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0407/2024 - Paquetá vacinada e recenseada: estratégias e resultados da parceria entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em período pandêmico por covid-19
Paquetá vaccinated and censused: strategies and results of the partnership between the Unified Health System (SUS) and the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) in a pandemic period due to covid-19

Autor:

• Luiz Felipe Pinto - Pinto, L.F. - <felipepinto.rio@medicina.ufrj.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9888-606X

Coautor(es):

• Carolina Mott - Mott, C. - <caromott@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0002-6556-9129

• Margareth Catoia Varela - Varela, M.C - <margareth.catoia@ini.fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8161-1158

• Juliana Arruda de Matos - Matos, J.A - <juliana.matos@ini.fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1501-9655

• Luciana Gomes Pedro Brandão - Brandão, L.G.P - <luciana.pedro@ini.fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5271-422X

• Marcellus Dias da Costa - Costa, M.D - <marcellus.costa@ini.fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2493-5583



Resumo:

Eternizada no Brasil no romance “A Moreninha” de Joaquim Manuel Macedo, a Ilha de Paquetá é um bairro pacato do município do Rio de Janeiro. Considerando o período pandêmico por covid-19, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro convidou em 2021 a Fiocruz para realizar um inquérito soro-epidemiológico na Ilha que, posteriormente em outubro de 2021, auxiliou o IBGE para a realização do pré-teste do Censo Demográfico. Este artigo pretende descrever os principais resultados de ambas as pesquisas, ressaltando questões conceituais no diálogo entre a atenção primária à saúde (APS) e definições metodológicas do IBGE. Os resultados apontaram a importância da vacinação para o planejamento das ações de vigilância em saúde e foram decisivos para a realização do Pré-Teste do Censo 2022, na medida em que permitiu a homologação de equipamentos e sistemas.
Uma das principais diferenças observadas entre as pesquisas refere-se ao método de contagem da população. Para as equipes de saúde da família na APS qualquer morador é contado e cadastrado, já para o IBGE são computados apenas os residentes em domicílios ocupados de uso habitual, desconsiderando as residências de uso ocasional, criando o conceito do paradoxo dos cadastros na APS.

Palavras-chave:

atenção primária à saúde, vigilância em saúde, inquérito populacional, covid-19, Rio de Janeiro

Abstract:

Eternalized in Brazil in the novel “A Moreninha” by Joaquim Manuel Macedo, Paquetá Island is a quiet neighborhood in the municipality of Rio de Janeiro. Considering the COVID-19 pandemic, in 2021 the Municipal Health Department of Rio de Janeiro invited Fiocruz to carry out a sero-epidemiological survey on the island, which later, in October 2021, assisted the IBGE in carrying out the pre-test for the Demographic Census. This article aims to describe the main results of both surveys, highlighting conceptual issues in the dialog between primary health care (PHC) and the IBGE's methodological definitions. The results showed the importance of vaccination for planning health surveillance actions and were decisive for carrying out the Pre-Test of the 2022 Census, insofar as it allowed for the homologation of equipment and systems.
One of the main differences between the surveys was the method used to count the population. For the family health teams in PHC, any resident is counted and registered, while for the IBGE, only those living in occupied homes for habitual use are counted, disregarding homes for occasional use, creating the concept of the registration paradox in PHC.

Keywords:

primary health care, health surveillance, population survey, covid-19, Rio de Janeiro

Conteúdo:

Introdução
Levantamentos censitários envolvem uma logística complexa e a coordenação de uma série de equipes técnicas e etapas detalhadas para o cumprimento de suas metas em momento oportuno e sempre tendo como referência um determinado período de tempo para coleta de dados1. Em um Censo, a menor unidade geográfica no trabalho de campo é o setor censitário, que corresponde ao menor território, criado para fins de controle cadastral da coleta de dados. Essa unidade de análise respeita os limites da divisão político-administrativa do Brasil2. Com o agrupamento dos setores censitários, é possível a construção da variável “bairro”, nas localidades em que os mesmos estão oficialmente constituídos. Quando se realizam pesquisas na área da atenção primária à saúde, muitas vezes ainda, é possível combinar setores censitários com as chamadas ‘microáreas’ das Equipes de Saúde da Família, que correspondem a um conjunto de logradouros, vielas e becos de moradia da população cadastrada e acompanhada pelas equipes3.
Tantos os censos, como os demais inquéritos domiciliares e sistemas de informação de base administrativa, quando usados de forma integrada ajudam na compreensão da história de vida e acompanhamento longitudinal da vida das pessoas com a análise dos determinantes sociais da saúde4-6, lembrando-se que os denominadores utilizados para construção e avaliação de políticas públicas nacionais e internacionais são, via de regra, dados populacionais7-8.
Em 2021, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ) convidou a Fiocruz para, durante o período pandêmico por covid-19, desenvolver um estudo de base populacional em um bairro peculiar da cidade, formado por uma ilha isolada do restante do território e com acesso público apenas por transporte de barcas. O objetivo era naquele momento subsidiar a Prefeitura do Rio de Janeiro para a construção de um calendário vacinal que priorizasse os grupos mais vulneráveis e, também, produzir conhecimento para vigilância de possíveis variantes do vírus que se espalhava por toda a cidade9. Nascia o inquérito soro-epidemiológico que ficou conhecido como “PaqueTÁ VACINADA”. Como reflexo dessa iniciativa da SMS-RJ e à convite desta, a Presidência do IBGE visitou a Ilha de Paquetá em uma de suas etapas da pesquisa, e ficou convencida da possibilidade de realizar o pré-teste do Censo Demográfico nacional, pois, o mesmo, estava atrasado desde 2020 e com risco de ter novo atraso em 2021. Naquele momento, essas duas iniciativas foram pioneiras no Brasil, e surgiram então as pesquisas “PaqueTÁ VACINADA” e “PaqueTÁ RECENSEADA” que foram fundamentais para o apoiar decisões estratégicas, tanto para o Ministério da Saúde, como para o Ministério do Planejamento.
Ao final de ambos os levantamentos censitários, a coordenação da pesquisa levantou uma questão importante relacionada à qualidade dos cadastros pré-existentes na atenção primária à saúde que servem de base para a atuação das equipes de saúde da família. Por que são tão diferentes em suas contagens no número de moradores ?

