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0279/2024 - Rede de proteção ao Direito Humano à Alimentação Adequada e a Insegurança Alimentar: uma coorte no Semiárido Nordestino
Protection network for the Human Right to Adequate Food and the Food Insecurity: a cohort in the semi-arid Northeast

Autor:

• Ana Beatriz Macêdo Venâncio dos Santos - Santos, A. B. M. V. - <abmv.santos@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1061-6496

Coautor(es):

• Poliana de Araújo Palmeira - Palmeira, P. A. - <palmeira.poliana@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3503-3414

• Angelo Giuseppe Roncalli C. Oliveira - Oliveira, A.G.R.C - <roncalli@terra.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5311-697X



Resumo:

Este estudo analisou o tempo de convivência com a Insegurança Alimentar (IA) e o acesso aos programas governamentais, identificando a rede de proteção ao Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) acessada por famílias do semiárido brasileiro entre 2011 e 2019. Trata-se de uma coorte realizada em Cuité, Paraíba, com coletas em 2011, 2014 e 2019. Analisou-se o tempo de convivência com a IA com a classificação em: Segurança Alimentar Persistente, IA em um tempo, IA em dois tempos e IA Persistente, a partir da definição de segurança e insegurança da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. Verificou-se as mudanças no acesso a 25 programas e nas características sociodemográficas das famílias com o Teste Q de Cochran e a associação entre o acesso e o tempo de convivência com a IA com o Qui-quadrado de Pearson. Observou-se a co-existência da IA crônica, da vulnerabilidade sociodemográfica persistente e de uma rede de programas diversa e pouco acessada. O debate do DHAA deve ser considerar a indivisíbilidade e interdependência dos direitos. O fortalecimento desta rede deve visar transformações estruturais mediante um plano de desenvolvimento socioeconômico que promova a igualdade de oportunidades e articule economia e bem-estar social.

Palavras-chave:

Direito Humano à Alimentação Adequada. Segurança Alimentar. Programas Governamentais. Estudos de Coortes.

Abstract:

This study analyzes the length of time living with Food Insecurity (AI) and access to government programs, identifying the protection network for the Human Right to Adequate Food (DHAA) accessed by families in the Brazilian semi-arid region between 2011 and 2019. It is about a cohort in Cuité, Paraíba, with collections in 2011, 2014, and 2019. The time of coexistence with AI was analyzed with the classification into Persistent Food Safety, One-time AI, Two-time AI, and Persistent AI, based on the definition of security and insecurity in the Brazilian Food Insecurity Scale. Changes in access to 25 programs and the sociodemographic characteristics of families were verified using the Cochran Q Test and Pearson\'s Chi-square to verify the association between access and time spent living with AI. Note the coexistence of chronic AI, persistent sociodemographic vulnerability, and a diverse and little-accessed network of programs. The DHAA debate must consider the indivisibility and interdependence of rights. Strengthening this network must aim at structural transformations through a socioeconomic development plan that promotes equal opportunities and articulates economy and social well-being.

Keywords:

Human Right to Adequate Food. Food Security. Government Programs. Cohort Studies.

Conteúdo:

Introdução
A privação do acesso a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para todas as pessoas é denominada Insegurança Alimentar (IA), expressa pelo medo e a instabilidade quanto à garantia deste alimento ou, mais diretamente, pela falta propriamente dita1,2. Entre 2019 e 2020, mundialmente, o número de pessoas que vivenciaram a IA moderada/grave aumentou acentuadamente (+341 milhões) e, nos anos seguintes, teve aumento menos expressivo de 50 milhões (2022)3.
Alguns grupos têm maior risco de conviver com a IA e, no cenário brasileiro, estudos revelam que esta é mais presente entre domicílios cuja renda está abaixo da linha da pobreza, chefiados por mulheres e por pessoas com baixa escolaridade, localizados nas Regiões Norte e Nordeste4–9. A IA é considerada violação do Direito à Alimentação Adequada (DHAA) e agrava as vulnerabilidades da extrema pobreza, aumentando o desafio da superação das desigualdades sociais para as políticas públicas10.
O DHAA foi inserido como direito social na Constituição Federal brasileira estendeu ao Estado o dever de respeitar, proteger e promover seu acesso por meio de políticas públicas11. A Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) reconhece a SAN como a realização do direito de todos ao acesso permanente a alimentos de qualidade, quantitativamente suficientes, sem que comprometa outras necessidades, que demandando programas e políticas públicas necessariamente intersetoriais e articuladas entre as diferentes esferas governamentais e a sociedade civil12.
O governo brasileiro se destacou quanto as políticas públicas de SAN com a Estratégia Fome Zero (2003-2008)13, a atuação do CONSEA e programas de grande cobertura como o Bolsa Família. Entretanto, este processo foi interrompido a partir do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, em 201614, que marcou o início de uma sequência de desmontes que impactaram os programas com a redução de financiamento15,16, extinção e inativação de programas17 e do Conselho Nacional de SAN (CONSEA)18 e, consequente, aumento das desigualdades sociais e da IA19. Além disso, as crises decorrentes da pandemia da Covid-19 levaram ao aumento da fome e da IA no Brasil que, em 2022, alcançou 125,2 milhões de brasileiros6, evidenciando a urgência de proteção ao DHAA no Brasil.
Porém, poucos são os estudos que abordam o impacto do acesso aos programas governamentais na IA das famílias20,21. Além de que, a maioria dos estudos apresentam resultados sobre a participação e o acesso das famílias a um único programa, à exemplo do Programa Bolsa Família (PBF)20,22,23 e do Programa Um Milhão de Cisternas24,25, apesar da política de SAN demandar uma abordagem integrada, intersetorial e ampla de programas.
Diante disso, este estudo analisa os programas governamentais que formaram a rede de proteção ao DHAA para famílias que conviveram com a IA em um município do Semiárido Nordestino entre 2011-2019, de forma a avaliar quais programas são fundamentais para combater a IA. Para tanto, são objetivos: (a) analisar prospectivamente o acesso aos programas governamentais de promoção da SAN pelas famílias estudadas e (b) estabelecer a rede de proteção ao DHAA das famílias, segundo tempo de convivência com a IA ao longo da coorte.
Metodologia
Tipo de estudo, cenário, amostra e coleta de dados
Trata-se de um estudo longitudinal de base populacional realizado no município de Cuité-PB, Nordeste, Brasil, localizado a 273 km da capital paraibana (João Pessoa). Este trabalho integra a Coorte - Segurança Alimentar e Nutricional em município de pequeno porte: uma análise longitudinal das políticas públicas e da situação de insegurança alimentar da população - um estudo maior desenvolvido desde 2011 pelo Núcleo de Pesquisa e Estudos em Nutrição e Saúde Coletiva (Núcleo PENSO) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), campus Cuité.
