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Artigos

0065/2025 - “Vinte anos da Reforma dos Cuidados Primários em Portugal: lições aprendidas e novos desafios.”
"Twenty years of the Primary Care Reform in Portugal: lessons learned and new challenges."

Autor:

• Luis Augusto Pisco - Pisco, L.A - <luispisco@mail.telepac.pt>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9007-8949

Coautor(es):

• Victor Borges Ramos - Ramos, V.B - <vramos@ensp.unl.pt>
ORCID: https://orcid.org/ 0009-0007-2235-3287



Resumo:

Em 1971, num processo disruptivo com a cultura dominante, foi iniciada em Portugal a criação de uma rede comunitária de centros de saúde, com cobertura universal do território nacional. Apesar de fases de estagnação e desvios houve uma evolução consistente dos cuidados de saúde primários (CSP), até hoje. Em outubro de 2005, foi impulsionada uma ambiciosa reforma dos CSP. A experiência dessa reforma é agora revisitada, motivando algumas reflexões sobre as lições aprendidas e sobre desafios para o futuro.
Os últimos 20 anos foram divididos em quatro períodos: o de 2005 a 2010, marcado pelo impulso reformista que transformou a organização hierárquica tradicional dos centros de saúde em redes de equipes multiprofissionais de saúde familiar, com autonomia técnica e responsabilização contratualizada; entre 2010 a 2015 decorreu a grave crise financeira que afetou a economia global; de 2015 a 2020, sobressaíram as consequências económicas e sociais e a recuperação pós-crise; finalmente, de 2020 aos dias atuais viveram-se: a pandemia de Covid-19; os efeitos do desgaste pandémico; e, nos últimos dois anos, a generalização da administração conjunta dos cuidados de saúde primários, continuados e hospitalares sob figura jurídica de unidades locais de saúde (ULS). Ponderado todo o percurso, os autores propõem a integração dos aspetos analisados na perspetiva multidimensional do conceito de Saúde Local, destacando várias implicações práticas consequentes.

Palavras-chave:

Centro de Saúde; Reforma dos Cuidados de Saúde Primários; Serviço Nacional de Saúde; Unidades Locais de Saúde, Saúde Local.

Abstract:

In 1971, in a disruptive process with the dominant culture, the creation of a community network of health centers was initiated in Portugal, with universal coverage of the national territory. Despite phases of stagnation and deviation, there has been a consistent evolution of primary health care (PHC) to date. In October 2005, an ambitious PHC reform was launched. The experience of this reform is now revisited, motivating some reflections on the lessons learned and on challenges for the future. The last 20 years have been divided into four periods:2005 to 2010, marked by the reformist impulse that transformed the traditional hierarchical organization of health centers into networks of multi-professional family health teams, with technical autonomy and contractual accountability; between 2010 and 2015 there was the severe financial crisis that affected the global economy;2015 to 2020, the economic and social consequences and the post-crisis recovery stood out; finally, between 2020 and 2025 there were: the Covid-19 pandemic; the effects of pandemic wear; and, in the last two years, the generalization of the joint administration of primary, long-term and hospital care under the legal figure of local health units (ULS). Considering the entire path, the authors propose the integration of the aspects analyzed under the multidimensional perspective of the concept of Local Health, highlighting several consequent practical implications of this approach.

Keywords:

Health Center; Primary Health Care Reform; National Health Service; Local Health Units, Local Health.

Conteúdo:

1. O início – Cuidados de saúde primários – 1971 a 2005
Pode considerar-se haver uma evolução consistente dos cuidados de saúde primários (CSP) em Portugal, apesar de fases de estagnação, recuo e desvios. Os alicerces remontam ao início da década de 70 do século XX. Em 1971, num processo disruptivo com a cultura então dominante, foi iniciada a criação de uma rede comunitária de centros de saúde, com o objetivo de atingir a cobertura universal do território nacional. 1,2
O conceito de centro de saúde marcou uma viragem no modo de ver e de atuar em saúde. Foi uma inovação visionária implementada em Portugal e, quase ao mesmo tempo, na Finlândia. Antecedeu em alguns anos o movimento dos cuidados de saúde primários (CSP) lançado pela OMS em 1976-1980, que teve como marco histórico a Conferência Internacional OMS-UNICEF de 1978, em Alma-Ata (atual Almati), no Cazaquistão. 3 A marca centro de saúde é simples e clara. Apreende-se, compreende-se e comunica-se muito facilmente. Tem conotações positivas. Um serviço próximo, acessível e disponível que reúne e coordena um conjunto organizado de profissionais, equipes, competências e meios, para promover e proteger a Saúde de cada pessoa, família e comunidade local. Um recurso da própria comunidade e por ela participado, capaz de responder à grande maioria das necessidades de cuidados de saúde do dia-a-dia das pessoas e que, ao mesmo tempo, cuida da população na sua comunidade local, como um todo. Os primeiros centros de saúde, ditos de “primeira geração”, dedicaram-se essencialmente a atividades preventivas e foram dinamizados por médicos e enfermeiros de saúde pública. Entre 1971 e 1982 foram criados cerca de 350 centros, pelo menos um em cada concelho, correspondendo a um município. O seu propósito era o de melhorar a saúde da sua comunidade. Não ofereciam cuidados “curativos”. Estes, eram assegurados por mais de 2000 postos médicos dos Serviços Médico-sociais das Caixas de Previdência, que contratavam médicos com e sem especialidade. A criação dos primeiros centros de saúde deveu-se à visão, habilidade política, persistência e saberes de três personalidades. Um político, um empreendedor e um estudioso: Baltazar Rebelo de Sousa, Arnaldo Sampaio e Francisco Gonçalves Ferreira. Os dois primeiros foram progenitores de dois presidentes da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa e Jorge Sampaio. O terceiro não teve filhos.1
Em 1982/1983, os centros de saúde passaram a incluir os cuidados curativos dos postos médicos dos Serviços Médico-Sociais das Caixas de Previdência.
Nessa altura foram criadas a carreira médica de clínica geral, a figura do médico de família e a especialidade de medicina geral e familiar. Cada médico tinha ao seu cuidado uma lista de cerca de 1.500 pessoas, desejavelmente inscritas por famílias. Assim, a partir de 1982, os centros de saúde passaram a dispor de milhares de médicos de família, na sua grande maioria jovens. Foram organizados em larga escala programas de formação específica e de internato (residência) de especialidade nas várias zonas do país. No entanto, o modelo burocrático da organização e direção destes centros de saúde, sem autonomia de gestão, e com trabalho profissional isolado e passivo-reativo, produzia resultados aquém dos desejados e causava insatisfação nos profissionais. 4-6
Em 1996/1997 foram iniciadas experiências de reorganização em pequenos grupos de
médicos de família com equipes multiprofissionais (“Projetos Alfa” e “Grupos em Regime Remuneratório Experimental”), com a finalidade de melhorar a organização e o impacto dos centros de saúde na saúde e bem-estar das pessoas e da população. Cada uma dessas unidades tinha uma coordenação própria emergente da própria equipe, promovendo um sistema de liderança conetiva, com ampliação do compromisso, envolvimento e entusiasmo dos profissionais. Porém, entre 1999 e 2005, a sucessão de ministros e de políticas de saúde levou a ziguezagues e a contradições. O movimento de mudança iniciado entre 1996 e 1999 parou. Tinha avançado apenas um pequeno número de equipes. No final de 2005 deu-se nova mudança de ciclo político.
2. 20 anos de Reforma dos Cuidados de Saúde Primários – 2005 a 2025
a) O impulso reformista 2005 a 2010
Em outubro de 2005, Portugal iniciou formalmente uma ambiciosa reforma dos cuidados de saúde primários (CSP), sendo objetivo deste artigo descrever e analisar esse processo de reforma no período de 20 anos que se completarão em outubro de 2025.
Foram estabelecidos como grandes objetivos para a reforma dos CSP a obtenção de mais e
melhores cuidados de saúde para os cidadãos, aumento da acessibilidade e consequente aumento da satisfação dos utilizadores dos serviços. Pretendeu-se também aumentar a satisfação dos profissionais criando boas condições de trabalho, melhorando a organização e recompensando as boas práticas. Simultaneamente, teria que se melhorar a eficiência e promover a contenção de custos. A reforma dos CSP inseriu-se no quadro mais vasto da reforma da Administração Pública. Incluiu a reconfiguração dos centros de saúde com organização hierárquica tradicional, obedecendo a um duplo movimento: (1) constituição de pequenas unidades funcionais autónomas, com destaque para as unidades de saúde familiar (USF) e as unidades de cuidados na comunidade (UCC) – prestadoras de cuidados de saúde à população; (2) criação de agrupamentos de centros de saúde, promovendo a agregação de recursos e estruturas de gestão, eliminando concorrências estruturais, e obtendo economias de escala. Na sequência do estabelecido no Programa do Governo, o Conselho de Ministros7 criou na dependência direta do Ministro da Saúde a Missão para os Cuidados de Saúde Primários (MCSP), com a natureza de estrutura de missão, para conduzir o projeto de lançamento, coordenação e acompanhamento da reconfiguração dos centros de saúde e implementação das pequenas unidades funcionais autónomas. Nessa resolução a MCSP é incumbida, entre outras tarefas, de: apoiar a reconfiguração dos centros de saúde em USF e outras unidades funcionais, desempenhando um papel de provedoria das iniciativas dos profissionais; coordenar tecnicamente o processo global de lançamento e implementação dessas unidades, bem como demais aspetos da reconfiguração dos CS; desempenhar funções de natureza avaliadora, reguladora de conflitos e de apoio efetivo às candidaturas das USF; propor a orientação estratégica e técnica sobre a política de recursos humanos, a formação contínua dos profissionais e a política de incentivos ao desempenho e ? qualidade, a aplicar nas USF; elaborar os termos de referência da contratualização das ARS com os CS e destes com as USF; promover o lançamento de formas inovadoras de melhoria da articulação com outras unidades de prestação de cuidados, nomeadamente com os cuidados hospitalares e continuados; propor, nos termos da lei, modalidades de participação dos municípios, cooperativas, entidades sociais e privadas na gestão de CS e USF.
