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0305/2006 - Rede de Suporte Tecnológico Domiciliar à Criança Dependente de Tecnologia egressa de um Hospital de Saúde Pública
Home Technological Support Net for Technology-dependent Children discharged from a State-run Hospital

Autor:

• Luciana Pellegrini Drucker - Luciana Pellegrini Drucker - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Instituto Fernandes Figueira / FIOCRUZ - <lupd@uol.com.br>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

RESUMO
A tecnologia aplicada à manutenção da vida cresceu muito nos últimos anos, com a incorporação de grandes avanços. A pesquisa e desenvolvimento aplicados às áreas de terapia intensiva pediátrica e neonatal favoreceram o surgimento da criança dependente de tecnologia (CDT), subordinada a artefatos tecnológicos e/ou farmacológicos necessários à sobrevivência. No Rio de Janeiro o Instituto Fernandes Figueira (IFF) absorve essa clientela, estendendo o cuidado após a alta, atendendo-a em casa através do Programa de Atendimento Domiciliar Interdisciplinar (PADI), quando aplicável.
O presente artigo apresenta a rede institucional envolvida com o atendimento da CDT, a forma com que a família assimila a tecnologia e torna-se gerente do cuidado, bem como a rede criada para aquisição de equipamento de apoio ao mesmo. Destaca-se também suas formas de obtenção e modos com que os diversos elementos articulam-se em função do fornecimento e manutenção do suporte tecnológico domiciliar necessário à sobrevivência desta criança dependente de tecnologia egressa do IFF.
Palavras-chave: criança dependente de tecnologia, cuidado domiciliar, tecnologia, equipamento médico-hospitalar

Abstract:

ABSTRACT
Due to big advances, life maintenance technology has remarkably improved over
the last years. Research and development in the field of intensive pediatric
and neonatal care has allowed a new type of patient to emerge: the
technologically dependent child (TDC), a heterogeneous and loosely defined
group, who depends on technological and farmacological artifacts to survive.
Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ), a public pediatric hospital in Rio
de Janeiro, takes care of this group of medical care holders/patients. After
the patients go back home, they are enrolled in a IFF program named
Interdiscipline Home Care Program (PADI is its Portuguese acronym), when elegible.
This paper discusses the net created for life maintenance equipment purchase and
maintenance. It also discusses how families absorb technology so as to become
home care givers and decide accordingly. Finally, it also discusses how
families, hospitals and funding agencies must cooperate if they should attend
to the TDC both at home and in IFF/FIOCRUZ.
It is a qualitative research, based on observation and interviews done at hospital facilities and children cared by PADI at their homes.
Key-words: Technology-dependent children, home care, technology

Conteúdo:

INTRODUÇÃO

O crescente desenvolvimento tecnológico em saúde nas últimas décadas vem aumentando a expectativa de vida e ampliando a sobrevida em muitos casos anteriormente condenados a óbito. Tais mudanças no perfil demográfico refletem a chamada transição epidemiológica. O termo descreve as mudanças de padrões doença nas condições de saúde nos dois últimos séculos. Segundo Omran1 conceitualmente a teoria da transição epidemiológica enfoca a complexa mudança nos padrões de saúde e doença, e das interações entre tais padrões e suas determinantes/consequências demográficas, econômicas e sociais. O autor pondera que, durante tal transição, as mudanças mais profundas nos padrões de doença e saúde ocorrem entre crianças e jovens. “A sobrevivência infantil é significativa e progressivamente aumentada em resposta à melhora dos padrões de qualidade de vida, avanços na nutrição e medidas de saneamento preventivas, e ainda mais acentuada à medida que modernos recursos de saúde pública tornam-se disponíveis. Ainda que todas as faixas etárias se beneficiem da mudança nos padrões de doença e do aumento da expectativa de vida, o declínio da mortalidade infantil é certamente o maior, especialmente no grupo de 1 a 4 anos.“
A incorporação de tecnologia nas áreas de terapia intensiva neonatal e pediátrica está possibilitando maior chance de sobrevivência dos recém-nascidos de alto risco, de crianças com malformações congênitas, traumas adquiridos e doenças anteriormente incompatíveis com a vida. Contudo, tais crianças freqüentemente ficam condicionadas ao uso permanente de dispositivos que monitorem e auxiliem funções vitais. A Criança Dependente de Tecnologia (CDT) se caracteriza pela dependência de artefatos tecnológicos e/ou farmacológicos indispensáveis à sobrevivência. Tais artefatos podem auxiliar a nutrição e medicação, respiração ou outros.
O Office of Technology Assessment2 do Congresso norte-americano em memorando técnico (elaborado a pedido do Senado daquele país) estima que a população nos EUA de crianças dependentes de algum tipo de dispositivo chegue a 100.000 crianças por ano (dados de 1987). Destas, estima-se que entre 10.000 e 68.000 estejam recebendo atendimento domiciliar. Rehm e Bradley 3 informam que, com base em um levantamento nacional feito em 2003 o Maternal Child Health Bureau reportou um índice de 12,8% de crianças atendendo aos critérios de sua definição de Criança com Necessidades Especiais de Cuidado em Saúde. Destas, 23% experimentaram limitações significativas em suas atividades decorrentes de suas condições crônicas.
Em 2001, Glendinning4 et al. calcularam haver até 6.000 crianças dependentes de tecnologia no Reino Unido.
No Brasil, Cunha5 em 1996 apropria-se do conceito de CDT, localiza fisicamente o tipo de dependência e busca situar esta clientela. Os estudos brasileiros disponíveis se atém a cenários específicos, seja por faixa etária ou grupos localizados 6,7,8,9,10,11,12,13,14,15. Porém, os dados indicam que tal população, ainda que diluída sob outras classificações, é expressiva em números absolutos.

A necessidade de suporte tecnológico material é reconhecida como uma categoria per se.

Há quem estabeleça uma definição para CDT que englobe as dimensões não-médicas do cuidado. A Canadian Association of Pediatric Health Centers16, ao buscar definir indicadores de saúde para a infância e juventude, decidiu ampliar a definição de CDT para Criança com Múltiplas Necessidades Complexas, de forma a abarcar e ressaltar não somente as demandas de saúde, mas também aquelas relativas a serviços e produtos. “Tomou-se a decisão de definir este grupo como ‘crianças com múltiplas necessidades de cuidado/desenvolvimento`, aquelas que requerem múltiplos serviços em múltiplos setores, e múltiplos lugares”. Assim, atribui-se uma importância intrínseca às esferas operacionais da tecnologia. A necessidade de suporte tecnológico material é reconhecida como uma categoria per se.

O ATENDIMENTO DOMICILIAR À CRIANÇA DEPENDENTE DE TECNOLOGIA

“O uso de tecnologia em domicílio para oferecer cuidado a crianças doentes não é novo. No fim dos anos 50, havia (nos EUA) um grande número de sobreviventes de poliomielite necessitando suporte respiratório em casa. Desde então sofisticadas tecnologias ( ...) vêm sendo transferidas para o domicílio. Cada nova tecnologia traz o reconhecimento de novas necessidades para o treinamento de pacientes e famílias, e aumento da complexidade do cuidado de enfermagem” (Office of Technology Assessment 2).

As vantagens da assistência domiciliar são incontestáveis. Por outro lado, tal cuidado apresenta muitas questões a resolver.

