0342/2006 - Trabalho em equipe multiprofissional: a perspectiva dos residentes médicos em saúde da família.
Work in multiprofessional team: perspective of the residents in family practice.
Autor:
• Ricardo Corrêa Ferreira - Ferreira, R. C. - Marília, São Paulo - Faculdade de Medicina de Marília - Famema - <riguaira@famema.br>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
A residência médica brasileira, cada vez mais, especializa os médicos em suas práticas, desprezando as práticas multiprofissionais que orientam a integralidade em saúde. Na tentativa de romper com essa prática, a residência multiprofissional em saúde da família foi proposta objetivando formar profissionais que visem o cuidado integral à saúde das pessoas. Neste contexto, a Famema, em 2003, iniciou esta residência, tendo como núcleo central o trabalho multiprofissional em equipes de saúde da família. Analisou-se, neste estudo, a percepção dos residentes médicos em saúde da família da Famema acerca do trabalho multiprofissional desenvolvido no Programa de Saúde da Família. A abordagem qualitativa foi o método desta investigação. Os dados coletados foram interpretados por meio da análise temática de conteúdo, construindo-se três categorias empíricas: Âncoras e balizas da visão interdisciplinar no trabalho em equipe permeiam a perspectiva da residência em Saúde da Família; Os conflitos e paradoxos do trabalho em equipe e a manutenção da linha de montagem; Dilemas do trabalho em equipe frente a uma estrutura hierarquizada. A análise dos dados aponta o avanço que o trabalho em equipe multiprofissional traz para a formação médica pois, permite uma visão de perspectivas, que sem a equipe, não seria possível.Internato e Residência, Educação Médica, Equipe de Assistência ao Paciente
Abstract:
The Brazilian medicine residency has been specializing more and more physicians in his practices, disdaining the multiprofessional practices that guide the integrality to the health. Aiming at quitting this practice, the multiprofessional residency in family practice was proposed as the perspective to make professionals aiming at the integral health care of the people. In this context, Famema, in 2003, started this residency, having as a central core the multiprofessional work in family practice teams. It was analyzed, in this study, the perception of the family practice residents at Famema regarding the developed multiprofessional work in the Family Health Program. The qualitative approach was the method of this research. The collected data had been interpreted through the thematic content analysis, consisting of three empirical categories: anchors and markers of the interdisciplinary view on the team work occur in the perspective of the Family Practice; conflicts and paradoxes of team work and the maintenance of the assembly line; dilemmas of the team work facing an hierarchical structure. The data analisis point to the advances that multiprofessional team work brings to the medical formation, once it allows a view to perspectives that would not be possible without the team.Internship and Residency, Medical Education, Patient Care Team.
Conteúdo:
INTRODUÇÃO
O programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família, parte da pós-graduação latu sensu da Famema, iniciado a partir de 2003, visa potencializar a capacidade de mudança na formação de profissionais da saúde e no atual modelo de cuidado à saúde das pessoas e das comunidades1, propondo, por meio da estratégia do Programa de Saúde da Família (PSF), um novo perfil tanto para os profissionais quanto para a organização do cuidado.
Contextualizando, a residência médica tem sido reconhecida como uma estratégia educacional eficaz e eficiente de treinamento profissional. O primeiro programa surgiu nos Estados Unidos, em 1889, no John´s Hopkins Hospital, coordenado pelo cirurgião William Halsted. No Brasil, o primeiro programa foi em ortopedia, implantado no Hospital das Clínicas da USP em 19452. Desde então, observa-se no processo de formação dos profissionais de saúde a força da especialização em detrimento da formação generalista: valoriza-se o superespecialista e dá-se ênfase à ação curativa, enquanto conceitos de prevenção de doenças e promoção à saúde são mais teóricos do que praticados entre os profissionais3.
Por várias questões históricas que envolveram o desenvolvimento das residências médicas no país, o espaço para a prática generalista foi desaparecendo e as especialidades médicas passaram a ser porta de entrada para o trabalho no sistema de saúde. Desta forma, o número de consultas foi se multiplicando em contraposição à queda de resolubilidade dos problemas das pessoas. Não se construíram vínculos (ou foram fracos), houve total desresponsabilização dos profissionais com a saúde global do paciente e uma profunda insatisfação do usuário com o serviço recebido3.
