0209/2006 - SIGNIFICADOS E SENTIDOS DE SAÚDE SOCIALIZADOS POR ARTEFATOS CULTURAIS: leituras das imagens de advertência nos maços de cigarro
SENSES AND MEANINGS OF HEALTH SOCIALIZED BY CULTURAL DEVICES: readings of the warning images on the packets of cigarettes
Autor:
• Rogério Dias Renovato - Renovato, R.D. - Dourados, Mato Grosso do Sul - Laboratório de Estudos e Pesquisas em Práticas de Educação e Saúde (PRAESA) – Faculdade de Educação – UNICAMP; Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS - <rrenovato@uol.com.br>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
Neste artigo, analisamos imagens veiculadas nas embalagens de cigarros, que fazem parte das estratégias do Ministério da Saúde no combate ao tabagismo e disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Câncer. Tais imagens trazem o discurso oficial de especialistas e constróem narrativas, entendidas como verdades, alicerçadas no conhecimento científico. Apoiamo-nos no referencial teórico dos Estudos Culturais, pois suas reflexões ajudam a compreender que as subjetividades são social e culturalmente construídas por vários discursos e artefatos. Não negamos o que está representado, mas estabelecemos diálogos com outras possibilidades de leituras que podem estar presentes nestes artefatos. Entendemos essas imagens como pedagogias culturais - que se comportam como textos a serem lidos, construindo representações, as quais podem ser assumidas como efeitos de verdade - e que atribuem ao sujeito a necessidade de controlar constantemente suas ações. Ao reforçar a biomedicina, as instituições de saúde reproduzem uma visão unidimensional e desconsideram a complexidade desse problema. Entendemos que as pedagogias culturais fazem parte de um território de lutas, onde sentidos e significados podem ser re-elaborados, produzindo identidades híbridas, que constróem suas matrizes identitárias nesse emaranhado de relações de poder.Palavras-chave: Estudos culturais, tabagismo, educação, saúde.
Abstract:
In this article we analyzed propagated images on the packets of cigarettes, that take part in the strategies from the Ministry of Health to combat the tabagism, available in the Cancer National Institute. These images bring the official speech of specialists and build up narratives, understood such as truths, based on the scientific knowledge. We have supported our thesis on the theoretical referential of the Cultural Studies, since its reflections help to understand that the subjectiveness is social and culturally built up by a varied gamma of speeches and devices. We do not deny what is represented, but we establish dialogues with other possibilities of readings that can be present at these devices. We understand the propagated images as cultural pedagogies, that behave as texts to be read, building up representations that can be assumed as true effect, and attributes to the citizen the necessity of constant control of its action. Reassuring the biomedicine and the health institutions, an onedimensional vision is propagated disregarding the complexity of this problem. We understand that the cultural pedagogies are part of contest territories, where the directions and meanings can be re-prepared producing hybrid identities, that build up its own identities origins over this tangle of power relations.Keywords: Cultural studies, tabagism, education, health.
Conteúdo:
A linguagem imagética produz e reproduz informações e conhecimentos, pois veicula discursos, significados e intenções e, em certas situações, estas imagens podem favorecer a comunicação, ultrapassando códigos de diferentes discursos das várias culturas.
As imagens devem ser vistas em um contexto sociocultural e podem ser um documento revelador de mentalidades, histórias, transformações e permanências. Elas ajudam também a construir sujeitos e realidades; produzem e circulam discursos que socializam múltiplos significados e sentidos de gênero, etnia, sexualidade, corpo, afetividade, saúde, mercadorias, dentre outros.
Kellner1 corrobora estas idéias quando menciona que fazer leituras críticas de imagens implica aprender como apreciar, decodificar e interpretar as mesmas, procurando analisar tanto a forma, como os discursos que elas comunicam em situações concretas, buscando seus sentidos e significados.
Entre as diversas possibilidades de imagens (fotográficas, fílmicas, iconográficas, pictóricas, entre outras), a imagem fotográfica captura um instante isolado de um tempo, e o relance fixado na fotografia representa um elo, que é preciso ligar a outras imagens para poder extrair um conteúdo com significados e condições de desdobramento (Leite et al.2). Assim, a fotografia é um artefato cultural que tem uma fixidez momentânea a espera de um interlocutor para movimentá-la..