A Ilha de Paquetá
Eternizada no Brasil no romance “A Moreninha” de Joaquim Manuel Macedo, a Ilha de Paquetá é um bairro pacato do município do Rio de Janeiro situado no Distrito Sanitário ou Área de Planejamento de Saúde 1.0 (Centro e Adjacências)10. Formado por uma ilha de apenas 1,71 km2 e doze setores censitários, sua população estimada no pré-teste para o Censo Demográfico do IBGE (2022)11 foi de 3.612 pessoas, sendo 1.677 homens e 1.935 mulheres. A população possui elevada proporção de idosos com 60 anos ou mais, isto é, cerca de uma em três pessoas encontra-se então nesta faixa etária.
O bairro possui uma característica peculiar em relação a sua acessibilidade geográfica que só pode ser feita através da Baía de Guanabara por transporte marítimo como lanchas e barcas. Sua população economicamente ativa quando precisa se deslocar ao território utiliza os serviços da concessionária “Barcas S/A” que ligam a Ilha até a Praça XV no Centro da cidade do Rio de Janeiro e, também ao município de Niterói. Há também um Iate Clube em que outros barcos pequenos podem ser ancorados e existe serviço-24h do Corpo de Bombeiros com heliponto no Parque Darke de Mattos.
Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)12, a Ilha de Paquetá possui uma unidade mista de saúde, formada por um hospital de pequeno porte com oito leitos clínicos, estrutura laboratorial e, em suas dependências quase centenárias, abrigava de forma compartilhada uma unidade de saúde da família: o Centro Municipal de Saúde Manoel Arthur Villaboim. No 2º semestre de 2021 havia uma equipe completa (Equipe “Campo”), formada por um médico e uma enfermeira, técnicos de enfermagem, agentes comunitários, agentes de vigilância em saúde. Também atua na atenção primária à saúde (APS) uma equipe de Saúde Bucal com um cirurgião-dentista e um técnico de saúde bucal e cirurgiões-dentista para emergência no hospital. Em 2023, a unidade de saúde passou a contar com duas equipes de saúde da família, retornando a sua formação original do final da década de 1990 até 2016, com duas equipes: “Ponte” e “Campo”12-13. A unidade de saúde também possui em suas dependências uma Estação Observatório da Rede OTICS-RIO14 que foi sede do primeiro posto de coleta do Censo Demográfico do IBGE (2022), oficialmente inaugurado pela Presidência desse órgão em 6 de setembro de 2021, quando da realização do primeiro pré-teste nacional que gerou, nos dizeres do então Presidente Prof. Dr. Eduardo Rios uma “onda para o Censo-2022 alcançar todo o resto do País”. O pré-teste teve como finalidade avaliar o funcionamento dos equipamentos e sistemas, além de testar a operação de coleta de dados. Essa abordagem assegurou a qualidade das informações coletadas e permitiu o ajuste das metodologias que serão utilizadas no Censo 2022. (IBGE)15. A cerimônia de encerramento, realizada em 16 de outubro de 2021, evidenciou a importância dessa iniciativa e a colaboração entre o IBGE e a comunidade local, enfatizando que o engajamento da população foi fundamental para o sucesso do pré-teste14.
Considerando o período pandêmico por covid-19, em maio de 2021, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro convidou a Fiocruz para realizar um inquérito soro-epidemiológico no bairro de Paquetá ainda nesse mesmo ano. Isso, posteriormente, auxiliou o IBGE para a realização do pré-teste do Censo Demográfico, em setembro de 2021, que não pôde ser realizado em 2020 e 2021 devido questões financeiras, além da própria pandemia. Este artigo pretende descrever os principais resultados de ambas as pesquisas, ressaltando questões conceituais no diálogo entre a atenção primária à saúde e definições metodológicas do IBGE.

PaqueTÁ VACINADA – SMS-RJ e Fiocruz
A Pesquisa “Avaliação do Impacto da Vacinação contra SARS-CoV-2 com a vacina ChAdOx1 nCov-19 (Fiocruz/AstraZeneca) na Epidemiologia da COVID-19 na Ilha de Paquetá – PaqueTÁ VACINADA” foi aprovada em tempo recorde pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Por estarmos em período pandêmico, havia prioridade do Governo Federal na aprovação de estudos que pudessem contribuir para trazer mais conhecimentos sobre a covid-19. Dessa forma, a pesquisa entrou em pauta no sistema de fast-track e teve sua aprovação em um mês, permitindo que a primeira fase fosse realizada no mês de junho de 202116. A Pesquisa contou com quatro etapas e emendou com a pesquisa, “Segurança e Imunogenicidade de reforço heterólogo ou homólogo após vacinação completa contra COVID-19 - Boost COVID-19”, aprovada pela CONEP em setembro de 2021 (Figuras 1 e 2)17

Fig.1

Fig.2

Em maio de 2021, período de planejamento da Pesquisa “PaqueTÁ VACINADA”, registros do prontuário eletrônico da única unidade de saúde desse bairro referiam um total de 4.181 moradores cadastrados e acompanhados pela Equipe de Saúde da Família, sendo 3.530 maiores de 18 anos e 1.349 maiores de 60 anos. Contudo, devemos lembrar que o cadastro pelas Equipes de Saúde da Família não é atualizado periodicamente e a contagem de pessoas nos domicílios na atenção primária independente da situação de moradia. Estamos nos referindo a domicílios uma vez cadastrados e que não abrigam mais moradores, ou a domicílios de uso ocasional (domicílios de “veranistas”) que são computados na contagem de moradores pelas equipes de saúde e que não são pelo IBGE, como veremos mais adiante.