O município de Cuité possui extensão territorial de 733,82km², 20.000 habitantes e um baixo Índice de Desenvolvimento Humano (0,59)26. A coorte foi desenvolvida em uma coleta inicial no ano de 2011 (baseline) e dois seguimentos em 2014 (tempo 2) e 2019 (tempo 3), cuja definição de amostra no baseline se deu a partir da amostragem aleatória dos 5.896 domicílios registrados no município, estratificada entre a população urbana e rural, considerando intervalo de confiança de 95% e erro amostral de 5%. Maiores detalhes da metodologia do baseline da Coorte-SANCuité estão disponíveis na publicação de Palmeira, Costa-Salles e Perez-Escamilla20.
A coleta de dado foi realizada em domicílio com entrevistas face a face por graduandos do curso de Nutrição da Universidade Federal de Campina Grande, previamente treinados, nos três anos de coleta. Em 2014 e 2019 a pesquisa de campo consistiu no retorno aos domicílios pesquisados no follow-up anterior, sendo ao final do segmento pesquisados 274 domicílios, ou seja, 76,6% da amostra estudada no baseline (Figura 1).
Figura 1 - Fluxograma da amostra da pesquisa com destaque para a amostra completa utilizada para este estudo, 2024.
Variáveis do estudo
Insegurança Alimentar
Para mensuração da IA foi utilizada a versão de 14 itens da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), instrumento validado para o Brasil desde 2003 e que tem sido amplamente utilizado em inquéritos nacionais6,27,28. A EBIA é uma escala baseada na experiência de fome e privação alimentar das famílias, sendo classificadas em Segurança Alimentar (SA) famílias que respondem negativamente às quatro primeiras questões da escala, e em Insegurança Alimentar (IA) famílias que respondem com positivamente a pelo menos uma questão29.
Foram construídas categorias longitudinais para análise do tempo de convivência com a IA ao longo do seguimento: (1) Segurança Alimentar Persistente (SA Persistente), para famílias classificadas em SA nos três tempos da coorte (2011, 2014 e 2019); (2) IA em um tempo (IA-1), para as famílias que conviveram com a IA em algum dos tempos da coorte; (3) IA em dois tempos (IA-2), para as famílias que conviveram com a IA em pelo menos dois dos tempos da coorte; e (4) Insegurança Alimentar Persistente (IA Persistente), para famílias classificadas em IA nos três tempos do seguimento (2011, 2014 e 2019).
Participação em programas governamentais relacionadas com a SAN
Para este estudo, considerou-se como programa governamental relacionado com a SAN os programas governamentais ou equipamentos públicos propostos pelo governo federal, estadual ou municipal que atuem para promoção de sistemas alimentares sustentáveis e no enfrentamento da fome e seus fatores determinantes, incluindo os relacionados com o provimento de água e alimentos, desenvolvimento rural, redução da pobreza e promoção da saúde(17,30)
Ao longo da coorte, foram incluídos 32 programas no questionário de pesquisa. Em 2014 foram realizadas perguntas retrospectivas quanto à participação da família entre 2011 (baseline) e 2014 (tempo 2), e em 2019 sobre a participação entre 2018 e 2019. Os programas Academia da Saúde e Criança Feliz foram excluídos da análise pois não estavam implementados no município desde o início da coorte. Para fins de análise, optou-se por agrupar as perguntas referentes ao acesso aos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos voltados à Criança e ao Adolescente que funcionavam separadamente (2011 e 2014), e foram unificados em 2019 e a participação nos programas Ensino Médio Inovador, Mais Educação e Escola Cidadã, por serem programas de educação com característica de tempo integral. Assim, foram incluídos na análise 25 programas governamentais. Para análise da participação da família foram elaboradas categorias longitudinais, considerando se a família acessou ou não acessou o programa em algum tempo da coorte, ou seja, entre 2011 e 2019.