Atualmente, nas ações do processo aprendizagem-trabalho dos programas de residência, os médicos têm poucas oportunidades de atuar com outros membros da equipe de saúde, desconhecem o que seja rede de serviços, vigilância epidemiológica, territorialização, planejamento local, trabalho em grupos, programas de promoção da saúde e prevenção de doenças. Nos hospitais, estes profissionais, no que diz respeito a preceptorias, não recebem aporte especial nem em seu processo de aprendizagem nem em relação à dinâmica das unidades não-hospitalares3.
Entretanto, o Ministério da Saúde vem investindo maciçamente no Programa de Saúde Família, e surgem, com esta iniciativa, os programas de residência em saúde da família como alternativa para formar profissionais diferenciados tanto na sua formação educacional quanto na sua formação profissional condizente às reais necessidades da população.
Considerando a Atenção Básica como o pilar na construção de novos rumos à saúde – no que tange à mudança no paradigma assistencial da saúde –, novos cenários e papéis, como os exercidos pelas equipes das Unidades de Saúde da Família (USF) na Atenção Básica em Saúde (ABS), têm gerado novas e ampliadas abordagens no processo saúde-doença4.
A reorganização do modelo tecno-assistencial do SUS, com base nos princípios da universalidade, integralidade, eqüidade, resolubilidade, intersetorialidade, humanização do atendimento e participação social, ainda constitui um grande desafio para todos os diversos atores sociais da saúde pública. Muitas propostas têm sido implementadas na construção do sistema de saúde nacional, mas foi a partir da década de 90 que políticas públicas se uniram em torno da reorganização da Atenção Básica em Saúde, orientada, principalmente, pelo Programa de Saúde da Família5.
Neste cenário, os profissionais da saúde necessitam integrar as dimensões biopsicossociais para o cuidado dos indivíduos, famílias e comunidades com novos modos de agir e de interagir com a prática a fim de responder às necessidades de saúde das pessoas em suas diferentes dimensões6.
Para tanto, o trabalho em equipe multiprofissional é um importante pressuposto para a reorganização do processo de trabalho no âmbito das Unidades de Saúde da Família, dentro da abordagem integral e resolutiva, e, para que isto ocorra, há a necessidade de mudanças na organização do trabalho, na formação e na atuação dos profissionais de saúde.
Neste processo de trabalho, as equipes de saúde da família necessitam conhecer as famílias do território de sua abrangência, identificando os problemas de saúde e as situações de risco na comunidade, ao passo que devem elaborar planos de ação para enfrentar os desafios do processo saúde-doença enquanto desenvolvem ações de promoção de saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação no âmbito da Atenção Básica em Saúde7.
Tem-se que a ampliação de intervenção além do âmbito individual e clínico demanda mudanças na forma de atuação e organização do trabalho, além de requerer alta complexidade de saberes em que cada profissional é chamado a desempenhar sua profissão em um processo de trabalho coletivo cujo produto deve ser fruto de um trabalho formado pela contribuição das diversas áreas profissionais, esperando-se que os integrantes das equipes sejam capazes não só de conhecer e analisar o trabalho – verificando as atribuições específicas e do grupo na unidade, no domicílio e na comunidade – mas também de compartilhar conhecimentos e informações8.
O fato das necessidades de saúde expressarem múltiplas dimensões demanda ações que não podem se realizar por ações isoladas de um único agente, necessitando-se de recomposição dos trabalhos especializados tanto no interior de uma mesma área profissional como na relação interprofissional9.
O trabalho em equipe exige uma construção coletiva das ações em saúde, onde as dificuldades estão sempre presentes e precisam ser refletidas e superadas. A formação de uma equipe permite a troca de informações e a busca de um melhor plano terapêutico, colocando-se a cooperação como instrumento para enfrentar o fazer em grupo.
Entretanto, é árduo o caminho para a construção do trabalho cooperativo, que pressupõe solidariedade e confiança. Nesta perspectiva, cabe ao profissional inserido nessa lógica refazer a visão do seu processo de trabalho e considerar que a equipe é o pilar para o “fazer” integrado, e que as buscas pelas possibilidades auxiliam a alçar o desenvolvimento do seu fazer.