PaqueTÁ VACINADA – desenvolvimento do estudo e principais resultados
Paquetá foi escolhida para vacinação em massa em junho de 2021, acelerando o calendário vacinal para todos os adolescentes e adultos da Ilha, enquanto no restante do território nacional, apenas idosos e profissionais de saúde eram elegíveis para vacinação naquele momento.
A Ilha de Paquetá se mobilizou e conseguiu realizar, em um único dia, o maior evento de vacinação em massa já realizado na Ilha, bem como num evento de 3 dias, a maior coleta de sangue entre seus moradores. Das 4.181 pessoas cadastradas pela ESF, 2.750 (65,7%) participaram da testagem de sangue e 1.087 adultos maiores de 18 anos receberam a 1ª dose da vacina Astrazeneca pelo projeto de pesquisa PaqueTá Vacinada. Participaram do inquérito epidemiológico 3.013 pessoas, subdivididas em quatro grupos (Tabela 1).

Tab.1

Em julho de 2021 foi aprovado o uso da vacina da Pfizer em adolescentes, então foi feito novo evento de vacinação pelo projeto para esse público. Foram 307 vacinações realizadas num único dia em jovens de 12 a 17 anos.
Em agosto desse mesmo ano, houve novo momento de mobilização em um único dia para aplicação da 2ª dose tanto em adultos quanto em adolescentes, com as vacinas Astrazeneca e Pfizer, respectivamente, respeitando seus intervalos entre doses. Nessa segunda etapa da pesquisa, realizada num domingo (15/08/2021), foram vacinadas 1.249 pessoas.
A terceira etapa da pesquisa, que correspondia a testagem de sangue pós vacinação, foi realizada entre 13 e 25 de setembro de 2021, com chamada da população por grupos para cada dia, a fim de não tumultuar a unidade de saúde, único local onde foi realizada essa etapa. Por fim, o último momento do projeto, que previa a realização de segundo inquérito soro-epidemiológico após 6 meses de completude do esquema primário de vacinação contra COVID-19, coincidiu como nova onda da doença na cidade do Rio de Janeiro. Por conta disso, a quarta e última etapa da pesquisa precisou ser adiada e foi realizada somente no segundo final de semana de março de 2022 (sábado 12 e domingo 13), novamente em formato de evento de massa, com mobilização de equipe para coleta de dados epidemiológicos em formulário digital com uso de tablets, coleta de sangue e realização de teste rápido, além de recrutamento para o estudo BoostCovid-19. Neste segundo projeto de pesquisa, o participante recebia a 3ª dose de reforço contra COVID-19 de forma cega e randomizada, utilizando-se as vacinas Astrazeneca, Janssen ou Pfizer, logo após ter realizado uma coleta de sangue pré-vacinação. Por este motivo, foram combinadas num mesmo evento a última etapa do PaqueTÁ Vacinada com a primeira etapa do BoostCovid-19, de forma que o resultado da coleta de sangue de um fosse compartilhado com o outro, otimizando os procedimentos de ambos os estudos.

PaqueTÁ RECENSEADA - IBGE
O planejamento do pré-teste do Censo Demográfico (“PaqueTÁ RECENSEADA”) iniciou em 16 de agosto de 2021, quando as Diretorias do IBGE estiveram acompanhando uma das etapas de “PaqueTÁ VACINADA”. Esse momento serviu para mostrar que era possível com o uso de equipamento de proteção individual e com o apoio da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro a realização do pré-teste, com condições sanitárias controladas. Devemos lembrar que nesse período pandêmico, muitos servidores e colaboradores do IBGE ainda estavam desenvolvendo trabalho remoto.
O IBGE propôs a realização de uma operação censitária em formato de um Pré-Teste de Homologação de Equipamentos e Sistemas. O projeto foi desenhado visando à preparação para os testes que seriam depois realizados nas 27 Unidades Estaduais com formato similar, com data de início prevista para novembro de 2021 (IBGE, 2021a)(10).
Então, em meados de setembro de 2021, a cerimônia de abertura do Pré-Teste em Paquetá foi realizada nas dependências do Iate Clube. Nessa primeira etapa foi realizada a chamada “Pesquisa Urbanística do Entorno dos Domicílios” que identificou pontos de interesse geográficos em cada logradouro que, na sequência, seria recenseado, objetivando dar um panorama da infraestrutura urbana, considerando temas como acessibilidade, circulação, equipamentos públicos e meio ambiente.
A coleta de dados com os dois instrumentos do Censo (questionário básico e da amostra) foi realizada no período de outubro de 2021, utilizando dispositivos móveis de coleta (DMC) que são celulares com sistema Android que possuíam chip para transmissão de dados e possibilidade de marcação de pontos para georreferenciamento de cada logradouro. Em 16 de outubro de 2021, o IBGE apresentou os resultados à população paquetaense em evento realizado no Parque Dark de Mattos (IBGE, 2021b)(6). Posteriormente, ainda desenvolveu a Pesquisa de Pós-Enumeração (PPE), para avaliar a cobertura e a qualidade da coleta de dados do estudo censitário, finalizando ainda em outubro.

