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0119/2025 - Residências Multiprofissionais em Saúde Mental no Brasil e Formação para Saúde Mental na Atenção Básica:consenso Delphi
Multiprofessional Residencies in Mental Health in Brazil and Training for Mental Health in Primary Care:Delphi consensus

Autor:

• Thayane Pereira da Silva Ferreira - Ferreira, TPS - <thayane.silva01@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2581-4970

Coautor(es):

• Luiz Roberto Augusto Noro - Noro, LRA - <luiz_noro@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8244-0154



Resumo:

O artigo tem como objetivo abordar validação de Matriz de Critérios sobre a formação em Saúde Mental na Atenção Básica pelas Residências Multiprofissionais em Saúde Mental do Brasil. Trata-se de um estudo de avaliabilidade contemplando o Modelo Teórico-Lógico, proposição de Matriz de Critérios e validação por meio do Consenso de Delphi. Participaram 20 experts da área de formação pelas residências. O processo de validação aconteceu em três rodadas, sendo validados 44 critérios divididos em 3 dimensões e 6 subdimensões. Na dimensão 1 “Formação para o trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica” foram validadas as subdimensões (a) propostas teóricas e (b) propostas metodológicas; na dimensão 2 “Processo de trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica“ foram validadas as subdimensões (c) organização do processo de trabalho em Saúde Mental e (d) trabalho transdisciplinar e intersetorial; na dimensão 3 “Competências para a prática em Saúde Mental na Atenção Básica” foram validadas as subdimensões (e) habilidades e atitudes para a prática em Saúde Mental na Atenção Básica e (f) ferramentas para a prática em Saúde Mental na Atenção Básica. A Matriz aponta caminhos para o planejamento e atualização dos Projetos Pedagógicos e avaliação da formação em Saúde Mental na Atenção Básica pelas residências.

Palavras-chave:

Saúde Mental; Atenção Básica à Saúde; Técnica Delphi.

Abstract:

The article aims to address validation of the Criteria Matrix on training in Mental Health in Primary Care by Multiprofessional Residencies in Mental Health in Brazil. This is an evaluability study considering the Theoretical-Logical Model, proposition of a Criteria Matrix and validation through the Delphi Consensus. 20 expertsthe training area participated in the residencies. The validation process took place in three rounds, with 44 criteria divided into 3 dimensions and 6 sub-dimensions being validated. In dimension 1 “Training for work in Mental Health in Primary Care” the subdimensions (a) theoretical proposals and (b) methodological proposals were validated; in dimension 2 “Work process in Mental Health in Primary Care”, the subdimensions (c) organization of the work process in Mental Health and (d) transdisciplinary and intersectoral work were validated; in dimension 3 “Skills for practice in Mental Health in Primary Care” the subdimensions (e) skills and attitudes for practice in Mental Health in Primary Care and (f) tools for practice in Mental Health in Primary Care were validated. The Matrix points out ways for planning and updating Pedagogical Projects and evaluating training in Mental Health in Primary Care in homes.

Keywords:

Mental Health; Primary Health Care; Delphi Technique.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
Os Programas de Residências Multiprofissionais em Saúde Mental (PRMSM) constituem-se como modalidade de formação de pós-graduação lato sensu instituídos por meio da Lei 11.129/20051. São estratégicos na reorientação da formação em Saúde Mental no Sistema Único de Saúde (SUS) uma vez que se desenvolvem nos serviços de saúde em processo ativo de ensino-aprendizagem2.
Nesse sentido, os PRMSM devem produzir respostas ao modelo de atenção psicossocial vigente no país, fruto do movimento da luta antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb) em diálogo com a Lei 10.216/01, a qual dispõe sobre os direitos das pessoas com necessidades em Saúde Mental e/ou que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, redirecionando o modelo de cuidado em saúde mental3.
O movimento da luta antimanicomial brasileira tem como premissa balizadora a produção do cuidado em liberdade, a qual envolve a defesa da dimensão territorial e comunitária nas práticas em Saúde Mental4, em consonância com as orientações internacionais da Organização Mundial de Saúde (OMS)5.
O Brasil tem na atualidade uma das maiores redes de Saúde Mental do mundo, internacionalmente reconhecida pela OMS5. Nesse cenário, a Atenção Básica enquanto parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é estratégica na produção do cuidado em liberdade dialogando com os princípios da RPb6, sendo necessário o desenvolvimento de processos avaliativos que apresentem como tem se estruturado a proposta formativa dos PRMSM para a produção do cuidado na Atenção Básica.
Apesar de existirem diversos estudos sobre os inúmeros aspectos relativos à oferta de cuidado em Saúde Mental na RAPS, não se dispõe hoje de informações suficientemente atualizadas e abrangentes sobre como se constitui a formação de trabalhadora (e)s para as práticas em Saúde Mental na Atenção Básica a partir de modelos formativos em saúde6,7,8.
Nessa perspectiva, a literatura científica apresenta escassez de instrumentos que possibilitem a avaliação da formação para práticas em Saúde Mental na Atenção Básica pelos PRMSM do Brasil9,10, para além do perfil geral de competências dos egressos das residências, a formação ético-política-assistencial pautada na luta antimanicomial. Reitera-se que sendo parte da atenção psicossocial torna-se essencial a formação de trabalhadora (e)s para atuação na Atenção Básica, com redirecionamento para o cuidado territorial6, 11, de modo que se justifica a necessidade da realização de estudos sobre o arcabouço teórico-metodológico dos PRMSM para a práxis em Saúde Mental na Atenção Básica, para a inserção desse arcabouço nos projetos pedagógicos das residências no desenvolvimento de conhecimentos envolvendo competências, habilidades e atitudes para a atenção psicossocial pautada no território como espaço de produção de vida.
O presente estudo tem como objetivo validar uma Matriz de Critérios para avaliação da formação de trabalhadora (e)s para a atuação em Saúde Mental na Atenção Básica pelos PRMSM do Brasil.

MÉTODOS
Trata-se de um estudo de avaliabilidade12 o qual contempla as etapas de proposição de um modelo teórico-lógico, Matriz de Critérios preliminar e validação por meio da técnica de Consenso de Delphi13. O modelo teórico-lógico é uma ferramenta visual que auxilia a compreensão da concepção e articulação das ações integrantes de um programa ou política14.
No presente estudo, o modelo teórico-lógico foi construído a partir da proposta pedagógica dos PRMSM resultante da transversalidade produzida entre a Política Nacional de Saúde Mental, álcool e outras Drogas (PNSMAD), da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) e da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) envolvendo a reorientação do modelo de cuidado na formação de trabalhadora (e)s para a atuação em Saúde Mental na Atenção Básica2,10 (Figura 1).

Fig.1

A partir do modelo teórico-lógico foram definidas três Dimensões. A Dimensão 1: Formação para o trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica foi subdividida em (a) propostas teóricas e (b) propostas metodológicas; a Dimensão 2 : Processo de Trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica foi subdividida em (c) Organização do Processo de Trabalho e (d) Trabalho Transdisciplinar e Intersetorial; e a Dimensão 3: Competências para a prática em Saúde Mental na Atenção Básica foi subdividida em (e) Habilidades e Atitudes para a Prática em Saúde Mental na Atenção Básica e (f) Ferramentas para a prática em Saúde Mental na Atenção Básica.
A partir desses elementos foi construída a Matriz de Critérios orientada pela seguinte pergunta: “Quais critérios devem ser utilizados para avaliação da formação de trabalhadora (e)s para as práticas em Saúde Mental na Atenção Básica pelos PRMSM?”.
Para validação da Matriz de Critérios foram identificados vinte e cinco experts com o seguinte perfil: professora (e)s e/ou pesquisadora (e)s com título de Doutorado em Saúde Coletiva ou áreas afins que desenvolvessem atividades de ensino, pesquisa e extensão sobre a formação em Saúde Mental no SUS, com produção técnico-científica sobre os PRMSM. Todos os experts foram contatados via correio eletrônico e, para aqueles que concordaram em participar, foi feita a apresentação da pesquisa por meio de vídeo explicativo de cinco minutos, detalhando os principais aspectos relacionados aos objetivos da pesquisa e à técnica Delphi.
Os experts foram orientados a analisarem as dimensões, subdimensões e critérios quanto à pertinência, redação e consistência, podendo incluir, alterar ou modificar cada um deles, conforme sua compreensão. A partir dessa análise, deveriam atribuir notas de 0 (zero) a 10 (dez) a cada critério conforme seu nível de concordância com a permanência do critério, sendo 0 (zero) a discordância total e 10 (dez) a concordância máxima. As notas atribuídas foram analisadas por medidas de tendência central e dispersão, sendo adotados como pontos de corte para a validação do critério o atendimento simultâneo de Média ? 9,5; Desvio-padrão ? 1,0; Mediana=10 e Coeficiente de Variação <10,0.
A pesquisa foi conduzida dentro dos padrões éticos sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob o Parecer (retirado para evitar identificação de autoria). Todos os experts que aceitaram participar realizaram a assinatura eletrônica do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

