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0096/2007 - Rede de proteção aos idosos do Rio de Janeiro: um direito a ser conquistado
Net of protection to the elderly of Rio de Janeiro: a right to be acquired

Autor:

• Edinilsa Ramos de Souza - Souza, E.R - Fundação Oswaldo Cruz - <edinilsaramos@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0903-4525


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

Partimos de pesquisa anterior que triangulou métodos ao investigar se a violência impede a garantia dos direitos dos idosos. A uma amostra de conveniência de 72 idosos (60 ou mais anos), de ambos os sexos aplicamos um questionário com questões abertas e fechadas e entrevistamos 22 informantes-chave (idosos, líderes comunitários e representantes de órgãos públicos). Neste recorte investigamos a rede de proteção ao idoso do município do Rio de Janeiro (instituições, fluxo do atendimento, articulação, denúncias que chegam e medidas tomadas). Analisamos 763 registros de ocorrências da Delegacia do Idoso e 135 do NEAPI, atendidas em 2004. Destacamos a violência doméstica perpetrada por parentes próximos. Apontamos a necessidade de estruturação da rede formal com aumento do número de instituições de proteção ao idoso, capacitação profissional, comunicação e articulação entre os órgãos que a compõem. Julgamos importante estimular as redes informais de apoio e proteção aos idosos.
Palavras-chave: violência, idosos, redes de proteção, direitos do idoso.

Abstract:

This article is based in previous research that used triangulation of methods to investigate if the violence obstruct the right’s elderly. A questionary with open and closed questions was applied at convenience sample of 72 elderly (60 or more years old) of both sex. Twenty two informer-key (elderly, communitarian leaders and members of publics institutions) were interviewed. In this clipping we investigate the net of protection to elderly of the city of Rio de Janeiro (institutions, flow of the attendance, integration, denunciations and solutions). We analyzed 763 records of the Police Station of the Aged one and 135 of the NEAPI, taken care of in 2004. We detach the domestic violence perpetrated by relatives. We point the necessity of estruturalize of the formal net with increase of the number of institutions of protection to the aged one, professional qualification, communication and integration amoung the agencies that compose it. We judge important to stimulate the informal nets of support and protection to the aged ones.
Key words: violence; elderly; net of protection; rights of the elderly

Conteúdo:

Introdução
A população idosa foi a que mais cresceu no Brasil nos últimos 40 anos, como resultado da queda da fecundidade e da mortalidade1. O fenômeno do envelhecimento é mundial e traz à tona discussões acerca dos direitos dos idosos. No Brasil, esses direitos são garantidos pela Constituição de 1988, pela Política Nacional do Idoso de 1994, pelo Estatuto do Idoso, de 2003 e, no setor saúde, pela Política Nacional de Saúde do Idoso de 1999, atualizada em 2006. As diretrizes preconizadas nesse arcabouço legal são efetivadas pelas redes sociais que fornecem apoio e proteção aos idosos. É importante ressaltar que, embora os idosos estejam amparados legalmente, a violência que os atinge é a negação dos direitos de cidadania conquistados por eles, conforme mostram os dados apresentados no presente artigo. A violência contra o idoso é aqui entendida como todo maltrato que pode se expressar sob a forma de abuso físico, psicológico e sexual, abandono, negligência, abusos financeiros e autonegligência2.
No caso específico do Estatuto do Idoso os direitos individuais, políticos, civis, sociais e econômicos dos idosos brasileiros são reconhecidos, além deste ser um instrumento de mobilização de governo e sociedade em busca da garantia de acesso a uma rede de serviços de proteção contemplada nas diversas políticas brasileiras: assistência social, saúde, transporte, justiça, educação, cultura, trabalho e previdência.
Portanto, os conceitos de rede social, apoio social e rede de apoio social são centrais na fundamentação do presente artigo.
Segundo Sluski3 rede social é tudo aquilo com que o sujeito interage, tudo que faz parte da rede relacional do indivíduo. Os relacionamentos com a família e os amigos pressupõem troca de afeição, têm associações com o bem-estar subjetivo e estão presentes nas redes sociais4. Tanto o grupo familiar como a comunidade (amigos e vizinhos) são lugares naturais de proteção e inclusão social onde as pessoas encontram companhia, a possibilidade de compartilhar confidências, prover serviços ou auxílio em atividades cotidianas5.
O apoio social (social support) é qualquer informação e/ou auxílio material, oferecidos por grupos e/ou pessoas, com os quais se têm contatos sistemáticos e que resultam em efeitos emocionais e/ou comportamentos positivos. São trocas mútuas onde tanto aquele que recebe quanto o que oferece o apoio são beneficiados por darem um maior sentido a suas vidas.
Estudiosos do apoio social apontam para o seu papel na prevenção contra doenças, manutenção e recuperação da saúde6. O apoio social contribui criando uma sensação de coerência e controle da vida, afetando beneficamente o estado de saúde das pessoas7.
O conceito de rede de apoio social está vinculado às relações de troca, que implicam em obrigações recíprocas e laços de dependência mútua. Este conceito possui como idéia comum: a imagem de pontos conectados por fios, de modo a formar uma teia.
As redes de apoio social ao idoso podem ser: a) formais - políticas públicas direcionadas à população idosa em geral, agregando serviços de atenção à saúde, instituições jurídicas de garantia dos direitos, órgãos da previdência social, dentre outros e b) informais - relações marcadas pela “espontaneidade e reciprocidade”8 que auxiliam o idoso a manter os vínculos e proporcionam bem estar. Considera-se como rede informal a família, a comunidade, os amigos e os vizinhos. Todas essas relações que ocorrem na vida social do idoso contribuem para a proteção e o apoio na garantia dos direitos previstos por lei.
O objetivo do presente artigo é analisar a rede de proteção aos idosos existente no município do Rio de Janeiro, buscando visualizar que instituições fazem parte dessa rede, qual o fluxo do atendimento, como se dá a articulação, que tipos de denúncias chegam a esses órgãos e que medidas são tomadas no sentido de proteger os direitos do idoso.

