1929/2011 - Pluralidade metodológica e interdisciplinaridade na pesquisa em serviços de saúde
Pluralidade metodológica e interdisciplinaridade na pesquisa em serviços de saúde
Autor:
• Mauro Serapioni - Serapioni, M. - Coimbra - Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra - <mauroserapioni@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5761-2660
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1. O primeiro diz respeito à relevância do artigo “Pesquisa Qualitativa em Saúde Coletiva: Panorama e desafios”, que discute um assunto bastante presente no debate nacional, ibero-americano e internacional. Concordo completamente com Maria Lúcia Bosi quando afirma que a “complexidade e multidimensionalidade do fenómeno saúde” requerem um desenvolvimento mais intenso do componente humano e que os estudos qualitativos apresentam-se, portanto, como uma perspectiva cada vez mais difundida no âmbito da saúde e da investigação nos serviços de saúde. Analisando a literatura internacional sobre o tema, principalmente a produção científica nos países de língua inglesa, pude observar a predominância do assunto e o elevado nível de reconhecimento da pesquisa qualitativa entre a comunidade académica e os principais atores do sistema de saúde.
Sem dúvida, a complexidade dos problemas que caracterizam os sistemas de saúde requer uma multiplicidade de métodos e perspectivas de análise para identificar e implementar soluções adequadas. Nesse sentido, um pluralismo metodológico baseado numa concepção integrada e multidisciplinar tornou-se fundamental no campo de estudo definido como “pesquisa em serviços de saúde” (Health Services Research), no qual, para além das ciências biomédicas e da epidemiologia, é imprescindível a contribuição das ciências sociais, não entendidas somente como economia e estatística, mas também como sociologia, antropologia e psicologia social, dentre outras disciplinas.
Há um amplo consenso de que os métodos qualitativos enriquecem o nosso conhecimento sobre saúde e organização dos cuidados de saúde e, ao mesmo tempo, melhoram a descrição e explicação de fenómenos complexos e emergentes. A abordagem qualitativa, tal como assinalam inúmeros estudiosos, possui uma perspectiva privilegiada para compreender os fenómenos dentro do seu próprio contexto e descobrir as ligações entre conceitos e comportamentos, permitindo aos investigadores gerar ou refinar as teorias e os marcos conceituais (Bradley et al. 2007). O crescente papel desempenhado pelos métodos qualitativos no campo da saúde reflete a necessidade de aprofundar o conhecimento do ambiente natural (naturalistic setting) dos fenómenos analisados, a importância de compreender o contexto das intervenções, a complexidade de introduzir inovações sociais, assim como a rapidez das mudanças tecnologicas e organizacionais no setor da saúde. Há uma ampla concordância sobre o fato de que as questões relativas à natureza, às percepções e ao significado da experiência de saúde e doença são melhor abordadas pelos estudos qualitativos que, entre outras qualidades, permitem também compreender a voz e a experiência dos que geralmente são poucos escutados nos serviços de saúde (Rundall et al., 1999).
A literatura analisada indica vários exemplos e campos de aplicação das abordagens qualitativas no âmbito dos sistemas de saúde. Podem ser proveitosamente aplicados para estudar a organização dos serviços de saúde; a cultura dos profissionais; a interação profissionais-paciente; a satisfação e as preferências dos usuários; o processo de tomada de decisão dos médicos; os valores determinados culturalmente; as crenças e os comportamentos sobre a saúde, entre outros. Além disso, a necessidade de novas abordagens nas práticas de saúde - em particular o desafio permanente de encontrar estratégias mais eficazes de promoção da saúde e prevenção de doenças - exige um conhecimento, individual e coletivo, profundo e mais contextualizado (Faltermaier, 1997). Da mesma forma, a perspectiva qualitativa é importante para identificar e analisar as desigualdades de saúde, que representam, em conjunto com a humanização e a integralidade, outra área crítica apontada também pela autora. De facto, as mais sofisticadas medidas estatísticas do fenómeno não podem proporcionar nenhum tipo de conhecimento da experiência dos grupos sociais envolvidos no processo de análise. Este tipo de análise sociológica precisa de métodos qualitativos, tais como histórias de vida, entrevistas não estruturadas, estudos etnográficos, etc. Os saberes leigos, na forma de narrativas da experiência das pessoas e das auto-perceções da própria saúde, oferecem uma grande contribuição para superar, quer a explicação simples e unidimensional do ‘fator de risco epidemiológico’, quer a incapacidade desta tradição de pesquisa em abranger toda a complexidade do processo social (Popay et al., 1998). Assim, uma abordagem metodológica mais abrangente proporcionaria uma melhor compreensão do contexto social e do comportamento individual, ambos geradores de desigualdades no campo da saúde.
