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0084/2025 - Quinze anos da Reforma dos Cuidados em Atenção Primária à Saúde (RCAPS) no município do Rio de Janeiro, Brasil
Fifteen years of the Primary Health Care Reform (RCAPS) in Rio de Janeiro, Brazil

Autor:

• Luiz Felipe Pinto - Pinto, L.F - <felipepinto.rio@medicina.ufrj.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9888-606X

Coautor(es):

• Ana Luiza Ferreira Rodrigues Caldas - Caldas, A. L. F. R. - <analuizarcaldas@gmail.com>



Resumo:

Quinze anos da Reforma dos Cuidados em Atenção Primária à Saúde (RCAPS) no município do Rio de Janeiro, Brasil
O Rio de Janeiro transformou-se em um paradigma para a Atenção Primária à Saúde (APS) brasileira. Como a cidade, que até 2008 era a capital do país com menor cobertura de equipes completas da Estratégia Saúde da Família, com 3,5% de sua população, conseguiu dar acesso a mais de 70% dos cariocas em 2024? Analisamos os principais eixos e resultados da RCAPS em uma trajetória de 15 anos, com inspiração nos cuidados primários de Lisboa, Portugal. Nessa trajetória são debatidos limites, desafios e avanços. Entre esses últimos, destacam-se as mudanças do organograma organizacional, do modelo de gestão, da atenção à saúde por resultados, e o fortalecimento da APS como ordenadora da rede e coordenadora do cuidado. Demonstra-se a viabilidade da RCAPS para uma grande cidade, apontando como limites, (i) a necessidade de reorganização dos processos de educação permanente, (ii) a melhoria da comunicação com a população usuária do SUS e, (iii) a insuficiência do financiamento tripartite, especialmente do Governo Estadual. A Saúde Digital como eixo para melhoria da comunicação, da ampliação do acesso e maior resolutividade consolida-se hoje como o maior desafio da gestão.

Palavras-chave:

atenção primária à saúde; avaliação em saúde; atributos da atenção primária; Rio de Janeiro.

Abstract:

Rio de Janeiro has become a paradigm for Brazilian Primary Health Care (PHC). How did the city, which until 2008 was the capital of the country with the lowest coverage of complete Family Health Strategy teams, with 3.5% of its population, manage to give access to more than 70% of cariocas by 2024? We analyze the main axes and results of the RCAPS in a 15-year trajectory, inspired by primary care in Lisbon, Portugal. Limits, challenges and advances are discussed. Among the latter, we highlight the changes in the organizational chart, the management model, health care by results, and the strengthening of PHC as a network organizer and care coordinator. The feasibility of RCAPS for a large city is demonstrated, with the following limitations: (i) the need to reorganize continuing education processes, (ii) improved communication with the SUS user population and (iii) insufficient tripartite funding, especiallythe state government. Digital Health as an axis for improving communication, expanding access and greater resolutiveness is today consolidated as management's greatest challenge.

Keywords:

primary health care; health evaluation; primary care attributes; Rio de Janeiro.

Conteúdo:

Introdução
Na cidade do Rio de Janeiro, o então “Programa de Saúde da Família” criado em 1994 no Nordeste brasileiro, encontrou um cenário desolador: foram implantadas de maneira residual algumas equipes pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS-RJ), iniciando pelo pioneirismo na Ilha de Paquetá em 1995 e, pontualmente outras equipes nas comunidades do Borel (Tijuca), Parque Royal (Ilha do Governador), Canal do Anil (Jacarepaguá), Vila Canoas (São Conrado) e Vilar Carioca (Campo Grande)1. Essa conformação pouco mudou até 2008, ano em que se registrava uma cobertura estimada populacional de apenas 3,5%, a mais baixa entre as capitais do país.
Desde 2009, contudo, a Reforma dos Cuidados em Atenção Primária à Saúde (RCAPS) trouxe inovação e um novo modelo de gestão para a saúde pública carioca. Progressivamente, o acesso aos serviços da Atenção Primária à Saúde (APS) cresceu, atingindo cerca de 70% da população em dezembro/2016, quando então reduziu-se para 40% no período de 2017-2020. A partir de 2021, em plena pandemia por Covid-19, a Prefeitura do Rio de Janeiro voltou a priorizar a APS, retomando novamente a cobertura de cerca de 70% dos cariocas, que em 2024 voltaram a ter suas equipes de Saúde da Família completas, com uma média de cinco a seis agentes comunitários de saúde (ACS) por equipe.
Importante resgatar que, em 2008, o município do Rio de Janeiro, entre todas as capitais do país, possuía, conforme o Sistema de Orçamento Público em Saúde (Siops), o menor financiamento público municipal2. Em dezembro desse mesmo ano, a cobertura de equipes completas de Saúde da Família na cidade era de 3,5% de sua população, a mais baixa entre as capitais brasileiras, como por exemplo, São Paulo (26,6%), Belo Horizonte (71,5%), Porto Alegre (22,3%) e Curitiba (32,6%)3,4.
Quando se compara a cidade do Rio de Janeiro com as demais capitais do País e com a situação anterior do próprio município, conforme aponta o Ministério da Saúde, entre 2005 e 2012, do total de 1.644 novas equipes de Saúde da Família criadas no Brasil, 638 (38,8%) ocorreram na cidade do Rio de Janeiro5.
Em 2022, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cidade carioca possui 165 bairros, agrupados em 33 Regiões Administrativas (RA) e dez Áreas de Planejamento (AP) pela Secretaria Municipal de Saúde. Essas áreas possuem responsabilidade sanitária territorial, apresentando-se como: AP 1.0 (Centro e adjacências), 2.1 (Zona Sul), 2.2 (Grande Tijuca), 3.1 (Região da Leopoldina), 3.2 (Grande Méier), 3.3 (Região de Madureira e adjacências), 4.0 (Região de Jacarepaguá e adjacências), 5.1 (Região de Bangu e adjacências), 5.2 (Região de Campo Grande e adjacências), 5.3 (Região de Santa Cruz e adjacências) (Material Suplementar 1, disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata.PNW6YL).
Resgatando a história, em meados de 2009 o bairro de Santa Cruz – zona oeste da cidade, distante 62 km do Centro Administrativo da Prefeitura (que na verdade fica geograficamente na região leste do município) – foi selecionado e marcou o lançamento do Programa intitulado “Saúde Presente”, que visou promover a articulação entre os serviços de saúde e entre estes e a população, garantindo o comando único da gestão municipal e o estreitamento dos vínculos, a partir da Estratégia Saúde Família (ESF) em rede, projetada regionalmente, como “Territórios Integrados em Atenção à Saúde” (Teias), na busca de superar a fragmentação dos cuidados em saúde4.
Nesta perspectiva, a ESF passou a ter novos recursos de investimentos e custeio para a expansão programada até 2012, da ordem de 35%. Nas palavras do Plano Estratégico da Prefeitura para o período de 2009-2013, a meta era ampliar dez vezes a cobertura populacional da Estratégia Saúde da Família5. Além deste Plano Estratégico, também o Plano Municipal de Saúde para o mesmo período6,7, contribuiu para o planejamento da expansão dos serviços da APS do Sistema Único de Saúde (SUS) na cidade, tomando por base os princípios descritos por diversos autores5,8 e considerando cada AP e um ritmo de ampliação de acesso para cada bairro da cidade.
“A cidade é bastante heterogênea, apresentando diferentes graus de desenvolvimento em suas regiões, com a consequente desigualdade na distribuição e utilização dos recursos disponíveis, inclusive dos serviços de saúde. Indicadores de condições de vida de uma população, quando aplicados na Cidade do Rio de Janeiro, apontam grandes variações entre áreas às vezes bem próximas, pois devido à sua situação geográfica peculiar, havendo assentamentos muito pobres, principalmente nas encostas das montanhas, ao lado dos setores mais ricos da população. (...) O crescimento desordenado da cidade é um dos fatores que têm impacto direto no setor saúde, tanto pelo aumento vertiginoso da violência urbana, quanto pela dificuldade de acesso de parte da população aos serviços públicos de saúde6.”
Os gestores municipais cariocas dos períodos 2009-2012, 2013-2016, 2021-2024, elencaram a APS formada pelas equipes que compõem a ESF para ser a base da RCAPS. O argumento principal era que para além do cofinanciamento federal, diversas cidades do Brasil e do mundo, já vinham desenvolvendo este modelo com resultados expressivos na melhoria da qualidade de vida de suas populações. As mudanças propostas passaram pelas alterações nas estruturas organizacionais, administrativas e nos atributos do modelo de atenção à saúde4.
Após quinze anos da expansão do acesso aos serviços da APS, é possível descrever alguns resultados obtidos. O objetivo deste artigo é analisar a experiência carioca na implementação de uma política pública orientada à Reforma dos Cuidados em Atenção Primária à Saúde no período de 2008 a 2024.
Aspectos Metodológicos
Como arcabouço metodológico, utilizou-se o estudo de caso que, conforme Hartz9, é indicado sempre que se intenciona analisar um conjunto de relações existentes entre diferentes variáveis necessárias à compreensão de um fenômeno complexo, em uma situação que o pesquisador tem pouco controle sobre os acontecimentos, tal qual vislumbra-se quando se avaliam políticas públicas planejadas x realizadas.
Para isso, realizou-se análise documental7,11,12 e levantamento de dados primários e secundários no período compreendido entre 2008 e 20245,12,13. Optou-se pela escolha de um período temporal, que aqui chamaremos de “eixos”, para permitir a comparação de diferentes ciclos da gestão municipal. O ano de 2008 encerra um ciclo de gestão municipal (2005-2008) pré-reforma, e os anos (2009-2012), (2013-2016), (2017-2020), (2021-2024) representam períodos de quatro anos com novas diretrizes para a SMS-RJ. Destaca-se ainda o fato de que os anos de 2013 e 2025 representam a continuidade da gestão anterior com o mesmo grupo político no comando da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

