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0009/2007 - ZOOTERAPIA POPULAR NA CHAPADA DIAMANTINA: UMA MEDICINA INCIDENTAL ?
COGNITIVE BASIS OF THE CHAPADA DIAMANTINA’S FOLK ZOOTHERAPY: AN INCIDENTAL MEDICINE?

Autor:

• Flávia de Barros Prado Moura - Moura, F.B.P. - Maceió, Alagoas - Universidade Federal de Alagoas - <flavia.moura@pesquisador.cnpq.br>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

Este trabalho analisa o sistema zooterápico tradicional de uma população afro descendente na Chapada Diamantina, Bahia. A pesquisa foi conduzida ao longo de oito meses de trabalho nos quais foram realizadas entrevistas livres e semi-estruturadas, registro fotográfico e identificação de espécies. Busca-se, além da apresentação de uma lista de produtos oriundos de animais e seus respectivos usos, iniciar uma discussão sobre as possíveis razões para crença no potencial terapêutico ou profilático das frações e produtos animais amplamente utilizados na medicina tradicional de populações brasileiras.

Palavras chaves: Medicina popular, Zooterapia, Populações tradicionais, Etnomedicina.


Abstract:

This study examines the zoo therapeutic system of an Afro Brazilian population that live in the state of Bahia’s Chapada Diamantina, Brazil. The research spanned an eight-year period. The methodology consisted of open- and semi-structured interviews, photographic documentation and species identification through the use of taxonomic clues and literature review. A list of animals and related uses is provided followed by the beginning of a discussion about the possible existence of a rational basis for the belief in the therapeutic potential of items that are used in the traditional medicine.
Key-words: Folk medicine, zootherapy, traditional populations, ethnomedicine.


Conteúdo:

ZOOTERAPIA POPULAR NA CHAPADA DIAMANTINA: UMA MEDICINA INCIDENTAL ?


Flávia de Barros Prado Moura
ICBS
Universidade Federal de Alagoas
Rua Aristeu de Andrade, 452
Farol, Maceió-AL
CEP 57051-090
flavia.moura@pesquisador.cnpq.br

José Geraldo W. Marques
Laboratório de Etnoecologia
Departamento de Biologia
Universidade Estadual de Feira de Santana








ZOOTERAPIA POPULAR NA CHAPADA DIAMANTINA: UMA MEDICINA INCIDENTAL ?

“O saruê foi o único animal que ajudou Nossa Senhora dando leite para o Menino Jesus. Ai ela disse: você vai parir sem dor. Não tem nada melhor do que o couro do saruê para apressar o parto”.


RESUMO
Este trabalho analisa o sistema zooterápico tradicional de uma população afro descendente na Chapada Diamantina, Bahia. A pesquisa foi conduzida ao longo de oito meses de trabalho nos quais foram realizadas entrevistas livres e semi-estruturadas, registro fotográfico e identificação de espécies. Busca-se, além da apresentação de uma lista de produtos oriundos de animais e seus respectivos usos, iniciar uma discussão sobre as possíveis razões para crença no potencial terapêutico ou profilático das frações e produtos animais amplamente utilizados na medicina tradicional de populações brasileiras.

Palavras chaves: Medicina popular, Zooterapia, Populações tradicionais, Etnomedicina.

ABSTRACT
This study examines the zoo therapeutic system of an Afro Brazilian population that live in the state of Bahia’s Chapada Diamantina, Brazil. The research spanned an eight-year period. The methodology consisted of open- and semi-structured interviews, photographic documentation and species identification through the use of taxonomic clues and literature review. A list of animals and related uses is provided followed by the beginning of a discussion about the possible existence of a rational basis for the belief in the therapeutic potential of items that are used in the traditional medicine.
Key-words: Folk medicine, zootherapy, traditional populations, ethnomedicine.
COGNITIVE BASIS OF THE CHAPADA DIAMANTINA’S FOLK ZOOTHERAPY: AN INCIDENTAL MEDICINE?

