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0282/2024 - SINTOMAS DEPRESSIVOS NA POPULAÇÃO IDOSA BRASILEIRA: UM ESTUDO BASEADO NA PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE-2019
DEPRESSIVE SYMPTOMS AMONG BRAZILIAN ELDERLY PEOPLE: A STUDY BASED ON THE NATIONAL HEALTH SURVEY-2019

Autor:

• Vinicius dos Santos Sguerri - Sguerri, V.S. - <vinicius_ssguerri@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3239-2825

Coautor(es):

• Érico de Castro Costa - Castro-Costa, E. - <ericocastrocosta@gmail.com>
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0792-5439

• Antônio Ignácio de Loyola Filho - Loyola Filho, A.I. - <antonio.filho@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7317-3477



Resumo:

Introdução - A depressão é um transtorno mental comum, que gera limitações para o funcionamento psicossocial e prejudica a qualidade de vida. Objetivo – Investigar a prevalência e identificar os fatores sociodemográficos e condições de saúde associados a sintomas depressivos na população idosa brasileira. Metodologia – Foram utilizados dados coletados junto a 21.965 participantes da Pesquisa Nacional de Saúde – 2019, com 60 anos ou mais. O Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9) foi utilizado para rastreamento de sintomas depressivos, considerando o ponto de corte ?9. O modelo de regressão de Poisson foi utilizado para detecção dos fatores associados, ao nível de significância de p<0,05. Resultados - A prevalência de sintomas depressivos foi de 13,2%. Após o ajustamento, mostraram-se positivamente associados à presença de sintomas depressivos o sexo feminino, autoavaliação negativa da saúde (regular ou ruim/muito ruim) e ter duas ou mais doenças crônicas. Associações negativas foram detectadas para idade entre 70 e 79 anos e residência em zona rural e nas regiões Nordeste e Norte. Conclusão – Tendo em vista a frequência com que os sintomas depressivos ocorrem entre pessoas idosas, e as consequências para a qualidade de vida desse segmento populacional, os serviços de saúde devem organizar-se para monitorá-los, identificá-los e fornecer ou referenciar o cuidado adequado.

Palavras-chave:

sintomas depressivos; pessoa idosa; Envelhecimento; PHQ-9; Inquéritos de Saúde

Abstract:

Background - Depression is a common mental disorder, which creates limitations in psychosocial functioning and impairs quality of life. Objective – To investigate the prevalence and identify sociodemographic factors and health conditions associated with depressive symptoms among Brazilian elderly people. Methodology – Data collected from 21,965 elderly people participating in the National Health Survey – 2019 were used. The Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9) was used to track depressive symptoms, considering the cutoff point ≥9. The Poisson regression model was used to detect associated factors, at a significance level of p<0.05. Results - The prevalence of depressive symptoms was 13.2%. After adjustment, female sex, negative self-rated health (fair or bad/very bad) and having two or more chronic diseases were positively associated with the presence of depressive symptoms. Negative associations were detected for ages between 70 and 79 years and living in rural areas and in the Northeast and North regions. Conclusion – Considering the frequency with which depressive symptoms occur among elderly people, and the consequences for the quality of life of this population segment, health services must organize themselves to monitor them and provide or refer appropriate care.

Keywords:

Depression; Older Adults; Aging; PHQ-9; Health Surveys

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
O envelhecimento populacional, que é a elevação proporcional da parcela idosa da população, é um fenômeno mundial, ainda que tenha ocorrido ou venha ocorrendo em velocidades distintas nos países1. No Brasil, o envelhecimento populacional se inicia nos anos 1970, transformando completamente o perfil demográfico brasileiro. Naquela época, a população apresentava um perfil ainda jovem, e as pessoas idosas representavam 4,3% da população total, percentual esse que alcançou 10,8% em 20102; os resultados do último censo indicam a população idosa brasileira soma um pouco mais de 32 milhões, correspondendo a 15,8% da população total3.
O envelhecimento populacional é acompanhado de uma nova conformação do perfil de morbimortalidade e funcionalidade, com aumento progressivo da prevalência das assim chamadas doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Estas são doenças de origem não infecciosa, resultantes da combinação de fatores genéticos, fisiológicos, comportamentais e ambientais. Elas costumam ser de curso prolongado e demandar tratamento a longo prazo, e incluem doenças cardiovasculares, doenças respiratórias crônicas, cânceres e diabetes, para mencionar algumas4. O predomínio das DCNT na composição do perfil de morbimortalidade em uma população envelhecida lança luzes sobre a questão da saúde mental, na medida em que várias dessas doenças são associadas à ocorrência de transtornos depressivos. Essa associação pode ser em função de doenças específicas ou pela presença de multimorbidade5,6,7.
Os transtornos depressivos caracterizam-se por sintomas que indicam tristeza, perda de interesse ou prazer, sentimento de culpa ou diminuição da autoestima, distúrbios de sono ou apetite, cansaço e dificuldade em concentrar-se. Eles podem manifestar-se como transtorno depressivo maior, como episódio depressivo (nas formas leve, moderada ou grave) e distimia (uma manifestação crônica de transtorno depressivo leve, semelhante ao episódio depressivo, porém menos intensa e mais duradoura)8. Em grandes estudos epidemiológicos, são utilizados diferentes conjuntos de perguntas para a detecção da presença de sintomas clinicamente relevantes para os transtornos depressivos, conhecidos como escalas de rastreamento9. Isso se deve fato de que a utilização das entrevistas psiquiátricas para o diagnóstico dos transtornos depressivos em grandes estudos epidemiológicos é extremamente difícil, por serem de custo elevado e de longa duração para aplicação10.
Os determinantes dos transtornos depressivos congregam um amplo espectro de fatores, que envolvem desde uma predisposição genética até as DCNT (já mencionado), passando pelos sociodemográficos e psicossociais11,12,13. Além do impacto sobre a saúde física, os transtornos depressivos representam custo social considerável, ao prejudicar as atividades laborais, domiciliares e sociais, gerando afastamento recorrente do trabalho, por períodos prolongados, e queda de produtividade do trabalhador, potencializando a exclusão social e antecipando a aposentadoria por problemas de saúde14. Entre pessoas idosas, implica em perda de qualidade de vida, pois às perdas em saúde (comorbidades, incapacidade funcional, demência), somam-se as perdas econômicas e afetivas15.
O transtorno depressivo é o transtorno mental mais comumente observado. Em 2015, 322 milhões de pessoas (4,4% da população mundial) apresentavam transtornos depressivos, e a magnitude de sua ocorrência cresceu 18,4% entre 2005 e 20158. No Brasil, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 mostrou que um em cada dez (10,9%) adultos brasileiros entre 18-59 anos sofria de transtorno depressivo maior6. Entre pessoas idosas, a PNS-2013 reportou uma prevalência de transtornos depressivos da ordem de 5,0%, para a faixa etária de 60-79 anos e de 6,8% para a faixa etária de 80 anos ou mais16.
A PNS é um inquérito de saúde de abrangência nacional, que dá continuidade ao Suplemento Saúde da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), com objetivo, foco e periodicidade semelhantes. A PNS fornece resultados que permitem um diagnóstico situacional de saúde da população brasileira e a identificação de subconjuntos populacionais sob risco de sofrerem eventos adversos à saúde, além do perfil de acesso e utilização de serviços de saúde. Seus resultados são representativos de diferentes níveis de agregação populacional, fornecendo um retrato da situação de saúde da população brasileira como um todo, bem como de regiões geográficas, das unidades federativas e de suas capitais, com o propósito de orientar as políticas públicas de saúde. Nas suas duas últimas edições (2013 e 2019), ela inclui um instrumento de rastreamento de sintomas depressivos, que permitem um dimensionamento robusto da ocorrência desse problema de saúde na população brasileira17. Não conseguimos identificar, nas principais bases bibliográficas eletrônicas, nenhum estudo que tenha investigado a prevalência e os fatores associados a sintomas depressivos especificamente junto a amostra representativa da população idosa brasileira.