Considerou-se que o trabalho em equipe multiprofissional consiste numa modalidade de trabalho coletivo que se configura na relação recíproca entre as múltiplas intervenções técnicas e a interação dos agentes de diferentes áreas profissionais. Por meio da comunicação, ou seja, da mediação simbólica da linguagem, dá-se a articulação das ações multiprofissionais e a cooperação10.
Se olharmos os vários modos de relacionamento do trabalho multiprofissional, constataremos que as relações profissionais se dão através das diferentes interações disciplinares, estabelecidas em cinco níveis de agrupamento11.
O primeiro nível é o da multidisciplinaridade – que traz variadas disciplinas propostas simultaneamente, contudo, sem deixar transparecer diretamente as relações que podem existir entre elas11 –, exemplificada com vários profissionais reunidos, onde cada um trabalha isoladamente, sendo que a ausência de uma articulação não significa, no entanto, uma ausência de relação entre estes profissionais12.
O segundo nível é a pluridisciplinaridade, e se relaciona à justaposição de várias disciplinas situadas geralmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de modo que apareçam as relações existentes entre elas; há cooperação, contudo, sem coordenação11, e pode ser exemplificada por meio de um paciente que procura atendimento psiquiátrico e, após receber orientação e prescrição psicofarmacológica, é encaminhado, pelo próprio psiquiatra, a um psicólogo para um trabalho de psicoterapia; assim, a cooperação não é automática, mas estabelece contatos entre os profissionais e suas áreas de conhecimento12.
Na interdisciplinaridade – o terceiro nível –, tem-se que é comum um grupo de disciplinas conexas e definidas em um nível hierárquico imediatamente superior – o que introduz a noção de finalidade – em que há dois níveis e objetivos múltiplos com a coordenação advinda de nível superior11, encontrada, por exemplo, numa equipe de atendimento ambulatorial de gestantes adolescentes de baixa renda. A equipe é formada por um pediatra, um psiquiatra, um psicólogo, um assistente social e uma enfermeira, contudo, o que prevalece é o saber médico, cabendo a coordenação e a tomada de decisão a estes profissionais12.
Na transdisciplinaridade – o quarto nível –, a coordenação de todas as disciplinas e interdisciplinas centra-se em um sistema de níveis e objetivos múltiplos, com sistemas comuns11, exemplificado por uma equipe formada por profissionais como psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, que recebe pacientes com problemas mentais. O paciente chega para uma avaliação e todos o assistirão, buscando formular um diagnóstico acerca do caso. Dessa forma, para que haja configuração transdisciplinar, é necessário que todos os profissionais estejam reciprocamente situados em sua área de origem e na área de cada um dos colegas12.
É preciso que cada problema não seja solucionado em cada uma das diferentes áreas, mas sim à luz de um novo entendimento13.
Uma equipe será transdisciplinar quando sua reunião congregar diversos profissionais com o intuito de uma cooperação entre eles sem que haja uma coordenação fixa. Mas como não verticalizar uma coordenação? A transdisciplinaridade deve ser encarada como meta a ser alcançada e nunca como algo pronto; deve ser encarada como um desafio que serve de parâmetro para que todos os membros da equipe estejam atentos para eventuais centralizações do poder12.
O trabalho multiprofissional numa perspectiva transdisciplinar requer humildade e disponibilidade por parte de cada profissional, pois é, em suma, um movimento de reconhecimento de posições diferentes em relação a um mesmo objeto, e gerar novos dispositivos é a segunda meta para se iniciar um trabalho transdisciplinar em que os profissionais possam se ajudar reciprocamente em suas dificuldades13.
Desta forma, é necessário que cada profissional descubra um interesse e uma curiosidade pela área de seu colega. Quando uma equipe está reunida e deseja optar por um funcionamento transdisciplinar, é preciso que cada membro exponha suas ferramentas de trabalho, suas teorias, seu entendimento do caso, além de permitir ao seu colega a mesma exposição12.
A Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Famema tem como pressuposto que o enfoque multiprofissional da residência fortalece o desenvolvimento do trabalho em equipe e a troca de saberes para a construção de novos conhecimentos que são originados na interface dos diferentes campos de trabalho profissional1 .