Além disso, foram analisadas as características sociodemográficas relacionadas aos critérios de elegibilidade das famílias para participação nos programas, a saber: área de moradia (urbana/rural), renda familiar mensal per capita (acima ou abaixo da linha de pobreza), escolaridade e idade dos moradores do domicílio. Para escolaridade e idade foram criadas as seguintes variáveis: presença de algum morador sem escolaridade; presença de algum morador menor de 2 anos; presença de algum morador menor de 5 anos; presença de algum morador menor de 18 anos; e presença de algum morador idoso.
Análise de dados
Estimou-se as prevalências de acesso das famílias aos programas nos três tempos (2011, 2014 e 2019) e aplicou-se o teste Q de Cochran para avaliar as mudanças ao longo do tempo. A partir das prevalências do tempo de convivência com a IA, foi realizada análise bivariada dos critérios de elegibilidade no início (2011) e no final (2019) da coorte e o acesso durante a coorte. O teste qui-quadrado de Pearson verificou a associação entre o tempo de convivência com a IA e o acesso aos programas. Foram incluídos na rede de proteção ao DHAA das famílias os programas acessados por pelo menos 20% das famílias de cada grupo de convivência com a IA (SA Persistente, IA-1, IA-2 e IA Persistente).
Resultados
Convivência com a IA
No baseline do estudo (2011), 52,5% das famílias estavam em IA. Ao longo da coorte observou-se a redução acentuada da prevalência de IA em 2014 (Tempo 2), 38,0%, com desaceleração desta redução em 2019 (tempo 3), 34,8%. Acerca do tempo de convivência com a IA ao longo da coorte, apenas 34,3% das famílias foram classificadas em SA Persistente e 65,7% conviveram com a IA em algum tempo do seguimento. Destas, 23,3% durante um tempo (IA-1), 24,1% em dois tempos (IA-2) e 18,3% em todo tempo (IA Persistente).
Perfil de acesso aos programas e elegibilidades das famílias estudadas
A tabela 1 descreve as características das famílias estudadas visando traçar o perfil de elegibilidade para participação nos programas estudados. Nota-se que no baseline (2011) o grupo de famílias em IA Persistente apresenta as maiores prevalências para todos os critérios de elegibilidade, quando comparado aos demais grupos. Tanto no baseline (2011) quanto no follow-up de 2019 as prevalências de domicílios rurais e abaixo da linha da pobreza apresentam um aumento gradativo de acordo com o aumento do tempo de convivência com a IA.
Tabela 1: Critérios de elegibilidade para acesso aos programas governamentais, segundo tempo de convivência com a Insegurança Alimentar entre as famílias participantes da coorte, Cuité-PB, 2011 e 2019.
Ao longo do seguimento, observou-se a redução do percentual de famílias classificadas em situação de pobreza em todas as categorias de convivência com IA, contudo, 40% das famílias em IA persistente ainda apresentam renda familiar per capita abaixo da linha de pobreza ao final (2019). A atividade de produzir alimentos ou criar animais para alimentação na propriedade também reduziu nos grupos, exceto para famílias em IA persistente (2011: 68% e 2019: 70%), que são majoritariamente rurais.
Houve mudança no perfil sociodemográfico com relação à idade e à escolaridade dos moradores. Com relação à idade, para todos os critérios descritos, houve influência do envelhecimento da população ao longo dos oito anos de acompanhamento da coorte. Especificamente acerca da população infantil, nota-se uma redução marcante do número de domicílios com criança quando comparados os dada dos do baseline e do ano final da coorte, que pode ser resultante da combinação do envelhecimento da população com, de algum modo, um possível controle de natalidade que pouco inseriu novas crianças nos domicílios. De modo que, no baseline, verificou-se a expressiva presença de crianças no domicílio, principalmente entre as famílias que conviveram com a IA por mais tempo (IA-2 e IA Persistente). Em 2019, a presença de crianças com idade inferior a 2 anos e a 5 anos reduziu em todos os grupos.
