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0339/2006 - Processos de saúde e doença entre crianças institucionalizadas: uma visão ecológica.
Process of health and disease among institutionalized children: an ecological vision.

Autor:

• LÍLIA IÊDA CHAVES CAVALCANTE - Cavalcante, L.I.C - BELÉM, PARÁ - Universidade Federal do Pará, Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento. - <lilia.cavalcante@uol.com.br>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

Este artigo discute aspectos do processo de saúde e doença entre crianças assistidas em um abrigo infantil de Belém, entre 2004 a 2005. Os dados foram coletados em fontes documentais e por meio de entrevista com técnicos da instituição. De um total de 287 crianças, constatou-se que 49,47% apresentavam doenças, deficiências e lesões corporais quando do seu encaminhamento ao abrigo, que podem ser associadas à situação de pobreza e negligência familiar experimentadas desde o nascimento. Em relação ao período de permanência na instituição, verificou-se que as crianças contraíram doenças infecto-contagiosas (42,5%) e manifestaram problemas de ordem emocional (18,83%), que podem estar relacionados às características ambientais da instituição – proporção adulto/criança inadequada (1:8), superlotação do espaço (75/mês). Os resultados permitem concluir que a condição de saúde das crianças traduz as situações de privação material e emocional a que foram submetidas no convívio com a família e ao longo de sua permanência no abrigo. Nesses termos, os processos de saúde e doença são discutidos a partir de uma perspectiva ecológica, que reconhece fatores biológicos, sociais e culturais que constituem a família e o abrigo como contextos de desenvolvimento da criança institucionalizada.
Palavras-chave: criança institucionalizada; abrigo; saúde; doença; desenvolvimento infantil.

Abstract:

This article discusses aspects of health and disease among children attended in an child shelter of Belém, between 2004 to 2005. The data were collected in documental sources and through interview with technicians of the institution. Of a total of 287 children, it was verified that 49,47% presented diseases, deficiencies and bodily harms when of their direction to the shelter, that can be associated to the poverty situation and family negligence tried from the birth. In relation to the permanence period in the institution, it was verified that the children contracted infect-contagious diseases (42,5%) and they manifested problems of emotional order (18,83%), that can be related to the environmental characteristic of the institution - inadequate proportion adul/children (1:8), overcrowding of the space (75/month). The results allow to conclude that the condition of the children‘s health translates the situations of material and emotional privation the one that were submitted in the conviviality with the family and in the shelter. The processes of health and disease they are discussed starting from an ecological perspective, that recognizes biological, social and cultural factors that constitute the family and the shelter as development contexts of the child institutionalized.
Key words: institutionalized child; shelter; health; disease; infantile development.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO

Em 2004, estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA sobre a situação dos abrigos infanto-juvenis no país, constatou a existência de milhares de crianças que estão privadas dos cuidados parentais, distantes da família por longo período de tempo, configurando a chamada infância de risco1,2.
As razões que explicam esse fato provavelmente estão relacionadas ao agravamento de problemas estruturais da sociedade brasileira e aos desafios colocados às famílias na contemporaneidade, onde se inclui a reprodução intergeracional de um estilo parental permissivo, indiferente ou autoritário3, a incidência de acontecimentos estressantes como o desemprego crônico e a dissolução das relações conjugais4, a fragilidade da rede social de apoio no cumprimento das funções de sustento e educação dos filhos5.
Brazelton & Greenspan6 consideram que a infância representa um período especialmente favorável ao desenvolvimento de certas propriedades humanas. Para eles, quando a criança é submetida a situações de privação material e emocional severas, geradas ou não pela pobreza, esse potencial desenvolvimental pode não se realizar de maneira saudável e adequada, o que implica em riscos ao processo de estruturação da personalidade, à construção da sociabilidade e ao amadurecimento psicológico.
As experiências que se processam na infância têm um peso diferenciado no ciclo vital humano e apontam em que direção pode caminhar o desenvolvimento, o que aumenta a importância de pesquisas que tomem como objeto de estudo os contextos de desenvolvimento da criança desde o início da vida.
Nesses termos, o contexto envolve todos e cada um dos ambientes em que a criança está crescendo, aprendendo e se desenvolvendo como pessoa7. Desse modo, a definição de contexto não contempla apenas o lugar físico onde a criança está situada, mas refere-se a ela mesma como indivíduo e suas particularidades, às pessoas com as quais interage e que também participam desse ambiente, aos processos pelos quais constroem e mantém relações sociais.
De acordo com Bronfenbrenner8, o conceito de contexto de desenvolvimento engloba tanto as condições físicas onde a criança realiza o seu viver como a rede de relações que definem a qualidade da convivência social nesses espaços. Do ponto de vista ecológico, a família, a escola, a creche, o abrigo, entre outras instituições infantis, seriam contextos de desenvolvimento da criança na primeira infância.
De maneira geral, a família é considerada o primeiro e o principal contexto de desenvolvimento da criança, justamente porque tem obrigações e responsabilidades bem específicas ao longo da trajetória de socialização da criança. Desse modo, é dever dos pais cumprir funções de sustento, educação e assistência aos filhos, procurando colocá-los a salvo de qualquer forma de abandono, violência ou discriminação. Entretanto, a pobreza pode levar pais e outros cuidadores a falhar ou se omitir nessas tarefas. Nessas circunstâncias, a experiência da convivência familiar tende a se realizar em um contexto marcado por uma série de privações que são decisivas para o bem-estar físico e emocional da criança.
Em função disso, a investigação de aspectos relacionados ao processo de saúde e doença em ambientes coletivos de cuidado (como são os abrigos infantis, as creches e outras unidades de educação infantil), envolve necessariamente uma rede de elementos e significações que compõem os contextos de desenvolvimento da criança institucionalizada, propiciando a integração de fatores explicativos de natureza orgânica, física, interacional, social, econômica e ideológica9.
Neste trabalho, nos moldes em que propôs Bronfenbrenner8, privilegiou-se o modelo ecológico do desenvolvimento humano para a análise de questões relacionadas à saúde infantil, perspectiva teórica a partir da qual doenças, distúrbios e deficiências são reconhecidas como produto de uma conjunção de fatores que revela as múltiplas faces do ambiente físico e social onde a criança institucionalizada realiza o seu viver, assim como traduz os padrões de cuidado infantil que estão presentes na família e no abrigo como contextos específicos.
A análise dos processos de saúde/doença em ambiente de abrigo requer uma postura de crítica às concepções mais simplistas e menos abrangentes acerca dos fatores de proteção e risco colocados ao bem-estar físico e emocional nos primeiros anos da infância, uma vez que, mesmo tendo sido entregue aos cuidados de uma instituição e afastada de seus pais e/ou responsáveis, a criança institucionalizada possui um legado biológico, social e cultural, uma origem familiar que precisa ser considerada nesse processo.
A literatura mostra que crianças institucionalizadas são oriundas geralmente de famílias com renda, moradia e escolaridade precárias, ficando expostas muitas, por vezes desde o nascimento, a toda sorte de privações e maus-tratos nos primeiros seis anos de vida1,10.
Esses trabalhos indicam que a combinação explosiva entre pobreza, desagregação familiar e consumo abusivo de álcool e outras drogas por cuidadores primários, tende a deteriorar as condições gerais de vida da população infantil, criando condições propícias ao descumprimento pelos pais da atenção mais elementar devida aos filhos: assegurar proteção contra qualquer forma de abandono e violência.