Nesta importante fase inicial a Missão para os Cuidados de Saúde Primários teve a responsabilidade de conduzir essa profunda reconfiguração acompanhando todas as fases da reforma desde o seu desenho à sua implementação no terreno sendo um dos fatores de sucesso desta primeira fase.
O Programa do XVII Governo Constitucional, na área da saúde, dava um particular enfoqueaos CSP e à sua importância na ligação ao usuário, por ser o primeiro acesso deste aos cuidados de saúde. Referia explicitamente que a atenção primária é o pilar central do sistema de saúde, que o centro de saúde (CS) constitui a entidade enquadradora das unidades de saúde familiar (USF) e que seriam adotadas as seguintes medidas de política: Reestruturação dos CS através da criação de USF, obedecendo aos princípios seguintes: (1) pequenas equipes multiprofissionais e auto-organizadas; (2) autonomia organizativa funcional e técnica; (3) contratualização de uma carteira básica de serviços; (4) meios de diagnósticos descentralizados; (5) sistema retributivo que premeie a produtividade, a acessibilidade e a qualidade;8,9 As USF devem ser integradas, em rede, podendo assumir diferentes enquadramentos jurídicos na sua gestão, quer pertencendo ao sector público administrativo, quer pertencendo ao sector cooperativo, social e privado; reforçar os incentivos e a formação dos médicos de família, atraindo jovens candidatos. Por Resolução do Conselho de Ministros, o mandato da MCSP foi prorrogado por dois anos e posteriormente por mais um ano. A MCSP terminou, em 14 de abril de 2010, o seu mandato, após quatro anos e meio de atividade.
b) A crise financeira entre 2010 e 2015
Em maio de 2011, sob os efeitos da grave crise económica, Portugal assinou um Memorando de Entendimento com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, em troca de um empréstimo de 78 bilhões de Euros. O Memorando de Entendimento continha mais de 50 medidas e ações concretas relativas
aos cuidados de saúde, com o objetivo de economizar 664 milhões de Euros neste setor.
Uma consequência importante foi um corte dramático no gasto público em cuidados de saúde (em que a despesa pública no Serviço Nacional de Saúde representa 66% do total de
despesas de saúde), que reduziu em termos reais o gasto em 8,2% em 2011, 9,5% em 2014, mesmo assim cerca de 10% inferior ao seu pico em 2010, refletindo o impacto da crise económica e o Memorando de Entendimento subsequente. Apesar desse procedimento representar uma oportunidade de otimização de processos e de redução de desperdícios, na realidade alguns cortes foram desproporcionais por ausência de avaliação rigorosa.
A crise económica atingiu toda a Europa, mas as crises económicas representam tanto um estímulo como uma barreira para a reforma dos sistemas de saúde. Em muitos pontos, a crise financeira proporcionou uma janela de oportunidade e um estímulo para as reformas.
Os impactos da crise na saúde, em Portugal, acabaram por ser menores que em outros países e muito devido á organização dos serviços de saúde num SNS e à recente reforma dos CSP.
A segunda fase da reforma revelou, desde o início, um conjunto de problemas próprios do processo de implementação dos agrupamentos de centros de saúde (ACES). Entre eles, estava a ausência de recursos humanos capacitados nas áreas da gestão e a não atribuição de autonomia financeira a estas novas unidades administrativas. Um estudo realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OECD)10 em 2015 sobre o sistema de saúde português mostra que, em geral, o sistema de saúde oferece um atendimento de alta qualidade a baixo custo. Um dos pontos fortes destacados no relatório da OECD é que o sistema de CSP português está orientado para medir, garantir e melhorar a qualidade. Ao contrário da maioria dos sistemas de saúde da OECD, Portugal tem uma grande quantidade de informação disponível nos CSP, monitorando um elevado número de indicadores. A OECD considera que o sistema de saúde português respondeu bem à pressão financeira, conseguindo equilibrar a necessidade de consolidação das contas públicas com melhorias na qualidade.10
No entanto, alguns desafios permaneceram. A disparidade entre a parte não transformada dos centros de saúde e as novas USF nos principais indicadores de qualidade é motivo de preocupação. Ainda assim, a OECD recomenda uma reflexão estratégica na área dos CSP, de forma a garantir que os cuidados de elevada qualidade sejam acessíveis a toda a população portuguesa.10
c) recuperação no pós-crise entre 2015 a 2020
Esta fase foi marcada essencialmente pela recuperação face à crise económica e na
reformulação da governação, com um conjunto de medidas, das quais se destaca a revisão e melhoria do processo de contratualização. No final de 2018 estavam em funcionamento 532 USF (278 de modelo A - sem pagamento ligado ao desempenho e 254 de modelo B – com pagamento ligado ao desempenho) 11.
Quando o XXI Governo Constitucional tomou posse, em novembro de 2015, a situação económica do país ainda era frágil. O déficit, em percentagem do PIB, foi de 4,4% em 2015, obrigando ao prosseguimento de políticas de contenção da despesa e aumento das receitas sob pena de imposição de multas. Portugal saiu oficialmente do procedimento de déficit excessivo em 16 de junho de 2017.
Salienta-se que a crise e a fragilidade das políticas levaram o SNS a gastar pior os recursos escassos, o que gerou graves problemas e desigualdades no acesso, tendo faltado visão estratégica e capacidade de executar as reformas organizativas indispensáveis. Em fevereiro de 2016, o Ministério da Saúde lançou o Plano Estratégico para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, a fim de retomar a Reforma de 2005 e expandir o número de usuários do SNS com médico de família. Esse plano teve como objetivo garantir um Médico de Família no SNS a todos os cidadãos. Esse objetivo está ainda por alcançar apesar dos investimentos expressivos em recursos humanos e infraestruturas ao longo dos últimos anos, na medida em que são necessários novos modelos de organização do trabalho para dar resposta às novas necessidades e exigências dos cidadãos, mas sobretudo para mitigar as dificuldades de acesso já diagnosticadas. Durante a segunda e terceira fases, procedeu-se a duas atividades importantes: a avaliação do sistema de saúde e o desenvolvimento dos sistemas de informação. O incremento da transparência ganhou espaço com a criação do Portal do SNS, no qual estão disponíveis em tempo real informações nacionais sobre os tempos de espera nos serviços de urgência e consultas de ambulatório nos hospitais do SNS. Simultaneamente, é possível conhecer a atividade de cada uma das unidades do SNS, bem como a sua situação financeira e os atrasos nos pagamentos a prestadores de serviços, embora o processo de responsabilização ainda possa ser melhorado.
d) pandemia de Covid-19 - 2020 aos dias atuais