Tipologia de unidades e endereços cadastrados pelo IBGE no bairro da Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro
Antes de realizar a contagem populacional, metodologicamente, o IBGE classifica as unidades a serem visitadas segundo seis espécies: (1) domicílio particular permanente ocupado, (2) domicílio particular permanente vago, (3) domicílio particular permanente de uso ocasional, (4) domicílio coletivo sem morador, (5) domicílio coletivo com morador, (6) estabelecimentos.
Na atenção primária à saúde brasileira a contagem de pessoas para fins de agrupamento nas chamadas “microáreas” das equipes de saúde da família todas as seis espécies de unidades são computadas. Isso explica o motivo pelo qual, em geral, o número de pessoas cadastradas pelas eSF é sempre superior ao recenseado pelo IBGE. O órgão tipifica as unidades, porém para evitar dupla contagem em cada município, apenas totaliza para fins de “população-residente” os domicílios particulares permanentes ocupados [grifo nosso] em determinada data de referência.
No pré-teste do Censo-2022 na Ilha de Paquetá obtivemos resultados curiosos, uma vez que 24,2% das unidades visitadas pelos recenseadores eram de domicílios particulares permanentes de uso ocasional, os chamados, domicílios de “veranistas’, pessoas que, na metodologia do IBGE, não moram na Ilha, mas passam final de semana ou outros períodos curtos no bairro (Tabela 1).

Tab.1

Em seus inquéritos domiciliares e levantamentos censitários o IBGE utiliza o Cadastro Nacional de Endereços para fins estatísticos (CNEFE) como linha de base para o registro de todos os endereços que compõem cada setor censitário. A vantagem de se considerar esse Cadastro é que o mesmo, quando devidamente atualizado, permite georreferenciar cada endereço (logradouro), uma vez que as coordenadas geográficas estão disponíveis com numeração única para cada rua. Há ainda a possibilidade de se distinguir diferentes espécies de endereços: 1 – domicílio particular, 2 – domicílio coletivo, 3 - estabelecimento agropecuário, 4 - estabelecimento de ensino, 5 - estabelecimento de saúde, 6 - estabelecimento de outras finalidades, 7 - edificação em construção ou reforma, 8 - estabelecimento religioso.
Para a realização do pré-teste do Censo Demográfico de 2022, a Ilha de Paquetá registrava em 2021 um total de 2.345 endereços cadastrados em 12 setores censitários (Suplemento 1 – Mapa com os setores censitários, ScieloData), com grande concentração de endereços nos setores 3, 4, 5 e 13 que juntos representavam 56,3% do total de logradouros registrados no CNEFE. Como pontos de referência para cada setor, tinha-se: setor 2 - a Casa das Artes e a Escola Municipal Joaquim Manuel de Macedo; setor 3 - o Hospital Municipal Manoel Arthur Villaboim; setor 4 - Estação das Barcas; setor 5 – o Paquetá Esporte Clube (PEC); setor 6, a Praia das Gaivotas; setor 7 - Rua do Buraco; setor 8 - parte da Rua Comandante Guedes de Carvalho; setor 9 - Rua Manuel Luiz setor 10 - Igreja Universal do Reino de Deus; setor 11 - as pequenas ilhotas em torno do bairro de referência de abastecimento da Petrobrás; setor 12 - Creche-Escola Ataulpho de Paiva na Rua Cerqueira e por fim setor 13 - o Municipal Futebol Clube.