Para Campos3, as fotografias oferecem possibilidades de problematização ao registrarem cenários e sujeitos num tempo e espaço, permitindo ao pesquisador desvendar conteúdos, histórias recobertas por discursos e ideologias. Reforça que para se fazer uma interpretação das imagens é necessário incorporar à análise elementos da ordem social, política e cultural dos indivíduos.
Pela importância que as imagens assumem na sociedade contemporânea, inclusive na área da saúde, pretendemos, neste trabalho, dialogar com fotografias utilizadas neste campo, entendendo-as como um texto a ser analisado.
Neste percurso, nos apoiaremos em um referencial teórico que, do nosso ponto de vista, pode contribuir com outros olhares - os Estudos Culturais (EC). Suas reflexões nos ajudam a compreender que as subjetividades e as identidades são social e culturalmente construídas por uma gama variada de discursos, códigos e artefatos. Assim, alertamos que não se trata de negar o que está aparente, mas estabelecer diálogos com outras possibilidades de leituras de discursos que também podem estar presentes nestes artefatos.
Os EC possibilitam examinar os efeitos da pedagogia cultural, que situa “a educação numa variedade de áreas sociais incluindo, mas não se limitando, à escolar” (Steinberg et al.4). Desse modo, “os EC ampliam nossa compreensão do pedagógico e de seu papel fora da escola como o local tradicional de aprendizagem” (Giroux5). Segundo Costa6 “todos os locais de cultura em que o poder se organiza e se exercita, como programas de TV, filmes, jornais, revistas, brinquedos, catálogos, propagandas, anúncios, videogames, livros, esportes, shopping centers, entre tantos outros, são espaços que educam, praticando pedagogias culturais que moldam nossa conduta”.
Nossa finalidade neste artigo foi analisar artefatos pedagógicos culturais - imagens veiculadas nas embalagens de cigarros - e que fazem parte das estratégias do Ministério da Saúde no combate ao tabagismo, disponibilizadas no site do Instituto Nacional de Câncer – INCA7. Tais imagens veiculam o discurso oficial e científico de especialistas e também constróem narrativas, entendidas como verdades, alicerçadas em conhecimentos legitimados.
Procuraremos desnaturalizar os discursos contidos nestes materiais publicitários que tratam da prevenção ao tabagismo, entendendo-os como textos culturais multirreferenciais (perspectiva que considera as diferentes referências utilizadas por diversos sujeitos), repletos de sentidos e que exigem um processo de decodificação e interpretação. Estaremos atentos às concepções de ser humano e de saúde, binômio que dará pistas significativas sobre as maneiras de circular os efeitos ou regimes de verdade, ou seja, determinar mecanismos retóricos através dos quais, em conexão com relações de poder, um determinado discurso é tomado como verdade (Silva8).
Aproximamo-nos também, nas nossas análises, do conceito de governamentalidade de Michel Foucault, entendendo que os artefatos culturais podem governar os sujeitos através da delimitação e normatização de condutas. Assim, os discursos dos artefatos culturais são resultados de um conjunto de práticas que os antecede e que neles se atualiza e se multiplica. A governamentalidade pode ser entendida como a conduta da conduta; exemplificando este conceito no campo da saúde, podemos citar as campanhas preventivistas, em que os sujeitos - público-alvo - devem tomar esses discursos da prevenção e da promoção da saúde como práticas de si (Santos9).
Nesta perspectiva, apresentamos inicialmente alguns fundamentos teóricos e epistemológicos dos EC que servirão de escopo para as análises e suas possíveis articulações com os campos da Saúde e da Educação. Em uma etapa seguinte, traremos algumas considerações referentes à inserção do uso do tabaco na sociedade. Interessa-nos também trazer algumas possibilidades de leituras das imagens de advertência encontradas nas embalagens de cigarro, com as quais procuramos dialogar. Finalizamos, tecendo algumas considerações entrelaçando fios e potencialidades que se fizeram presentes nesta trama.
