionado em 14 (quatorze) artigos. Em seguida temos os “sintomas físicos do DSM3 / DSM-4” (Manual diagnóstico e estatístico de desordens mentais – 3a. e 4a. edições), citados em 08 (oito) textos, nos quais Porto esclarece os seus critérios: “sintomas dolorosos (no mínimo 4): por exemplo, cefaléia, dor abdominal, dor nas costas, nas articulações, no peito, dismemorréia, dispareunia, dor miccional; sintomas gastrintestinais (no mínimo 2): por exemplo, náusea, vômitos, sensação de plenitude gástrica, diarréia, intolerância alimentar; sintomas sexuais (no mínimo 1): por exemplo, indiferença sexual, impotência funcional, irregularidade menstrual, metrorragia, hiperemese gravídica; sintomas pseudoneurológicos (no mínimo 1): por exemplo, tonturas, paralisias ou fraqueza localizada, dificuldade para deglutir ou globus hystericus, afonia, retenção urinária, anestesias, diplopia, surdez, convulsões, amnésias.” Na mesma proporção encontramos as categorias “presença de algum transtorno psiquiátrico” (como, por exemplo, depressão, síndrome do pânico, ansiedade e transtorno de personalidade) e “ampliação das sensações corporais”.
Em relação aos critérios diagnósticos utilizados, ressaltamos mais uma vez o alto índice do termo “sintomas inexplicáveis”, demonstrando o quanto demandas como essas encontram-se não explicáveis pelo modelo biomédico. Constatamos também as sérias limitações desse paradigma em estabelecer o diagnóstico desse tipo de sofrimento, reveladas não só através da imprecisa expressão de “sintomas sem causas explicáveis ou específicas” como também da “presença de algum transtorno psiquiátrico” e “ampliação das sensações corporais”.
Tab-5- Ações terapêuticas adotadas
Ações terapêuticas No. de artigos
1 Encaminhamentos à psiquiatras e / ou psicólogos 19
2 Recomendações de visitas breves e regulares ao médico 10
3 Desvelamento do sentido emocional dos sintomas 07
4 Realização de tratamento farmacológico 07
Com um número expressivo de 19 (dez) artigos encontramos o “encaminhamento à psiquiatras e/ ou psicólogos”, ou seja, em 47% dos artigos selecionados a principal estratégia terapêutica foi o encaminhamento psiquiátrico e psicológico. Em seguida, a orientação para que o paciente faça “visitas breves e regulares ao médico” foi mencionada em 11 (onze) artigos, como nos ilustra o trecho a seguir: “Ele (o plano de tratamento) consiste em visitas ao consultório breves mas regulares (ex. 15 minutos a cada 4 semanas), para que o paciente não precise desenvolver novos sintomas para receber atenção médica.”
O “desvelamento do sentido emocional dos sintomas” conduzido pelo próprio médico foi mencionado em 07 (sete) artigos, como ilustram Proença Fortes, Leal e Caldas “ao clínico compete a função de fazer o paciente perceber a conexão entre os seus sintomas e as suas dificuldades emocionais.” . Em 07 (sete) dos trabalhos pesquisados encontramos a indicação de “tratamento farmacológico”, tais como anti-depressivos e ansiolíticos.
Nesse tópico de análise nos deparamos com os limites da biomedicina em tratar os sofredores das ditas “somatizações”. A ação terapêutica mais citada nos artigos, é na realidade, uma ação de encaminhamento a outros profissionais: o psiquiatra e o psicólogo. A partir disso, entendemos que os médicos não consideram esses pacientes como portadores de doenças físicas, mas sim de transtornos mentais, os quais devem ser tratados por profissionais “psi”. Entretanto, constatamos também que nem todos os médicos utilizam a estratégia do encaminhamento, alguns tentam fazer a conexão dos sintomas físicos com as questões emocionais apresentadas pelo paciente.
A recomendação de visitas regulares e de tratamento farmacológico aparecem como uma das principais terapêuticas adotadas pelos médicos; ambas nos parecem tentativas ilusórias de controle dos sintomas, sendo que a segunda revela o caráter biologizante e medicalizante deste paradigma.
4- DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Através desse estudo nos foi possível identificar alguns impasses da biomedicina ao lidar com pacientes que apresentam queixas vagas e difusas, os chamados “somatizantes”. Podemos destacar a diversidade e a imprecisão conceitual em relação aos usos das nomenclaturas, o despreparo dos médicos ao se depararem com esses pacientes, a demanda considerada como de ordem psíquica, a dificuldade em estabelecer diagnósticos e a utilização ineficaz de recursos terapêuticos. Assim, constatamos problemas estruturais no que diz respeito à conceituação, aos critérios diagnósticos e ao instrumental terapêutico.
Entendemos que subjacente a essas dificuldades encontra-se um modelo biomédico que possui poucas ferramentas para se deparar com a singularidade do sofrimento humano, e sobretudo, com a sua dimensão fenomenológica experiencial. Nas palavras de Castiel :
Médicos não são educados para lidar com a dimensão do sofrimento embutida nas manifestações oriundas de processos de adoecer traduzidos através dos signos construídos pela semiologia médica e pelas tecnologias diagnósticas e terapêuticas. Os praticantes da biomedicina contemporânea são treinados de um modo cético que tende a minimizar, no momento da intervenção, os fenômenos da chamada subjetividade ou então a tentar controlá-los.
Para Canguilhem a medicina contemporânea estabeleceu-se cindindo a doença e o doente:
A medicina de hoje fundamentou-se, com a eficácia que cabe reconhecer, na dissociação progressiva entre a doença e o doente, ensinando a caracterizar o doente pela doença, mais do que identificar uma doença segundo o feixe de sintomas espontaneamente apresentado pelo doente.
Enquanto o referencial teórico do médico são os acima citados, o sofrimento do paciente torna-se irrelevante; “quando a doença passa a ser “real” o paciente virtualiza-se” . Paradoxalmente, ignora-se aquilo que deveria ser a categoria central a qual nortearia a prática médica: o médico em última instância deveria trabalhar sabendo que lida com um paciente que sofre e que esta experiência envolve uma série de questões que escapam ao biológico, pois se referem a questões psicológicas, culturais e sociais. É freqüente encontrarmos na prática discursiva da medicina referências à necessidade de uma abordagem biopsicossocial, mas há uma total primazia do campo biológico sobre os demais:
Categorias fundamentais no que concerne ao adoecer como por exemplo, SOFRIMENTO, SAÚDE, HOMEM (no sentido de “ser humano”),VIDA, CURA, encontram-se perdidas nas brumas do imaginário ou empurradas para o terreno da metafísica .
Assim, a biomedicina estaria direcionada para a descoberta de informações consideradas passíveis de quantificação e não voltada para outros aspectos, tais como sociais ou emocionais, que são dificilmente mensuráveis.
A partir destes referenciais, os médicos são guiados por comportamentos que tentam se basear em padrões científicos mais que em particularidades e procuram fazer com que seu trabalho esteja focado na competência técnica e na objetividade sem envolvimento emocional com o paciente .
Para Clavreul não existe uma relação médico-paciente, mas uma relação instituição médica-doença. O médico seria o representante da ordem médica e o doente teria que adequar a sua queixa à objetividade do discurso médico. Portanto, não haveria uma relação entre eles como sujeitos dotados de subjetividade. De forma similar, Canguilhem contesta uma relação médico-paciente cujo médico apenas interceda como um técnico, com o objetivo de reparar um mecanismo perturbado:
Não há pior ilusão de subjetividade profissional, por parte dos médicos, do que a sua confiança nos fundamentos estritamente objetivos de seus conselhos e gestos terapêuticos, desprezando ou esquecendo autojustificadamente a relação ativa, positiva ou negativa, que não pode deixar de estabelecer entre médico e doente .