Cria-se uma rede de atendimentos baseada na cooperação entre família-hospital-atendimento domiciliar, especializada e dependente de vários subsistemas. Emergem então as dificuldades inerentes ao cuidado com muitas necessidades complexas.
As vantagens da assistência domiciliar são incontestáveis. O risco de infecções é menor; o ambiente doméstico oferece à criança aconchego familiar e estimulação social; o lar e a família propiciam um meio para desenvolver-se e participar de atividades cotidianas, e possibilita que aquelas que tenham um certo grau de autonomia possam freqüentar escola. Por outro lado, tal cuidado apresenta muitos desafios. “Ainda que existam muitas semelhanças entre o cuidado de crianças dependentes de tecnologia e o de crianças cronicamente doentes ou incapacitadas, a assistência domiciliar e necessidades de enfermagem do primeiro grupo são indubitavelmente mais especializadas, complexas e intensivas” 17.
Kirk 18 em outro texto observa: “Ao cuidar de suas crianças em casa, os pais também assumiram responsabilidade pelo desempenho de procedimentos altamente técnicos que eram anteriormente executados apenas por profissionais qualificados. Os pais desempenham múltiplos papéis, incluindo a administração da doença, organização dos serviços e luta pelos direitos da criança, bem como os outros aspectos usuais do cuidado materno/paterno. Procedimentos clínicos regulares incluem a troca de tubos de traqueostomia, sucção de vias aéreas e administração de infusões intravenosas e alimentação.”

A tecnologia redefine o espaço no lar e o significado dos papéis de pais e mães

Bond19 enfatiza “a necessidade de treinamento intensivo para que para os pais desempenhem procedimentos complexos em domicílio, que antigamente só eram encontrados em unidades de terapia intensiva de hospitais”. Murphy20 relata que, em alguns estudos longitudinais, na verificação dos fatores envolvidos no processo de familiarização com a tecnologia, esta geralmente ocorria nos primeiros seis a doze meses com CDT em casa.
A vida das famílias freqüentemente vive em torno da tecnologia e suas rotinas:

“Tudo gira em torno da traqueostomia, é terrível. “ Mãe de A 21

O lar também tem seu contexto alterado. O espaço físico ocupado pelo equipamento é privilegiado, muitas vezes ocupando todo o cômodo em que se encontra. Foram observadas verdadeiras estações de cuidado dominando a área. Quartos, salas, banheiros e varandas contém aspiradores, ventiladores, cilindros de oxigênio e bombas. Não raro são construídos cômodos especialmente para equipamentos. A tecnologia redefine o espaço no lar e o significado dos papéis de pais e mães.
Ainda Kirk21 “O ambiente doméstico torna-se medicalizado pela presença do equipamento, pessoal de manutenção e visitas. São freqüentemente reportados sentimentos de ansiedade, estresse e extremo cansaço. Discussões ou atrasos no suprimento de insumos e equipamento para crianças em ventilação mecânica, traqueostomia, oxigenoterapia e nutrição enteral é muito mais comum do que para aqueles dependentes de diálise peritoneal, drogas intravenosas e nutrição parenteral, para as quais atribuir responsabilidades parece ser mais claro. Obter serviços de suporte doméstico apropriados vem sendo relatados como difíceis e problemas relacionados à fragmentação e baixa coordenação são repetidamente citados.”
O principal objetivo da família, segundo O’Brien22, é alcançar alguma estabilidade e funcionalidade. “Infelizmente, uma mudança no equilíbrio é um elemento constante na vida familiar da CDT”. Uma mãe descreveu sua rotina da seguinte forma:
“...e você nunca pode realmente sentar e dizer ‘OK, agora o trabalho foi todo feito. Podemos deixar assim e vai funcionar’. Não funciona desse jeito. Isso é diário, e tem sempre alguma coisa que aparece e você tem que ir resolver. Isso é muito frustrante e cansativo.”

A percepção é de que, independente do grau de planejamento e expectativa de controle, algum fator inesperado emerge derrubando planos:
“ ... e mesmo que nós tentemos construir alguma estabilidade para o futuro, nós ainda temos, sempre temos, a sensação de que tudo está mal alinhavado. É como viver num castelo de cartas, não demora muito a ruir.”

“Você tem todos esses esquemas, esses sistemas confusos de organização e uma pessoa não vem, ou outra está atrasada (...) Isso me impressiona muito, sabe, o quanto o sistema todo é frágil. Nós vamos levando a vida, e quando uma pequena peça falta, e então tudo cai por terra!”