INTRODUÇÃO
O uso de animais na medicina popular é um fenômeno amplamente distribuído do ponto de vista histórico e geográfico, que vem sendo estudado sob diferentes abordagens - etnográficas1,2, médicas3, farmacológicas,4 e ecológicas, ,5,6,7,8,9.
Toda civilização, para desenvolver seu sistema médico, exercita a prática da observação e a caracterização empírica dos fenômenos. Provavelmente, muitos produtos obtidos de animais e plantas foram incorporados à farmacopéia popular por acaso, pela avaliação dos sintomas experimentados após o consumo, assim como muitos podem ter sido incluídos ou eliminados após seqüências de tentativas e erros.
Neste trabalho o sistema zooterápico de uma população afro descendente na Chapada Diamantina é analisado. Busca-se, além da apresentação de uma lista de produtos oriundos de animais e seus respectivos usos, iniciar uma discussão sobre as possíveis razões para a crença no potencial terapêutico ou profilático das frações e produtos animais amplamente utilizados na medicina tradicional de populações brasileiras.

METODOLOGIA

O trabalho de campo foi conduzido no povoado do Remanso, no município de Lençóis - BA. A população de 206 habitantes é composta predominantemente de afro descendentes que vivem da pesca e da agricultura familiar e, mais recentemente, do turismo.
Nos três meses iniciais de trabalho foram visitadas 20 residências (60%) buscando identificar usos e formas de uso de partes ou produtos animais. Foi utilizada nesta etapa a metodologia geradora de dados10, que se baseia em perguntas abertas. As entrevistas iniciais permitiram a identificação de cinco especialistas locais com idades variando de 23 a 65 anos, entre os entrevistados ou apontados por estes. Foram consideradas especialistas locais pessoas reconhecidas pela população como os principais detentores do conhecimento sobre a prática zooterápica tradicional. Nos cinco meses seguintes, com cada um dos especialistas, foram realizadas de uma a cinco entrevistas semi-estruturadas com duração de 20 a 50 minutos. As entrevistas tiveram como objetivo aprofundar o conhecimento sobre o sistema médico local.
Para a sistematização dos dados foi usado o modelo da união das diversas competências11. Foi efetuado o registro fotográfico de frações animais utilizadas com fins terapêuticos encontradas nas residências (figuras 1 e 2). A identificação das espécies foi feita a partir de pistas taxonômicas fornecidas pela população local e consulta à bibliografia especializada.

Sugestão para inserir figuras 1 e 2



RESULTADOS
O uso de animais na medicina local parece bastante amplo, tendo sido obtida uma lista com 52 espécies de animais (Quadro 1), as quais fornecem 72 matérias-primas para prevenção ou tratamento de 39 enfermidades. As gorduras se destacaram como o principal produto medicinal, tendo sido mencionadas como úteis gorduras de 19 dos 52 animais que fazem parte do receituário.
Além destas, são utilizadas outras partes e produtos como: casco, pêlo, vísceras, espinhos, chifres, couros, dentes, ninhos, fezes, leite e mel. O número de partes ou produtos obtidos de cada animal variou de um a três. Alguns animais, entretanto, são usados integralmente, podendo ser torrados, moídos, transformados em pó e adicionados a chás ou misturados a alimentos.
Na medicina popular do Remanso, como em muitas outras populações tradicionais brasileiras, a obtenção e manutenção da saúde envolvem práticas terapêuticas onde a função médica ou litúrgica dos recursos se confunde12,13,14,15. A crença no potencial terapêutico de um animal pode se dever a uma grande variedade de fatores que vão do plano físico, como a avaliação dos sintomas experimentados após o seu consumo, ao simbólico, como associação da forma da fração animal utilizada à parte do corpo humano que requer cuidados.
Três características, entretanto, isoladas ou combinadas, mostraram-se recorrentes. Animais, suas frações ou produtos considerados medicinais: 1) têm, segundo a crença local, o potencial de provocar alteração da temperatura corpórea (propriedade de aquecer ou resfriar o corpo do usuário); 2) têm uma morfologia que pode ser associada à parte do corpo humano que precisa ser tratada; e/ou 3) não têm utilidade para outros fins. Estas características, aparentemente, não são exclusivas dos zooterápicos usados pela população estudada, podendo se constituir uma base comum com modelos médicos de outras populações brasileiras. Nas sessões a seguir discutiremos esses possíveis padrões, buscando explicações aplicáveis, pelo menos, à população estudada.
Sugestão para inserir quadro 1
A propriedade de provocar alteração da temperatura corpórea: uma medicina humoral (re) inventada ?