Metodologia
Este trabalho é parte de uma pesquisa realizada no Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde/CLAVES9, no ano de 2005, com o objetivo de investigar em que medida a violência impede a garantia dos direitos dos idosos. A pesquisa original envolveu metodologia quantitativa com aplicação de um questionário com questões fechadas e abertas, aplicado a uma amostra de conveniência de 72 pessoas de 60 ou mais anos, de ambos os sexos, residentes nas doze comunidades que constituem uma área de baixa renda do município do Rio de Janeiro, na qual a pesquisa foi realizada. A capacidade funcional cognitiva e mental preservada foi outro critério para a inclusão dos idosos.
Foram também realizadas 22 entrevistas semi-estruturadas: 13 com idosos, seis com representantes da rede de apoio formal (um religioso, três representantes de associação de moradores da área e dois membros de órgãos de proteção externos à comunidade) e três da rede informal da comunidade (moradores antigos e líderes comunitários). A identificação inicial desses informantes-chave partiu do conhecimento prévio de um estudo realizado anteriormente10. Posteriormente foi usada a técnica de bola de neve.
O presente artigo aborda os dados relativos ao atendimento realizado no ano de 2004, por duas das principais instituições que atuam na proteção dos direitos dos idosos: a Delegacia do Idoso, que pertence à Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, e o Núcleo Especial de Atendimento à Pessoa Idosa/NEAPI, que faz parte da Defensoria Pública.
Para a coleta das informações foi construído e pré-testado um questionário com questões fechadas e abertas, que foram posteriormente categorizadas, versando sobre: (1) caracterização da denúncia – evento gerador da denúncia; data do fato e da sua comunicação e quem foi o denunciante; (2) caracterização do fato e da vítima – local de ocorrência do evento; número de vítimas envolvidas; sexo, idade, cor, escolaridade e bairro de residência da vítima; (3) caracterização do autor – quanto ao sexo, idade, vínculo com a vítima, bairro de residência e se reside no mesmo endereço da vítima; (4) dinâmica do evento e medidas cautelares – qual foi o encaminhamento dado à denúncia.
Esses dados são aqui complementados com as percepções dos informantes sobre as denúncias que chegam às suas instituições, o fluxo do atendimento que realizam, as articulações com outros órgãos e as medidas adotadas. Também são trazidas as visões dos idosos sobre algumas dessas questões.
As informações foram processadas utilizando o software Microsoft Access. Uma análise crítica dos dados foi feita e posteriormente, os dados foram exportados e manuseados para os softwares Microsoft Excel e SPSS (Statistical Package for the Social Sciences), versão 13.0, em que se realizou a descrição de freqüências simples e relativas. As entrevistas foram analisadas com base na Análise de Conteúdo, modalidade temática, conforme preconiza Minayo11.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ e todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido como orienta a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados e Discussão
ESTRUTURAÇÃO DA REDE DE PROTEÇÃO AO IDOSO
O quadro 1 apresenta de forma sintética os principais organismos que atuam na proteção aos direitos do idoso do Rio de Janeiro. Essas instituições pertencem às esferas Federal, Estadual e Municipal e, embora prestem atendimento à população do estado, estão situadas na cidade do Rio de Janeiro.
Quadro 1
Além das instituições acima mencionadas existem outras que participam do sistema de proteção ao idoso. Esse é o caso de algumas organizações não governamentais e secretarias da esfera Estadual e Municipal, como por exemplo, a Gerência de Programas de Saúde do Idoso da Secretaria Municipal de Saúde que atua com projetos de Desospitalização, Capacitação de Profissionais e Treinamento de Cuidadores.
A rede informal de apoio ao idoso é formada pelos familiares que, muitas vezes, em suas mais diversas gerações, convivem na mesma casa ou em espaços muito próximos à residência do idoso. Essa rede também inclui a família estendida, em que os familiares residem em casas separadas ou muito distantes, o que não significa o rompimento de relações e a família modificada, onde além dos integrantes do núcleo familiar, incluem-se amigos íntimos e vizinhos5.
Além da família, os idosos da presente pesquisa, contam com os amigos e conhecidos residentes na área, as lideranças comunitárias, os grupos de idosos e até mesmo os narcotraficantes. Esses últimos foram citados pelos idosos como fonte de solução de problemas vividos em seu cotidiano na comunidade, podendo ser considerados como membros da rede informal do idoso. Isso fica claro na fala de um líder informal entrevistado:
“Geralmente eles procuram mais os bandidos para resolver alguma coisa, então acaba resolvendo tudo ali, ou dando-se um jeito empurrando com a barriga”.
No sentido de incentivar o protagonismo dos moradores da comunidade aqui pesquisada, na luta pela diminuição da violência e a revitalização da área através da criação de espaços de lazer e de projetos sociais foi desenvolvido o movimento denominado Agenda Redutora de Violência. Amparada pela Fundação Oswaldo Cruz, essa iniciativa tem enfrentado muitos obstáculos e suas ações reprimidas pelos narcotraficantes que exercem suas atividades no local.