Os pais destas crianças não têm modelos por onde basear suas ações, nem relacionar suas próprias experiências de infância, ou com construções sociais de família. Assim, para os pais de CDTs, a natureza de seu papel de pai/mãe é muito diferente das idéias cotidianas de contexto parental, sendo ampliada para incorporar atividades de assistência: “uma mãe descreveu como se sentia enfermeira e não mãe, graças à intensidade de necessidades de cuidado:
“Eu era uma enfermeira de tempo integral, não mãe. Eu não reconhecia ele como mãe – eu sou a enfermeira dele, sabe” mãe família A 21

A CDT torna-se, além de dependente de tecnologia, dependente da atenção terciária. Bond19 et al. ponderam que “o processo tradicional de cuidado deve ser modificado de forma a incluir elementos que capacitem, dêem poder e fortaleçam as famílias, bem como promover a aquisição das competências necessárias às finalidades desejadas”.
Alguns programas oficiais tentam avançar e organizar a transição no papel de sujeito/objeto do cuidado. O Department of Health23 inglês formulou o Programa Expert Patient, preconizando o “paciente especialista que entende a doença, tem confiança, habilidades, informação e conhecimento para desempenhar um papel central no gerenciamento da vida com doenças crônicas, minimizando seu impacto em sua vida”. Tal iniciativa está mais identificada com o paciente crônico idoso de menor complexidade, mas a idéia central de fortalecimento e capacitação aplica-se a outros grupos. Kirk24 reconhece o conceito e transporta-o para a família, pedindo apoio aos “pais especialistas”.

MÉTODOS

Este trabalho foi caracterizado como pesquisa qualitativa, efetuada nos domicílios das crianças atendidas e nas instalações do IFF.
Foram ouvidos membros das sete famílias que compunham a clientela do Programa de Atendimento Domiciliar Interdisciplinar do Instituto Fernandes Figueira (PADI/IFF) no período de fevereiro a maio de 2004, em entrevistas semi-estruturadas e observação direta, usando um formulário com base nas informações contidas em pesquisa anterior, feita no mesmo hospital8. Os sujeitos da pesquisa consistem nas crianças atendidas domiciliarmente, os cuidadores domésticos (familiares) e profissionais. As entrevistas foram feitas nas casas das crianças atendidas e em dependências do hospital. Foi também entrevistada a mãe de uma criança anteriormente assistida pelo PADI, já falecida.
Foram entrevistadas, no hospital, três mães nas Enfermarias, na DIP e na Triagem, além das mães cuidadoras do PADI. Também foram ouvidos profissionais do PADI (enfermeira, fisioterapeuta e técnica em enfermagem). Foi consultado material de produção científica e documentos da própria equipe do PADI 12,25,26,27,28,29.
Todos os sujeitos entrevistados foram informados quanto às finalidades da pesquisa e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto obteve aprovação prévia do Comitê de Ética do IFF.

Crianças atendidas (n=7) X patologias de base X dispositivos
Paciente Patologia(s) Dependência tecnológica
A Linfagiectasia pulmonar congênita. Traqueotomia. Ventilação mecânica assistida à noite. Concentrador de O2. Nebulizador e aspirador. Cilindro de O2, em caso de urgência. Dependente de medicamento.
D AIDS. Episódios de AVE. Traqueotomia e gastrostomia Aspirador elétrico, nebulizador, cilindro de O2. Dependente de medicamento.
J Encefalopatia crônica não progressiva. Gastrostomia e traqueostomia. Concentrador de O2. Nebulizador e aspirador. Cilindro de O2, em caso de urgência. Dependente de medicamento.
MO Doença pulmonar obstrutiva crônica. Seqüela de pneumonia viral. Traqueostomia. Ventilação mecânica assistida à noite. BIPAP, Concentrador de O2. Nebulizador e aspirador. Cilindro de O2, em caso de urgência. Dependente de medicamento.