RESULTADOS
O processo de validação dos resultados se deu por meio de três rodadas de avaliação, o qual encontra-se detalhado na Figura 1. Na 1ª Rodada do Consenso de Delphi realizou-se convite a 25 experts, com aceite e resposta de 22 especialistas, sendo possível sugerir alterações nas dimensões, subdimensões e critérios apresentados inicialmente. Nessa etapa 32 critérios encontravam-se sob avaliação, dos quais 24 critérios foram validados e 8 critérios não foram validados, de acordo com os pontos de corte para validação apresentados anteriormente.
No que se refere às sugestões de critérios, os 22 experts colaboraram com sugestões de novos critérios. O processo de validação dos critérios se deu por meio das seguintes etapas:
(a) leitura inicial de todos os critérios; (b) verificação dos critérios repetidos nas sugestões; (c) análise dos critérios que já se encontravam contemplados em critérios já validados; (d) identificação de critérios que ainda não tinham sido contemplados para compor a 2ª rodada de validação.
A etapa (a) se deu por meio da leitura inicial de todos os critérios sugeridos pelos 22 experts, a qual totalizou 114 critérios sugeridos para composição da Matriz. Na fase (b) realizou-se a retirada dos critérios repetidos, que já estavam inseridos na proposta inicial da Matriz, de modo a totalizar 44 critérios dos 114 sugeridos pelos especialistas. Na fase (c) esses 44 critérios foram analisados se já estavam contemplados entre os critérios já validados, para que na fase (d) fossem identificados 24 critérios incorporados à Matriz de Critérios para a 2ª Rodada de Validação.
Na 2ª Rodada de Validação, a Matriz de Critérios foi enviada para os experts com os 24 critérios validados na 1ª Rodada, assim como os 24 novos critérios sugeridos para serem avaliados. Nessa etapa, 17 critérios foram validados e 8 critérios foram reestruturados por 20 experts, dos 22 incluídos no início do estudo. As dimensões e subdimensões permaneceram sem alterações nessa rodada de validação.
Na 3ª Rodada de Validação, os 8 critérios reestruturados foram enviados e tiveram resposta de toda(o)s a(o)s especialistas. Nessa etapa 3 critérios foram validados e 5 critérios não validados, de acordo com os parâmetros elencados na validação, de modo que as dimensões e subdimensões permaneceram sem alterações.
A Figura 2 apresenta o processo de validação da Matriz de Critérios, auxiliando no processo de compreensão das etapas realizadas. A Matriz de Critérios validada encontra-se estruturada em 3 dimensões, 6 subdimensões e 44 critérios conforme apresentado no Quadro 1. No que se referem aos critérios que não foram validados de acordo com os parâmetros da validação, esses se encontram detalhados na discussão do estudo.