A crise da COVID-19 demonstrou a importância de colocar os CSP no centro dos sistemas de saúde, tanto para gerir um aumento inesperado da procura, como para manter a continuidade dos cuidados para todos. Um forte atendimento nos CSP - organizados em equipes multidisciplinares e com funções inovadoras para profissionais de saúde, integrado com serviços de saúde comunitários, equipados com tecnologia digital e trabalhando com incentivos bem planeados - ajuda a fornecer uma resposta bem-sucedida do sistema de saúde.12
Durante a pandemia foram acelerados desenvolvimentos promissores e inovadores nos CSP. Esses esforços precisam de ser expandidos ainda mais, para garantir que os sistemas de saúde sejam mais resistentes a futuras emergências de saúde pública, mas também para enfrentar os desafios do envelhecimento das sociedades e do crescente fardo das doenças crónicas.
Os CSP reduziram a pressão sobre os serviços de retaguarda dos sistemas de saúde oferecendo cuidados de proximidade, abrangentes e preventivos durante e após a crise pandémica. Porém, a COVID-19 teve um impacto complexo nos CSP. Houve muitos contextos em que se melhorou o acesso e a coordenação, devido à existência de melhores recursos e fluxos de informação, mas também com redução da abrangência dos serviços.
Os CSP constituíram a pedra angular na resposta à COVID-19 e demonstraram ser altamente adaptáveis para satisfazer as exigências específicas da pandemia, mas requerem recursos, equipamentos, formação e financiamento suficientes. Rapidamente se percebeu que algo teria de ser feito para reduzir a pressão nas urgências e nos internamentos. Por isso, é urgente pensar em soluções criativas para, de futuro, sermos capazes de lidar com a capacidade de responder a uma variação repentina da dinâmica de procura e oferta. Resta saber, se a experiência adquirida agora, se transfere em conhecimento e implementação sustentável no futuro.
Todos reconheceram que os cuidados de saúde primários foram uma peça fulcral na resposta à COVID-19. Estes serviços conseguiram reinventar-se com alguma celeridade. Em contexto de pandemia, a promoção da literacia em saúde ganhou também redobrada importância junto das pessoas, das comunidades e das organizações, constituindo-se como uma importante ferramenta da saúde pública. Acima de tudo, impunha-se conseguir comportamentos adequados – individuais ou de grupo – e medidas não farmacológicas, que se constituíam como chave para a prevenção e controlo da pandemia. Nos próximos tempos, iremos precisar que a população incorpore na sua rotina uma série de comportamentos associados a uma proteção quanto às infeções respiratórias. A literacia em saúde não pode falhar e a comunicação também não. Ambas estão interligadas e precisam ainda de fazer algum caminho entre nós.
3. 2024 - Cuidados de saúde primários e hospitais sob a mesma administração
A nova Lei de Bases da Saúde, veio estabelecer que o SNS deve pautar a sua atuação pela integração de cuidados13. A referida integração visa, entre outros, assegurar aos beneficiários do SNS o acesso ao tipo de cuidados que mais se coadunam com as suas necessidades efetivas. Também o artigo 5.º do novo Estatuto do SNS 14, veio determinar que os estabelecimentos e ser viços do SNS devem orientar o respetivo funcionamento pela proximidade da prestação, pela integração de cuidados e pela articulação das respostas. Dos referidos modelos organizativos as unidades locais de saúde (ULS) destacam-se como entidades jurídicas às quais compete promover a prestação integrada de cuidados de saúde primários e hospitalares. Volvidos 25 anos sobre a criação em 1999 da primeira ULS 15, em Matosinhos, foram generalizadas a todo o País, observando-se, atualmente, um movimento de reorganização do SNS, o qual tem como desiderato final organizar as respostas em cuidados de saúde em função das necessidades das pessoas. Para avaliar a atual situação da Saúde podemos recorrer ao relatório do Conselho das Finanças Públicas que em junho apresentou o seu estudo sobre a “Evolução do desempenho do Serviço Nacional de Saúde” e à Entidade Reguladora da Saúde que publicou o Estudo “Cuidados de Saúde Primários: Qualidade e Eficiência nas UCSP e USF”. Segundo o Conselho das Finanças Públicas,16 em 2023, a atividade hospitalar do SNS aumentou, mas de forma insuficiente para satisfazer a procura. Nos cuidados primários reduziu-se o número de consultas médicas. No âmbito da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, o maior número de usuários assistidos em 2023 não foi suficiente para responder ao aumento do número de pessoas referenciadas nesse ano. O Conselho das Finanças Públicas concluiu, assim, que o nível de atividade do SNS foi insuficiente para fazer face às necessidades crescentes da população. No que diz respeito às necessidades de saúde não satisfeitas, Portugal, já no ano de 2019 (último ano com informação publicada pelo Eurostat), apresentara, de entre os países da União Europeia e Espaço Económico Europeu, o maior grau de “população com necessidades de cuidados de saúde que reportou necessidades de saúde não satisfeitas”. A primeira causa de necessidades não satisfeitas eram então as listas de espera. A manutenção de necessidades não satisfeitas e os restantes indicadores apresentados apontam para problemas de ineficiência no SNS.
Do ponto de vista orçamental o défice do SNS reduziu-se em 2023, mas os pagamentos em atraso aumentaram.
Em 2023, o número de usuários do SNS aumentou para 10,6 milhões de inscritos, dos quais
1,7 milhões de pessoas (16%) não tinham médico de família atribuído. Face a 2022 trata-se de mais 230 mil pessoas nesta situação. Desta forma, continuou a observar-se nos cuidados primários um desvio significativo entre a atividade realizada e a que seria necessária para a satisfazer as necessidades da população.
Os constrangimentos da atividade dos cuidados primários enquanto primeiro ponto de
contacto com o SNS, nomeadamente a maior proporção de pessoas não inscritos em Unidades de Saúde Familiar e o crescente número de cidadãos sem médico de família, que se apresentam como fatores que condicionam o acesso ao SNS e que poderão pressionar os
serviços de urgência e internamento, obrigando por vezes os hospitais a redirecionar recursos da atividade programada para acudir à procura nos serviços de urgência. A saturação do acesso à resposta pública de saúde, tem como consequência o aumento das necessidades de saúde por satisfazer, reportadas de acordo com a OCDE por 40% da população portuguesa, em 2019. O valor mais elevado da UE.
Em Portugal, as principais razões apontadas para a existência de necessidades de saúde por satisfazer são: 1) as listas de espera (que aumentaram em 2023 para a primeira consulta, para os inscritos para cirurgia e para o acesso à Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados); e 2) motivos financeiros, com reflexo no agravamento dos pagamentos diretos dos usuários, por maior necessidade de recurso a prestadores privados, situação especialmente gravosa para as famílias com menores rendimentos.
No que diz respeito à avaliação da qualidade, a comparação de indicadores internacionais revelou que, quer no que respeita a qualidade dos cuidados a montante (prevenção), quer a jusante (admissões hospitalares), Portugal revelava um desempenho acima da média dos países da OCDE, em todos os indicadores analisados entre 2019 e 2022.
Este estudo utilizou indicadores previstos pela própria OCDE, como os internamentos
evitáveis em consequência da eficácia da prestação de cuidados nos CSP. Como a prestação
de CSP adequados às necessidades dos utilizadores pode reduzir o número de admissões hospitalares desnecessárias, os internamentos evitáveis são considerados uma medida indireta para aferir a qualidade dos cuidados primários.
De acordo com a OCDE, a asma, a doença pulmonar obstrutiva crónica, a insuficiência cardíaca e a diabetes são exemplos de doenças crónicas cujo tratamento está bem definido
e pode ser realizado ao nível dos cuidados de saúde primários. Com base nesse critério, Portugal destacou-se como o terceiro do grupo dos países da OCDE com menor número de admissões hospitalares motivadas por condições clínicas como asma, doença pulmonar obstrutiva crónica e insuficiência cardíaca, refere o regulador nacional. Além disso, apresentou uma “queda expressiva” no número de internamentos evitáveis por diabetes, tornando-se o segundo país com menos admissões desse tipo em hospitais, num `ranking´ liderado pela Islândia. Entre os 25 países analisados, Portugal foi o que registou o menor número de admissões hospitalares por hipertensão em 2022, confirmando a tendência decrescente desde 2019.