FLUXO DAS DENÚNCIAS
As instituições acima citadas não funcionam como uma rede articulada e integrada. Cada uma delas exerce suas funções de modo separado. Apesar disso podemos identificar que existe um fluxo mínimo de atendimento às denúncias que envolvem pessoas idosas.
A denúncia criminal feita ao Ligue Idoso ou ao SOS Idoso, é encaminhada aos Órgãos de Defesa (NEAPI, Promotoria da Terceira Idade, a Vara da Infância, Adolescente e Idoso e a Delegacia do Idoso). Esses órgãos de defesa recebem e registram os casos, tomam as providências e encaminham aqueles que não são de sua alçada para os órgãos competentes. Assim, por exemplo, uma denúncia criminal que chega ao NEAPI é encaminhada para uma Delegacia Legal, do Idoso ou a mais próxima da residência do idoso. Do mesmo modo, a denúncia criminal que chega ao Ligue Idoso ou ao SOS Idoso é encaminhada à Delegacia que poderá acompanhar o andamento do processo, inclusive em outras Delegacias.
Quando o idoso se dirige diretamente à Delegacia mais próxima de sua residência, sem ter passado pelo Ligue Idoso e SOS Idoso, a unidade que recebe a denúncia não necessariamente notifica à Delegacia do Idoso. Assim, essa última não é a única que recebe as denúncias e, portanto, não tem conhecimento de todos os crimes contra o idoso, embora seja um dos órgãos principais de captação dos casos de desrespeito a seus direitos.
A Delegacia do Idoso, além de investigar e solucionar os casos exerce papel de órgão informativo, sobretudo, em relação ao SOS Idoso e Ligue Idoso para esclarecimentos sobre a natureza da denúncia (criminal ou cível). A orientação é de que a denúncia criminal seja encaminhada para a Delegacia mais próxima da residência da vítima, uma vez que existe apenas uma Delegacia especializada para o atendimento a esse grupo populacional em todo o Estado do Rio de Janeiro.
A Delegacia abre o inquérito e o encaminha à Promotoria que o devolve quando necessita de algum esclarecimento, sendo posteriormente encaminhado ao Juiz Criminal. Segundo informação do representante da Delegacia, em alguns países, como os EUA, não existe mais o inquérito policial. Ao se constatar, através de investigação, quem cometeu o ilícito penal, este é encaminhado diretamente à Justiça.
As denúncias cíveis que chegam ao Ligue Idoso, ao SOS Idoso e às Delegacias também podem ser registradas e encaminhadas aos órgãos de defesa ou a alguma outra instituição que a especificidade do caso requeira.
O NEAPI e a PRODIDE são os principais órgãos captadores das denúncias cíveis envolvendo idosos. Os casos que neles chegam são triados e quando não são de sua competência são encaminhados para outras instituições. Quando se trata de situações que requerem orientação e garantia de assistência jurídica, eles prestam esse atendimento ou as encaminham para outra instituição de defesa que possa realizá-lo.
A ausência de um fluxo pré-estabelecido gera a duplicidade de denúncias, pois um mesmo fato pode ser registrado em mais de uma instituição. Essa duplicidade só é solucionada ao chegar em juízo, passando-se a considerar apenas a denúncia mais antiga e incorporando no processo todas as demais. Ou seja, realizando a ”juntada” solicitada pelo promotor.
Por sua vez, a rede informal dos idosos pesquisados se mostrou frágil, constituída por poucos membros, alguns deles com atuação muito restrita e cerceada pelo medo de represálias por parte dos grupos de narcotraficantes da área. Para muitos idosos, a família é o principal constituinte de sua rede de suporte social devido ao empobrecimento da rede de apoio formal oferecido pela comunidade e pelo Estado. A tarefa de amparar os idosos está quase que exclusivamente sob a responsabilidade das famílias, já que a organização comunitária também se mostra bastante incipiente12.
Apesar de, às vezes, ser o único constituinte dessa rede informal para o idoso, a família, idealizada como uma instituição protetora, não assume para si esse papel. O fato de grande percentual de autores de violência contra o idoso serem familiares, como veremos adiante, é mais um fator que leva à fragilidade dos laços afetivos.
Os líderes informais revelam que é difícil a articulação entre as iniciativas da comunidade, que estão desestimuladas por fracassos anteriores e ainda declaram que só agem quando percebem que estarão seguros e sem nenhum risco de repercussões negativas para si próprios, mostrando claramente o medo que envolve esses moradores da comunidade.