Com base no exposto até aqui, o presente estudo utilizou os dados da PNS-2019 para investigar a prevalência e identificar as características sociodemográficas e de condições de saúde associados aos sintomas depressivos na população idosa brasileira (60 anos ou mais).
METODOLOGIA
Delineamento, cenário e população de estudo
O presente estudo, de delineamento transversal, baseou-se nos dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019. A PNS 2019 teve como objetivo principal conhecer os determinantes, condicionantes e necessidades de saúde dos brasileiros para subsidiar a elaboração de políticas públicas e promover maior efetividade no sistema de saúde brasileiro, por meio das intervenções em saúde17.
A PNS foi realizada junto a uma amostra representativa da população brasileira, de todas as idades, totalizando 279.382 pessoas. O plano amostral empregado na PNS incluiu amostragem por conglomerados em três estágios: (1) os setores ou conjunto de setores censitários formavam as unidades primárias de seleção, (2) os domicílios foram as unidades do segundo estágio de seleção e (3) os moradores adultos definiram as unidades do terceiro estágio de seleção. Os setores censitários e os domicílios foram selecionados por amostragem aleatória simples, e os participantes (moradores dos domicílios) foram selecionados por equiprobabilidade. Os questionários foram respondidos por moradores com 18 anos ou mais17. Para o presente estudo foram elegíveis todos os participantes da pesquisa com 60 ou mais anos de idade (n=22.728), que responderam às perguntas do questionário da PNS-2019, relacionadas ao morador selecionado.
Variáveis e coleta de dados
Os dados foram coletados por entrevista domiciliar, por meio da aplicação de um questionário estruturado. Todos os agentes de coleta de informações, supervisores e coordenadores da PNS foram treinados e capacitados. As entrevistas foram realizadas com a utilização de Personal Digital Assistance (PDA), computadores de mão programados para o processo de crítica das variáveis17.
A variável dependente foi a presença de sintomas depressivos, rastreados por meio do Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9)18 e validado no Brasil12. Esse instrumento de triagem é composto por nove perguntas que avaliam sintomas depressivos presentes no Manual de Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, em sua quarta edição19. Ele permite avaliar a presença dos seguintes sintomas: humor deprimido, cansaço ou falta de energia, anedonia, alteração de conciliação do sono, alteração do apetite ou peso, sentimento de culpa ou inutilidade, alterações de concentração, inquietação ou desânimo e pensamentos suicidas.
Para cada questão foi avaliada a frequência dos sintomas nas duas últimas semanas. O instrumento distribui pontos de acordo com a frequência dos sintomas, variando entre zero (nenhum dia) a três (todos ou quase todos os dias). Os pontos relativos a cada uma das questões são somados para obtenção de um escore, cujo valor máximo alcançável é de 27 pontos. Foram considerados com sintomas depressivos clinicamente relevantes aqueles que somaram nove ou mais pontos, pontuação que maximiza a sensibilidade e especificidade no teste validado no Brasil12.
Na investigação dos fatores associados foram consideradas variáveis sociodemográficas e descritoras de condições de saúde. As variáveis sociodemográficas incluíram sexo (masculino; feminino), idade (60-69 anos, 70-79 anos e 80 ou mais anos), escolaridade (sem instrução; ensino fundamental; ensino médio; ensino superior), estado civil (casado; divorciado; viúvo; solteiro), renda domiciliar per capita em salários-mínimos (SM) (até 1 SM; entre >1 e 2 SM; entre >2 e 5 SM e >5 SM), além da área de moradia (urbana; rural) e região geográfica de residência (Sudeste, Sul, Nordeste, Centro-Oeste, Norte).