SITUANDO OS ESTUDOS CULTURAIS
Os EC surgiram na Inglaterra nos anos 50, como um projeto de abordagem de perspectivas críticas e multidisciplinares. A proposta inicial dos EC britânicos era “um projeto de pensar as implicações da extensão do termo cultura para incluir atividades e significados das pessoas comuns, que foram excluídas da participação na cultura, se considerada como elitista e rebuscada” (Costa et al.10 ).
Os EC constituíram-se, nos últimos anos, em um terreno problemático de disputas e contestações, repleto de diferenças teóricas e políticas. Segundo Nelson et al.11, entender os EC utilizando-se de estratégias tradicionais, com a delimitação desse campo do saber em disciplinas, é incompatível. Os EC não são tão somente interdisciplinares, mas ativa e agressivamente antidisciplinares. Os EC utilizam-se de quaisquer campos que forem necessários para produzir o conhecimento exigido por um projeto particular.
Os EC devem ser vistos tanto do ponto de vista político, na tentativa de construção de um projeto político, como do ponto de vista teórico, ou seja, com a perspectiva de organizar um novo campo de estudos (Escosteguy12 ).
Para localizar alguns fundamentos dos EC retomamos aspectos de seu percurso histórico e algumas das idéias presentes nestas discussões.
As primeiras manifestações dos EC surgem na Inglaterra, nos fins dos anos 50, tendo como precursores Richard Hoggart (The uses of literacy, 1957), Raymond Williams (Culture and society, 1958) e Edward Palmer Thompson (The making of the english working-class, 1963) (Escosteguy13).
O campo dos EC surgiu tendo como finalidade analisar as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais. Sua institucionalização ocorreu, inicialmente, com o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham (Centre for Contemporary Cultural Studies), em 1964, fundado por Hoggart e Williams. Neste primeiro momento, os EC se preocuparam com os produtos da cultura popular e da cultura de massas que expressavam a cultura contemporânea (Escosteguy13).
Na década de 70, os EC passam a dar importância aos meios de comunicação de massa, não apenas como entretenimento, mas como aparelhos ideológicos do Estado.
Os estudos das culturas populares pretendiam responder a indagações sobre o delineamento de um sistema de valores e de um universo de sentidos, sobre o problema da autonomia e também, como esses mesmos sistemas contribuem para a constituição de uma identidade coletiva e como se articulam as dimensões de resistência e subordinação das classes populares (Escosteguy13).
Entretanto, os estudos sobre os meios de comunicação caracterizavam-se pelo foco na análise da estrutura ideológica, principalmente, com cobertura jornalística.
Nesta década (70), é de grande importância para os EC o “feminismo” que desponta como uma das rupturas teóricas, influenciando os seguintes aspectos: a abertura para o entendimento do âmbito pessoal como político e suas conseqüências na construção do objeto de estudo dos EC; a expansão da noção de poder; a centralidade nas questões de gênero e sexualidade; a inclusão de questões em torno do subjetivo e do sujeito e a reabertura da fronteira entre a teoria social e a teoria do inconsciente (Escosteguy13).
Escosteguy13 cita Michael Green para comentar que “se há um tema que possa ser identificado na primeira fase dos estudos culturais, é o da cultura como espaço de negociação, conflito, inovação e resistência dentro das relações sociais das sociedades dominadas pelo poder e fraturadas por divisões de gênero, classe e raça”.
Nos anos 80, há uma difusão dos EC ocasionado pelo processo de globalização. “O foco central passa a ser a reflexão sobre as novas condições de constituição das identidades sociais e sua recomposição numa época em que as solidariedades tradicionais estão debilitadas” (Escosteguy13). Nesta década, surgem novas modalidades de análises dos meios de comunicação. A audiência estabelece uma ativa negociação com textos midiáticos e com as tecnologias no contexto da vida cotidiana.
Na década de 90, as investigações estimulam a “capturar a experiência, a capacidade de ação dos mais diversos grupos sociais vistos, principalmente, à luz das relações da identidade com o âmbito global, nacional, local e individual” (Escosteguy13).