Do ponto de vista da análise ecológica do desenvolvimento humano, contudo, não são apenas os fatores familiares que exercem influência direta sobre os processos de saúde/doença na primeira infância. Também a contínua e a longa permanência da criança em ambiente institucional pode se constituir em um importante fator de risco à saúde infantil, deixando-a particularmente vulnerável a doenças infecciosas e problemas dermatológicos, bem como à manifestação de diversos estados de depressão.
Em estudo sobre a questão, foi demonstrado que crianças na faixa-etária de 1 a 5 anos, que conviviam em ambiente de cuidado coletivo entre 12 e 50 horas por semana, apresentavam 3 a 5 vezes mais chance de manifestar pelo menos dois sintomas de infecção respiratória (tosse, coriza, temperatura axilar > 38ºC, dispnéia) do que as que haviam sido cuidadas em casa por seus familiares11.
No caso específico das crianças que fazem do abrigo seu local de moradia, os resultados acima permitem supor que quanto maior a quantidade de tempo passado sob os cuidado de uma instituição maior o nível de exposição a agentes patogênicos e situações de sofrimento psíquico.
No Brasil, a preocupação com a promoção da saúde em abrigos infantis encontra suas raízes nas medidas de higienização de instituições asilares e orfanatos deflagradas a partir do final do século XIX. Nesse contexto, a introdução de práticas inspiradas no discurso médico-higienista, valorizava a profilaxia de doenças físicas (prevenção de mortes por infecções e epidemias), o combate ao abandono moral (recolhimento de crianças que viviam em meio à mendicância, à criminalidade, à promiscuidade, ao vício) e a intervenção nas “chagas sociais” (conservação de infantes e nascituros enjeitados), segundo observam Costa12 e Trindade13.
Para esses autores, ao longo dos séculos, muitas crianças institucionalizadas têm sido condenadas a viver em lugares atingidos por epidemias ou endemias, que propiciam a disseminação de doenças causadas por bactérias, vírus e parasitas, além de freqüente descuido com a alimentação e a nutrição infantil.
Nos dias atuais, em que pese um melhor desempenho dos principais indicadores de saúde (mortalidade infantil, baixo peso ao nascimento, óbitos por doenças chamadas evitáveis), tanto na sociedade como quanto no interior das instituições, ainda são elevados os números de internações hospitalares e óbitos por infecções diarréicas e respiratórias.
Rutília14 investigou a incidência de desnutrição e doenças infecciosas entre crianças que foram internadas na Fundação Estadual do Menor (FEEM), no Rio de Janeiro. O objetivo de seu estudo era discutir, a partir de aspectos biológicos, ecológicos, culturais e sócio-econômicos, o estado geral de saúde e a incidência de doenças entre crianças institucionalizadas. A equipe procedeu a estudo minucioso de 38 casos de crianças falecidas no período de 1986 a 1988, na FEEM. O autor concluiu que os casos de desnutrição e infecção traduziram bem a combinação de fatores biológicos, afetivos e sociais relacionados ao desenvolvimento da criança institucionalizada, ou seja, permitiram pensar a relação entre o indivíduo e o meio ambiente como um amplo e dinâmico sistema ecológico, ainda que essa investigação tenha sido prejudicada pela ausência de dados mais precisos sobre a qualidade do ambiente físico e social, antes e durante a permanência na instituição.
A partir de meados do século XX, pesquisas chamam a atenção do mundo e da comunidade científica quanto aos efeitos da institucionalização precoce e prolongada para a saúde mental, na medida em que a longa exposição da criança ao cuidado compartilhado e coletivizado cria condições favoráveis à manifestação de distúrbios psicológicos e outras formas de sofrimento psíquico15,16,17,8.
Para esses pesquisadores, em qualquer idade, a institucionalização é descrita como uma experiência humana difícil sob vários aspectos. Entretanto, nos primeiros anos de vida, as seqüelas emocionais, sócio-afetivas, são tidas como mais graves, porque a criança é afastada do seu ambiente natural, é levada a conviver de modo intenso com pessoas e situações estranhas, é privada de atenção exclusiva e atendimento individualizado.
O presente trabalho tem por objetivo colocar em discussão um conjunto de dados sobre a saúde de 287 crianças que foram acolhidas e cuidadas em um abrigo infantil situado na Região Metropolitana de Belém, a partir da análise integrada de descritores relacionados às condições gerais do nascimento e vida em família, às doenças mais freqüentes e às situações de sofrimento físico e emocional a partir do ingresso na instituição.
A análise de cada uma das variáveis propostas permite compreender aspectos particulares da saúde dessa população e reconhecer pontos de intersecção entre as condições gerais de nascimento e convivência na família de origem e as características ambientais que são próprias do modo de vida em instituições de cuidado infantil. Para tanto, privilegia-se, neste estudo, a compreensão ecológica dos processos de saúde e doença em ambiente coletivo de cuidado infantil, assim como a análise da conjunção de fatores que delimitam as circunstâncias de risco à saúde experimentadas pelas crianças, seja no contexto familiar seja no ambiente institucional.