Resultados
Como forma de planejar o primeiro ciclo da gestão (2009-2012), a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro divulgou desde o início um conjunto de eixos e linhas condutoras pelos quais objetivava trilhar. Dessa forma, a transparência e os movimentos que geraram a RCAPS foram bem delineados e executados em toda a cidade, começando por dar maior credibilidade à atenção primária a partir da estratégia de saúde da família. Mas não qualquer atenção primária. Desde o início da caminhada, todas as ações tinham como referência criar e desenvolver os atributos da APS enunciados anteriormente. A velocidade de implementação nesse período inicial foi também determinante para garantir os recursos orçamentários para os períodos seguintes. Todas as áreas da cidade tiveram seus editais de chamamento público para apoio à gestão das equipes de saúde da família publicados ainda em 2009.
Eixos e linhas estratégicas da Reforma dos Cuidados em Atenção Primária à Saúde (RCAPS)
Podemos dividir didaticamente a RCAPS em linhas estratégicas tal como proposto pela SMS-RJ, para cada uma de suas fases. Cada linha/atividade tem um marco inicial em determinado ano, e se desenvolve e consolida nos períodos seguintes. O primeiro eixo da RCAPS, definida para o primeiro ciclo da gestão 2009-2012, realizou um diagnóstico situacional ainda no governo de transição entre outubro e dezembro de 2008. Um dos achados à época foi a constatação de equipes incompletas, sem médicos, isto é, efetivamente em trabalho de campo realizado pela equipe de transição da saúde nas poucas unidades de saúde existentes, havia apenas 63 equipes de Saúde da Família (eSF) completas, o equivalente a 3,5% de cobertura estimada de cariocas pela APS, divergente do que era informado no Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (SCNES), que à época não era devidamente atualizado pelas unidades de saúde.
Essa fase inicial correspondeu à transformação radical e mudança dos modelos organizacionais e administrativos, com a posterior extinção de centenas de cargos de confiança e reestruturação do novo organograma da SMS-RJ, com a criação da Subsecretaria de Promoção, Atenção Primária e Vigilância em Saúde (SUBPAV). Também marcou o início da ampliação do acesso aos serviços públicos de saúde com a criação da primeira Clínica da Família no bairro de Padre Miguel, em 14 de novembro de 2009, que inovou com a implantação da governança clínica e do apoio do prontuário eletrônico do paciente, adaptados a partir daqueles utilizados pelos cuidados primários de saúde em Portugal14,15. Não obstante, iniciou-se também a implantação da gestão do conhecimento, com a criação de cursos técnicos, de especialização, fomento e criação da área de concentração da APS em mestrado profissional da Fiocruz – que em 2024 conquistou o doutorado profissional –, novos programas de residência – Medicina de Família e Comunidade, Enfermagem em Saúde da Família, Multiprofissional16,17,18. Finalmente, também foi gestada a maior inovação do SUS carioca na área de educação permanente – a Rede de Observatórios de Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde – Rede “OTICS-Rio”), integrando as áreas de ensino, pesquisa e extensão comunitária na APS e, na década seguinte, apoiando a atenção pré-hospitalar e hospitalar em cursos de curta duração no âmbito do SUS (Material Suplementar 2, disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata.PNW6YL ).
Nessa primeira fase, a configuração e desenho da RCAPS baseou-se nos modelos de Portugal que em 2005 criou a “Missão para os Cuidados de Saúde Primários”14,15 e do Reino Unido através do National Health Service19,20. Uma importante coletânea de experiências da APS europeias também foi considerada e utilizada como referência na RCAPS21.
A segunda fase é representada pelo período de 2013 a 2016, em que se destacam os componentes: (i) descentralização da regulação ambulatorial por médicos(as) de família e comunidade com monitoramento do tempo de espera e das filas do Sistema Nacional de Regulação (SISREG) do Ministério da Saúde para “resposta a tempo e a hora”; (ii) primeira pesquisa de avaliação dos serviços da APS que, em 2014, demonstrou que o atributo “coordenação do cuidado” estava fortemente presente nas unidades da APS em todas as dez áreas de planejamento da cidade; e (iii) criação do seminário de prestação de contas das atividades anuais realizadas por cada unidade de saúde (“Seminários de Accountability”). Com tudo isso, o auge da RCAPS é atingido nesse período com o alcance da marca de 70% da população carioca coberta pelas equipes de Saúde da Família em dezembro/2016. Novamente aqui destaca-se, para reflexão, a defasagem de dois a três meses no registro do aumento de equipes no SCNES, uma vez que o mesmo só aparece em fevereiro/2017. Recentemente, o IBGE divulgou os resultados da pesquisa que identifica a população-residente no município do Rio de Janeiro para o Censo Demográfico de 2022, que sofreu redução, o que significa que as estimativas de cobertura populacional pelas eSF no período de 2011 a 2020 merecem ser revistas, a partir das estimativas de retroprojeção a serem disponibilizadas pelo mesmo instituto. Importante destacar, que nessa fase o município passou a ter a gestão de dois grandes hospitais da zona oeste que anteriormente possuíam gestão do SUS estadual: o Hospital Albert Schweitzer e o Hospital Rocha Faria. Mas o que isso significa para a APS carioca? Que a disputa pelos recursos finitos da saúde pública (em cenário da insuficiência de recursos do SUS estadual), passou a ter mais duas grandes unidades no cenário carioca, em áreas de grande vulnerabilidade social, o que acarretou em novos desafios para a gestão da saúde municipal, na busca constante pelo equilíbrio financeiro.
A terceira fase é representada pelo período de 2017-2020, que ficou marcado por um cenário de forte retrocesso e instabilidade, em que se destacam o movimento de precarização de todo o SUS carioca, especialmente nos serviços da atenção primária, com ênfase na desvalorização das equipes de Saúde da Família e na falta de priorização da APS como Política Pública no seio da Prefeitura do Rio de Janeiro. A desvalorização dos profissionais de saúde e a falta de reposição dos quadros resultaram na demissão de milhares de trabalhadores, comprometendo a qualidade dos serviços e reduzindo a cobertura da população para alarmantes 39,4%. Além disso, o ano de 2020 trouxe a crise global da pandemia pela Covid-19, que expôs ainda mais a fragilidade do sistema de saúde carioca que com a pressão sobre os serviços de saúde, mostrou-se falha em articular uma resposta eficiente, agravando o sofrimento da população. A falta de recursos, aliada a uma série de falhas administrativas e políticas, resultaram em um colapso na estrutura de atendimento. Ao fim de 2020, a gestão da saúde pública na capital carioca estava marcada por um cenário de incertezas, crises administrativas e um sistema de saúde sobrecarregado, demandando medidas urgentes e reconfigurações para sua reestruturação.
A quarta fase, entre 2021-2024, iniciou com o processo de vacinação para Covid-19, o que ajudou a equilibrar a grande demanda por serviços de saúde. Marcou também o resgate do acesso aos serviços da APS, voltando aos patamares de 2016 e projetando o alcance real de cinco milhões de cariocas com equipes de Saúde da Família para o ano de 2025. Nesse período, o maior destaque está na criação de novos serviços municipais de saúde referentes ao conjunto de três prédios que formam o “Super Centro de Saúde” no bairro de Benfica. Implementado para auxiliar na redução das maiores filas ambulatoriais de exames e procedimentos, é formado por um Centro de Diagnóstico e Tratamento por Imagem, um Centro de Especialidades e um Centro Oftalmológico. Ademais, em dezembro de 2024, o município assumiu a gestão de dois grandes hospitais, dessa vez, gestão do SUS federal: o Hospital do Andaraí e o Hospital Cardoso Fontes. Contudo dessa vez, com recursos oriundos do Ministério da Saúde e repasse financeiro em parcela única para reformas e investimentos em equipamentos e mobiliários, além do aumento do teto de financiamento da média e alta complexidade22.
Por fim, abrindo a quinta fase (2025-2028), a Prefeitura do Rio de Janeiro publicou uma série de decretos no primeiro dia de janeiro de 2025, enunciando as implementações planejadas para esse novo ciclo municipal da gestão. Dentre eles, a consolidação dos dois hospitais municipalizados da rede federal supracitados (com a ampliação de 700 leitos) e a criação de dois novos Super Centros de Saúde para seguir auxiliando nas demandas ambulatoriais em outras áreas da cidade. Em continuidade ao processo em curso, também está planejada a ampliação e o fortalecimento da Saúde Digital através do aplicativo “Minha Saúde.Rio”, novamente baseando-se na experiência portuguesa. Desta vez, os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS)23, vêm sendo a grande fonte de inspiração para dar maior transparência à sociedade carioca do conjunto de ações, procedimentos e serviços que a Secretaria Municipal de Saúde oferta à população cadastrada nas equipes de Saúde da Família. Nela, as pessoas usuárias do SUS carioca podem acessar uma diversidade de serviços e agendar determinados tipos de consultas, inclusive a teleconsulta, conforme protocolos bem definidos pela Prefeitura do Rio de Janeiro (Quadro 1).