As variáveis de condições de saúde compreenderam o número de doenças crônicas e autoavaliação da saúde (muito boa/boa; regular; ruim/muito ruim). A primeira das categorias correspondeu a uma avaliação positiva e às demais corresponderam a uma avaliação negativa da saúde. A variável número de condições crônicas considerou a soma de relatos de diagnósticos médicos para as seguintes DCNT: hipertensão (HAS), diabetes (DM), doença do coração, acidente vascular cerebral (AVC), asma, artrite, doença pulmonar crônica (DPOC), câncer e insuficiência renal crônica (IRC). Essas variáveis foram dicotômicas (não; sim) e as respostas positivas (sim) às perguntas relativas a cada uma dessas doenças foram somadas para atribuir o valor numérico à variável, que posteriormente foi categorizada (nenhuma; 1; 2 ou mais DCNT), para execução dos procedimentos analíticos.
Análise de dados
A caracterização da população de estudo em função das variáveis explicativas foi baseada em frequências absolutas e relativas. A prevalência de sintomas depressivos (global e em função das variáveis explicativas) foi calculada em termos proporcionais, relacionando-se o quantitativo de participantes com sintomas depressivos (escore ? 9) ao total de participantes do estudo. Foram calculados ainda os IC95% para as estimativas de prevalência.
A comparação entre participantes com e sem sintomas depressivos, em relação às variáveis explicativas, foi realizada por meio de análises univariadas, baseadas no teste do Qui-Quadrado de Pearson, com utilização de correção de Rao-Scott, tendo em vista a necessidade de contemplar o efeito do plano amostral complexo.
As análises univariadas e multivariadas foram baseadas no modelo de regressão de Poisson, que gera estimativas de razões de prevalências e respectivos intervalos de confiança de 95%. Todas as variáveis foram incluídas no modelo multivariado inicial (modelo cheio), independentemente dos resultados das análises univariadas. Em seguida, procedeu-se à deleção seletiva das variáveis (backward) que não se mostraram associadas aos sintomas depressivos na presença das demais. Foram mantidas no modelo final as variáveis independentemente associadas ao evento. O nível de significância de p<0,05 foi adotado tanto para deleção seletivas de variáveis nos modelos intermediários quanto para a identificação das variáveis independentemente associadas, no modelo final.
As análises do presente estudo foram realizadas por meio do software estatístico STATA?, versão 14.0, utilizando-se o módulo survey, adequado ao tratamento de dados de inquéritos populacionais em amostras complexas.
Aspectos Éticos
Em obediência à Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, a PNS 2019 teve aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) em agosto de 2019, sob o número 3.529.376, tendo sido assegurado aos sujeitos de pesquisa a voluntariedade, anonimato e possibilidade de desistência a qualquer momento do estudo.
RESULTADOS
Participaram do estudo 21.965 pessoas idosas com informações completas para todas as variáveis analisadas (taxa de resposta=96,6%), tendo sido excluído os elegíveis com perda de informação em qualquer variável. As perdas (n=763, ou 3,4%) não foram diferenciadas em relação ao evento em investigação (p=0,268).
Na sua maioria, a população de estudo era do sexo feminino (57,2%), com idade entre 60 e 69 anos (56,4%), de escolaridade equivalente ao ensino fundamental (53,4%) e com renda domiciliar per capita de até 2 salários-mínimos (73,3%), casados (50,8%) e residentes em área urbana (86,0%); quase a metade (46,9%) era residente na região Sudeste. No que tange às condições de saúde, 11,3% classificaram a sua saúde como ruim ou muito ruim e 37,7% relataram diagnóstico médico para duas ou mais doenças crônicas. Uma descrição completa da população de estudo pode ser vista na Tabela 1.
A prevalência de sintomas depressivos foi de 13,2% (IC 95%: 12,4%-14,0%), de acordo com o PHQ-9?9. A Tabela 1 descreve ainda a distribuição dos sintomas depressivos em função das variáveis explicativas. A prevalência de sintomas depressivos foi significativamente (p<0,05) maior entre pessoas idosas do sexo feminino e mais velhos (80 anos ou mais), e menor entre aqueles casados. A ocorrência de sintomas depressivos diminuiu com o aumento da escolaridade e da renda domiciliar per capita, e foi maior entre os residentes em área urbana, não tendo sido observadas diferenças significativas em relação à região geográfica de residência.