No que respeita a qualidade no curto prazo, em todos os indicadores analisados Portugal revelava um desempenho acima da média da OCDE.17 Numa perspetiva de longo prazo, a
OCDE considera que o critério de admissões hospitalares por motivo de amputações de membros inferiores em doentes diabéticos reflete a qualidade dos CSP, na medida em que indicia que estes cuidados foram efetivos para prevenir a evolução da doença e as suas
complicações. Também neste indicador Portugal registou um valor inferior à média dos países da OCDE analisados. Já ao nível do acesso, o estudo refere que, no final de 2022, 87% dos usuários inscritos nos centros de saúde tinham médico de família atribuído. O estudo confirma que a região Norte tinha a maior percentagem de usuários inscritos com médico de família atribuído (97,4%), enquanto Lisboa e Vale do Tejo apresentou a menor percentagem (74,8%). Em dezembro de 2022, um total de 6.056 médicos e 6.517 enfermeiros trabalhavam nos CSP em Portugal continental.
A OCDE também publicou no final de 2024 18 a sua avaliação sobre os sistemas de saúde e a comparabilidade d e um conjunto de indicadores validados. Examina duas prioridades interligadas: a) promover longevidade saudável e b) fazer face à escassez de mão de obra no sector da saúde. Estes desafios são fundamentais para gerir o equilíbrio entre a procura e a capacidade de oferta nos sistemas de saúde europeus. A UE enfrenta um défice de mão de obra no setor da saúde, estimando-se que faltem 1,2 milhões de médicos, enfermeiros e parteiras em 2022. A escassez resulta de múltiplos fatores: o envelhecimento demográfico afeta tanto os doentes como a própria mão de obra do sector da saúde, combinado com condições de trabalho difíceis que contribuem para o esgotamento do pessoal e dificuldades de retenção – desafios que foram ainda mais intensificados pela pandemia da COVID-19. São necessárias intervenções políticas audaciosas em três áreas fundamentais: expansão da capacidade de formação profissional, melhorar as condições de trabalho para atrair e reter talentos e alavancar inovações para aumentar a produtividade.
4. Lições aprendidas
Por vezes, considera-se que o conteúdo de uma reforma é menos importante na sua aprovação pública e legislativa que o timing da sua apresentação, a forma como é apresentada e discutida com as partes interessadas, e uma infinidade de outros fatores.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) desenvolveu um projeto de caráter transversal sobre estas questões, chamado “Fazer a reforma acontecer”19. Têm sido estudados os fatores por trás da implementação de reformas bem-sucedidas, com base em evidências provenientes de países que viram nos últimos anos os seus sistemas de saúde analisados pela OCDE e sobre uma exaustiva revisão da literatura. O projeto considera várias questões em particular, utilizadas em todas as diferentes áreas estudadas: existência de instituições adequadas para apoiar as reformas, da decisão à implementação; o impacto e as reações dos afetados pelas reformas; a agenda da reforma; o calendário; as interações entre as diferentes áreas; o papel das evidências e das organizações internacionais no apoio ?s reformas. Conclui-se que algumas fases da reforma têm que estar concluídas antes de se poder dizer que uma reforma foi bem-sucedida; uma falha numa delas geralmente leva ao fracasso da reforma. Questões específicas do setor da saúde incluem entre outras o papel dos grupos profissionais que prestam serviços de saúde, da informação, das evidências disponíveis, das comparações internacionais no desempenho dos sistemas de saúde, de um diagnóstico claro e um design atraente para a reforma, o aproveitamento das “janelas de oportunidade” políticas, a utilização de incentivos para alinhar os interesses das partes interessadas com as intenções da reforma e assegurar recursos suficientes para “lubrificar as engrenagens da mudança”.
É necessário avaliar o desempenho dos sistemas de saúde – e as suas reformas – tendo em conta os principais objetivos da política de saúde. O trabalho da OCDE tem-se focado preferencialmente no acesso, capacidade de resposta, sustentabilidade, qualidade, equidade e eficiência. Salientamos como importante para o sucesso da reforma o fato de a criação das USF ser um processo voluntário da base para o topo, com total envolvimento dos profissionais de saúde. Estes fizeram a escolha da equipe, definiram um plano de ação, têm autonomia organizacional e de gestão, em função de objetivos, e corresponsabilização. Também importante foi a existência de um forte apoio político e da existência de uma boa interação com a comunicação social. Finalmente, foram decisivos os focos na melhoria da acessibilidade aos serviços pelos utilizadores, e na melhoria da qualidade do atendimento.
O desaparecimento da MCSP, concluída que foi a fase de planeamento, arranque e implementação das vertentes e componentes essenciais, abriu caminho a uma segunda etapa de desenvolvimento com a institucionalização e internalização dos dispositivos de condução da reforma, trazendo alguma apreensão sobre a sua sustentabilidade. A abertura de novas USF e o ultrapassar de mais de 50% de cobertura por este novo modelo organizativo ficou assegurada pelas mais de uma centena de candidaturas em carteira. Mas a sustentabilidade da reforma está muito condicionada pela crescente e ameaçadora falta de recursos humanos, principalmente médicos de família, pela capacidade para ultrapassar as insuficiências do sistema de informação, por conseguir colocar as unidades funcionais dos ACES a trabalhar em rede, e pela existência de mecanismos mais efetivos de acompanhamento e avaliação. Mas, acima de tudo, o maior risco para a sustentabilidade de qualquer reforma tem a ver com as alterações nas prioridades políticas e um eventual desinvestimento político.
Segundo Pedro Ferreira 20, a reforma dos CSP então em curso, consubstanciada inicialmente pela aplicação de novas medidas de gestão e pela criação das USF, foi possível graças a um feliz encontro de três determinantes fundamentais: a vontade dos profissionais e a sua aposta na mudança, a liderança profissional conduzida por uma equipe de missão e, por fim, oconstante apoio político por parte do Ministério da Saúde. A ausência de qualquer um destes pilares de desenvolvimento teria inviabilizado todo o processo.
5. Desafios futuros
A experiência da reforma dos CSP em Portugal, revisitada após 20 anos, motiva algumas reflexões e perspectivas. Pesando avanços, erros, obstáculos, dificuldades, paragens e vicissitudes de percurso ocorrem-nos considerações como as que a seguir destacaremos.
Necessidade de manter uma abordagem sistémica multidimensional
Embora sendo necessidade de primeira ordem, tem sido difícil manter uma abordagem sistémica multidimensional, integrada, para além do foco específico de cada reforma. Será necessário assegurar uma governança estratégica estável e delinear uma “carta de navegação” com um painel de indicadores (“tableau de bord”) para aferir o movimento e avaliar os percursos e os resultados da mudança, tendo em conta o todo sistémico.
Manter uma equipe de missão, ou equivalente, até concluir a mudança planeada
A aprendizagem realizada releva a importância de dispor de uma equipe de missão, ou equivalente, até concluir as transformações planeadas. Isto requer compromissos e apoio político. É crítico advogar junto dos decisores a necessidade de manter estabilidade nas políticas de saúde de longo prazo, para além dos habituais ciclos políticos curtos. Definir e cumprir um calendário para o processo de transformação, até à sua conclusão. Sem um calendário explícito para a transformação desejada, pode chegar-se a um mosaico de situações e de iniquidades. Quer entre cidadãos utilizadores dos serviços, quer entre profissionais e equipes de saúde. A equidade do acesso a cuidados de saúde de qualidade é um requisito central para qualquer transformação num sistema complexo como o da saúde. As desigualdades associadas às “obras em curso” de uma reforma tornam-se inaceitáveis para além de um período transitório. Participação social ativa e organizada dos utilizadores e das comunidades. É decisivo conseguir evitar capturas por parte de interesses institucionais, profissionais e comerciais. Para contrabalançar e equilibrar com justiça e bom senso estes processos pode recorrer-se a métodos e meios estruturados de participação social informada e ativa, envolvendo cidadãos e organizações da comunidade, designadamente os órgãos de soberania local, nos processos de reforma e de mudança dos seus serviços públicos de saúde.
Governação clínica e de saúde