Quadro 1

De Portugal, alguns elementos foram adaptados e apoiaram estratégias da RCAPS, tais como: os indicadores de desempenho (pay for performance), a construção de um portal Observatório de Sistemas de Saúde (OPSS) – traduzidos na SMS-RJ para uma rede de observatórios descentralizados por AP, a experiência no uso de prontuários eletrônicos da APS, a gestão da lista de cadastros “duplicados”, e estudos de tempo de espera para realização de consultas, exames e procedimentos. Do Reino Unido, a governança clínica, a contratualização médica, e a ferramenta “Onde ser Atendido” de geolocalização dos locais de moradias a partir do endereço de cada pessoa cadastrada21.
No período de 2005 a 2023, conforme dados oficiais do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), o percentual de recursos próprios da Prefeitura aplicados na saúde sofreu grandes oscilações e sempre esteve acima do mínimo constitucional de 15%. Em 2016 e 2017 atingiu seu auge (com valores acima de 25%), quando então sofreu reduções bruscas até o ano de 2021 (15,38%). A partir de então, houve a retomada desse indicador e, em 2023 (último ano disponível), registrou aumento para 18,42%. Contudo, comparativamente com outras capitais brasileiras, a capital carioca, nos últimos cinco anos, aplicou percentuais de recursos próprios, abaixo de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Salvador (Gráfico 1).