MÉTODO

Informantes
Uma equipe formada por 5 profissionais, todos funcionários do abrigo há pelo menos dois anos, sendo 2 assistentes sociais, 1 psicóloga, 1 pedagoga e 1 enfermeira, forneceram informações relativas a 287 crianças que foram acolhidas em uma instituição de abrigo, entre os anos de 2004 e 2005.

Ambiente
A instituição pesquisada é considerada o maior abrigo infantil do Estado do Pará e está situada na Região Metropolitana de Belém. Desde sua fundação, em 1993, a instituição é responsável pelo acolhimento de crianças, na faixa etária de 0 a 6 anos, em situação de risco social e pessoal, conforme define o Estatuto da Criança e do Adolescente. A média de atendimento por mês gira em torno de 75 abrigados, ainda que tantas vezes chegue a acolher até 90 crianças.

Instrumento e Materiais
Foi utilizado um formulário elaborado com base em estudo anterior sobre a condição psicossocial de crianças que viviam em abrigos e instituições similares desenvolvido por Weber e Kossobudzki18. Nesse sentido, foram suprimidas, alteradas ou incluídas novas perguntas, adequando o instrumento às particularidades do universo empírico presentes neste estudo.
O instrumento foi composto majoritariamente por perguntas estruturadas e com múltiplas alternativas de resposta, organizadas em torno dos seguintes eixos: identificação pessoal (10 itens), estrutura familiar (19 itens), histórico de institucionalização (30 itens), situação sócio-jurídica atual (19 itens) e saúde da criança (16 itens), sendo este último objeto de análise deste trabalho.
A consulta foi feita diretamente em fontes documentais (relatórios, pareceres, laudos, prontuários, certidões), assim como por meio de entrevista semi-estruturada com profissionais dispostos a colaborar com informações sobre aspectos relevantes da trajetória de encaminhamento, acolhimento e cuidado de cada uma das crianças pela instituição.
Nessa fase da pesquisa, é interessante destacar a consulta aos seguintes documentos: Estudo Social (dados sobre a composição familiar, condições de moradia, perfil dos pais e/ou responsáveis), Declaração de Nascidos Vivos (informações sobre a gestação, a parturiente, o parto, as características do recém-nascido), Prontuário Médico (anotações sobre condição geral de saúde ao ingresso no abrigo e ao longo da sua permanência) e Termo de Encaminhamento do Conselho Tutelar (relatos sobre a condição sócio-jurídica da criança).