“PaqueTÁ RECENSEADA” – principais resultados
Os indicadores desse bairro e suas singularidades oferecem uma perspectiva interessante sobre o contexto socioeconômico e urbano dessa região insular (Tabela 2). Embora seja conhecida pelo ambiente bucólico e pela baixíssima circulação de veículos motorizados, a Ilha de Paquetá possui uma alta densidade demográfica de 2.970 habitantes por quilômetro quadrado, refletindo a presença de áreas mais adensadas e precarizadas que coexistem com o cenário tradicional da Ilha, o que sugere uma população concentrada em uma área limitada de apenas 1,71 km2. Essa diversidade social também pode explicar a disparidade entre o rendimento médio (R$ 3.613,47) e mediano (R$ 2.300,00) – ambos referenciados a setembro/2021 -, indicando uma concentração de renda e desigualdade econômica, com algumas pessoas ganhando consideravelmente mais que a maioria e uma parte da população vivendo em condições mais vulneráveis.
A infraestrutura urbana de Paquetá apresenta algumas lacunas, pois, embora 93,5% dos domicílios tenham acesso à rede geral de distribuição de água, apenas 81,7% utilizam essa rede como a principal forma de abastecimento, sugerindo que domicílios em determinadas áreas ainda dependem de fontes alternativas, como poços ou cisternas. A proporção de domicílios em vias com calçadas (89,2%) e árvores (72,8%) reflete um bom nível de infraestrutura para pedestres, contribuindo para a mobilidade segura e o bem-estar ambiental da Ilha, o que pode justificar, em parte, o perfil envelhecido da população em sua pirâmide etária (Figura 3), onde 31,6% têm 60 anos ou mais. A proporção de pessoas com menos de 18 anos é relativamente baixa (16,9%), o que pode estar ligado à migração de famílias jovens para fora da ilha ou a uma baixa taxa de natalidade. Em relação à drenagem, 70,8% dos domicílios estão localizados em vias com sistemas de escoamento, como bueiros e bocas de lobo, o que sugere uma boa cobertura em muitas áreas, com espaço para melhorias.

Tab.2

Fig.3

O paradoxo dos cadastros na APS para uso de dados censitários do IBGE
Ambas as pesquisas “PaqueTÁ VACINADA” e “PaqueTÁ RECENSEADA” trouxeram um intenso debate junto às equipes de saúde da família pela possível divergência entre os cadastros da atenção primária e a população recenseada pelo IBGE, pois os mesmos apresentavam diferenças relevantes. Daí surgiu um questionamento da equipe de coordenação da pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde. Ao mesmo tempo que um sistema de saúde de base universal deve cadastrar todas as pessoas de um domicílio para ter acesso aos serviços de saúde, quer sejam pessoas moradoras habituais, quer sejam pessoas que usam ocasionalmente o domicílio, a atenção primária à saúde (APS) não pode utilizar os dados censitários da população-residente do IBGE na estratificação dos bairros. É o que poderíamos chamar de “paradoxo dos cadastros na APS para uso de dados censitários do IBGE.”
Na APS, uma mesma pessoa é contada mais de uma vez se possuir residência ou frequentar mais de um domicílio. Para usá-los com rigor científico, há necessidade de utilização de fatores de correção para ajustar as diferenças para os domicílios de uso ocasional. Por exemplo, ponderar por sexo, faixa etária e bairro/subdistrito-IBGE. Outra possibilidade seria a criação de um campo novo “tipo de domicílio” nas fichas de cadastro individual (as antigas “Fichas A” das Equipes de Saúde da Família) para classificar o domicílio, e computar o total de pessoas nesse estrato. Isso tornaria possível o uso dos dados censitários com parâmetros minimamente confiáveis.
Dito de uma outra forma, suponha que em uma determinada data de referência de 2022 fossem somadas as populações dos bairros de um município com 100% de cadastros realizados pelas equipes de saúde da família. O total encontrado seria diferente daquele registrado pelo Censo 2022 do IBGE. Na APS são contabilizadas todas as pessoas que residem em domicílios ocupados de uso habitual ou ocasional; o IBGE não considera no cálculo populacional os moradores em domicílios de uso ocasional (os chamados “domicílios de veranistas”).