Entrar Gráfico 1.


Reforma do modelo de atenção à saúde na Atenção Primária carioca
Tendo por base o referencial teórico e os instrumentos de pesquisa para avaliação dos serviços deixados como legado por Starfield8, os mesmos foram adaptados à realidade brasileira (Material Suplementar 3, disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata.PNW6YL ). A RCAPS no Rio de Janeiro foi estruturada a partir de atributos essenciais: (i) acesso e prestação de serviços de primeiro contato, (ii) a assunção de responsabilidade longitudinal pelo paciente e sua família independente da ausência ou presença de doença, (iii) a garantia de cuidado integral a partir da consideração dos âmbitos físicos, psíquicos e sociais da saúde dentro dos limites de atuação das equipes de saúde, (iv) a coordenação das diversas ações e serviços necessários para resolver necessidades menos frequentes e mais complexas; e atributos “derivados”: (v) orientação familiar, (vi) orientação comunitária, através do conhecimento epidemiológico de determinada localidade, (vii) competência cultural, que se refere à relação entre os profissionais de saúde com características culturais específicas.
“Um sistema de saúde orientado para a subespecialização ameaça os objetivos da equidade. Os recursos para uma atenção altamente técnica orientada para a enfermidade competem com aqueles exigidos para oferecer serviços básicos, especialmente para pessoas que não podem pagar por eles. Os serviços de saúde, na qualidade de um dos determinantes diretos, podem ter um papel na melhora da saúde, mesmo em face das notáveis iniquidades na distribuição de riquezas, se sob forte orientação de Atenção Primária8.”

Acesso: Rumo a cinco milhões de cariocas com equipes de Saúde da Família
A série histórica com a evolução da cobertura estimada de munícipes com equipes de Saúde da Família nos últimos 15 anos é marcante: o Rio de Janeiro iniciou com registro de apenas 68 equipes completas, com médicos (apesar do SCNES de dezembro/2008 apontar 163 equipes, comprovadamente incompletas) para um crescimento acelerado de 1.356 equipes em novembro/2024. Para tornar a série comparável ao longo do tempo, consideramos que em média, uma equipe é responsável por 3.450 cadastrados vinculados às unidades de atenção primária (Centros Municipais de Saúde, Centros de Saúde Escola e Clínicas da Família). Cabe lembrar que esse era o parâmetro utilizado pelo Ministério da Saúde em 2008, por isso cunhou-se o termo “cobertura potencial populacional”, isto é, considera-se de forma homogênea a média citada anteriormente para definir o número de pessoas potencialmente cobertas pelas equipes. Com isso, entre 2008 e 2024, a cidade carioca saiu de 234.600 pessoas (3,5%) para 69,5% do total de moradores da cidade do Rio de Janeiro. Projeta-se que em 2025, com o aumento do número de equipes, a capital carioca atinja mais de cinco milhões de munícipes com equipes de Saúde da Família completas (Gráfico 2) e cerca de 25% destes com equipes de Saúde Bucal (eSB).
Entrar Gráfico 2

Essa expansão vem sendo acompanhada de aumento sem precedentes do número de procedimentos ambulatoriais, chegando a um crescimento de 1.179,4% entre 2009 e 2024 (média mensal ultrapassou os 458 mil iniciais para 5,9 milhões de procedimentos/exames). Também, as equipes de saúde na APS atingiram em outubro/2024 um total de 22.411 profissionais com destaque para os 7.534 ACS, 1.433 agentes de vigilância em saúde (AVS), 1.759 médicos(as), 1.534 enfermeiros(as), 447 cirurgiões(ãs) dentistas, 1.755 técnicos(as) de enfermagem, 608 auxiliares/técnicos(as) em saúde bucal, 428 equipes de farmácia, outros profissionais de nível superior (2.616) e diversos (4.297) (Material Suplementar 4, disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata.PNW6YL ).
Indicadores de pagamento por desempenho (pay for performance): sobre acesso e longitudinalidade do cuidado
Uma das formas encontradas pela Prefeitura do Rio de Janeiro para mensurar e avaliar a performance das equipes de saúde ao longo do tempo refere-se ao uso de indicadores de desempenho que foram, desde 2012, progressivamente implantados e passam por um constante processo de revisão e aperfeiçoamento. Esses indicadores estão associados aos atributos da APS mencionados anteriormente. Em que pesem os alertas dos autores que estudam essa área de que quando há motivação e incentivos aceitos como um complemento salarial, com cumprimento formal do que foi pactuado, corre-se o risco de se ter comportamentos oportunistas24,25, a gestão central optou por utilizá-los, com a missão inicial de criar a cultura organizacional de registro e indução de boas práticas no uso dos prontuários eletrônicos desde meados de 2010.
Dessa forma, os profissionais que compõem as equipes em cada unidade possuem incentivos financeiros extras que permitem auferir um 14º salário, caso sejam atingidas metas bem definidas (pactuação como “partes variáveis 2 e 3” no contrato de gestão). Um dos indicadores mais importantes, que mede o acesso e a longitudinalidade do cuidado, refere-se ao percentual de consultas realizadas pelo próprio médico(a) de família. No Rio de Janeiro, a meta esperada fica entre 70% e 90%. Já em Lisboa, a referência deste mesmo indicador oscila entre 75% e 80%. Isto significa que não se espera que 100% das consultas de um(a) usuário(a) do SUS na APS ocorram com o(a) mesmo(a) médico(a) de família, uma vez que há períodos de intersubstituição médica para ida a congressos, reuniões internas ou externas, ou período de férias e até mesmo licenças. Os resultados encontrados na cidade carioca apontam que em 2024, o alcance deste indicador sempre esteve próximo dos 80%, portanto, dentro da meta esperada (Gráfico 3).
Com relação ao acompanhamento de duas das principais condições crônicas – diabetes e hipertensão, os resultados foram distintos, sendo a meta de ambas no mínimo 70%. No primeiro caso, encontrou-se valores acima da meta, isto é, a proporção de pessoas cadastradas com diabetes com pelo menos duas consultas registradas nos últimos 12 meses, sendo pelo menos uma médica e uma de enfermagem, variou em torno de 75% ao longo do ano de 2024. Já a proporção de pessoas cadastradas com hipertensão com pelo menos duas consultas registradas nos últimos 12 meses (sendo também pelo menos uma consulta médica e outra de enfermagem) oscilou abaixo de 70%. Contudo, pode-se levantar a questão da falta de registro pelos profissionais das equipes ou mesmo o registro em local não adequado no prontuário (Gráfico 3).
Entrar Gráfico 3