Na América Latina, os EC propõem um olhar interdisciplinar que entende os processos culturais como interdependentes e não como fenômenos isolados. O interesse maior é perceber as intersecções entre as estruturas sociais e as formas e práticas culturais.
Apesar das dificuldades de se definir os EC, Hall14 reivindica que se mantenha sua pluralidade, mas simultaneamente reclama a existência de um fio condutor: Apesar do projeto dos estudos culturais se caracterizar pela abertura, não se pode reduzi-lo a um pluralismo simplista. Sim, recusa-se a ser uma grande narrativa ou um meta-discurso de qualquer espécie. Sim, consiste num projeto aberto ao desconhecido, ao que não se consegue ainda nomear. Todavia, demonstra vontade em conectar-se; têm interesse em suas escolhas... Registra-se aqui uma tensão entre a recusa de se fechar o campo, de policiá-lo e, ao mesmo tempo uma determinação de se definirem posicionamentos a favor de certos interesses e de defendê-los.
Segundo Sardar et al.15, os EC apresentam pelo menos cinco pontos norteadores. O primeiro tem por objetivo mostrar as relações entre poder e práticas culturais. Em segundo lugar, desenvolve os estudos de cultura de forma a tentar captar e compreender a sua complexidade no interior dos contextos sociais e políticos. O terceiro ponto, os EC vêem a cultura sempre com uma dupla função, quer como objeto de estudo, quer como local da ação e da crítica política. Um quarto aspecto indica que os EC tentam expor e reconciliar a divisão do conhecimento entre quem conhece e o que é conhecido. E por último, os EC têm o compromisso com uma avaliação moral da sociedade moderna e com uma linha radical de ação política.
Apesar da forte influência marxista, os EC têm sido radicalmente transformados e os debates mais recentes se apoiam em abordagens pós-estruturalistas, a partir das concepções de poder e discurso de Michel Foucault.
A INSERÇÃO DO USO DO TABACO NA SOCIEDADE
A grande expansão do consumo do tabaco é um problema de saúde globalizado, o que levou alguns países a optar por medidas drásticas, como banir a publicidade do cigarro. Com este propósito, alguns Estados Membros da Organização Mundial da Saúde adotaram na 56ª Assembléia Mundial da Saúde, em maio de 2003, um Tratado Internacional de Saúde Pública, chamado Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. Esse tratado fixou padrões internacionais para o controle do tabagismo relacionados à propaganda e patrocínio, à política de impostos e preços, à rotulagem dos produtos, ao comércio ilícito, ao tabagismo passivo, à responsabilidade civil, dentre outras medidas, visando a fortalecer as medidas adotadas em cada país (INCA16).
No Brasil, segundo Cavalcante17, um dos entraves para o controle do tabagismo é a grande receita gerada pelas exportações e a arrecadação de impostos provenientes da taxação do tabaco (73,55% sobre os preços finais do cigarro) que o torna uma importante fonte de renda fiscal. Este é um argumento utilizado como lobby pelas indústrias do tabaco, dificultando as ações de controle do tabagismo.
O consumo de tabaco é tido como um grave problema de saúde pública, que compromete o desenvolvimento social e econômico. Como exemplo, podemos citar que a incidência do infarto agudo do miocárdio está estreitamente relacionada a fumantes e a ex-fumantes. Dentre as substâncias presentes na fumaça do cigarro capazes de causar danos cardiovasculares estão o monóxido de carbono, a nicotina, o benzopireno e os radicais livres (Stuchi et al.18).
Estudos apresentados pelo INCA têm mostrado que a adolescência é a fase da vida com maior risco para se iniciar o uso do tabaco. A redução da experimentação e do consumo regular de produtos de tabaco, sobretudo de cigarros, nesse grupo etário, tem sido um grande desafio para as estratégias dos programas de controle do tabagismo, mesmo em países desenvolvidos.
Esta mesma instituição (INCA) aponta que os fabricantes de tabaco têm consciência de que a nicotina gera dependência orgânica e dirigem suas publicidades principalmente para atingir o público jovem, uma vez que, há fortes indícios de que quem não começou a fumar na adolescência dificilmente se torna fumante na vida adulta.