CARACTERIZAÇÃO DO ATENDIMENTO NA DELEGACIA DO IDOSO E NO NEAPI
Foram coletadas as informações de 898 registros provenientes do atendimento realizado no ano de 2004, sendo 763 na Delegacia do Idoso e 135 no NEAPI.
Antes da apresentação dos dados, é importante frisar que o total observado em algumas tabelas não corresponde ao total de registros, porque em um único registro pode haver mais de uma vítima, mais de um agressor ou mais de um motivo que levou à denúncia.
Na tabela 1 observamos que os motivos mais freqüentes de denúncias na Delegacia do Idoso são os maus tratos (48,5%), o constrangimento ilegal (11,1%), a apropriação indébita (10%) e a ameaça (9,4%). No NEAPI os maus tratos (47,4%) e a apropriação indébita (24,0%) também constituem as principais queixas dos idosos. Neste último órgão surge, no entanto, o abandono como um importante motivo de denúncia em 21% dos registros realizados no ano de 2004.
Tabela 1
Os dados da Delegacia do Idoso, aqui apresentados, são diferentes dos observados em Delegacias de outros Estados. Um levantamento realizado na Delegacia de Proteção ao Idoso de São Paulo, entre os anos de 1991 a 1998, constou que 13% das denúncias são de agressão física e 60% de abusos financeiros ou de negligência familiar. Em Belo Horizonte, entre os anos de 1998 a 2001, cerca de 40% das queixas são de ameaça e perturbação da tranqüilidade13. Estes dados apontam para uma regionalização da violência que se mostra marcada pelas influências culturais do meio onde o idoso está inserido.
É importante ressaltar que em 85,5% das ocorrências registradas na Delegacia do Idoso e em 88,1% das denúncias do NEAPI, o fato ocorreu na residência da vítima, indicando que a violência doméstica é a principal forma de desrespeito ao idoso. A maioria dos fatos denunciados envolveu apenas uma vítima (74,3% na Delegacia e 71,1% no NEAPI).
Não foi encontrada nenhuma denúncia de moradores da área onde se desenvolveu o estudo. Este dado precisa ser complexificado, pois segundo depoimentos de agentes das instituições pesquisadas, as pessoas que residem em áreas de favelas, muitas vezes não realizam a queixa por medo da ida da polícia à comunidade para investigação da denúncia.
“(...) Acho que a violência maior é que eles não têm defesas, ficam praticamente tolhidos de tomarem uma providência, de procurar a polícia, (...) a defensoria pública,... eles têm medo... da coação”.

E acrescentam:
“(...) Ele não procura a polícia, só em último caso, com medo de quê? Da violência dos traficantes, dos donos das comunidades. Infelizmente é o que tem que ser colocado (...) os donos das comunidades fazem o que querem (...) então, eles ficam com receio, eles têm medo (...) de procurar a polícia, procurar a justiça, até inclusive procurar uma ajuda de fora, sem ser a ajuda policial ou de justiça, eles têm medo.”
Medo também é o que impede o idoso de procurar por seus direitos, na visão de uma líder comunitária:
“Acho, que às vezes ele fica intimidado, impressionado (...) com receio de procurar, correr atrás daquilo. (...) às vezes é um ente querido dele, vai que pode acontecer alguma coisa... Nós que estamos em comunidades carentes sabemos como é o procedimento. É diferente. Ele acha que pode acontecer alguma coisa, ele quer que aquela pessoa respeite ele, mas também não quer correr atrás dos direitos dele, pode vir a acontecer uma coisa pior com aquela pessoa, que ele [idoso] não queira. Ele aceita aquilo ao invés de correr atrás dos direitos dele”.