Em tempos de Saúde Digital, um novo indicador vem sendo monitorado com registro no prontuário eletrônico: “a proporção de consultas agendadas não presencialmente, por telefone, email ou plataforma web do prontuário eletrônico”. Com o advento da pandemia pela Covid-19 entre 2020-2022, novas ferramentas e soluções tecnológicas vêm sendo desenvolvidas com incentivo e regulamentação no Brasil, para determinados tipos de consultas poderem ser desenvolvidas na modalidade não presencial ou remota. No município do Rio de Janeiro, esse indicador ultrapassou a meta de 10% no ano de 2024, ficando entre 12% e 13% (dados não tabulados).

Coordenação do cuidado: o que dizem as pesquisas realizadas?
Com relação ao atributo da coordenação do cuidado, também desde 2012, os(as) médicos(as) de família e comunidade passaram a se responsabilizar em cada unidade, pela função de regulação ambulatorial para outros níveis do sistema, agendando online diretamente pelo SISREG, Sistema do Ministério da Saúde, consultas para outros especialistas e exames para apoio diagnóstico em toda a rede, que conta com dezenas de prestadores de serviços municipais, estaduais, federais e privados credenciados com o SUS. Isto significa que um(a) médico(a) mais experiente da própria unidade de atenção primária organiza seu processo de trabalho para contemplar um período de regulação das solicitações de consultas e exames da própria unidade, ou seja, dos próprios colegas de profissão que atuam na unidade.
Foram realizadas duas pesquisas (2014 e 2024) com amostras de usuários(as) dos serviços de saúde pública do município do Rio de Janeiro para avaliação do grau de extensão no desenvolvimento dos atributos da APS, que nos auxiliam na compreensão desse importante aspecto do cuidado à saúde13,26 (Material Suplementar 5, disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata.PNW6YL).
Nessas duas pesquisas, o principal desfecho estimado era o indicador ou escore do PCATool-Brasil - uma nota que variava de 0 a 10. Na metodologia do instrumento uma nota acima de 6,6 era considerada satisfatória, isto é, os serviços de atenção primária estariam adequadamente orientados aos seus atributos. Observamos que tanto para usuários crianças, como para adultos, atingiu-se um índice satisfatório em 2024, isto é, podemos afirmar que a atenção primária carioca no período avaliado coordenava o cuidado em saúde de toda a rede municipal. O escore do PCATool-Brasil que mede esse atributo ampliou-se, passando de 6,0 para 7,3 em crianças e de 6,6 para 7,2 em adultos entre 2014 e 2024. Apesar disso, chamou-se a atenção que, com o enorme crescimento de unidades de atenção primária, a resolutividade médica na APS diminuiu, na média geral do município, nos dois recortes temporais considerados. Em 2014, 16,6% dos responsáveis pelas crianças e 28,3% dos adultos não conseguiram resolver seu problema de saúde na unidade no dia da consulta médica realizada. Já em 2024, esses valores passaram para 22,5% (crianças) e 49,0% (adultos). A própria Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro definiu como meta um valor em torno de 20%. Em outubro de 2023, em outra pesquisa realizada, dessa vez abordando trabalhadores das unidades de atenção primária, houve a percepção entre 73,4% dos entrevistados nas Clínicas da Família e 69,6% nos Centros Municipais de Saúde, de que suas unidades atendem mais do que suas capacidades de atendimento27.