A proposta da residência Multiprofissional em Saúde da Família localiza-se na perspectiva transdisciplinar, e o objetivo geral do programa é promover o desenvolvimento de atributos profissionais que possibilitem aos médicos e enfermeiros formados pelo programa de residência o exercício profissional com excelência nas áreas de cuidado integral à saúde das pessoas e de comunidades e na gestão e organização do trabalho, visando à melhoria da saúde e da qualidade de vida1.
Os objetivos específicos estão caracterizados em função da proposta metodológica em três áreas1:
Na área de vigilância à saúde - cuidado integral às necessidades de saúde individuais em todas as fases do ciclo de vida:
estabelecer vínculo com pacientes, famílias e comunidade pautado pelo respeito, ética e responsabilidade no cuidado à saúde, desenvolvendo uma prática humanizada e com excelência técnica;
orientar o trabalho de cuidado à saúde segundo identificação das necessidades de saúde das pessoas;
compreender o indivíduo como sujeito na promoção, manutenção e recuperação de sua saúde, potencializando sua capacidade ativa e co-responsável nesse processo, respeitando os interesses, valores e a cultura das pessoas;
interpretar e organizar as informações coletadas na história e nos exames clínicos para a formulação de hipóteses e dos problemas de saúde das pessoas de forma ética, visando a elaboração de planos de cuidado que considerem a autonomia, o consentimento e as condições socioculturais do paciente, a identificação e utilização dos recursos sociais disponíveis, articulando e promovendo, permanentemente, possíveis propostas de ações integradas para a melhoria constante da qualidade de saúde da população.
Na área de vigilância à saúde – cuidados às necessidades de saúde coletivas:
interpretar e organizar as informações coletadas para a formulação de hipóteses e dos problemas de saúde das famílias e da comunidade de forma ética, visando a elaboração de planos de cuidado que considerem a utilização dos recursos sociais disponíveis, articulando e promovendo, permanentemente, possíveis propostas de ações integradas para a melhoria constante da qualidade de saúde da população;
respeitar os interesses, valores e a cultura da comunidade, considerando as condições de vida e sua forma de atuação/organização no sentido de melhorar a qualidade de vida;
utilizar instrumental do planejamento estratégico e participativo buscando atuar em conjunto com os movimentos populares e as lideranças comunitárias locais, visando a melhoria da qualidade de vida e do meio ambiente.
Na área de organização e gestão do trabalho de vigilância à saúde:
atuar em equipe, promovendo o trabalho ético, participativo, co-responsável, multiprofissional e intersetorial;
gerenciar planos, programas, projetos e atividades de trabalho na equipe de saúde na qual atua;
participar da formação e da capacitação de pessoal auxiliar, voluntários e estudantes, utilizando metodologias ativas de ensino-aprendizagem e promovendo aprendizagem significativa e diferenciada;
auto-avaliar-se e avaliar atividades, atitudes e ações da equipe, mantendo um processo permanente de reflexão crítica.
Esses objetivos estão REPLACEos e articulados com uma proposta pedagógica orientada para a competência profissional, competência essa que explicita o que o profissional deve ser capaz de fazer para desempenhar sua prática com sucesso, desenvolvendo padrões de profissionalismo1.
Ainda segundo o manual da residência multiprofissional em saúde da família, a inserção dos residentes no serviço de saúde é orgânica e potencializa o vínculo com a equipe da USF e com a comunidade local. Estes são co-responsáveis pelo cuidado à saúde das pessoas, famílias e comunidade, ao mesmo tempo em que constroem o próprio conhecimento a partir da prática profissional num processo de ação-reflexão-ação, no qual são responsáveis pela busca de informações e identificação de melhores evidências para o cuidado em saúde.
Constroem, assim, um processo de aprendizagem que passa a ter novas bases em sua constituição educacional, voltada ao desenvolvimento de atributos pessoais e profissionais que visam o cuidado integral à saúde das pessoas, famílias e da comunidade.
OBJETIVO
Analisar a percepção dos residentes médicos do programa de residência multiprofissional em Saúde da Família acerca do trabalho em equipe multiprofissional que realizam na Unidade de Saúde da Família.
MÉTODO
Fundamentos metodológicos
Esta investigação se desenvolveu por meio de um estudo qualitativo que, segundo Minayo14, consiste em uma análise de abordagem subjetiva que não esgota um fenômeno social, explorando-se a percepção dos residentes médicos em saúde da família, dos 1º e 2º anos de residência, acerca do trabalho em equipe multiprofissional que desenvolvem no programa de residência multiprofissional em saúde da família.