MN Doença pulmonar obstrutiva crônica Ventilação mecânica assistida à noite. BIPAP, Concentrador de O2. Nebulizador e aspirador. Cilindro de O2, em caso de urgência. Dependente de medicamento.
MR Encefalopatia crônica não progressiva. Gastrostomia e traqueostomia. Ventilação mecânica assistida à noite. BIPAP, Concentrador de O2. Nebulizador e aspirador. Cilindro de O2, em caso de urgência. Dependente de medicamento.
DM Broncodisplasia, atresia de estômago. Gastrostomia e traqueostomia. Ventilação mecânica assistida à noite. BIPAP, Concentrador de O2. Nebulizador e aspirador. Cilindro de O2, em caso de urgência. Dependente de medicamento.
Crianças atendidas pela equipe do PADI, observadas no período de fevereiro a maio/2004

A CRIANÇA DEPENDENTE DE TECNOLOGIA E O ATENDIMENTO DOMICILIAR PEDIÁTRICO DO IFF

O Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ é o único hospital no Rio de Janeiro a prestar assistência domiciliar às crianças dependentes de tecnologia.
Este hospital tem um perfil característico de atendimento da clientela pediátrica e neonatal, como hospital de referência da rede pública do estado do Rio de Janeiro voltado ao atendimento de gestação de risco, malformações congênitas e síndromes raras, além das patologias que possam surgir.
A CDT crônica oriunda do Instituto Fernandes Figueira pode se beneficiar desta modalidade especializada de cuidado oferecido pelo Programa de Assistência Domiciliar Interdisciplinar (PADI). Além das vantagens gerais do atendimento domiciliar (redução de custos, liberação de leitos, menor taxa de infecção hospitalar) somam-se outras. A criança é sempre atendida pelo mesmo grupo de pessoas, fortalecendo a parceria. O perfil multidisciplinar do PADI é formado pela união de várias categorias profissionais (médicos, enfermeira, fisioterapeutas, psicóloga e técnica em enfermagem, à época em que a pesquisa foi efetuada) e oferece condições de enfrentar situações mais complexas. A atuação do PADI pode estender-se a instâncias aparentemente não relacionadas ao cuidado: “um exemplo de intervenção participativa nas escolas diz respeito ao caso de uma criança onde a equipe adquiriu através do REFAZER um concentrador de oxigênio para adaptação desta ao ambiente escolar. Para efetivar este processo, a enfermagem, o serviço social, médico, psicóloga, foram até a escola desta criança na intenção de orientar e informar sobre o uso desta tecnologia e as especificidades do quadro clínico apresentado. Participaram deste encontro a diretora e a professora responsável pela turma da CDT.” 12
Assim, para que a criança pudesse freqüentar aulas fez-se necessário um trabalho de conscientização, esclarecimento e comprometimento da escola e suas autoridades, dentro e fora de sala de aula, a partir da ótica de diversas especialidades. Tal iniciativa reflete uma filosofia de cuidado que valoriza aspectos de bem-estar e qualidade de vida.
O benefício proporcionado pelo cuidado centrado na família cria uma série de necessidades a serem satisfeitas. A própria admissão da criança ao atendimento domiciliar deve atender a uma série de pré-requisitos não médicos. Um dos critérios de inclusão é a existência de condições materiais mínimas, no domicílio, que dêem suporte ao tratamento: tomadas suficientes e rede elétrica para alimentar os aparelhos eletroeletrônicos, rede de água que possibilite assepsia de material e telefone, fundamental em uma assistência baseada na comunicação entre as partes. Tais elementos são indispensáveis ao desempenho das tarefas assistenciais e podem significar a linha de corte ou admissão. Assim, a clientela assistida (mesmo no sistema de saúde pública e gratuita) carece de um mínimo de condições geográfico/sócio/econômicas que permitam estabelecer uma estrutura básica que garanta o funcionamento de equipamentos e a própria assistência.