Um dos desafios chave é o de desenvolver conceitos, estratégias, práticas, e uma rede de governação clínica e de saúde, incluindo a sua institucionalização a nível local através de conselhos ou equipes multiprofissionais dedicadas a esta função. A governação clínica e de saúde nos locais onde teve suficiente desenvolvimento no período entre 2009 e 2023 permitiu enquadrar, coordenar e orientar as diversas equipes locais, harmonizar processos assistenciais e obter melhores acesso, segurança, eficiência, qualidade, integração e continuidade de cuidados. A variação de prioridades, a preponderância do imediatismo e a descontinuidade das políticas, fragilizaram o desenvolvimento desta área. Haverá que retomar e reforçar esta linha de ação, designadamente para assegurar percursos assistenciais integrados entre os diferentes tipos de cuidados, incluindo os cuidados continuados e paliativos, com circulação simplificada, sem atrasos, perdade tempo e de informação. Formação e avaliação contínua de dirigentes para uma liderança colaborativa21
A formação de base e a experiência adquirida dos dirigentes ou a simples substituição desses dirigentes não garantem o sucesso de uma reforma. Assim, será essencial delinear e concretizar programas estruturados, adaptativos e bem coordenados, de formação e avaliação contínua de dirigentes institucionais, intermédios e de coordenadores de equipes locais, envolvendo-os e comprometendo-os com os processos transformativos. Ambientes e carreiras capazes de gerar motivação e satisfação nos profissionais. Outro desafio, talvez o mais crítico, é o de desenvolver modelos de governação e de gestão integrada, capazes de gerir as expectativas dos utilizadores e dos profissionais e de responder às suas necessidades. Este objetivo requer um processo integrado, colaborativo, de proximidade, envolvendo centros de saúde, hospitais, outros serviços de saúde, poder local e as diversas estruturas da rede social. Relativamente aos profissionais, haverá que atender às suas expectativas e aspirações, incluindo como perspetivam o seu desenvolvimento profissional contínuo e correspondentes recompensas, bem como poder conciliar as dimensões da sua vida: pessoal, familiar e profissional.
Sistema de informação de saúde ao serviço das pessoas
A inovação tecnológica permite ter sistemas de informação de saúde mais avançados, sustentados na transição digital e no recurso inteligente às possibilidades da chamada “inteligência artificial”, sempre orientados para uma cultura de saúde positiva. O sistema de informação de saúde tem de ser um instrumento facilitador dos processos de saúde pessoal e coletiva.22 O registo de saúde eletrónico pessoal unificado, integrador, será o eixo central de um sistema de informação de saúde ao serviço das pessoas. Um registo que inclua o plano pessoal de cuidados, permanentemente atualizado e que possa ser facilmente utilizado, no qual cada um possa exercer um nível de autodeterminação em linha com os seus direitos e conhecimentos.
No plano tecnológico a interoperabilidade é uma prioridade crítica. Os dados e a informação devem fluir, com segurança, dentro da mesma organização e entre os diferentes níveis e tipos
de cuidados e diferentes organizações, permitindo a cada pessoa e aos profissionais de saúde por si autorizados conhecer, acompanhar, gerir e reproduzir o seu percurso de saúde.
Haverá necessidade de criar uma estrutura dedicada à governação do sistema de informação de saúde e desenvolver um sistema integrado de gestão da qualidade deste sistema, que inclua a participação e o envolvimento das pessoas.22