A presença de crianças e adolescentes (>18 anos) no domicílio, embora tenha apresentado redução para todos os grupos ao longo da coorte, ainda é expressiva entre famílias em IA-2 (2011: 80%; 2019: 47%) e em IA Persistente (2011: 88%; 2019: 60%). Todos os grupos iniciaram a pesquisa com relevante presença de indivíduos com mais 60 anos no domicílio, havendo redução desta proporção em em 2019, principalmente entre famílias em IA Persistente (2011: 100,0%; 2019: 36,0%).
Dentre as famílias em IA durante a pesquisa, no baseline, mais da metade continha morador sem escolaridade (IA-1: 50%; IA-2: 59,1%; IA Persistente: 62%). Já em 2019, nota-se redução desses percentuais em todos os grupos ( IA Persistente:-28%, SA Persistente: -20,2%, IA-2:-14% e IA-1: -10,9%).
A tabela 2 apresenta o cenário do acesso aos programas nos três tempos do estudo - 2011, 2014 e 2019 - organizada a partir dos programas mais acessados em 2011. Dado o perfil de elegibilidade das famílias, observa-se o baixo acesso para a maioria dos programas. Apenas cinco programas foram acessados por pelo menos 20% das famílias em 2019 (Estratégia Saúde da Família- ESF, Bolsa Família- PBF, Farmácia Básica, Garantia Safra e Programa de Água Dessalinizada).
Tabela 2: Acesso aos programas governamentais relacionadas à Segurança Alimentar e Nutricional entre famílias residentes no município de Cuité, Paraíba, Brasil, nos anos de 2011, 2014 e 2019.
Treze programas apresentaram diferença estatística entre as prevalências do acesso em em 2011, 2014 e 2019. O acesso reduziu para três programas: Programa de Distribuição de Sementes (p=0,040), PBF (p=0,035) e ESF (p<0,001). E aumentou para 10 programas: Programa Garantia Safra (p<0,001), Programa Água Dessalinizada (p<0,001), Banco de Alimentos (p=0,030), Centro de Referência Especializada da Assistência Social/CREAS (p<0,001), PRONATEC (p=0,003), Educação de Jovens e Adultos/EJA (p=0,003), Brasil alfabetizado (p=0,010), Escola Integral (p<0,001), Farmácia Básica (p<0,001) e Suplementação de Ferro (p<0,001) (Tabela 2).
Rede apoio governamental para IA
A tabela 3, organizada a partir dos programas mais acessados entre as famílias em SA Persistente, apresenta a prevalência do acesso aos programas segundo o tempo de convivência com a IA e a associação entre estas duas variáveis. Dos 25 programas analisados, 18 apresentaram associação estatística com o tempo de convivência com a IA e foram mais acessados entre as famílias classificadas em IA Persistente.
Tabela 3: Acesso aos programas governamentais relacionadas à Segurança Alimentar e Nutricional segundo tempo de convivência com a Insegurança Alimentar no domicílio, Cuité-PB, 2011-2019.
A figura 1 apresenta a a rede de proteção ao DHAA identificada a partir do acesso de mais de 20% das famílias do grupo de convivência com a IA (Figura 1). Os grupos em SA Persistente, IA-1, IA-2 e IA Persistente acessaram uma rede formada por 4, 7, 10 e 14 programas, respectivamente. A rede de proteção acessada pelas famílias em SA Persistente é formada por: ESF, a Farmácia Básica/Popular, o PBF e o Garantia Safra, que também integraram as redes dos demais grupos.
Para as famílias em IA-1 a rede de proteção ao DHAA agrega, além dos quatro já citados, o EJA, a Água Dessalinizada e o CRAS. Já dentre as famílias que conviveram com a IA em dois tempos da coorte (IA-2), outros 4 programas foram identificados à rede já descrita: Escola Integral, Leite da Paraíba, Suplementação de Vitamina A e Distribuição de Sementes. As famílias em IA Persistente apresentaram a rede de proteção governamental mais ampliada, com 14 programas, de modo que acessaram todos os programas citados anteriormente e incorporaram o Programa de Suplementação de Ferro, o PRONAF e o Brasil Alfabetizado.
Figura 1: Rede de proteção ao DHAA acessada pelas famílias estudadas, segundo Tempo de Convivência com a Insegurança Alimentar em Cuité, Paraíba, Brasil, entre os anos de 2011 e 2019.