Como vemos na tabela 2, a grande maioria dos idosos que sofreram algum tipo de violência é do sexo feminino (62% na Delegacia e 75,7% no NEAPI). A faixa etária mais acometida pelas agressões em ambas as instituições estudadas é a dos 70 aos 79 anos (31,3% na Delegacia e 35,1% no NEAPI).
As mulheres idosas também foram as vítimas mais freqüentes (72,5%) na Delegacia do Idoso de Belo Horizonte12. Esse dado é corroborado pela Organização Pan Americana de Saúde/OPAS14, que identifica a mulher como vítima mais freqüente da violência doméstica, sobretudo quando a questão de gênero se alia à maior longevidade.
A literatura nacional e internacional aponta para o fato de que os idosos mais velhos são os que apresentam maiores limitações funcionais e cognitivas e demandam maiores cuidados por parte de seus familiares. Essa necessidade de cuidados sem que o cuidador familiar esteja capacitado para lidar com essas fragilidades pode ocasionar situações de violência15.
De acordo com Souza et al16 as relações de poder e autoridade, estabelecidas na família, ocasionadas pela co-dependência do binômio cuidador/idoso, constituem riscos reais e potenciais de violência intrafamiliar. Esses autores apresentam a percepção dos cuidadores em relação à razão pela qual foram escolhidos para essa função: 34% responderam que o faziam como obrigação moral; 39% pensavam que não há outro remédio senão cuidar do idoso, para evitar a censura da família, amigos, e com isso obter a aprovação social. Desses cuidadores, 20% ainda afirmavam ser o cuidado uma carga excessiva. Apenas 2% confirmaram ser algo dignificante e o faziam por motivos altruístas e para manter o bem-estar do idoso. Isto fica claro quando se percebe que grande parte dos cuidadores são familiares também idosos, que já cuidaram de filhos e netos e são, por força das circunstâncias, levados a cuidar de membros em idade mais avançada, especialmente cônjuges e pais.
O processo de cuidado de um idoso com incapacidade pode trazer desentendimentos, desavenças e também pode acarretar transtornos que exacerbam conflitos familiares gerados em épocas anteriores ou suscitar novas crises, sobretudo em famílias que enfrentam situações de pobreza e vulnerabilidade17.
A informação sobre a cor da pele dos idosos apenas foi obtida na Delegacia do Idoso. Pelo visto o NEAPI não registra essa característica. É possível perceber que essa informação não é bem registrada na Delegacia, tendo em vista que em 65,8% das denúncias (504 casos) não consta esse dado. Entretanto, quando excluídos os sem informação, 76,8% dos idosos são identificados como brancos e 23,2% como pretos e pardos, mas esses dados precisam ser relativizados.
Em relação à escolaridade a informação é precária nas duas instituições aqui pesquisadas. No NEAPI só foi possível obtê-la para um caso em que a vítima possui o segundo grau completo. Na Delegacia do Idoso, em 92,7% dos casos ela não é informada. É importante observar que quanto menor o grau de escolaridade, menor é o acesso a informações e isso influencia diminuindo a realização de denúncias, conforme o relato de um dos idosos entrevistados:
“(...) a gente também não sabe diretamente nem qual é o direito que a gente tem, porque nós não somos bem alfabetizados”.
Tabela 2
A tabela 3 mostra que os autores de agressões contra os idosos distribuem-se quase que igualmente em ambos os sexos, embora as mulheres apareçam com uma freqüência um pouco maior; a maioria é adulta e se concentram na faixa etária dos 40 aos 49 anos. Convém ressaltar que na grande maioria dos casos não há informação sobre a idade do agressor (80,2% no NEAPI e 79,4 % na Delegacia do Idoso).
Isto se explica pelo fato de a mulher ser culturalmente designada para cuidar dos mais velhos. A literatura internacional identifica alguns fatores que determinam quais pessoas potencialmente poderão vir a ser cuidadores de idosos. São eles: parentesco, gênero, proximidade física e proximidade afetiva18. Portanto, ser cônjuge, do gênero feminino, viver junto com o idoso e ter uma relação conjugal ou de pais/filhos aparecem como as principais características dos que se constituem como cuidadores de pessoas idosas.
No entanto, é preciso ressaltar que o dado aqui encontrado pode estar influenciado pelo elevado percentual de casos sem informação quanto a essa variável no NEAPI (21,4%, em relação aos 2,8% da Delegacia do Idoso).
Segundo as denúncias coletadas, na maior parte das ocorrências da Delegacia do Idoso o autor reside com a vítima (58,9 %), enquanto no NEAPI a situação se inverte: em 58% dos casos o autor não reside com o idoso. Esse dado pode ser, em parte, explicado pelo fato de considerável parcela das queixas que chegam a esse Núcleo se referirem a apropriação indébita e abandono, que, não necessariamente, envolvem pessoas que co-habitam a mesma residência. Convém destacar que enquanto a informação sobre essa variável é de boa qualidade na Delegacia, apenas 0,3% de casos não esclarecidos, no NEAPI esse percentual sobe para 13,7%.
Ainda de acordo com a tabela 3, constatamos que a maior parte das agressões provém de familiares e de pessoas do círculo de amizades do idoso. Filhos/enteados são seus principais algozes, tanto na Delegacia do Idoso (52,3%) quanto no NEAPI (53,4%).
Esses dados estão em concordância com a literatura nacional e internacional. Os achados nas Delegacias do Idoso de São Paulo mostram que 40% dos agressores são filhos, netos e cônjuges. Já em Minas Gerais 45,3% dos agressores são os filhos e em 69,63% dos casos o autor e a vítima residem no mesmo domicílio13.
Os abusos e as negligências podem acontecer por choque de gerações, disputa por espaço físico, dificuldades financeiras e a visão estereotipada do idoso como decadente e descartável8. Apesar da maioria dos idosos brasileiros estar inserida em sua família e a Política Nacional do Idoso preconizar o incentivo aos cuidados familiares, este ambiente não tem se mostrado muito seguro para eles.
No presente estudo esses relacionamentos conflituosos foram verbalizados por uma idosa entrevistada:
“Meu marido foi levado para casa da filha dele e fugiu três vezes. Disse para mim que tava sofrendo muito (...) que a filha deixava ele preso num quarto e falavam para ele que só podia usar aquele quarto. A casa era grande, mas ele só podia usar aquele quarto com banheiro. Eu perguntei por que não voltava para casa? Ele me respondeu que era a família dele, não podia fazer isso. Falou que estava sofrendo muito, mas era a sua família”.
Tabela 3