Os sintomas depressivos foram mais frequentes entre os participantes em piores condições de saúde, tanto na avaliação subjetiva quanto na objetiva. A prevalência de sintomas depressivos foi de 43,6% entre os participantes que avaliaram sua própria saúde como ruim ou muito ruim (contra 4,3% entre aqueles que avaliaram sua saúde como boa ou muito boa); cerca de um quinto (20,9%) dos respondentes que apresentavam duas ou mais doenças crônicas apresentavam sintomas depressivos, frente a 6,8% observado entre os que não tinham qualquer das doenças avaliadas (Tabela 1).
Na Tabela 2 podem ser vistos os resultados das análises univariadas e multivariadas dos fatores associados à presença de sintomas depressivos, considerando o modelo de Poisson. Na análise univariada, todas as variáveis mostraram-se associadas ao evento (p<0,05). Após o ajustamento no modelo multivariado, permaneceram independentemente associadas a maiores probabilidades de sintomas depressivos o sexo feminino (RP=1,70; IC95%: 1,50-1,92), a autoavaliação da saúde regular (RP=3,25; IC95%: 2,69-3,93) e ruim/muito ruim (RP=8,65: IC95%: 7,06-10,61) e ter duas ou mais doenças crônicas (RP=1,64; IC95%: 1,37-1,97). Foram associados a menores probabilidades de sintomas depressivos a faixa etária de 70-79 anos (RP=0,83; IC 95% 0,74-0,94), residir na zona rural (RP=0,82; IC95%: 0,71-0,94) e nas regiões Nordeste (RP=0,79; IC95%: 0,69-0,90) e Norte (RP=0,68; IC95%: 0,57-0,82).
DISCUSSÃO
A presente investigação revelou que em torno de 13% da população idosa brasileira apresentou um escore PHQ-9?9, compatível com a presença de sintomas depressivos clinicamente relevantes. Ela mostrou ainda que a presença de sintomas depressivos foi mais frequente entre mulheres idosas e menos frequentes entre aqueles com idade entre 70-79 anos, residentes na zona rural e nas regiões Nordeste e Norte. Além disso, a prevalência de sintomas depressivos foi significativamente maior entre os participantes em piores condições de saúde (autoavaliação negativa da saúde e com duas ou mais DCNT). Todas essas diferenças constituíram associações independentes após a realização da análise multivariada.
A prevalência de sintomas depressivos detectada no presente estudo mostrou-se inferior à prevalência média (28,4%) encontrada em uma revisão sistemática e metanálise baseada em 48 artigos, envolvendo aproximadamente 73.000 pessoas idosas residentes em países de vários continentes, majoritariamente no asiático20, e foi praticamente a mesma (13,3%) verificada em outra metanálise agregando 18.953 pessoas idosas residentes em países de todos os continentes15. Ela foi inferior ainda às prevalências observadas entre canadenses com 50 anos ou mais (27,0%)21 e entre pessoas idosas indianas (29,0%)22, chilenas (28,3%)23, e chinesas (15,9%)24, todos esses estudos de abrangência nacional.
Em relação aos estudos brasileiros, nossos resultados se inserem na faixa de valores para a prevalência de sintomas depressivos (entre 7,1% e 39,6%, média=21,0%), estimados em uma revisão sistemática e metanálise englobando 33 artigos (n=39.431 pessoas idosas), a quase totalidade deles publicados entre 2000 e 201725. Vários estudos, realizados em cidades brasileiras de diferentes portes populacionais (Caeté-MG26, São Paulo-SP27, Pelotas-RS28 e Florianópolis-SC29), encontraram prevalências entre 14,2% e 25,6%, mais elevadas que a estimada em nosso estudo.
Explicar as diferentes prevalências de sintomas depressivos entre populações é uma tarefa árdua, pois elas podem ter origem nos mais variados fatores, ligados basicamente a características populacionais e de contexto socioambiental, bem como a questões metodológicas, especialmente aquelas relacionadas ao instrumento de triagem utilizado.
No que concerne a características populacionais e contextuais, naquelas populações que experimentam piores condições de saúde, especialmente as incapacitantes, a presença de sintomas depressivos é mais comum30. Nesse sentido, estudos que excluem pessoas com doenças graves ou com incapacidade tendem a produzir estimativas mais baixas de prevalência31. Da mesma forma, populações inseridas em um contexto de maior privação socioeconômica e/ou de estigmatização da doença apresentam prevalências mais elevadas de sintomas depressivos, pois estão mais frequentemente sujeitas a eventos estressantes e relutam em procurar os serviços de saúde para tratamento. Por outro lado, os governos de regiões com maior desenvolvimento socioeconômico e humano podem implementar políticas de saúde que garantam à população maior suporte e mais benefícios à saúde mental, resultando em prevalência mais baixas20. No Brasil, municípios com maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHM) apresentaram frequências mais baixas de sintomas depressivos25.