Discussão
Os resultados em debate são a alta prevalência de famílias que conviveram com a IA em diferentes tempos da coorte; a persistência da vulnerabilidade da população (rural, pobre e chefiada por pessoa de baixa escolaridade); e a existência de uma rede de proteção do DHAA formada por um conjunto diverso programas governamentais, ainda pouco acessados pelas famílias.
As altas prevalências de IA no Nordeste já foram relatadas em pesquisas nacionais6,27, mas a análise do tempo de convivência revelou a instabilidade das famílias e a existência da IA Persistente enquanto condição crônica. Resultados semelhantes foram observados em estudos brasileiros20,31 e internacionais32–34 ao comparar as prevalências em diferentes anos. À luz da literatura sobre os determinantes sociais da IA no Brasil, este cenário é resultante da manutenção das vulnerabilidades históricas, sociais e climáticas na região, com destaque para a pobreza, o ambiente rural e a baixa escolaridade4,7,24, observadas sem mudanças expressivas em 8 anos de estudo.
Ou seja, famílias em contextos socioeconômicos e ambientais complexos, como o semiárido nordestino, demandam mais tempo e intervenção estratégica e contínua do Estado para a superação destas vulnerabilidades que, direta ou indiretamente, induzem à violação do DHAA.
Quanto aos programas governamentais, destaca-se que a rede de proteção ao DHAA identificada é formada por iniciativas da saúde, da assistência social, da educação e da agricultura, e que ESF, PBF, Farmácia Básica e Garantia Safra caracterizam uma rede mínima para as famílias no contexto do semiárido, acessada inclusive pelas famílias em SA Persitente. E, para as famílias em IA, a rede mínima adiciona o Programa de Água Dessalinizada e o CRAS. Goulart, Vieira e Bittencourt35 apontam a necessidade da coordenação em rede de políticas públicas (programas, atores e suas interações) para superação de problemas complexos e, portanto, vê-se a importância da ação coordenada dos programas da rede de proteção do DHAA, reconhecendo a IA como problema social complexo.
Diante disso, cabe problematizar sobre o cenário controverso observado nos resultados da pesquisa: por um lado, há a disponibilidade de uma rede de programas diversos, com diferentes desenhos e contribuições, acessada tanto por famílias em SA Persistente quanto por famílias em IA; por outro, a instabilidade na situaçãpo de SA, a presença da IA Persistente e a manutenção da vulnerabilidade da população estudada. Neste sentido, se a rede de proteção ao DHAA existe, quais elementos podem estar contribuindo para que ainda exista a IA de forma crônica?
O baixo acesso verificado neste e em outros estudos21,36 é uma resposta imediata para esta pergunta e coloca em debate a necessidade de um alcance mínimo de cobertura do programa para gerar, de fato, o efeito desejado com sua formulação. Alguns estudos primários realizados com diferentes públicos sinalizam algumas fragilidades para este acesso que podem afetar os públicos estudados pelos autores e, também, a população em geral: (1) a dificuldade no encaminhamento dos pacientes aos programas e o excesso de trâmites burocráticos; (2) as lacunas no conhecimento dos profissionais da saúde acerca dos programas governamentais disponíveis37; (3) dificuldades na estrutura do território de produção agrícola - condições de estradas e transporte para deslocamento - e falta de acesso à assistência técnica e rural suficiente; (4) fragilidade na comunicação e divulgação do programa para a população38; e (5) o desmonte das políticas públicas voltadas à SAN no cenário de crise vivenciado no Brasil após 2015/2016 e seus diferentes sinais17.
Diante destes entraves argumenta-se a importância da avaliação contínua dos programas, incluindo seu alinhamento às demandas da população e a adequação da estrutura disponibilizada pelo governo. Em paralelo, reforça-se a necessidade de uma formação profissional sob a perspectiva prática, atrelada à realidade dos determinantes sociais e dos arranjos institucionais brasileiros disponíveis para enfrentá-los, bem como a formação continuada dos profissionais da saúde, educação, assistência e agricultura familiar acerca dos determinantes da IA, na ótica intersetorial, para ofertar a compreensão das possibilidades que o cidadão tem para que o DHAA seja garantido.
Para além do acesso reduzido, é importante refletir sobre a estrutura e a gestão da PNSAN, visto que compreender o alcance de políticas a partir destas reflexões possibilita identificar causas de eventuais falhas e aprimorar o funcionamento das relações da rede em torno da política, com potenciais efeitos positivos nos resultados35.
A efetivação da rede de proteção ao DHAA deve obedecer às diretrizes do SISAN: descentralização das ações, conjugação de medidas diretas e indiretas para o acesso a alimentação, articulação entre orçamento e gestão, monitoramento da situação de SAN, estímulo ao desenvolvimento de pesquisas e a intersetorialidade de ações governamentais e não-governamentais12. Contudo, para superar a IA que tem como plano de fundo a desigualdade social, a gestão da rede ainda precisa considerar alguns pontos que discutiremos adiante.