O maço de cigarros é apresentado como um passaporte para o mundo adulto, para o sucesso, para o glamour, para a sensualidade e para a liberdade. A indústria apresenta ainda, uma série de estratégias de publicidade indireta, como a oferta no mercado de produtos de consumo com logotipos das marcas de cigarro; promoção de eventos esportivos ou artísticos; a distribuição de amostras grátis; a promoção de campanhas de saúde; o apoio a programas de hortas e cuidados com o meio ambiente em escolas de ensino fundamental. A intenção é fazer com que os jovens tenham a impressão que o tabagismo é muito mais comum e socialmente mais aceito do que o é na realidade (INCA19).
Nos diferentes tempos e espaços sociais, o tabagismo, enquanto prática sociocultural assume conotações complexas e, em muitas situações contou com o estímulo e o apoio dos meios de comunicação, através de propagandas veiculadas na TV, nos jornais, revistas, outdoors e outras mídias.
As imagens divulgadas nessas propagandas enalteciam a juventude, a masculinidade, o poder, a conquista, a sedução e a independência financeira. Os homens que apareciam nestes veículos geralmente se apresentavam com carros caros ou praticando esportes radicais, como o pára-quedismo, o alpinismo, automobilismo, dentre outros. Em relação ao público feminino, as imagens reforçavam um modelo estético valorizando a magreza, a independência, o poder e a sociabilidade.
Essa divulgação remonta à década de 50, com as parcerias entre as multinacionais de cigarro e a indústria cinematográfica hollywoodiana, a partir dos filmes tipo noir, com atores americanos, como Humphrey Bogart. Na década de 60, com os movimentos de contracultura o consumo do cigarro aumentou. Nessa época, o hábito de fumar estava relacionado com liberdade e auto-afirmação.
Nos anos 80, o foco é o garoto-propaganda da Marlboro de beleza americanizada, de queixo quadrado, tipo caubói, demonstrando robustez e olhar altivo, montado em um cavalo puro-sangue. Em geral, no final da peça publicitária ele fumava um cigarro, denotando prazer e satisfação. Além disso, a empresa do tabaco também patrocinou esportes elitistas, como a Fórmula 1, que trazia em seus carros e vestimentas o logotipo de marcas famosas, associando a idéia de liberdade, autonomia e vitória.
No final desta década, circularam resultados de pesquisas científicas, que estabeleciam relação direta do tabaco com várias patologias, dentre elas os cânceres, como o de pulmão, de boca, de faringe e laringe. Mas não podemos ignorar que os familiares desses sujeitos começaram a ganhar na justiça norte-americana, elevadas cifras referentes aos danos acarretados pelo tabaco. Esta situação foi explorada no filme “O Informante”, tendo como protagonista o ator Russell Crowe; o roteiro do filme contempla um cenário de uma indústria preocupada apenas com lucros e com a garantia de permanência do produto no mercado, bem como a ampliação do rol de consumidores do tabaco.
Assim o tabagismo, antes considerado apenas como fator de risco sem alguma relação com o processo de dependência, começa a ser reconhecido como doença, culminando em sua inserção no Código Internacional de Doenças (CID) 10a edição, no grupo de transtornos mentais devido ao uso de substâncias psicoativas (Cavalcante17).
Com o montante de estudos que comprovaram os malefícios causados pelo tabaco, os órgãos de saúde e, no caso do Brasil o Ministério da Saúde, passaram a implementar, no fim dos anos 90, políticas voltadas à redução do uso de tabaco. Citamos como exemplo a restrição e a proibição de peças publicitárias, a veiculação de imagens sobre os danos causados pelo cigarro nas embalagens, a elevação de impostos sobre o produto, bem como a instituição de condutas aos profissionais de saúde no cuidado prestado aos dependentes de nicotina (INCA19).
Segundo dados do INCA, na cidade do Rio de Janeiro o índice de fumantes teve uma leve queda entre os anos de 1989 a 2003. Em 1989, este índice era de 30% e em 2003, a taxa caiu para 17%. A pesquisa apontou que o consumo de tabaco concentra-se nas capitais de regiões mais industrializadas e atinge, principalmente, a população de menor escolaridade e renda (INCA20).