2. No segundo tópico, pretendo abordar outro ponto analisado pela autora, a disputa qualitativo-quantitativo, tema sobre o qual já tive a oportunidade de refletir nesta mesma revista (Serapioni, 2000). As duas abordagens foram frequentemente apresentadas como adversárias numa batalha metodológica. Esta visão foi muitas vezes reforçada, destacando uma correspondente divisão na teoria social entre teóricos preocupados com a estrutura social e os interessados na compreensão da ação social ou do significado (Pope e Mays, 1995:43). Esta rígida divisão entre pesquisa qualitativa e quantitativa não incentivou a comunicação e a interação entre os dois campos; na pesquisa sobre serviços de saúde esta diferença, por muito tempo, foi sobrestimada e mal interpretada. Hoje em dia, a literatura sobre métodos de pesquisa e de avaliação já não é mais caracterizada pela aspereza e pelo estridente conflito entre as duas abordagens, tal como aconteceu nos anos 70 e 80. Em anos recentes o debate tem abrandado e assumido posições e tons menos radicais. Gradualmente emergiu o consenso de que o grande desafio é combinar de forma apropriada os métodos, as perguntas e as questões empíricas e não defender uma unica abordagem metodológica para todos os problemas. Nesse sentido, Patton (1999:1194) refere que “é importante observar que os dados qualitativos e quantitativos podem ser proveitosamente combinados quando eles elucidam aspectos complementares do mesmo fenómeno”. Logo, nesta orientação, o mesmo autor (1999:1194) apresenta um exemplo interessante: “o índice de gravidez das adolescentes poderia oferecer uma visão geral e generalizável, enquanto estudos de caso de algumas adolescentes grávidas, poderia iluminar as histórias por trás dos dados quantitativos”.
Dentro da sociologia há um crescente reconhecimento de que a distinção entre qualitativo e quantitativo gerou uma fratura desnecessária. Para o sociólogo português Santos (2003:26), por exemplo, a sociologia preocupa-se em demasia “com discussões teóricas estéreis como, por exemplo, a relação entre estrutura e ação ou entre a analise macro e a análise micro”. Para Santos a “verdadeira distinção e relação fundamental a fazer era entre ação conformista e ação rebelde”. O sociólogo italiano Ardigò (1988:288) põe em primeiro plano o “ambivalente ponto de vista do observador científico”, ao privilegiar, quer o sistema em prejuízo da pessoa, quer a pessoa sem preocupar-se com os aspectos sistémicos. É portanto criticável, observa o autor, tanto a interpretação da vida social baseada exclusivamente nas categorias relativas ao mundo da vida como a análise ‘funcionalista’ que enfatiza somente o sistema social ignorando os “limites do processo de objetivação” (Ardigò, 1988:288).
Em coerência com a análise de Ardigò sobre a responsabilidade do observador científico, o antropólogo mexicano Menéndez (2000:96) - preocupado em identificar os mecanismos de articulação entre estrutura e sujeito - assinala que a ênfase unilateral atribuída, quer à estrutura, quer ao sujeito, “obedece a objetivos específicos não sempre explicitados com os quais os estudiosos procuram evidenciar determinados aspectos da realidade”. Os resultados frequentemente dicotómicos da relação sujeito-estrutura são, portanto, o resultado de processos de interpretação de determinadas partes da realidade. Grande parte dos autores, pelo menos os mais lúcidos – sublinha Menéndez (7) – que tem afirmado a prioridade da estrutura ou do sujeito, não ignoram o papel de uma ou da outra, mas “simplesmente querem observar e interpretar apenas determinadas parcelas, funcionamentos, processos da realidade social”. Nesta mesma direção se inserem as análises de Bourdieu (2000:24) quando afirma que a “divisão entre teoria e metodologia constitui em oposição epistemológica uma oposição constitutiva da divisão social do trabalho científico num dado momento". O autor rejeita, portanto, esta divisão em duas instâncias separadas: “estou convencido de que não se pode reencontrar o concreto combinando duas abstrações” (Bourdieu, 2000:24).
3. O último tópico que gostaria rapidamente de abordar refere-se ao desafio de formar pesquisadores qualitativos na saúde coletiva. O texto traz com precisão um repertório de fatores que dificultam a produção de conhecimento nessa área e sugere linhas de desenvolvimento possíveis. Concordo inteiramente com a autora quando, também, chama a atenção para a “formação e a bagagem epistemológica” dos docentes. De facto, não é possível culpar somente a dominância do modelo biomédico e a sua abordagem quantitativa (embora não deixe de ter uma grande responsabilidade). Hoje em dia a maioria das agências internacionais reconhece que tanto a pesquisa qualitativa, como a quantitativa, têm o seu respectivo valor e contribuem para fortalecer o conhecimento, desde que rigorosamente realizadas. A comunidade de investigadores - as