Como monitorar o desenvolvimento das ações e procedimentos na APS: a carteira de serviços
Criada no ano de 2011 pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro28, a carteira de serviços enuncia um padrão mínimo esperado da oferta de serviços a serem disponibilizados em todas as unidades de atenção primária. Somente em 2019, o Ministério da Saúde do Brasil criou uma “carteira nacional” para todo o País. Nos dizeres de Cunha et al29, “ao se definir uma lista transparente de ações e serviços voltados aos problemas e às condições de saúde mais frequentes temos a ‘alavanca’ necessária para mover o ‘mundo’ da integralidade e trazê-lo para o cotidiano da vida das pessoas e das equipes de APS.”
O município do Rio de Janeiro criou em 2010 a ferramenta digital intitulada de “carteirômetro”, que deixou de ser publicizada pela SMS-RJ desde 2018, perdendo assim a capacidade de monitorar, com transparência para a população carioca, o desenvolvimento das ações e procedimentos realizados pelas equipes de Saúde da Família. Coincidentemente o atributo mais mal avaliado na última pesquisa de avaliação externa realizada apontou justamente para a “integralidade - serviços disponíveis” e “integralidade - serviços prestados” como aqueles com maior fragilidade pela população que utiliza os serviços das Clínicas da Família e Centros Municipais de Saúde (escores PCATool-Brasil, abaixo de 6,0 para usuários crianças e abaixo de 5,0 para usuários adultos)13.
Discussão
Um caminho apontado pela Lei Orçamentária Anual (LOA-2025) aprovada é de fortalecimento de todos os níveis de cuidado em 2025, indicando um percurso para cinco milhões de cariocas com equipes de Saúde da Família, fortalecendo o modelo de atenção e ampliando o acesso à média complexidade, com a ampliação de mais “Super Centros de Saúde”, as modernas e tecnológicas policlínicas criadas na capital carioca. Mas como fazer a avaliação de forma simples e contextualizada, na experiência das pessoas que usam o SUS? Um estudo recente de base populacional domiciliar apontou a existência de uma forte associação entre pessoas que avaliam melhor os serviços com índices mais elevados entre os escores do PCATool-Brasil considerando todas as unidades da federação do País30.
A ampliação da realização de painéis amostrais de pesquisa para a avaliação dos serviços da APS no Rio de Janeiro é uma estratégia essencial para o monitoramento contínuo dos processos e dos resultados obtidos pelas equipes de Saúde da Família, que representam o pilar central da RCAPS. Esta abordagem visa fornecer dados consistentes e atualizados que possam subsidiar as decisões da equipe gestora do SUS municipal, permitindo ajustes e melhorias nos serviços ofertados e prestados. Um grande avanço nesse sentido foi alcançado com a criação do Centro de Inteligência Epidemiológica (CIE), que tem se destacado como uma ferramenta importante para a análise e integração de informações relacionadas à saúde pública na cidade. Contudo, ainda persiste uma lacuna significativa na integração dos microdados provenientes das pesquisas domiciliares e censitárias do IBGE. Essa desconexão entre as bases de dados da gestão municipal e as informações detalhadas do Instituto limita a capacidade de otimizar a compreensão sobre as necessidades específicas de cada território, dificultando uma análise mais precisa das condições de saúde em nível local e a formulação de políticas públicas mais adequadas às particularidades de cada território. Para superar esse desafio, uma alternativa viável seria utilizar o Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE) do próprio IBGE como base para a territorialização das unidades de saúde. Essa ferramenta pode servir como um ponto de partida estratégico para aprimorar a alocação e a gestão dos serviços de saúde, possibilitando uma abordagem mais precisa e alinhada com as especificidades de cada área da cidade. É dizer, a utilização de inteligência estatística, associada à combinação de dados de diferentes fontes, pode representar uma inovação significativa na forma de monitoramento e avaliação dos serviços de saúde, promovendo uma gestão mais eficiente e personalizada, que atenda de forma mais eficaz às necessidades da população carioca.
A principal dificuldade enfrentada pela gestão da saúde ao investir em processos de formação é a necessidade de retirar os profissionais de seus locais de trabalho para participarem de treinamentos e capacitações. Essa medida pode gerar lacunas no atendimento e sobrecarga nas equipes, o que torna essencial a utilização de recursos tecnológicos que permitam o aprendizado de forma flexível, com baixo impacto nas atividades diárias. As ferramentas de Educação a Distância (EaD) avançadas, com alta interatividade e apoio da inteligência artificial, oferecem a possibilidade de personalizar o ensino, adaptar o conteúdo às necessidades dos profissionais e permitir o acompanhamento individualizado de seu progresso.