Aprofundar o conceito de saúde local e fazer evoluir os centros de saúde
O modelo ainda dominante de cuidados ficou desajustado. Centrado nos hospitais, na doença aguda, e nos cuidados remediativos, responde mal aos desafios atuais. A organização por silos institucionais e por segmentos profissionais agrava o problema. Aumenta a insatisfação, a desmotivação e a exaustão dos profissionais, devidas a condições e a modelos de trabalho pouco atrativos, sem perspetivas de desenvolvimento profissional ao longo da vida. A ausência de inovação nas carreiras profissionais, nos sistemas de retribuição e a dificuldade de compatibilizar o trabalho com a vida familiar e a qualidade de vida pessoal, têm levado à saída de profissionais do SNS e à sua fraca atratividade para os jovens profissionais de saúde.
Parece ser o tempo e a oportunidade para retomar e aprofundar o conceito e as práticas de saúde local. Nesta perspetiva, os cuidados e serviços de proximidade devem ser a base estruturante, do SNS, o que reafirma a necessidade de uma nova evolução do centro de saúde. Aspetos essenciais desta evolução serão a ligação e participação das comunidades locais e dos seus órgãos de soberania. (Figura 1). A designação “saúde local” é ainda pouco utilizada, ao contrário da “saúde global”. Porém, os conceitos, princípios e práticas inerentes existem há várias décadas. Destaca-se, em especial a conceptualização dos SILOS (sistemas locais de saúde) pela OPAS23, na década de 90, e várias experiências locais em vários pontos do mundo.
O lançamento em Portugal dos alicerces da saúde local ficou associado aos sistemas locais de saúde (1999), adiados até hoje, mas presentes em várias leis em vigor, bem como à criação da primeira unidade local de saúde (ULS) em Matosinhos (1999): centros de saúde e o hospital da área. Em 2023/2024 as ULS foram generalizadas a todo o SNS, na expectativa de mais e melhor capacidade de decisão e gestão de recursos e melhor integração e continuidade de cuidados. Do lado da oferta de cuidados, tem sido advogada a necessidade de superar a dicotomia “cuidados primários” vs. “cuidados hospitalares”. Porém na encruzilhada desta superação têm sido apontados caminhos diversos, às vezes divergentes, às vezes contraditórios. Uma ideia que vem ganhando força é a de avançar para um novo tipo de centro de saúde, uma nova etapa evolutiva (Figura 2).
Cuidados de proximidade – novo tipo de centro de saúde