Por outro lado, mesmo com essa somatória de manifestações científicas, algumas representações do tabagismo permanecem. Segundo Cavalcante17, discursos impregnados de julgamentos de valor em relação ao fumante ainda circulam inseridos em um contexto negativo de moralidade. Além disso, as divulgações realizadas sobre os efeitos deletérios do tabagismo passivo na década de 80, contribuíram para reforçar e ancorar o tabagismo como uma ameaça para a coletividade.
A responsabilização da doença baseada no risco individual verificada em doenças crônicas com fatores de risco identificáveis parece se reproduzir também no tabagismo, e consequentemente ocultar outros componentes relevantes, como as forças culturais e sociais: “percebe-se hoje, uma tendência em se enxergar o fumante como o foco principal da problemática tabagismo, principalmente após a disseminação dos dados epidemiológicos sobre o tabagismo passivo, ficando em plano secundário todo o contexto histórico e social que contribuiu para a vulnerabilidade de milhões de pessoas hoje dependentes de nicotina” (Cavalcante17).
POSSIBILIDADES DE LEITURAS DAS IMAGENS DE ADVERTÊNCIA NAS EMBALAGENS DE CIGARRO
O emprego obrigatório de imagens de advertência nos maços de cigarro é decorrente de uma trajetória no âmbito legislativo. A primeira Lei Federal relacionada ao controle do tabagismo foi promulgada em 1986, estabelecendo o dia 29 de agosto como o Dia Nacional de Combate ao Fumo. Em 1988, através da Portaria no. 490, as indústrias produtoras de cigarros tiveram de incluir a advertência nas embalagens e publicidades dos produtos contendo tabaco: “O Ministério da Saúde adverte: Fumar é prejudicial à saúde”. Em 1999, outras mensagens foram introduzidas como: “a nicotina é droga e causa dependência” e “fumar causa impotência sexual”. A obrigatoriedade da veiculação de imagens no verso das embalagens do cigarro foi apenas determinada em 31 de maio de 2001, através da Resolução n.º 104, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária-ANVISA (Cavalcante17).
Segundo dados do Ministério da Saúde, as imagens de advertência nos maços de cigarro sobre os malefícios do fumo causaram impacto junto aos fumantes. Muitos fumantes evitam comprar maços que venham, por exemplo, com a imagem de um bebê prematuro. Essa medida provocou mudanças nas estratégias da própria indústria do tabaco como, por exemplo, fornecer no interior do maço, um cartão promocional no tamanho exato da imagem de advertência, que teria a finalidade de ocultar as imagens (INCA21).
No site www.inca.gov.br, o INCA disponibiliza uma série de materiais de divulgação como cartões animados, protetores de tela, imagens, vídeos e charges. Dentre eles, escolhemos o segundo grupo de imagens impressas nas embalagens de cigarro e que podem ser vistas pelos consumidores, conforme Resolução n.º 335, da ANVISA, de 21 de novembro de 2003 (ANVISA22).
Para este trabalho, analisamos as dez imagens relacionadas no quadro 1. Cada uma delas, além do componente visual, contém uma frase de advertência emitida pelo Ministério da Saúde.
Quadro 1
Neste texto, não nos propusemos a leituras-análises de cunho moral das imagens, tentando enquadrá-las como boas, más ou adequadas. Logo, não se trata aqui de desconsiderar os achados científicos que atribuem ao uso do tabaco inúmeros malefícios ao usuário-dependente e à sociedade como um todo. E sim explicitar, através desse processo, a constituição de uma nova moral, uma nova economia e uma nova biopolítica que coloca em foco não mais o direito à saúde, e sim o dever que cada indivíduo deve assumir. O percurso trilhado pela nossa análise pretendeu explicitar outros significados e sentidos de saúde, presentes nesses textos imagéticos (produtos culturais) e mostrar o seu caráter artificial de produção.