Procedimento
O estudo teve início com o pedido de autorização ao titular da Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado do Pará para a realização da pesquisa nas dependências da instituição selecionada, no sentido de favorecer o acesso aos profissionais e aos documentos que registravam aspectos da história de vida e condição sócio-jurídica dos abrigados. Também a proposta de estudo foi submetida à apreciação do Comitê de Ética para Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal do Pará, cuja aprovação foi feita sem restrições ou recomendações especiais.
No abrigo foram feitos contatos iniciais e reunião com a equipe técnica para apresentar os objetivos e o método da pesquisa e motivar a colaboração de todos com as informações e os esclarecimentos necessários.
Após essa reunião, foi realizada a seleção do material a ser utilizado pela pesquisa a partir de critérios como legitimidade (priorizou-se documentos oficiais) e confiabilidade (rejeitou-se certidões com rasuras ou ilegíveis e anotações informais). Esse procedimento assegurou a formação de uma base de dados com boa margem de fidedignidade, na medida em que a possibilidade de comparar registros disponíveis em mais de uma fonte permitiu aos pesquisadores identificar lacunas e contornar problemas esperados, como a dispersão de dados e a imprecisão de informações contidas em relatórios elaborados por técnicos da instituição.
Na medida em que os documentos eram examinados, as informações foram registradas em um formulário elaborado especificamente para esse fim. Em seguida foi feita a consulta a membros da equipe técnica do abrigo no sentido de complementar e/ou validar as informações solicitadas por meio de entrevista.
A definição das variáveis, categorias e unidades de análise utilizadas neste estudo orientou a transcrição e a organização dos dados e posteriormente o tratamento estatístico desse material por meio de planilhas eletrônicas, construídas pelo programa Excel, da Microsoft. Ao final, o sistema de apresentação dos resultados obtidos foi estruturado em torno das seguintes unidades de análise: tipo de parto, prematuridade, peso ao nascer, aleitamento materno, distúrbios no desenvolvimento, deficiência, lesão corporal e doenças apresentadas à entrada no abrigo, problemas de saúde registrados durante a sua permanência no espaço, bem como dificuldades de adaptação à vida institucional.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
De início, é oportuno registrar que a ausência de informações precisas sobre aspectos investigados foi uma constante ao longo de todo o processo de coleta de dados. Entretanto, essa dificuldade foi mais sentida em relação às seguintes variáveis: características do parto, aleitamento materno, cobertura vacinal e indicadores do crescimento físico da criança.
No cômputo geral, foram analisados 287 casos de crianças acolhidas pela instituição, porém, cabe salientar que em algumas situações não havia informações pormenorizadas sobre a origem familiar e a condição de saúde da população de abrigados. É o caso, por exemplo, das crianças abandonadas ainda na maternidade e que a instituição não dispunha de referências claras quanto à identidade de pais biológicos. Ou ainda, nas situações em que o período de abrigamento não ultrapassou a marca das 72 horas, fato que costuma deixar profissionais e autoridades bem à vontade para registrar apenas as informações que consideram indispensáveis à conclusão do ciclo de atendimento.
De qualquer modo, como nem sempre as informações desejadas estavam disponíveis para consulta e exame, os procedimentos da pesquisa precisaram ser alterados e os percentuais relativos a cada categoria tomaram como referência apenas o número de crianças que dispunham de registros atualizados e seguros em seus prontuários e/ou demais documentos apresentados pela instituição.
Essa é a situação dos resultados que descrevem a freqüência de variáveis relacionadas às condições em que ocorreu a gestação e o nascimento das crianças envolvidas na pesquisa. Os resultados obtidos permitem concluir que no universo dos casos analisados (n = 41), a maioria das crianças nasceu por meio de parto normal (70,73%), ainda que o percentual relativo a parto operatório tenha sido significativo (29,27%). Já em relação à incidência de prematuridade nessa população, em 45,72% dos casos levantados (n = 35) havia registro de parto pré-termo (a criança nascera antes de completar 37 semanas de gestação), embora 54,28% desse total representem nascimentos havidos no período considerado a termo (entre 37 e 41 semanas).
Entre os casos que apresentavam alguma informação sobre intercorrências havidas no parto (n = 32), em 43,75% desse total existia o registro de situações que colocaram em risco a vida e o estado geral de saúde da criança quando recém-nascida: icterícia e infecção neonatal, desconforto respiratório, sífilis congênita, entre outras síndromes não especificadas nos registros oficiais.
No que se refere ao peso à hora do nascimento, os resultados obtidos indicam que 40,62% do total considerado (n = 32), pesavam menos de 2.500g. Esse dado é importante porque a prematuridade e o baixo peso têm sido reconhecidos como fatores de risco para situações de abandono de bebês e negligência familiar. A permanência de crianças nos primeiros dias e meses de vida em instituições de abrigo ainda é justificada muitas vezes em razão de fatores biológicos. Nas situações em que o bebê nasce de parto considerado pré-termo e com baixo peso, os cuidados com a sua saúde precisam ser redobrados e nem sempre os pais e demais familiares estão preparados para assumir essa responsabilidade, como analisa Motta19.
No que tange ao número de crianças que não foram alimentadas com leite materno, esse percentual representa 54,05% do total de casos em que essa informação estava disponível (n = 37). Isso significa que na maioria das vezes não havia qualquer anotação a respeito da questão, mesmo em situações nas quais a criança estava sob os cuidados da instituição desde os primeiros dias e meses de vida.
Este estudo levantou também a incidência de crianças portadoras de necessidades especiais. Em 91,45% do total de casos analisados (n = 199), não foram encontrados registros de qualquer tipo de distúrbio no processo de desenvolvimento da fala ou limitações de ordem auditiva ou visual. Contudo, em 8,02% dos casos as crianças apresentavam distúrbios diversos, ora relacionados à fala e à linguagem (4,51%) ora à perda da capacidade visual motivada por estrabismo, baixa visão e retinopatia (3,51%).
Quanto ao número de crianças portadoras de algum tipo de deficiência, constatou-se que no universo considerado (n = 199), cerca de 93,96% não possuem comprometimento intelectual e/ou limitações do comportamento adaptativo que tenham resultado em prejuízos à independência na locomoção, à aquisição de habilidades sociais, ao desempenho acadêmico, como entendem Papalia e Olds20. Por seu turno, verificou-se que, nesse mesmo universo, 5,02% das crianças são portadoras de deficiências que afetaram em diferentes níveis o seu desenvolvimento psicomotor. Esse percentual foi organizado em torno de duas categorias: paralisia de membros ou partes do corpo, com movimentos limitados e/ou rígidos (3,01%) e limitações múltiplas decorrentes de doenças congênitas como a hidrocefalia (2,01%).
O estudo também investigou as evidências empíricas de uma realidade não menos preocupante à saúde infantil – física e mental. Os resultados obtidos revelam que 7,66% das 287 crianças ao darem entrada na instituição traziam consigo as marcas visíveis da violência intrafamiliar: hematomas (inchaços, áreas escurecidas e intumescida por sangue extravasado), ferimentos (arranhões, cortes, ulcerações, cicatrizes), queimaduras (feridas nas mãos e outras partes do corpo), manipulação de órgãos dos genitais. Nesses casos, é preciso esclarecer que as evidências de maus-tratos foram registradas por profissionais de saúde que após procederem à avaliação geral do estado físico e emocional da criança, constataram a presença de vários tipos de lesões no rosto e outras partes do corpo.
Nesse contexto, é importante ressaltar que, em 92,33% não havia o registro claro de que a criança apresentava qualquer tipo de lesão corporal quando da sua chegada ao abrigo, ou seja, não foram observadas lesões graves ou superficiais na superfície da pele e couro cabeludo. No entanto, 7,67% apresentavam algum tipo de lesão física, como mostra a tabela abaixo.
Inserir Tabela 1