No contexto atual das ULS, estes cuidados deverão englobar, para além dos cuidados primários, uma parcela considerável de cuidados especializados, até agora oferecidos nos edifícios dos hospitais, em geral distantes das comunidades. Tal permitirá melhorar a acessibilidade, a disponibilidade e atingir capacidade para resolver mais de 90% dos problemas e necessidades de saúde das pessoas e população na sua proximidade. Assim, espera-se reduzir quantitativamente os cuidados sedeados nos hospitais, ficando estes numa retaguarda de apoio para problemas e necessidades aos quais não seja possível nem sustentável dispor de recursos e competências na proximidade das pessoas. Por outro lado, o desenvolvimento dos centros de referência é já uma política nacional e na União Europeia, organizando-se em redes nacionais e transnacionais, permitindo concentrar recursos altamente diferenciados para responder a situações específicas e/ou mais complexas e/ou raras.

6. Notas conclusivas

São diversas e complexas as transições com que a sociedade portuguesa está confrontada. Vivem-se grandes mudanças, designadamente nas características da população das comunidades locais, quer sociodemográficas, quer etnoculturais, quer epidemiológicas. Também há mudanças nas expectativas e exigências da sociedade, na diversificação de competências dos profissionais e nas suas expectativas, na inovação clínica e tecnológica, com custos crescentes, nos dilemas ético-sociais por desigualdades de acesso a cuidados de qualidade e dos resultados de saúde alcançados. Aumentaram as situações complexas de morbilidade múltipla, incluindo as com doenças raras, e as pessoas e grupos em contextos psicossociais desfavoráveis. Estas mudanças geram novos padrões de necessidades e exigem a transformação do modelo de cuidados. Requerem mais proximidade, mais integração e mais continuidade de cuidados, com equipes interprofissionais abertas, dinâmicas e adaptativas.
A reforma dos CSP, que teve um forte impulso entre 2005 e 2010, ficou a meio caminho. Porém, abriu novas perspetivas evolutivas e permitiu avanços qualitativos e quantitativos patentes em vários indicadores de saúde e de desempenho, designadamente nos anualmente divulgados pela OCDE. 18 Porém não basta mudar apenas uma parte do sistema. É necessário acionar e harmonizar mudanças nas restantes componentes sistémicas para obter um desempenho mais harmonioso do todo.





Referências
1. Sakellarides C. Carta aberta ao meu Centro de Saúde I – a ideia do centro de saúde. Diário de Notícias “on-line” de 4.11.2023.
2. Gonçalves Ferreira FA. Política de Saúde em Portugal – uma experiência de definição legislativa e de organização de serviços de saúde. Lisboa: edição do autor, 1972
3. Organização Mundial da Saúde e UNICEF. Conclusões e Recomendações sobre os Cuidados de Saúde Primários. Genebra: OMS, 1978
4. Sakellarides CT, Oliveira LL, Albuquerque MJB, Costa IMA, Rêgo MGS. O serviçode cuidados primários de saúde (centro de saúde) – Princípios gerais e reflexões sobre uma experiência. Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública – Cadernos de Saúde, Série I, n.º 1, 1979.
5. Ramos, V. O ressurgimento da medicina familiar. Revista Crítica de Ciências Sociais 1987; 23: 157-168.
6. Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral. Um Futuro para a Medicina de Família em Portugal. Lisboa: APMCG, 1991.
7. Resolução do Conselho de Ministros nº 157/2005 de 22 de setembro de 2005. [documento na Internet].
8. Regime Jurídico das USF. Diário da República 2007; 1.ª série – Nº 161 – DL nº298/2007, de 22 de agosto de 2007. [documento na Internet].
9. DL298_2007 de 22Ago_Reg Jurídico das USF.pdf Indicadores de desempenho para as unidades de saúde familiar. Missão para os Cuidados de Saúde Primários. Lisboa: Ministério da Saúde; 12 de abril de 2006. [documento na Internet].
10. Organization for Economic Co-operation and Development. OECD Reviews of Health Care Quality: Portugal 2015. Raising standards. Lisboa: Organization for Economic Co-operation and Development; 2015. (OECD Reviews of Health Care Quality).
11. Administração Central do Sistema de Saúde. Relatório candidaturas e constituição de USF e UCC. http://www2.acss.min-saude.pt/Portals/0/estat_nacional_2016_ 07_1115_24_32.pdf
12. Duarte R, Lopes F, Alves F, Aguiar A, Monteiro H, Pinto M, et al. COVID-19 em Portugal: a estratégia. UMinho Editora; 2022.
13. Portugal. Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro de 2019. Aprova a Lei de Bases da Saúde e revoga a Lei n.º 48/1990, de 24 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 185/2002, de 20 de agosto. Diário da República; 2019.
14. Portugal. Decreto-Lei n.º 52, de 4 de agosto de 2022. Aprova o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde. Diário da República; 2022.
15. Organization for Economic Co-operation and Development. OECD Reviews of Health Care Quality: Portugal 2015. Raising standards. Lisboa: Organization for Economic Co-operation and Development; 2015. (OECD Reviews of Health Care Quality).
16. Conselho das Finanças Públicas. Evolução do desempenho do Serviço Nacional de Saúde. Junho 2024. Porto, Portugal.
17. Entidade Reguladora da Saúde. Estudo Cuidados de Saúde Primários: Qualidade e Eficiência nas UCSP e USF. 2024. Porto, Portugal.
18. OECD/European Commission (2024), Health at a Glance: Europe 2024: State of Health in the EU Cycle, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/b3704e14-en.
19. Hurst J. Effective ways to realize policy reforms in health systems. Paris: Organizationfor Economic Co-operation and Development; 2010. [documento na Internet]. (OECD Health Working papers nº 51).
20. Ferreira PL, Antunes P, Portugal S. O valor dos cuidados de saúde primários. Perspetiva dos utilizadores das USF – 2009. Lisboa: Ministério da Saúde. Missão para os Cuidados de Saúde Primários, 2010.
21. Gordon, Dara, et al. "Collaborative governance for integrated care: insights from a policy stakeholder dialogue." International Journal of Integrated Care 20.1 (2020).
22. Conselho Nacional de Saúde. Para um Melhor Sistema de Informação de Saúde ao Serviço das Pessoas. Lisboa: CNS, 2024. Disponível em: https://www.cns.min-saude.pt/wp-content/uploads/2024/11/CNS-Relatorio-Sistema-de-Informacao-de-Saude-Revisto-nov.pdf
23. OPAS – Organização Panamericana da Saúde (Agência da OMS para o continente americano)



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Citar

Pisco, L.A, Ramos, V.B. “Vinte anos da Reforma dos Cuidados Primários em Portugal: lições aprendidas e novos desafios.”. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/mar). [Citado em 12/03/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/vinte-anos-da-reforma-dos-cuidados-primarios-em-portugal-licoes-aprendidas-e-novos-desafios/19541?id=19541&id=19541

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