O equipamento pode ter origens diversas, em diferentes acordos de empréstimo, doação, cessão, aluguel etc. Podem ser do próprio hospital, de apoios como REFAZER (ong beneficente ligada ao IFF), Secretarias Municipal ou Estadual de Saúde, ou empresas prestadoras de serviço (White Martins, Air Liquide) a mando destas. Estes determinam que as prestadoras de serviço entreguem suprimentos, façam manutenção, reposição etc. Cada criança tem seu cadastro na empresa, de forma que esse contato e posterior solução de problemas possa ser definido por telefone.
Esse serviço pode ser prejudicado se houver inadimplência do Estado frente às mesmas.
Alguns insumos podem ser fornecidos pelo IFF, obtidos por médicos do hospital, pela ONG Refazer ou, quando possível, adquiridos pela família. Pedidos feitos em programas televisivos e radiofônicos de apelo popular também são um recurso ao qual algumas recorrem. Essa necessidade de caminhos alternativos para o acesso aos dispositivos aponta uma insuficiência da oferta oficial.
Esse repasse de responsabilidade para a família gera uma forma individualizada de obtenção de recursos, que não conta com um suporte ou garantia por parte do sistema de saúde. O resultado pode ser tão desigual quanto os desfechos encontrados em diferentes esferas governamentais.
Assim, a garantia de fornecimento regular, ou com interrupções previstas, pode exigir esforços em vários níveis e diferentes esferas administrativas.
Orientados pelo PADI quanto ao protocolo burocrático, pais que têm suficiente esclarecimento e persistência conseguem alguns insumos e equipamentos a cargo do Estado. Devem ser procuradas as Procuradorias e Juizados da Criança e Adolescente do município em que a criança reside.
Todas as crianças usam pelo menos um equipamento diariamente. Estes são ligados à terapia respiratória, administração de medicamentos, alimentação e outras formas de cuidado de base tecnológica. O cuidado técnico envolve uma gama de atividades tais como assistir a criança quando ela está usando equipamento, monitoramento por observação próxima e/ou uso de dispositivos secundários, manejo do equipamento, limpeza e preparação para o uso, prover suprimentos e gerenciar reservas, manter a interface entre o equipamento e o corpo (por exemplo, cuidado nos locais de entrada e saída, troca de sondas); acessar suporte técnico/médico de outros, seja do hospital, PADI ou da empresa terceirizada.
Nenhuma pesquisa feita em domicílio, na literatura estrangeira consultada, faz menção a um fator constantemente citado nas dissertações nacionais: as dificuldades relativas à higiene. A precariedade de saneamento básico e de serviços impõe um problema adicional, dificultando o manuseio, lavagens e a manutenção dos níveis de assepsia necessários ao local e uso de dispositivos/insumos. A clientela-alvo do IFF é de extrato social mais baixo, moradora da periferia, onde o abastecimento é deficiente. Três das mães entrevistadas não tinham saneamento básico ou fornecimento regular de água em casa.
A questão dos custos com material está sempre presente no discurso.
Uma das principais justificativas para a criação de sistemas de atendimento domiciliar é a de redução de custos com a desospitalização. Mas este custo é em parte repassado à família, que muitas vezes assume despesas com insumos:
“O cuidado destas crianças no domicílio diminui os gastos com despesas hospitalares para os cofres públicos, mas oneram ou tornam insustentável o cuidado familiar com vistas à garantia de qualidade de vida para estas crianças.” 11
Wegener e Aday30 concluíram que a restrição financeira é o mais poderoso fator de estresse familiar para as famílias de CDTs.
Os dispositivos e insumos são caros e de difícil obtenção, e aparelhos mais sofisticados podem ser excluídos do sistema de saúde pública:

“Aí eu dei entrada no Juizado, aí a Defensora fez o pedido através da Prefeitura. Mas o senhor César Maia recorreu... Recorreu do pedido. Ele fez, não sei porque, com todas as documentações, todas as coisas e provas que eu levei para a Defensora, mesmo assim ele recorreu. Mas ontem eu tive uma boa notícia [...] o Juiz deu ganho de causa pra gente. Então, já sei que ta com ganho de causa. Já é mais fácil, agora só falta algumas coisinhas lá, mas ainda deve demorar um pouquinho... Já fiz antes o mesmo pedido pelo Estado e ela recebeu logo, só que ela resolveu (a Defensora) pedir pela Prefeitura, já que os aparelhos são todos do Estado, então resolveu dar entrada pela Prefeitura e a gente ganhou um não na cara...” R, mãe-cuidadora

“Quando o rapaz da empresa que representa o fabricante do aparelho chegou para entregá-lo, ele disse que nunca tinha visto uma família pobre conseguir um daqueles.” M., mãe cuidadora que obteve um aparelho de ventilação com base em Portaria do MS que garante o uso de ventilação não invasiva ao portadores de Distrofia Muscular Progressiva. 31

O ambiente doméstico é onde a criança e os cuidadores enfrentam o maior desafio: o imperativo de abarcar o processo, desenvolver um modo operatório gerido com relativa autonomia. Tal competência a ser criada tem que ser abrangente e eficiente em situações de rotina ou extraordinárias A finalidade é bastante clara, a manutenção da vida, mas os procedimentos e mecanismos empregados são misteriosos e o sujeito não se beneficia de conhecimentos anteriores que permitam comparações e associações. Soma-se a esse contexto a baixa escolaridade e pouco contato com eletroeletrônicos mais sofisticados. É imposto ao cuidador um elemento misterioso e intrincado, diferente de tudo que ele já viu antes, do qual depende a vida da criança. E de acordo com Dejours32 “o medo aumenta com a ignorância. Quanto mais a relação homem-trabalho está calcada na ignorância, mais o trabalhador tem medo. “
Dada a inexperiência e falta de conhecimento prévio que facilite o entendimento, ocorrem eventos dramáticos onde o cuidador experimenta tensão, isolamento e sensação de desamparo:
“ E a primeira vez que eu passei sozinha (saiu a sonda de gastrostomia do lugar), eu falei ai meu Deus, me ajuda, é eu e o Senhor agora. . . aquela tremedeira, eu falei, agora fica calma.”
M, mãe

O equipamento, seu uso e manutenção representam um corpo estranho, cuja operacionalidade e entendimento pertencem ao especialista. O cuidador que se sai com sucesso de imprevistos e situações críticas é simbolicamente alçado a essa categoria, com o reconhecimento implícito de que tal grau de complexidade pertence à esfera do profissional de saúde:

“ ... aquilo soltou e entrou dentro da garganta dela, ficou lá dentro. Nem os médicos sabiam que aquela traqueo desencaixava do coisa (sic) que fica no pescoço. Aí eu olhei, o coisa dentro da garganta e o troço solto. Isso era três horas da manhã, minha filha lá morrendo engasgada, o que eu vou fazer? A sorte é que tirei tudo, troquei, fiz os procedimentos e só liguei no outro dia pro médico e disse olha, tive que fazer isso assim. Ele disse “você está de parabéns, tomou atitude de doutora...”
R, mãe

Os episódios observados ilustram o que Dejours e Molinier33 apresentam sobre “trabalho como enigma”: a necessidade de enfrentar o que não está dado pela organização prescrita do trabalho. O cuidador tem de suplantar o que não foi previsto, as insuficiências e as contradições das instruções e dos sistemas técnicos. Existe uma confrontação entre a prescrição teórica e a prática onde as lacunas têm de ser preenchidas, às vezes a duras penas.
Dejours32 enfatiza que, num trabalho que envolva riscos na relação homem-máquina, “a preparação técnica (...) é também uma preparação psicológica para o incidente, o imprevisto, o acidente.” Brument34 et al. ressaltam aspectos necessários à aquisição de conhecimento técnico: “a formação deve proporcionar (...) meios de compreender o que se passa no funcionamento normal, mas também agir com conhecimento de causa nos períodos conturbados: incidentes, arranques ou paradas. Isso exige que o operador conheça mais do que os modos de utilização e procedimentos.”


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Luciana Pellegrini Drucker. Rede de Suporte Tecnológico Domiciliar à Criança Dependente de Tecnologia egressa de um Hospital de Saúde Pública. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2006/set). [Citado em 01/06/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/rede-de-suporte-tecnologico-domiciliar-a-crianca-dependente-de-tecnologia-egressa-de-um-hospital-de-saude-publica/270?id=270

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