Desta forma, a análise de atitudes, motivações, expectativas e valores destes residentes frente à residência multiprofissional é mais bem compreendida por meio de uma abordagem qualitativa15.
Este tipo de estudo também compreende e classifica processos dinâmicos vividos por grupos sociais e contribui para o processo de mudança e entendimento do comportamento dos indivíduos, envolve interesse maior ao cotidiano que aos fatos isolados, além de apresentar maior utilização de significados em detrimento da freqüência destes fatos, objetivando-se, então, a percepção dos residentes16.
Caracterização da Residência
Para a implementação desta proposta inovadora de Residência, foi firmado um convênio de parceria entre a Faculdade Medicina de Marília e a Secretária Municipal de Higiene e Saúde de Marília - SMHS, com o apoio do Ministério da Saúde – MS.
Assim, o contexto do Programa de Saúde da Família do município de Marília passou a ser o cenário privilegiado do processo de aprendizagem e da construção da competência do médico especialista em Saúde da Família.
Este programa de residência tem a duração de 02 (dois) anos, em tempo integral, com carga horária semanal de 60 horas, totalizando 5.524 horas. As atividades desenvolvidas pelos residentes são: atendimento médico nas Unidades de Saúde da família, em todas as áreas de competências previstas no programa de residência, plantões de 12 horas semanais em diversos serviços (hospital, pronto-socorro, pronto-atendimento) e reuniões técnicas com SMHSM. As atividades didáticas são: sessões de tutoria, laboratórios de simulação da prática profissional, supervisão técnica, horário pró-estudos e participação no curso de especialização em Saúde da Família, aos sábados pela manhã, no primeiro ano da residência1.
Dado o contexto apresentado, este projeto utilizará, como objeto de estudo, o espaço de desenvolvimento da residência multiprofissional dos residentes de 1º e 2º anos, no cenário das USFs, em Marília - SP. O programa oferece 20 vagas de residentes médicos (10 residentes do 1º ano - R1 e 10 residentes do 2º ano - R2), sendo que cada residente atua conjuntamente em uma USF com 01 residente de enfermagem do Programa de Residência Multiprofissional.
Esta investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em pesquisa da Famema e contou com um universo de 10 residentes médicos, sendo cinco R1 e cinco R2. Os sujeitos foram selecionados através dos critérios da amostra representativa e intencional.
Na coleta dos dados foi utilizada a técnica de grupo focal, que consiste em uma entrevista em grupo que se baseia em um tópico a ser explorado ou discutido pelos participantes do grupo. Nesta investigação, contamos com dois grupos focais: um grupo composto por 05 residentes - R1 e outro grupo composto por 05 residentes - R2. Após a concordância na participação, os sujeitos da pesquisa assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e foram seguidos os procedimentos previstos na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Acrescentamos que não houve conflitos de interesse dos autores na pesquisa.
Para a realização dos grupos focais, foram feitas perguntas norteadoras da discussão, as quais envolveram a percepção dos residentes acerca do trabalho em equipe nas atividades multiprofissionais que desenvolvem na residência. Tais perguntas são: a) Fale sobre as atividades multiprofissionais que vocês realizam na Residência em Saúde da Família; b) O que significam para vocês estas atividades?; c) Como as atividades multiprofissionais contribuem para o processo de aprendizagem profissional médica nesta residência? As falas dos sujeitos foram gravadas e transcritas literalmente.
Para análise dos dados foi empregada a técnica de análise de conteúdo. Segundo Bardin17, é “uma técnica de investigação que, através de uma descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto das comunicações, tem por finalidade a interpretação destas mesmas comunicações”. Os passos descritos pela autora foram utilizados para a análise dos dados obtidos na realização dos grupos focais.
Primeiramente, realizou-se uma leitura flutuante do texto obtido em cada grupo focal; em seguida, foram realizadas outras leituras com o objetivo de identificar e desmembrar as unidades de registro, ou seja, foi feita uma codificação, que corresponde a uma transformação dos dados brutos do texto, para que se conseguisse atingir uma representação do conteúdo visando à categorização. A codificação foi feita por meio das falas dos grupos focais, onde cada fala foi separada como uma unidade de registro, ou seja, uma unidade de sentido que traduzisse a percepção dos residentes médicos em saúde da família acerca do trabalho multiprofissional que desenvolvem na residência, sendo que, posteriormente, construíram-se categorias de análise com as falas relacionadas.