A implementação de ferramentas de EaD com alto grau de interação e recursos de inteligência artificial apresenta uma oportunidade significativa para ampliar o acesso aos cursos de educação formal atualmente oferecidos pela SMS-RJ. Essas tecnologias inovadoras podem contribuir de forma decisiva para o processo de formação e educação permanente dos profissionais do SUS carioca, garantindo que a capacitação da força de trabalho da saúde pública carioca seja contínua e eficaz, sem comprometer a qualidade do atendimento à população. Em 2025, a Rede de Estações OTICS-Rio, em conjunto com a RCAPS, celebra 15 anos de sua criação31. Essa rede, que representa um marco fundamental no fortalecimento das políticas públicas de saúde e educação na cidade, desempenhando papel crucial na integração da tecnologia ao processo educativo de profissionais e trabalhadores da saúde. A continuidade e o avanço dessa rede são fundamentais para garantir que o SUS carioca se mantenha alinhado às melhores práticas de formação e qualificação, promovendo uma gestão mais eficiente, com profissionais mais preparados para atender às demandas da população com segurança e excelência. O uso de EaD, portanto, se reafirma como uma ferramenta estratégica para a evolução do modelo de educação em saúde no Rio de Janeiro, acompanhando as transformações tecnológicas e as necessidades da força e trabalho do SUS carioca.
Considerações Finais
Os principais desafios do novo modelo de atenção à saúde implantado a partir da reestruturação do organograma da SMS-RJ em janeiro de 2009, e posteriormente aperfeiçoado, estão diretamente ligados à necessidade de uma transformação cultural profunda na saúde pública da cidade, que exigiu a adoção de um modelo gerencial centrado na indução de boas práticas a partir de resultados, com a introdução de novos instrumentos e práticas de gestão. A implementação de mecanismos de acompanhamento das prestações de contas, aliados ao uso de indicadores monitorados em tempo real, representou um avanço significativo na busca por maior transparência e eficiência na gestão dos recursos públicos. A descentralização orçamentária, um dos principais pilares desse modelo, trouxe consigo a responsabilidade ampliada para os gestores das diferentes áreas de planejamento da cidade. Esse movimento exigiu que cada unidade de saúde se adaptasse às novas formas de trabalho, estabelecendo e fortalecendo equipes locais preparadas para lidar com as especificidades dos territórios, sem perder de vista as diretrizes gerais da política pública de saúde municipal. Essa mudança também impôs aos gestores locais a responsabilidade de planejar e executar ações de forma mais autônoma, com foco em resultados e em uma gestão mais dinâmica e adaptativa.
No entanto, os desafios não se restringem apenas à adaptação aos novos instrumentos de gestão. A transformação cultural necessária para internalizar essa nova abordagem gerencial demandou tempo, treinamento e, sobretudo, um alinhamento eficaz entre as diversas esferas da gestão municipal. A transição para um modelo orientado por resultados não é simples, e a necessidade de articulação entre os níveis central, local e regional impôs a reorganização das equipes e a construção de uma mentalidade voltada para a eficiência, a avaliação contínua e a capacidade de respostas rápidas às demandas da população. Dessa forma, os avanços alcançados com a implementação do novo modelo de gestão de saúde no Rio de Janeiro foram notáveis, mas o caminho para sua plena consolidação continua desafiador. A constante revisão e aperfeiçoamento das práticas de gestão são imprescindíveis, assim como o compromisso contínuo com a formação e qualificação dos profissionais envolvidos, para garantir que os resultados esperados não sejam apenas alcançados, mas também sustentados ao longo do tempo.
Este artigo apresenta os principais referenciais que fundamentaram a Reforma dos Cuidados em Atenção Primária à Saúde (RCAPS) na cidade do Rio de Janeiro, recomendando a realização de novos estudos para avaliar sua implementação efetiva, considerando os eixos estratégicos definidos ao longo dos ciclos de gestão municipal dos últimos 15 anos. A Estratégia Saúde da Família se consolidou como a principal porta de entrada aos serviços da APS na cidade, atraindo também a classe média carioca que passou a frequentar as unidades de saúde, para além do calendário de vacinas oferecido pela Secretaria Municipal de Saúde. A experiência demonstrou a viabilidade da RCAPS em uma cidade de grande porte, com mais de seis milhões de habitantes, e apontou alguns limites a serem enfrentados: (i) a necessidade de reorganização dos processos de educação permanente, com ênfase no diálogo entre a atenção primária e a atenção hospitalar, (ii) a melhoria da comunicação com a população usuária do SUS e, (iii) a insuficiência do financiamento tripartite, especialmente por parte do Governo Estadual. Por fim, seria ideal que a cidade retomasse os níveis de recursos próprios destinados à saúde observados em 2016, quando o município alocou 25% de suas despesas próprias para essa área. A integração da Saúde Digital, como eixo estratégico para melhorar a comunicação, ampliar o acesso e garantir maior resolutividade, consolida-se hoje como o maior desafio da gestão municipal, representando a chave para a evolução e modernização dos serviços públicos de saúde no Município do Rio de Janeiro. A superação desses desafios será decisiva para garantir a sustentabilidade do SUS carioca e a qualidade da assistência à população a longo prazo.
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Referências
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Citar

Pinto, L.F, Caldas, A. L. F. R.. Quinze anos da Reforma dos Cuidados em Atenção Primária à Saúde (RCAPS) no município do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/mar). [Citado em 01/04/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/quinze-anos-da-reforma-dos-cuidados-em-atencao-primaria-a-saude-rcaps-no-municipio-do-rio-de-janeiro-brasil/19560?id=19560

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