Os resultados acima indicam que crianças ainda são afastadas do convívio com seus pais e/ou responsáveis por motivo tão antigo quanto atual: o uso da punição física pela família como mecanismo disciplinar. Por isso, fatos dessa natureza têm preocupado especialistas em saúde infantil do mundo inteiro, já que os castigos físicos corriqueiros têm se constituído na porta de entrada para formas mais severas de agressão física às crianças, que podem resultar em mortes, mutilações, doenças, incapacidades físicas e mentais.
Com relação ao número de crianças que já apresentavam graves problemas de saúde no momento em que foram encaminhadas ao abrigo, ora doenças congênitas (cardiopatias, hidrocefalias), ora adquiridas no período de convivência com a família (doenças infecciosas, verminoses, viroses), observa-se que representam quase a metade da população considerada. Isso significa que 49,47% das crianças apresentavam algum problema de saúde (doença, síndrome, deficiência ou alteração nutricional) no exato momento em que davam entrada na instituição. Entre as demais, constatou-se que essa informação não estava disponível (41,82%) ou mesmo havia o registro que criança apresentava boas condições de saúde (8,71%).
A tabela 2 mostra que as doenças com maior incidência entre as crianças foram escabiose (19,51%), gripe/resfriado (10,80%), desnutrição (10,45%), dermatite (8,01%), anemia (5,57%) e pediculose (4,18%). Para esses cálculos, considerou-se o número de menções à doença nos registros institucionais, ora citada de modo exclusivo ou associada a outras moléstias.
Inserir Tabela 2