A investigação mostrou que existem mecanismos de referência e contra-referência entre os órgãos de proteção ao idoso. Isso fica claro no fato de 83,8% das denúncias que chegam ao NEAPI e 46,9% das que vão para a Delegacia do Idoso serem encaminhadas pelo Ligue Idoso. Por outro lado, todo o atendimento realizado na Delegacia foi encaminhado para algum órgão estadual: 91,5% dos casos foram dirigidos ao Serviço de Investigação e Operações Policiais/SIOP, 4,5% à Justiça Especial Criminal/JECRIM, 3,9% à Justiça Comum e 0,1% dos atendimentos foram encaminhados à Delegacia de Defraudações.
Já no NEAPI, a maioria dos encaminhamentos foi feita para a Promotoria (45,5%) e para o Ministério Público (18,9%). Notamos que 22,6% dos casos foram arquivados após terem sido registrados pelo fato desse Núcleo não ter condições de dar andamento aos mesmos devido à falta de pessoal ou pelo fato do idoso, quando interrogado, desmentir a denúncia, por medo de incriminar um parente.
Na fala dos representantes das instituições de proteção ao idoso, ao responderem sobre a articulação das instituições para a garantia dos direitos dos idosos, verificamos a grande carência de órgãos e recursos para um funcionamento adequado da rede de proteção.
“(...) esse ano até que não houve tanta articulação, mas uns anos anteriores nós tínhamos bastante intercâmbio com o Ministério Público e com a própria delegacia do idoso. No intercâmbio com o ministério, a gente tava sempre conversando. A cada mudança de gestão do Ministério Público começa tudo de novo, isso demora um pouco. Mas temos intercâmbio com a delegacia, com o conselho do idoso, que solicita bastante.”
Suas falas demonstram que esses órgãos não estão preparados para receber a demanda de idosos vítimas de violência e que as esferas de poder (Estado e Município) não atribuem a devida importância às questões de proteção ao idoso.


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Souza, E.R. Rede de proteção aos idosos do Rio de Janeiro: um direito a ser conquistado. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2007/mar). [Citado em 03/07/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/rede-de-protecao-aos-idosos-do-rio-de-janeiro-um-direito-a-ser-conquistado/541

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