As categorias identificadas na interpretação da falas pode ser sintetizada em três eixos temáticos: Âncoras e balizas da visão interdisciplinar no trabalho em equipe permeiam a perspectiva da residência em Saúde da Família; Os conflitos e paradoxos do trabalho em equipe e a manutenção da linha de montagem; Dilemas no trabalho em equipe frente a uma estrutura hierarquizada. Esses eixos são perspectivas que não são, necessariamente, excludentes: ora se imbricam com idéias que se superpõem, ora se diferenciam por seguir lógicas distintas.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Âncoras e balizas da visão interdisciplinar no trabalho em equipe permeiam a perspectiva da residência em Saúde da Família.
Esta categoria é composta pelos depoimentos que fornecem os elementos que constituem o conceito de interdisciplinaridade. Observa-se nos discursos um processo de conceituação que perpassa os eixos centrais deste conceito. A análise dos discursos permite afirmar que estes transitam entre o reconhecimento de que o conhecimento também se faz no campo das relações interpessoais e que é nessa dinâmica entre ensinar e aprender que os atributos a serem alcançados pelo residente durante a sua formação serão construídos.
"Para nós, é uma troca de experiência... quando estamos com um outro profissional, ele também vai estar ensinando... e isso é também um aprendizado.(E2R2)".
“... você pode aprender com a agente... e com a agente que eu aprendo a lidar com a comunidade... com auxiliar, a gente aprende a entrar melhor na casa da comunidade... como colher sangue, a pegar uma veia, isso é importante...” (E2R1).
Na caracterização do conceito, os depoimentos expressam que, quando os residentes assumem seus papéis, realizando o exercício da prática médica, os momentos de discussão e trocas de experiências em suas vivências com os outros profissionais potencializam a construção do conhecimento e a articulação com as outras áreas do saber, o que permite que o fazer médico possa ser efetivado pela integração do trabalho em equipe e pela participação complementar do outro profissional.
“A gente encaminha para a psiquiatra, que poderia me auxiliar, e se eu encaminhar para a fisioterapia, ela vai falar o que tenho que fazer; a psicóloga me orientar como falar para família... eu faço a minha parte médica” (E4R1).
“Eu acredito que, sozinho, como médico, você não vai sozinho ajudar aquele doente, porque se não tiver um agente comunitário para ir na casa dele... entregando a medicação ou dando uma orientação melhor... ele não vai tomar o remédio... e você vê que o médico não resolve tudo sozinho” (E3R1).
O momento da reunião dos profissionais aparece, nos depoimentos, como eixo central, como o carro-chefe da base dessa perspectiva interdisciplinar, pois é neste espaço que a prática do trabalho em equipe se materializa e permite uma visão mais integral. Neste espaço, é possível para o residente em formação romper com uma visão fragmentada. A discussão em equipe – embora mencionada como a soma de um grupo de profissionais – permite, segundo os depoimentos, que, ao estarem todos, não haja a soma das partes, e, nesse sentido, a atuação que poderia se manter com certo reducionismo pode circunscrever-se a uma visão transformadora. Essa visão transformadora é sentida como algo que, sem esse espaço, jamais seria possível ao profissional em formação.
"A gente acaba ganhando bastante. Quando discutimos com os outros profissionais, temos uma visão que não teríamos; por exemplo, a questão social, a questão psicológica... há a soma quando juntamos um grupo de profissionais de diferentes áreas (E1R2)".
Quando é possível desenvolver uma relação de compreensão do modelo de equipe, a própria compreensão possibilita que o trabalho seja efetivo porque as especificações profissionais assumem contornos mais flexíveis.
"Tenho contado com o apoio de toda a equipe, e isso tem ajudado bastante... e o trabalho com a auxiliar de enfermagem, com o agente comunitário contribui com a nossa formação, porque você aprende a trabalhar em equipe, aprende de certa forma, a organizar o sistema de trabalho com relação ao agendamento de consultas, demanda espontânea, delegação de funções... (E4R2)".