Os resultados apresentados permitem afirmar que os problemas de saúde mais freqüentes entre as crianças no momento em que deram entrada na instituição são justamente aqueles relacionados às condições adversas impostas pela condição de pobreza e à qualidade do cuidado que lhes foi oferecido desde o nascimento, onde se inclui a alimentação insuficiente e/ou inadequada à idade, a desatenção com a higiene corporal e ambiental, o desmame precoce, o descumprimento dos programas de imunização.
Por sua vez, quando se procede à análise dos dados referentes à incidência dessas e de outras doenças na população selecionada, constata-se que 42,51% do número total de crianças com participação na pesquisa apresentaram problemas de saúde diversos ao longo da sua permanência no abrigo. Entretanto, torna-se importante ressaltar que esse percentual pode ser inclusive maior, uma vez que em muitos casos essa informação simplesmente não estava disponível para consulta (48,78%), na medida em que as anotações sobre o quadro geral de saúde costumam ser eliminadas tão logo ocorra o retorno da criança ao convívio com seus pais, ou mesmo, a sua adoção por outra família. Há também um percentual de crianças que declaradamente não apresentou nenhum problema de saúde no período em que durou o seu acolhimento pela instituição (8,71%).
Inserir Tabela 3
A partir da análise dos dados coletados observou-se que entre as doenças que foram citadas um maior número vezes nos registros oficiais, encontram-se a gripe/resfriado (32,40%), a diarréia (12,54%), a bronquite/asma (6,62%), a pneumonia (5,22%), a escabiose (4,52%) e a otite (3,83%).
Pelo exposto, verifica-se que, ao contrário dos problemas de saúde remanescentes do período de convivência da criança em ambiente familiar, quase sempre relacionados à má nutrição e à falta de higiene dos cuidadores primários21, as doenças infecciosas e/ou transmitidas por contato foram os males mais comuns entre os abrigados, provavelmente em razão do convívio intenso em grupos de pares e à completa ausência de espaço individualizado na instituição. A elevada incidência de doenças infecto-contagiosas nessa população pode estar relacionada às privações típicas da convivência em ambientes institucionais, onde o cuidado infantil é coletivo e há compartilhamento contínuo de ambientes e objetos pessoais (louças, roupas, brinquedos, toalhas, material de higiene, entre outros)7,22.
Entre os resultados obtidos, verificou-se ainda que o distanciamento da família e permanência no abrigo, mesmo quando não prolongada, com freqüência provocou em várias crianças uma série de alterações em seu estado físico e emocional (humor, sono, apetite, concentração, atividade), sobretudo no período imediatamente posterior ao seu ingresso na instituição.
A tabela 4 mostra que 18,83% das crianças esboçaram diferentes formas de reação às situações novas e estranhas que lhes foram apresentadas no ambiente institucional. Entre as situações mais comuns, 8,71% correspondem a episódios de choro intenso e/ou contínuo, 5,92% referem-se a comportamento agressivo da criança em relação a seus cuidadores e pares, 6,95% dizem respeito a atitudes que expressam retraimento social e/ou timidez excessiva.

Inserir Tabela 4

Nesse contexto, é importante registrar que 81,17% dos casos analisados não havia registro de alterações de ordem física e emocional no estado geral da criança recém-abrigada. Em outras palavras, a maioria das crianças não apresentou alterações graves no humor, na qualidade do sono, nos níveis de repouso e atividade, nos processos de sociabilidade ao longo do período de habituação ao ambiente físico e social da instituição.


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Citar

Cavalcante, L.I.C. Processos de saúde e doença entre crianças institucionalizadas: uma visão ecológica.. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2007/jul). [Citado em 08/12/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/processos-de-saude-e-doenca-entre-criancas-institucionalizadas-uma-visao-ecologica/897

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