Fig.2

Quadro 1

DISCUSSÃO

Os PRMSM enquanto propostas formativas de reorientação da formação pautada na defesa dos direitos humanos e no modelo de cuidado em liberdade convoca à transformação das práticas em Saúde Mental por meio das experiências em ações coletivas e no território10. Partindo-se deste pressuposto balizador, o processo de validação da Matriz de Critérios sobre a formação de trabalhadora (e)s para atuação em Saúde Mental na Atenção Básica pelos PRMSM possibilitou reflexões e problematizações dos elementos constitutivos da formação produzidos na transversalidade das políticas de trabalho e educação em saúde, por meio da avaliação dos experts.
A discussão dos dados do processo de validação da Matriz de Critérios encontra-se apresentada nas três dimensões validadas por meio do consenso Delphi, a saber: Formação para o Trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica; Processo de Trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica e Competências para a Prática em Saúde Mental na Atenção Básica.

FORMAÇÃO PARA O TRABALHO EM SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

A dimensão Formação para o Trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica contempla as bases téorico-metodológicas da formação pelos PRMSM, propondo um arcabouço formativo pedagógico por meio dos critérios de avaliação. No que concerne às propostas teóricas validadas essas permeiam o debate sobre a Luta Antimanicomial e o Cuidado em Liberdade, Política Nacional de Saúde Mental Álcool e outras Drogas, Saúde Mental Coletiva e Promoção de Saúde Mental, Política Nacional de Atenção Básica, Territórios e Redes de Apoio, Educação Popular em Saúde Mental, Marcos Teóricos da Reforma Psiquiátrica e Determinantes Sociais na Saúde Mental.
Esses critérios sinalizam que a formação para Saúde Mental na Atenção Básica pelos PRMSM deve abarcar a perspectiva histórica e epistemológica da luta antimanicomial brasileira direcionada para as concepções do cuidado que envolva a promoção da Saúde Mental em perspectiva coletiva e territorial7,8.Logo, os processos educativos direcionados para a(o)s residentes como trabalhadora (e)s do campo da atenção psicossocial deve ter como premissa a compreensão de que o cuidado em liberdade envolve a dimensão ético-política da produção de vida das pessoas com necessidades em saúde mental e/ou que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas envolvendo o território existencial15 para além do geográfico na produção do cuidado em saúde mental.
Os determinantes sociais na Saúde Mental são marcadores estratégicos para se pensar as práticas de cuidado, uma vez que esses relacionam-se diretamente com os processos de sofrimento psíquico e adoecimento mental dos sujeitos e coletividades. Destaca-se que essa concepção dos determinantes sociais na Saúde Mental merece ampliação do debate envolvendo a perspectiva colonial da produção da loucura e as interseccionalidades em Saúde Mental (raça, gênero e classe social) que produzem iniquidades étnico-raciais, de gênero e classe social e processos de sofrimento psíquico16,17,18.
Discute-se nesse sentido, a partir do debate nacional e internacional sobre o colonialismo como relação de poder que interfere na subjetividade dos sujeitos e grupos colonizados19,20,21, a necessidade de utilizar referenciais decoloniais na formação em Saúde Mental na Atenção Básica. Ou seja, a produção da loucura constitui-se como parte do processo de colonialismo, suscitando um debate sobre a decolonialidade na Saúde Mental no território e em liberdade22.
Destaca-se ainda na subdimensão das propostas teóricas que o critério hipermedicalização do sofrimento psíquico na atenção básica não foi validado pelos experts, de modo que problematiza-se esse dado sob duas perspectivas. A primeira diz respeito ao alto índice de prescrição de medicamentos psicotrópicos na atenção básica a saúde, como única estratégia para atenção às pessoas em sofrimento psíquico e/ou adoecimento mental na atenção básica7,8. Tal realidade dialoga com o processo de medicalização da vida e das desigualdades sociais, de modo que a utilização de medicamentos ansiolíticos e psicotrópicos tem sido utilizada como estratégia para ‘silenciar’ os processos de violação de direitos e desigualdades sociais, sem de fato produzir cuidado a partir de estratégias coletivas nos territórios por meio da clínica ampliada7.
Outra perspectiva que pode ser analisada do processo de validação diz respeito à necessidade de incorporar o debate sobre a hipermedicalização do sofrimento psíquico na atenção básica nas residências multiprofissionais em saúde mental, uma vez que esse debate ainda encontra-se como um desafio para a reorientação da formação para a atenção psicossocial 8. Ou seja, o processo formativo precisa está conectado com a discussão sobre os impactos da prescrição dos psicotrópicos com renovação de receitas sem acompanhamento sistemático e diversificação de estratégias de cuidados 7,8.
No que concerne às propostas metodológicas validadas essas direcionam-se para a Formação a partir da Atuação no SUS e para o SUS; Integração de Estratégias de Educação e Trabalho; Formação pautada em Metodologias Ativas de Aprendizagem; Vinculação da Aprendizagem aos Aspectos significativos do Território; Preceptorias Interprofissionais; Tutorias Interprofissionais; e, Supervisão para o campo da Atenção Psicossocial.
Esses critérios sinalizam a formação por meio da experiência enquanto balizadora da interface educação e trabalho. Ou seja, é a partir da vivência prática nos serviços da RAPS que a(o)s residentes desenvolvem competências para o cuidado em Saúde Mental na Atenção Básica, envolvendo as metodologias ativas de aprendizagem nessa experimentação do trabalho vivo e em ato18. Essa vinculação da aprendizagem aos aspectos significativos do território direciona o processo formativo para as complexidades e multiplicidades de organizações dos territórios de atuação, na perspectiva dos territórios vivos e trocas sociais estabelecidas nesses espaços.
Nessa perspectiva, os experts avaliam que as preceptorias e tutorias interprofissionais apresentam maior relevância que as preceptorias e tutorias de núcleo, à medida que possibilitam a tessitura do campo da atenção psicossocial, ou seja, a produção do ‘comum’24,25 para as práticas em Saúde Mental na Atenção Básica. No entanto, problematiza-se sobre os desafios do trabalho interprofissional na formação em saúde mental pelos PRMSM, uma vez que esse requer a constituição de novas subjetividades em contraposição à subjetividade capitalista-colonial24 ao produzirem modos de cuidados integrais e equitativos em Saúde Mental na Atenção Básica a partir da constituição de saberes interprofissionais.
Nessa perspectiva, o critério Supervisão de Núcleo Profissional não foi validado pelos experts, de modo que discute-se que apesar da formação pelos PRMSM envolver o desenvolvimento de competências, habilidades e atitudes do núcleo profissional para a atenção psicossocial, esta não deve ser reduzida aos conhecimentos do núcleo, ampliando-se o esboço da atuação para o trabalho interprofissional na tessitura da clínica ampliada 2, 24,25,

PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

A dimensão Processo de trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica contempla as subdimensões da Organização do Processo de Trabalho e o Trabalho Transdisciplinar e Intersetorial. No que concerne à Organização do Processo de Trabalho foram validados os critérios relacionados ao Conhecimento dos Dispositivos, Fluxos e Organização da RAPS na sua Dimensão Territorial; Incentivo a Interlocução entre os Saberes e Práticas; Integração e Comunicação entre as Equipes de Saúde no Território; Educação Permanente com Análise Crítica; Utilização de Ferramentas de Gestão do Cuidado centrada nas necessidades dos usuários; Monitoramento e Avaliação da Situação de Saúde do Território; Construção de Indicadores em Saúde Mental na Atenção Básica; e, Estratégias para o Cuidado da Equipe de Saúde Mental.
Destaca-se que a avaliação da organização do processo de trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica se dá em perspectiva complexa envolvendo aspectos que perpassam desde a compreensão de funcionamento da RAPS com seus fluxos e processos organizativos até o desenvolvimento de indicadores em Saúde Mental na Atenção Básica. Problematiza-se nesse sentido a importância do monitoramento e avaliação da situação de saúde do território como parte estratégica na organização do processo de trabalho em Saúde Mental na Atenção Básica, uma vez que essas sinalizam o diagnóstico situacional do território com suas necessidades e particularidades26.
Discute-se sobre a importância da integração e comunicação das equipes de saúde no território para o desenvolvimento de ações em Saúde Mental na Atenção Básica27,28, assim como a interlocução dos saberes e práticas na constituição de uma práxis em Saúde Mental, que considera os saberes populares da própria comunidade na produção do cuidado, para além dos saberes técnicos das equipes de saúde.
Tais deslocamentos nas práticas em saúde se produzem por meio de processos de educação permanente e gestão do cuidado centrados na autonomia e liberdade, envolvendo essas dimensões no cuidado corresponsável junto às necessidades da (o)s usuária(o)s. No âmbito do cuidado, merece destaque o cuidado da própria equipe de Saúde Mental uma vez que essa lida cotidianamente com situações de adoecimentos mentais, sendo suscetíveis de processos de sofrimentos psíquicos. Ou seja, no processo formativo dos PRMSM deve-se produzir espaços de acolhimento, escutas e cuidado em saúde mental aos trabalhadores/residentes por meio do reconhecimento da complexidade e atravessamentos envolvidos no trabalho em Saúde Mental.
No que se refere à subdimensão Trabalho Transdisciplinar e Intersetorial foram validados os critérios relacionados ao Trabalho Interdisciplinar em diálogo com o Território; Trabalho Colaborativo entre Equipes; Trabalho Intersetorial com dispositivos de Cultura, Lazer e Geração de Renda; Trabalho Interprofissional em Saúde Mental; Trabalho em Saúde Mental no Território.
Discute-se sobre a relevância do trabalho interdisciplinar em diálogo com o território na potencialização das estratégias de cuidado em Saúde Mental na Atenção Básica, sinalizando-se ainda que o cuidado deve envolver estratégias para além da lógica dos serviços de saúde, ampliando-se a produção do cuidado com as expressões culturais, de lazer e geração de renda. A produção de novos circuitos onde seja possível produzir vida e ampliar os modos de existência é estratégica na produção do cuidado em Saúde Mental na Atenção Básica24.