Em síntese, os depoimentos que compõem esta categoria evidenciam que a discussão sobre o que é a equipe se norteia pela prática diária, pois a concepção dos residentes, ainda que pouco elaborada teoricamente, é permeada por elementos que implicam na troca do saber.
Os conflitos e paradoxos do trabalho em equipe e a manutenção da linha de montagem
Os depoimentos expressos nesta categoria apresentam os conflitos e paradoxos da convivência entre as pessoas no dia-a-dia do trabalho. O pressuposto básico percebido nos depoimentos é que nesta formatação é necessário que o profissional saiba realizar a sua função em conjunto com o outro, mantendo esse outro informado sobre o seu plano de cuidados. Todavia, no cotidiano das relações, há profissionais que rompem com essa lógica e acabam por estruturar o seu trabalho e o da equipe numa perspectiva que mantém a velha estrutura do “trabalho em linha de montagem”, no qual cada um exerce sua função sem pensar na sua inserção dentro de um grupo, provocando conflitos e desorganização no trabalho de toda uma equipe.
“Dentro da unidade, a gente tem interação com as outras áreas: odontologia, a própria enfermagem; entretanto, há despreparo das outras áreas... você encaminha para o psicólogo, mas ele não nos dá uma contra-referência... então, o prontuário fica desorganizado” (E2R1).
Embora, nesta visão contida no exemplo acima, pareça haver clareza do que é imprescindível para a estruturação do trabalho e, ainda, do que compõe as responsabilidades individuais de cada membro para que as ações possam ser desenvolvidas em uma relação de colaboração, isso não acontece de fato. A âncora dessa perspectiva está centrada na idéia de que cabe a cada profissional buscar o outro profissional para fortalecer a sua ação individual. Esta concepção fortalece a concepção de “trabalho em linha de montagem”, pois demarca as dúvidas sobre os papéis a serem assumidos no espaço do trabalho em equipe. Duvidas essas que denunciam a indefinição acerca dos papéis individuais para alguns participantes deste trabalho.
“Depende do profissional que você está lidando... para fazer uma visita, vamos com os agentes comunitários, temos contato com o auxiliar de enfermagem; agora, algumas áreas como a psicologia, ele não me procura para discutir algum caso...” (E4R1).
Dada a complexidade de uma prática multiprofissional, embora desejada, esta prática ainda não foi historicamente construída; por esta razão, o despreparo é percebido claramente nas falas dos residentes que comparam as pessoas que foram preparadas nesta estrutura com as que não foram, e o quanto a fragmentação do trabalho fica patente.
”Muitas vezes o preceptor não tem o preparo específico para a residência multidisciplinar; muitas vezes ele não tem o perfil do PSF; entretanto, alguns profissionais formados no PSF têm preparo para te orientar” (E4R1).
Em resumo, essa categoria apresentou as dúvidas e a crítica do processo de trabalho em equipe por este estar sendo constituído como fruto de um processo que ora se caracteriza como mecânico, ora como fragmentado inserido numa perspectiva com objetivo de ser integral.
Dilemas no trabalho em equipe frente a uma estrutura hierarquizada
Esta categoria apresenta as relações de poder instituídas na estrutura hierarquizada do sistema e suas interfaces com o trabalho em equipe no PSF e com a formação. A estrutura extra-serviço é concebida, segundo as falas dos residentes, como uma barreira que impõe mais dificuldades ao cotidiano do trabalho em equipe. A luta pelo atendimento efetivo da demanda numa estrutura que se mantém dicotomizada traz mais conflitos para que o trabalho em equipe seja desenvolvido intra e extra PSF.
“Para o serviço terciário não ficar lotado de pessoas, o serviço primário tem que ser eficiente, e faz parte do serviço terciário verificar isso... o que acontece é que não é feita contra-referência... se não for feita, dificilmente vai fluir bem o sistema...” (E2R1).
“Tem que fazer melhora na própria equipe, na própria entidade... a gente tinha que ser mais respeitado pelas entidades de saúde (E2R1)”.
Sumarizando, essa categoria explicita a luta de poder que permeia as relações no campo da saúde e a dificuldade de situar o trabalho em equipe como algo que se constrói intra e extra Unidade Saúde da Família.