As imagens veiculadas nas embalagens de cigarro mostram animais e sujeitos (homens e crianças), em ambientes doméstico e hospitalar. Em geral, os sujeitos apresentam agravos à saúde, atribuídos ao consumo de tabaco. Nestas imagens, também podemos visualizar corpos fragmentados, deteriorados, e principalmente, sua correlação com alguns tipos de câncer. A leitura desses textos imagéticos alerta para a responsabilização do sujeito, e a conseqüente culpabilização, como decorrência do uso do tabaco.
Neste estudo, o discurso do sujeito responsável é evocado como resultante do processo de assujeitamento do indivíduo pelo poder contemporâneo. Nas subjetividades atuais, o corpo e a sua estética apresentam-se como valores centrais que passam a gerir as experiências subjetivas (Caliman23).
Estas imagens expõem não somente as conseqüências do uso do tabaco sobre si, como também sobre o outro. A responsabilização e a culpabilização são enunciados que circulam através desses discursos iconográficos, mostrando o hábito do tabagismo como prática não saudável e que pode interferir na sua relação com o outro, como vemos nas imagens de um feto morto e de crianças afetadas pelo tabaco. Esse discurso apresenta legitimação a partir de evidências epidemiológicas no final dá década de 80, em que o cigarro mostrou-se ser prejudicial também a não-fumantes. Assim, o uso do tabaco deixou de ser apenas um incômodo para esse grupo, como também uma ameaça para a sua saúde (Cavalcante17).
Entendemos que aqui se aplica o conceito de governamentalidade sistematizado por Foucault. A governamentalidade pode ser entendida como razão ou tática de governo, ou seja, uma racionalidade governamental que descobre a economia, e faz da população o seu principal objeto (Veiga-Neto24). Assim, as imagens veiculadas nos maços de cigarro podem se constituir como dispositivos com a finalidade de estabelecer condutas, guiar, orientar e proteger o indivíduo. A racionalidade de governo enunciada parece enfatizar a gestão de riscos, isto é, a adoção de práticas ascéticas pelo indivíduo através do controle permanente de suas ações visando à conquista de sua qualidade de vida e do seu bem-estar.
Através dos discursos implícitos nas imagens, o indivíduo é convidado ao exercício contínuo da vigilância, e neste caso, à prevenção ou à interrupção do uso do tabaco. O empreendimento de si ou a gestão de si são integrantes de um processo identitário, em que esse indivíduo deve estar sempre apto a adotar atitudes sensatas, prudentes e calculadas (Petersen25).
Segundo os EC, essas pedagogias culturais podem formatar as nossas identidades e construir a nossa consciência (Costa6). Para Hall26, “nossas identidades emergem do diálogo entre os conceitos e definições que são representados para nós pelos discursos de uma cultura que nos interpela a assumirmos as posições de sujeito construídas”. Neste caso, o risco é o elemento central desse assujeitamento, em que cada indivíduo é, simultaneamente, alvo das múltiplas interpelações e “experto”, ou seja, supostamente sabedor do que lhe convém (Petersen25, Veiga-Neto24).
Ao observarmos a Imagem 1, vemos um corpo mutilado-amputado- fragmentado, cuja incapacidade funcional do sujeito foi possivelmente provocada pelo consumo do cigarro. A idéia de confinamento e de dependência parece revelar a falta de auto-cuidado pela exposição consciente aos riscos de agentes mutiladores. Sua imagem alerta e denuncia a incapacidade física como conseqüência do uso de tabaco.
O emprego de imagens que “chocam” serve como estratégia em vários momentos. Na Imagem 3, vemos um homem confinado a uma cama em ambiente hospitalar, com traqueostomia, possivelmente com câncer de laringe, revelando um ser humano com incapacidades, limitações e a sensação de finitude. Na imagem 6, vemos um feto morto imerso em solução. Nas Imagens 8 e 9, são apresentados pulmões enegrecidos e animais mortos reforçando o tom apelativo, além de insinuar sensações de asco, nojo e repugnância. Em outro momento, a estética e a sexualidade também são tematizadas e apresentadas como áreas da vida que podem ser afetadas pelo uso do tabaco (Imagens 2 e 4).