COMPETÊNCIAS PARA A PRÁTICA EM SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

No que se refere à dimensão Competências para a Prática em Saúde Mental na Atenção Básica, essa encontra-se organizada em Habilidades e Atitudes para a Prática em Saúde Mental na Atenção Básica e Ferramentas para a Prática em Saúde Mental na Atenção Básica.
Na subdimensão Habilidades e Atitudes para a Prática em Saúde Mental na Atenção Básica foram validados os critérios de Habilidades de Gestão de Redes e Dispositivos de Cuidado; Ética Profissional com o exercício da Profissão; Cuidado Anticolonial a populações em Situação de Vulnerabilidade; Trabalho com Grupos; Cuidado Psicossocial no Território; Comunicação e vínculo com Usuários, Familiares e Comunidade.
Essas habilidades e atitudes dialogam com a perspectiva do cuidado em liberdade do modelo de atenção psicossocial vigente no país4,10. Merece destaque o critério validado relacionado ao Cuidado Anticolonial a Populações em situação de Vulnerabilidade. Este critério sinaliza uma importante tendência no processo avaliativo, uma vez que a produção epistemológica da RPb produziu ao longo do tempo invisibilidades sobre a perspectiva colonial da produção da loucura,21,22, o que refletiu nas bases teórico-metodológicas dos PRMSM10.
A concepção do cuidado em liberdade envolve a dimensão epistemológica da loucura como patologia da liberdade19 associando-se ao processo de escravização dos povos pretos e indígenas. Desse modo, cuidar em liberdade na Atenção Básica envolve a perspectiva de aquilombamento nas práticas de cuidado21, ou seja, é nos jogos de força das relações raciais que o conjunto de práticas ultrapassa a esfera da leitura, em direção ao vir a ser23, o desnorteamento de tornar-se quilombo22.
Em relação à subdimensão Ferramentas para a Prática em Saúde Mental na Atenção Básica, os critérios validados relacionam-se ao Trabalho a partir do Vínculo e Escuta qualificada; Práticas Coletivas que valorizam o Saber Popular; Visita Domiciliar e Conhecimento dos Contextos de Vida dos Usuários e Famílias; Redução de Danos junto aos usuários que fazem uso prejudicial de Álcool e outras Drogas; Utilização do Território e Recursos Comunitários no Cuidado em Saúde Mental; Matriciamento em Saúde Mental; Projeto Terapêutico Singular (PTS); Gestão Autônoma de Medicação (GAM); Práticas Integrativas e Complementares (PICS); e, Utilização do Ecomapa com as Relações Sociais.
Discute-se a relevância das práticas em Saúde Mental na Atenção Básica se constituírem a partir no vínculo com os usuários, familiares e a comunidade, assim como por meio do mapeamento dos equipamentos e recursos comunitários que o próprio território apresenta, ampliando as redes de suporte e apoio social para a(o)s usuária(o)s da RAPS. Ou seja, a utilização do território como estratégia de cuidado coletivo por meio da ampliação das sociabilidades e trocas simbólicas que este espaço de produção de vida pode ofertar.
Analisa-se que essas ferramentas são estratégicas para a produção do cuidado em Saúde Mental na Atenção Básica, à medida que possibilitam a aproximação com os contextos de vida da(o)s usuária(o)s, trabalhando com a perspectiva da autonomia destes nos processos de cuidado, assim como envolvendo os circuitos de trocas sociais no cuidado em Saúde Mental6,7. Reforça-se que essas ferramentas questionam a racionalidade biomédica na atenção em Saúde Mental, propondo para o processo formativo a necessidade de envolver outras racionalidades em saúde, como por exemplo, as PICS.
São ferramentas, portanto, que respondem ao modelo da atenção psicossocial, uma vez que inserem nas práticas de cuidado territoriais28, tecnologias leves como vínculo e escuta qualificada, valorização dos saberes das comunidades, estratégias de redução de danos junto aos usuários que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, possibilitando a partir dessas ferramentas o protagonismo dos usuários no seu processo de cuidado.
Esses critérios validados contribuem significativamente para a avaliação da formação pelos PRMSM respondendo ao modelo da atenção psicossocial, ao redirecionar as tecnologias de cuidado para o território28, pautando-se na autonomia da (o)s usuária (o)s e nos seus circuitos de trocas sociais.