A determinação de um financiamento transparente, suficiente e contínuo para ações de SAN e de proteção social é fundamental para promover e proteger o DHAA. Os propósitos do SISAN são comprometidos diante da insuficiência de mecanismos institucionais sólidos que definam a origem e a estabilidade do financiamento39. Esta fragilidade ficou evidente frente ao desmonte de políticas vivenciado entre 2015 e 2022, que reviu direitos e arranjos institucionais estabelecidos desde a constituição federal brasileira40, apresentou características desde a falta de informação até a redução de recursos41,42, e marcado nos programas PBF, PAA, PNAE, ESF e Farmácia Básica17,43,44.
Outro nó crítico é a efetivação da intersetorialidade que compõe o arranjo institucional singular da PNSAN, que precisou ser construído ao longo do tempo43,mas ainda há entraves como o diálogo entre os setores e a compreensão dos gestores sobre a intersetorialidade17,45. Articular setores de sistemas complexos, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), não garante a intersetorialidade visto que estes são únicos e hierarquizados, diferente da horizontalidade do SISAN39,46. Atrelada à intersetorialidade, a descentralização é uma problemática por precisar superar as dificuldades do federalismo e da articulação entre setores em modelos de indução que viabilizem a ação de estados e municípios47. Para tanto, é estratégico fortalecer os espaços institucionais que promovem a SAN39 e definir claramente as contribuições de todas as esferas governamentais neste processo.
O DHAA deve ser reconhecido como indivisível e interdependente de outros direitos48 e requer a articulação do SISAN com: o SUAS, para garantir um conjunto de direitos sociais básicos39,49; o SUS, para promover o DHAA e a saúde, da proteção ao tratamento50 saúde integral, universal e gratuita51; as políticas educacionais, para assegurar educação gratuita e estimular a superação do ciclo da pobreza52; e as políticas de agricultura, para viabilizar a produção de alimentação adequada e saudável economicamente sustentável, diversificada e com ampla capacidade de consumo e comercialização de alimentos43.
O fortalecimento da rede de proteção ao DHAA deve alinhar-se a um modelo de desenvolvimento que priorize as pessoas e suas liberdades10, reduza as desigualdades do país, com diálogo entre direitos e economia. A privação de liberdades, às vezes, está relacionada à pobreza que rouba a oportunidade de ter acesso a comida, água, vestimenta, moradia, saneamento básico, serviços públicos de saúde, educação e assistência de qualidade53, principalmente quando consideradas as populações do semiárido, tradicionais, negras, rurais, LGBTQIAP+ e de rua54.
O presente estudo analisou a rede de programas sob a perspectiva do seu efeito no acesso aos alimentos e teve limitações como: o acesso aos programas não foi observado continuamente (participaram todo o tempo) pelo baixo acesso da população, o que pode camuflar um acesso ainda mais baixo; a impossibilidade de verificar as mudanças das famílias entre as gravidades de IA devido ao tamanho da amostra e à complexidade das mudanças no tempo; a realização com população específica de município de pequeno porte.
Apesar disso, considerando que aproximadamente 70% dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes e que a análise do tempo de convivência com IA apresenta uma nova abordagem reprodutível para analisar a persistência de IA, os resultados contribuem para o debate das políticas públicas no Brasil e reforçam a relevância de estudos dos efeito dos programas governamentais que considerem as iniquidades sociais e com a perspectiva de proteger e promover o DHAA e um desenvolvimento socioeconômico de caráter estrutural.
Considerações Finais
Este estudo elucidou o cenário complexo de coexistência da alta vulnerabilidade, da presença crônica da IA e de uma rede de proteção ao DHAA (conjunto de programas potentes) para a promoção da SAN ao acompanhar famílias acompanhadas ao longo de oito anos em uma região de alta vulnerabilidade social e climática, que é o semiárido nordestino. Diante dos resultados, reconhece-se os avanços na SAN durante os governos Lula e Dilma (2003-2015), mas compreende-se que é preciso avançar neste caminho perante os desafios da desigualdade social e os desmontes provocados na gestão de Temer e Bolsonaro (2016-2022).
É fundamental o debate entre pesquisadores, gestores e sociedade civil acerca do fortalecimento desta rede que vise, paralelamente, transformações estruturais a partir de um plano de desenvolvimento socioeconômico e político com foco na igualdade de oportunidades aos cidadãos. Sugere-se a realização de estudos de acompanhamento das famílias quanto ao acesso aos programas e como eles são utilizados na estratégia da família para o convívio ou a superação da IA, também estudos de análises de políticas sobre as fragilidades dos programas e sua comunicação com a comunidade e, ainda, estudos políticos e econômicos de abordagem quantitativa e qualitativa que analisem as possibilidades de alternativas para estas mudanças mais densas para o desenvolvimento do País.

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Santos, A. B. M. V., Palmeira, P. A., Oliveira, A.G.R.C. Rede de proteção ao Direito Humano à Alimentação Adequada e a Insegurança Alimentar: uma coorte no Semiárido Nordestino. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/jul). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/rede-de-protecao-ao-direito-humano-a-alimentacao-adequada-e-a-inseguranca-alimentar-uma-coorte-no-semiarido-nordestino/19327?id=19327

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