Desafios e perspectivas para o APS no SUS
A realização de duas pesquisas de forma integrada e subsequentes produziu sinergias positivas e grande aprendizagem para a atenção primária à saúde no SUS carioca. Com “PaqueTÁ VACINADA” a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro pôde planejar seu calendário vacinal para a covid-19 de forma a acelerar o processo de imunização de todo o município. Com “PaqueTÁ RECENSEADA”, o alerta de dupla contagem de pessoas cadastradas e acompanhadas pelas equipes de atenção primária à saúde permite um novo olhar para o planejamento das políticas públicas que deve passar a incluir o tipo de domicílio nos cadastros domiciliares realizados pelos agentes comunitários de saúde (as antigas “Fichas A”). Essa inclusão permitirá a comparação dos registros populacionais por bairro em cada cidade brasileira, minimizando o efeito do paradoxo dos cadastros na APS para uso de dados censitários do IBGE.
A divulgação dos primeiros resultados do Censo Demográfico de 2022 em junho de 2023 trouxe à luz um fato que poucos esperavam: a diminuição da população-residente no município do Rio de Janeiro, que perdeu, entre 2010 e 2022, cerca de 110 mil habitantes. Esse fato reforça a necessidade da urgente atualização das listas de usuários acompanhados em cada unidade de atenção primária pelas Equipes de Saúde da Família. Além disso, com a maior divulgação da Ilha de Paquetá em órgãos de imprensa na história do bairro, centenas de veículos da mídia impressa e digital reportaram o pré-teste de 2021 do Censo IBGE-2022 e com isso, ajudaram a movimentar e tornar mais conhecido o local. O Censo também apontou a necessidade de criação de mais duas divisões territoriais, isto é, a Ilha passou de 12 para 14 setores censitários pelo IBGE.
A Ilha de Paquetá é um bairro do município do Rio de Janeiro com características peculiares, já que possui um grande conjunto de domicílios para veraneio (domicílios de uso ocasional) o que caracteriza 24,2% das unidades recenseadas pelo IBGE. Além disso, um em cada três moradores em domicílios ocupados possui mais de 60 anos, o que também aponta a necessidade de se pensar as ações e serviços de saúde de forma integrada com outros setores da economia carioca. O maior desafio para uso do Cadastro Nacional de Endereços para fins estatísticos (CNEFE) é sua utilização na atenção primária e vigilância em saúde de Paquetá e quiçá do Brasil, integrando os setores censitários do IBGE com as microáreas das equipes de saúde da família na atenção primária à saúde.

Referências:
1Meira-Silva VST, Pinto LF. Inquéritos domiciliares nacionais de base populacional em saúde: uma revisão narrativa. Ciência & Saúde Coletiva 26 (9): 4045-4058, 2021. Disponível em: https://scielosp.org/pdf/csc/2021.v26n9/4045-4058/pt [acesso em 25 out 2024]

2Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico de 2000. Rio de Janeiro. Resultados do universo. Base de informações por setor censitário CD-ROM. Rio de Janeiro: IBGE; 2002.

3Pinto LF. Estratégias de integração e utilização de Bancos de Dados Nacionais para avaliação de Políticas de Saúde no Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006, 224 p. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/4373/ve_Luiz_Felipe_Pinto_ENSP_2006.pdf?sequence=2&isAllowed=y [acesso em 19 de outubro de 2024]

4Borges, G. A investigação da saúde nos censos demográficos do Brasil. OLAC, 2017. Disponível em: https://observatoriocensal.org/2017/01/31/a-investigacao-da-saude-nos- censos-demograficos-do-brasil/ [acesso em 20 de outubro 2024]

5Barreto ML, Ichihara MY, Pescarini JM, Ali MS, Borges GL, Fiaccone RL, Ribeiro-Silva RC, Teles CA, Almeida D, Sena S, Carreiro RP, Cabral L, Almeida BA, Barbosa GCG, Pita R, Barreto ME, Mendes AAF, Ramos DO, Brickley EB, Bispo N, Machado DB, Paixao ES, Rodrigues LC, Smeeth L. Cohort profile: the 100 million Brazilian cohort. Int J Epidemiol 2022; 51(2):e27-e38.