CONCLUSÕES
Ao englobar a transversalidade e intersecções das políticas públicas de educação e trabalho, o estudo produz reflexões fundamentais para a formação em Saúde Mental na Atenção Básica pelos PRMSM. Dentre os avanços da proposição desse modelo avaliativo para as Residências, destaca-se a inovação ao abarcar o processo formativo para o desenvolvimento de práticas em Saúde Mental na Atenção Básica em diálogo com a atenção psicossocial brasileira.
Ao sinalizar a visibilidade produzida a partir das metodologias ativas de aprendizagem como perspectiva calcada na experiência da formação de trabalhadores a partir da realidade do SUS, sinaliza estratégia balizadora no planejamento e/ou atualização dos projetos pedagógicos dos PRMSM.
Sugere-se a aplicação da Matriz de Critérios com egressa (o)s dos PRMSM para avaliar a formação para Saúde Mental na Atenção Básica buscando conhecer o atual estágio de discussão a partir dos direitos humanos e cuidado em liberdade, em consonância com a luta antimanicomial e a RPb.
O estudo sinaliza, ainda, a necessidade de desenvolvimento de outras pesquisas que discutam as interfaces das interseccionalidades em Saúde Mental e decolonialidade na formação pelos PRMSM, produzindo debates sobre a perspectiva racista e colonial na produção do adoecimento mental.
Em relação aos desafios da formação em Saúde Mental na Atenção Básica pelos PRMSM, destaca-se a relevância da inserção do debate sobre a hipermedicalização do sofrimento psíquico na Atenção Básica tendo em vista o alto índice de uso de ansiolíticos e psicotrópicos prescritos nestes espaços, constituindo-se como parte dos processos de medicalização da vida.
Enquanto modelo avaliativo, esse estudo aponta caminhos para o suporte pedagógico dos Programas de Residências Multiprofissionais do Brasil, apostando na constituição de outras subjetividades por meio da formação de trabalhadores para a atuação em Saúde Mental na Atenção Básica.

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Ferreira, TPS, Noro, LRA. Residências Multiprofissionais em Saúde Mental no Brasil e Formação para Saúde Mental na Atenção Básica:consenso Delphi. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/mai). [Citado em 19/05/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/residencias-multiprofissionais-em-saude-mental-no-brasil-e-formacao-para-saude-mental-na-atencao-basicaconsenso-delphi/19595

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