As estimativas de prevalência podem ser afetadas também pelos testes utilizados na identificação de sintomas depressivos. Testes mais sensíveis tendem a fornecer medidas mais elevadas de prevalência, ocorrendo o contrário, se o teste é mais específico. Entre brasileiros, o GDS-15 apresentou maior sensibilidade que especificidade32. Já no estudo de validação do PHQ-9 junto à população adulta brasileira, o ponto de corte ?9 conferiu maior especificidade (86,7%) que sensibilidade (77,5%) ao teste12. Portanto, comparativamente ao GDS-15, o PHQ-9 mostrou-se menos sensível. Os estudos brasileiros com prevalências mais elevadas que o nosso utilizaram GDS-15 para triagem de sintomas depressivos.
De modo análogo, pontos de corte mais baixos conferem maior sensibilidade ao teste, ao passo que pontos de corte mais altos, o tornam mais específico. Por exemplo, em um estudo de tendência baseados nos dados da PNS-2019, foram encontradas prevalências de 10,5% e 11,1%, respectivamente para as faixas etárias de 60-69 anos e 70 ou mais anos33. Essas prevalências são inferiores à detectada em nosso estudo, que utilizou o mesmo banco de dados. A provável razão para tal diferença é a divergência quanto ao ponto de corte adotado para detecção de sintomas depressivos: Lopes et al (2022)33 utilizaram um ponto de corte ?10, mais específico que o adotado em nosso estudo, no caso, um escore ?9.
Entre as características sociodemográficas, os sintomas depressivos mostraram-se positivamente associados ao sexo feminino, e negativamente associados à faixa etária intermediária (60-79 anos), bem como à residência nas regiões Norte e Nordeste, e na zona rural. A associação entre sexo feminino e depressão está amplamente documentada na literatura científica, internacional e nacional. Em diferentes países21,24,31,34, pessoas idosas do sexo feminino experimentam mais sintomas depressivos que aqueles do sexo masculino, o mesmo padrão visto entre pessoas idosas brasileiras16,27,28,35.
A maior frequência de sintomas depressivos entre mulheres idosas pode ter origem em questões biológicas e socioeconômicas. No espectro biológico, a fisiopatologia da depressão apresenta-se diferenciada entre homens e mulheres, marcada pela variação do comportamento de biomarcadores relacionados à neurotransmissão e neuroplasticidade e ao sistema imunológico. Esses mecanismos estão integralmente interconectados com hormônios sexuais, tornando as mulheres mais suscetíveis a sintomas depressivos15,36. No aspecto socioeconômico, a depressão pode ser resultante de uma maior exposição a eventos estressantes decorrentes da discriminação sexual, do seu papel na família e na sociedade e da dependência econômica de seus parceiros34,35.
A literatura científica não é consensual em relação à influência da idade na ocorrência de sintomas depressivos entre pessoas idosas. Diversos estudos, desenvolvidos em diferentes países, mostraram uma associação positiva entre idade e sintomas depressivos11,15,24,34,36, enquanto outros indicam inexistência de associação entre essas variáveis27,31,35. Nossos resultados mostraram uma menor frequência de sintomas depressivos com o aumento da idade (restrito à faixa etária 70-79 anos), que se alinham com o observado entre pessoas idosas chilenas23,38 e entre pessoas idosas brasileiras residentes no sul do país29.
O aumento da depressão com o avançar da idade pode ser consequente à ocorrência de doenças crônicas, prejuízos de memória e visão, incapacidade funcional, eventos mais frequentes nessa fase da vida e que geram dependência e pioram a qualidade de vida27,34. Nesse sentido, a direção da associação negativa entre idade e sintomas depressivos observada em nosso estudo pode parecer contraintuitiva. Entre pessoas idosas chilenas, isso foi debitado à exclusão, da população de estudo, das pessoas idosas mais velhas com problemas cognitivos ou demência23. Em nosso estudo, todavia, disfuncionalidade física ou cognitiva não constituíram critério de exclusão, e as perdas por ausência de informação não foram diferenciadas em relação a condições de saúde (resultados não mostrados). Outra explicação plausível seria a ocorrência da imunização psicológica, expressão que se refere a uma maior resiliência a eventos de vida adversos, fruto de exposição repetida a eles, que tornariam os a pessoa idosa menos suscetível à depressão39.