6Bartl W, Suter C, Veira-Ramos A. The Global Politics of Census Taking Quantifying Populations, Institutional Autonomy, Innovation. Routledge, Taylor & Francis Group. London and New York, 2024, 348p.

7Observatório Latino Americano de Censos de População (OLAC). Disponível em: https://observatoriocensal.org/ [acesso em 20 de outubro 2024]

8U.S. Census Bureau. The Census Project. Disponível em: https://thecensusproject.org/ [acesso em 20 de outubro 2024]

9Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Portal da Rede OTICS-RIO. Paquetá vacinada [Internet]. Disponível em: https://oticsrio.com.br/paqueta-vacinada/ [acesso em 25 out 2024].

10Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Lista de bairros e APs - Mapa [Internet]. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/5148142/4145881/ListadeBairroseAPs_Mapa. [acesso em: 25 de outubro de 2024].

11Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). IBGE divulga dados preliminares do teste do Censo na Ilha de Paquetá. Rio de Janeiro: Diretoria de Pesquisa, 2021b. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/31904-ibge-divulga-dados-preliminares-do-teste-do-censo-na-ilha-de-paqueta [acesso em 17 de junho de 2023]

12Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Departamento de Informática do SUS. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), 2021. Disponível em: http://cnes2.datasus.gov.br/Exibe_Ficha_Estabelecimento.asp?VCo_Unidade=3304552277301 [acesso em 04 de junho de 2021]

13Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Departamento de Informática do SUS. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), 2023. Disponível em: http://cnes2.datasus.gov.br/Exibe_Ficha_Estabelecimento.asp?VCo_Unidade=3304552277301 [acesso em 17 de junho de 2023]

14Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Estação OTICS Paquetá. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Saúde, 2024. Disponível em: https://paqueta.oticsrio.com.br/ [acesso em 15 outubro 2024]

15Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pré-Teste de Equipamentos e Sistemas do Censo Demográfico 2022 na Ilha de Paquetá – RJ. Rio de Janeiro: Diretoria de Pesquisas, 2021a. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/26434474e80fa115644299f434c439c7.pdf [acesso em 17 de junho de 2023]

16Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Prefeitura fará vacinação em massa na Ilha de Paquetá. Rio de Janeiro: Assessoria de Comunicação (ASCOM) / SMS, junho de 2021. Disponível em: https://coronavirus.rio/noticias/prefeitura-fara-vacinacao-em-massa-na-ilha-de-paqueta/ [acesso em 17 junho 2023]

17Cerbino-Neto J, Peres IT, Varela MC, Brandão LGP, de Matos JA, Pinto LF, da Costa MD, Garcia MHO, Soranz D, Maia MLS, Krieger MA, da Cunha RV, Camacho LAB, Ranzani O, Hamacher S, Bozza FA, Penna GO. Seroepidemiology of SARS-CoV-2 on a partially vaccinated island in Brazil: Determinants of infection and vaccine response. Front Public Health. 2022 Nov 14;10:1017337. doi: 10.3389/fpubh.2022.1017337

18Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pré-teste do Censo Demográfico do IBGE em outubro de 2021, Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro [Internet]. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/36abf3d5187c3682548a4659aa8df1e9.xlsx [acesso em 17 de junho de 2023].






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Pinto, L.F., Mott, C., Varela, M.C, Matos, J.A, Brandão, L.G.P, Costa, M.D. Paquetá vacinada e recenseada: estratégias e resultados da parceria entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em período pandêmico por covid-19. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/dez). [Citado em 27/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/paqueta-vacinada-e-recenseada-estrategias-e-resultados-da-parceria-entre-o-sistema-unico-de-saude-sus-e-o-instituto-brasileiro-de-geografia-e-estatistica-ibge-em-periodo-pandemico-por-covid19/19455?id=19455

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