Na filosofia do risco, o olhar biológico é privilegiado, sendo característico da governamentalidade ou do bio-governo, que desconsidera e dissolve o social e o coletivo. Sua matriz identitária é calcada na materialidade biológica em detrimento de componentes culturais (Ortega27). A governamentalidade é máxima no neoliberalismo, pois para governar mais é preciso governar menos. No neoliberalismo, a liberdade do sujeito é uma condição para sua sujeição, pois a responsabilidade é quase que totalmente transferida para ele, desconsiderando toda a complexidade que, neste caso, o uso do tabaco apresenta e requer.
As frases presentes nos textos imagéticos trazem enunciados que transmitem um discurso absoluto e totalitário, exibindo o conhecimento adquirido pelo rigor científico como fundamento irrefutável e como verdade única. A utilização do verbo “causa” dificulta possibilidades de outras leituras para esta questão, pois a certeza da causalidade construída em modelos matemático-epidemiológicos essencializa o conceito de risco, que adquire o status de um quadro nosológico bem definido. Desse modo, o risco é entificado como doença (Nettleton28).
Como leituras desses artefatos, podemos encontrar um discurso disciplinador e punitivo, focalizando exclusivamente os componentes biológicos. As imagens escolhidas evocam a fragilidade do homem em relação ao uso do tabaco. O conceito característico de doença, cujo padrão inclui a limitação física, é notado através dos olhares soturnos, da solidão e das limitações impostas pelo agente causal. Outro elemento interessante que se revela com a análise dessas imagens é o foco das mensagens voltado, predominantemente, para o consumidor adulto e do sexo masculino. Os adolescentes, grupo bastante vulnerável ao uso do tabaco, parecem não ser contemplados nesta parte da campanha de prevenção.
Ao reforçar as ações apelativas sobre o indivíduo, o discurso preponderante é biológico, com um enfraquecimento da dimensão política e se ajusta ao modelo econômico vigente, que tende a desconsiderar a coletividade. Essa estratégia, segundo Navarro29, parte do princípio de que o cidadão-indivíduo é a causa fundamental da enfermidade, da falta de saúde, em vez de perceber que qualquer solução requer mudanças estruturais nos sistemas econômico e social. Isto é, o discurso oficial legitima a alienação desse homem e dessa mulher - responsáveis e culpados por seus atos - ignorando que outros componentes de uma lógica de consumo estão envolvidos, de tal forma que as mudanças de estilos de vida precisam estar acompanhadas de outras, de ordem estrutural.
Apesar de sabermos que essas propagandas são integrantes de políticas públicas voltadas para a prevenção e tratamento dos dependentes de tabaco, as estratégias baseadas na culpa e no medo, com a utilização de imagens densas e chocantes são evidentes. Cabe-nos perguntar que efeitos, de fato, elas têm em relação aos fumantes, pois sabemos que apenas 3% deles abandonam o uso do tabaco por conta própria, a cada ano (BRASIL30).
Se a ciência tem comprovado o quanto o tabaco é prejudicial à saúde humana, por que então permitir que os cigarros sejam fabricados e comercializados? Considerando ainda que os agravos em indivíduos acarretam elevação dos custos de um sistema de saúde já em crise, por que liberar o uso do produto? Será que, ao se proibir o consumo do tabaco, haverá sensível redução dos casos de câncer, direta ou indiretamente relacionados a ele?
Será que o uso dessas imagens não representa tão somente uma tentativa oficial do governo de mostrar à população que algo está sendo feito, ainda que a estratégia seja questionável? Segundo Lupton31, as campanhas de prevenção na mídia de massa constituem um dos recursos de que o Estado se utiliza para mostrar serviço e manifestar seu engajamento e preocupação, diante de uma situação problemática.
Se o uso do tabaco se transforma em doença, a busca por prevenção a essa patologia não poderia se limitar a ações pautadas apenas no modelo biológico. Ao reforçar a biomedicina, as instituições de saúde reproduzem uma visão unidimensional e unirracional que desconsidera a complexidade do problema, o qual abrange componentes econômicos, sociais, políticos, éticos, legais, históricos e culturais.