Assim como no presente trabalho, uma menor prevalência de sintomas depressivos em pessoas idosas residentes em zona rural e nas macrorregiões Norte e Nordeste foram também detectados na PNS-2013, em estudos envolvendo a população geral (18 ou mais anos)16,33. Especificamente em relação à área de residência, em outros países, os resultados são controversos e podem variar em função do contexto socioeconômico, ora associando a depressão à residência em área urbana24,40, ora apontando a inexistência de associação41,42.
O ambiente pode constituir um fator de risco para o desenvolvimento de sintomas depressivos. Em áreas urbanas, o adensamento populacional é mais provável, o barulho é excessivo, os distúrbios de sono são mais frequentes, a insegurança e o medo permeiam a vida das pessoas, a desigualdade social costuma ser mais marcante, tudo isso resultando em uma pior qualidade de vida, potencializando o risco de depressão daqueles que vivem nesse ambiente35.
Por sua vez, a menor prevalência de sintomas depressivos entre pessoas idosas das regiões Norte e Nordeste, em comparação com aqueles da região Sudeste, poderia ser resultante das diferenças de distribuição dos determinantes dos sintomas depressivos nos respectivos estratos populacionais, bem como da intensidade da relação entre as exposições e o evento. Por exemplo, em ambas as regiões, a probabilidade de residir em área rural foi maior, ao passo que na região Norte, a frequência de duas ou mais doenças crônicas foi menor. Na população de estudo, residir em área rural apresentou-se negativamente associada à presença de sintomas depressivos enquanto a presença de duas ou mais doenças crônicas apresentou-se positivamente associadas à presença de sintomas depressivos, o que fala a favor da hipótese explicativa. Contudo, o mesmo não foi observado para outras variáveis associadas aos sintomas depressivos, como o sexo, que não se distribuiu diferenciadamente por macrorregião geográfica, e as pessoas idosas das regiões Norte e Nordeste, assim como na população geral, avaliaram pior a própria saúde, contrariando a explicação especulada.
Entre pessoas idosas brasileiras, uma pior condição de saúde (presença de doença crônica e autoavaliação negativa da saúde) foi associada à presença de sintomas depressivos. A associação entre uma pior percepção da própria saúde e a presença de sintomas depressivos têm sido documentadas em diversas populações idosas5,27,28,30,35,38.
A autoavaliação da saúde é uma variável bastante utilizada em estudos epidemiológicos, por sua robustez e abrangência na explicação de eventos de saúde e por sua fácil operacionalização, já que é baseada em uma única pergunta. Ela consegue informar sobre a saúde e o contexto de vida do indivíduo, capturando sintomas de doenças não diagnosticadas e refletindo uma percepção de sua evolução. Seu poder de mensuração deriva, portanto, de sua capacidade de avaliar os elementos físicos e psicológicos que ameaçam a saúde do indivíduo, ao incorporar aspectos biológicos e psicológicos da saúde43.
Além do julgamento do indivíduo sobre sua própria saúde, essa variável pode sinalizar as motivações internas e os recursos sociais disponíveis ao indivíduo para o enfretamento da doença, e indicar a propensão para o seu controle44,45. Com toda essa carga e abrangência de informações que incorpora, uma pior percepção da própria saúde certamente afeta o bem-estar e a saúde mental da pessoa, podendo favorecer assim, a ocorrência de depressão. Em razão disso, os profissionais de saúde devem estar atentos à percepção de saúde dos seus pacientes, pois uma simples pergunta durante a consulta pode apontar não só a presença de sintomas depressivos, como também a disposição para o enfrentamento do problema. O caráter bidirecional que essa associação pode apresentar43.46 não invalida essa linha de conduta.
A associação entre doenças crônicas e depressão é consensual na literatura. Alguns estudos investigaram doenças específicas, e relacionaram a presença de depressão à doença do coração, artrite e reumatismo5, hipertensão e diabetes16, acidente vascular cerebral – AVC, doença pulmonar obstrutiva crônica – DPOC, asma e problema crônico de coluna6,47. Outros, como no nosso caso, trataram as doenças crônicas em conjunto, sem individualizá-las, e associaram a depressão ao seu quantitativo6,24,34,35,38,48.
Numa perspectiva mais geral, a presença de dor e de processos inflamatórios relacionam as DCNT à depressão. As conexões biológicas entre essas doenças incluem alterações vasculares (como disfunção endotelial), neuroquímicas e do metabolismo do sistema nervoso. As DCNT causam desconforto por sua carga de sintomas e suas complicações persistentes, e acarretam declínio funcional, gerando dependência. Some-se a isso o impacto psicológico decorrente da perda de controle sobre atividades importantes da vida do paciente e dos sentimentos negativos relacionados às DCNT, originários da imprevisibilidade do seu curso e da experiência prévia com elas. Tudo isso culmina em perda de qualidade de vida e atua como gatilho para o desenvolvimento da depressão7,47,49.