Assim, na biomedicina, o médico, diante da sintomatologia apresentada pelo paciente, irá inicialmente tentar correlacioná-la a algum processo físico. Se um paciente tem, por exemplo, uma queixa de dor, a conduta do médico será no sentido de identificar a causa física desta. Quando esgotadas as possibilidades investigativas – através de teste e exames – e estabelecida a exclusão de qualquer causalidade física, os sintomas poderão receber o rótulo de “psicogênico” ou “psicossomático”. Porém, sempre se busca uma explicação objetiva para os sintomas considerados subjetivos. Procura-se, em última instância, a correspondência do sintoma com os fatores biológicos, a fim de que se possa diagnosticar a entidade patológica . Desse modo, um sofrimento somente é tido como legítimo quando apresenta uma concreticidade em regularidades orgânicas classificáveis a partir de critérios anatômicos, fisiológicos, celulares e biomoleculares .
A partir disso, uma relação médico-paciente aparentemente apresenta objetivos semelhantes, contudo, vistos de perto estes objetivos seriam diferentes e até mesmo conflitantes. O paciente quer voltar a ser o que era antes do sofrimento, independente das situações que o determinaram, o médico, por sua vez, busca nas queixas do paciente fatos que são entendidos como objetivos e que correspondam a uma série classificatória. O processo terapêutico, isto é, a restauração daquilo que o médico considera normal, só é possível quando os fatos são reconhecidos dentro de uma classificação .
Entretanto, nem todos os diagnósticos nosológicos em biomedicina podem ser estruturados através dos critérios considerados objetivos, como a identificação de uma lesão / disfunção ou reconhecimento de uma causalidade. Como podemos constatar em nossa revisão da literatura, há constantemente nos ambulatórios uma demanda de sofrimentos que estão, muitas vezes, permeadas por questões de ordem social, psíquica ou moral – as quais Almeida aponta que não são enquadráveis nos diagnósticos possíveis em biomedicina. O autor nomeia estes pacientes como “refratários”, por ocuparem um lugar de marginalidade na prática médica, e não conseguirem se encaixar dentro dos serviços e tratamentos oferecidos nas instituições de saúde. Camargo Jr. afirma que estes sofredores são rechaçados pelo sistema médico-institucional que não consegue responder as suas demandas. Entendemos que os portadores destas queixas não são pacientes, mas “quase pacientes”, visto que ficam vagando e estabelecendo uma rotina de ir e vir na periferia das instituições de saúde. Brasil ilustra bem essa situação ao descrever um caso de uma “quase paciente” atendida no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HUCFF – UFRJ) que passoupor uma série de especialidades: clínica médica, oftalmologia, ginecologia, gastroenterologia, cardiologia, otorrino, ortopedia, reumatologia, dermatologia, nutrição e serviço de saúde mental.
Dessa forma, situações clínicas tais como aquelas de sofredores que apresentam sintomas considerados vagos e difusos, onde não haveria uma correlação entre sensação de mal-estar e quadro taxonômico, representaria um fracasso dos pontos de vista tanto do médico como do paciente. O paciente, cujos sintomas não são considerados objetivos, permanece com a sensação de sofrimento, e o médico que não encontra referenciais claros para sua intervenção.
Podemos supor, então, que esses pacientes, ao apresentarem uma demanda que não apresenta uma lesão, uma disfunção ou uma causalidade reconhecida, constituem-se numa anomalia – no sentido kuhniano – do paradigma biomédico . Em linhas gerais, Kuhn afirma que as anomalias são problemas que não estavam previstos – com o qual o pesquisador não se encontraria preparado para lidar. Assim como os cientistas, os médicos deparam-se com enigmas e fracassos no seu cotidiano, e um deles seria o fenômeno das somatizações. Clavreul destaca que esses sujeitos, aos quais denomina de “histéricos”, são os grandes desafiadores das ordens, uma vez que desafiaram a ordem religiosa na inquisição (bruxaria) e na contemporaneidade desafiam a ordem médica.
Entendemos, portanto, que para os “somatizadores” deixarem de ser uma anomalia dentro do modelo biomédico, é preciso mais do que simplesmente apresentar estratégias diagnósticas e terapêuticas que possam correr o risco de serem lidas e interpretadas mecanicamente, como mais um dos ítens encontrados nos discursos dos manuais de medicina. É preciso, como nos ensina Canguilhem , reconhecer uma dimensão do humano que não se restrinja à somática e, sobretudo, ter a compreensão de que se trata de um encontro entre dois sujeitos: um cuidador e um demandante de cuidado.