Assim como no caso da autoavaliação da saúde, é preciso ressaltar o caráter bidirecional da associação entre DCNT e depressão7. A depressão pode comprometer a adesão ao tratamento das DCNT, além da adoção de comportamentos negativos à saúde (por exemplo, tabagismo, sedentarismo, dieta inadequada), que constituem fatores de risco para as DCNT50. Essa mútua determinação deve ser objeto de atenção especial dos serviços e profissionais de saúde, em razão das implicações disso na conduta terapêutica dessas doenças.
A principal limitação da presente investigação é oriunda do seu delineamento transversal. Em estudos transversais, não é possível investigar relação de causalidade entre exposição e evento, pois não se consegue separar as suas medidas no tempo. Assim, a presença de viés de causalidade reversa não pode ser desconsiderada, em relação às associações com variáveis descritoras de condições de saúde. Outra limitação é inerente ao processo de mensuração do evento sob investigação. Os instrumentos de triagem permitem identificar a presença de sintomas depressivos clinicamente relevantes, mas são inadequados para estabelecer diagnóstico para a doença. No entanto, eles são úteis para identificar uma parcela da população sob risco de desenvolver sintomas depressivos e que devem ser adequadamente avaliados pelos serviços de saúde.
Por outro lado, a força do presente estudo deriva do tamanho da amostra (população de estudo) utilizada e de sua representatividade em diferentes níveis de agregação (do país como um todo, das macrorregiões geográficas, dos estados da federação e suas capitais). Neste aspecto, ela permite explorar toda a potencialidade das análises estatísticas, produzindo resultados robustos e confiáveis, e que podem ser generalizados para a população idosa brasileira. Por fim, a opção pelo PHQ-9 maximiza a sensibilidade e especificidade na triagem de sintomas depressivos clinicamente relevantes, por constituir-se um instrumento de triagem adequado à população idosa e previamente validado no Brasil.
Em resumo, esta investigação revelou que, entre pessoas idosas brasileiras, os sintomas depressivos podem ser associados a características sociodemográficas e a condições de saúde, corroborando os achados dos estudos epidemiológicos de base populacional sobre o tema. Ela mostrou ainda que, nessa população, as condições de saúde objetiva e subjetivamente mensuradas (especialmente as últimas) foram os fatores mais fortemente associadas aos sintomas depressivos. Tendo em vista a frequência com que os sintomas depressivos ocorrem entre pessoas idosas, e as consequências para a qualidade de vida desse segmento populacional, os serviços de saúde devem organizar-se para monitorá-los, identificá-lo e fornecer o cuidado adequado. À luz do contexto das relações que ligam as DCNT à depressão e ao uso mais frequente de serviços de saúde, a consulta médica constitui uma oportunidade valiosa para investigação da depressão entre pessoas idosas, mesmo que ela não seja uma consulta médica especializada. Isso pode ser viabilizado por meio da utilização, em consultas médicas de rotina, de testes/instrumentos de rastreio de sintomas depressivos, ou de parte das perguntas que os compõem e que sejam mais sensíveis na sua detecção, visando o referenciamento para o atendimento especializado, quando pertinente. Além disso, considerando que a sintomatologia depressiva em idosos é uma condição potencialmente modificável e evitável, nossos achados podem apoiar a implementação de estratégias de intervenção precoce multidisciplinar, envolvendo outros profissionais de saúde, além dos médicos especialistas e não-especialistas, assim como de orientação e psicoedução de familiares para promover uma boa avaliação da própria saúde do idoso.
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Sguerri, V.S., Castro-Costa, E., Loyola Filho, A.I.. SINTOMAS DEPRESSIVOS NA POPULAÇÃO IDOSA BRASILEIRA: UM ESTUDO BASEADO NA PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE-2019. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/jul). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/sintomas-depressivos-na-populacao-idosa-brasileira-um-estudo-baseado-na-pesquisa-nacional-de-saude2019/19330?id=19330&id=19330

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