No sistema médico do Remanso, dos 39 problemas de saúde relatados, 17 tiveram suas causas atribuídas a excesso de exposição ao frio ou ao calor. Doenças como reumatismo, além daquelas relacionadas ao aparelho respiratório (asma, bronquite, tuberculose) são freqüentemente associadas à exposição excessiva a temperaturas frias. O excesso de calor provocaria inflamações oftálmicas, problemas dermatológicos, neurológicos, cólicas, gases, diarréias e outros problemas relacionados ao aparelho digestório (Quadro 2).
Os termos “fresco” e “quente” são popularmente associados a produtos de origem animal ou vegetal, capazes de aquecer ou resfriar o corpo dos usuários, segundo a crença local. A forte crença popular de que muitas enfermidades são causadas por exposição excessiva ao frio ou ao calor, faz com que, frequentemente, se pratique o uso de alimentos ou medicamentos com possíveis propriedades antagônicas na tentativa de se restabelecer a temperatura adequada e, consequentemente, a saúde.
Fortemente arraigada na medicina popular contemporânea, a crença de que muitas doenças estariam relacionadas ao desequilíbrio entre temperaturas corporais já teve lugar privilegiado na história da medicina ocidental: remonta à medicina humoral, atribuída a Hipócrates (460-375 a.C.). Hipócrates adicionou à teoria dos quatro elementos de Empédocles (504 - 443 a.C.) quatro qualidades (frio, calor, seco e molhado), associadas aos quatro humores (sangue, fleuma, bile negra e bile amarela). A saúde, assim como a personalidade, provinha do equilíbrio entre esses humores opostos16,17,18. A medicina oriental também postula que o corpo necessite manter-se equilibrado com o ambiente para garantir seu funcionamento harmônico. Para a Medicina Tradicional Chinesa, o comprometimento deste equilíbrio é responsável por doenças 18.
Na medicina popular o conceito de equilíbrio, particularmente no que se refere ao sistema quente/frio, é bastante difundido entre diferentes povos, tendo sido referido por diversos autores para sistemas médicos de populações do novo mundo12,13,14,15,16,17,20,21. VOEKS15 reporta o sistema quente/frio caracterizando divindades do candomblé, embora argumente que não há evidências de que as raízes deste sistema dual provenham do continente Africano. O autor referido, com base em estudos realizados com povos da América Central e povos indígenas isolados na América do Sul, sugere que o sistema tenha-se produzido de forma endógena (no novo e no velho mundo), evoluindo independentemente. A origem independente justificar-se-ia, possivelmente, pela capacidade de percepção de alterações no corpo, quando este é submetido a excessos, principalmente no que se refere às sensações físicas de frio e calor. Outra possibilidade, embora meramente especulativa, seria a de que a teoria proposta por Hipócrates e popularizada por Galeno, que vigorou até o século XVIII, tenha sido amplamente disseminada deixando marcas em sistemas médicos de populações distintas que, embora se utilizando de produtos diversos, abandonando, substituindo ou incorporando novos produtos, fundamentem-se em bases teóricas semelhantes, trazidas e mantidas com as populações migrantes durante mais de dois séculos.



Sugestão para inserir quadro2
A natureza mostra a cura: a teoria das assinaturas (re) descoberta ?
O segundo critério utilizado no Remanso para justificar o uso de uma fração animal ou de seu corpo inteiro é a sua forma semelhante a um órgão ou parte do corpo que requer cuidados. A semelhança morfológica é frequentemente interpretada como a sugestão de um benefício potencial (Quadro 3).
O uso direto ou indireto de frações ou órgãos de animais devido a características morfológicas é recorrente na medicina popular brasileira. Os exemplos mais comuns são os amuletos, os quais são usados para atrair o sexo oposto, aumentar o desempenho sexual, prevenir mal-olhado, entre tantas outras funções. Um caso bem ilustrativo é o uso, em diferentes regiões do Brasil, do dente de jacaré para facilitar o nascimento de dentes em crianças. Neste caso o uso pode ser direto - torrado e adicionado à água de beber - ou indireto - portado como amuleto6. O escroto do saruê (um marsupial) é usado no Remanso para apressar o parto; o pênis do quati (Nasua nasua) usado no Remanso contra impotência, teve o mesmo uso registrado em Alagoas6; a genitália do boto (Inia geoffrensis) é usada na Amazônia brasileira e teria a função de atrair o sexo oposto2,4 amparada, provavelmente, na mesma lógica.
O uso de produtos devido a critérios morfológicos nos remete à teoria das assinaturas (Signatura Rerum), atribuída a Paracelso (1495-1541). A teoria das assinaturas preconiza que tudo que a natureza cria recebe a imagem da virtude que ela pretende esconder. Assim, plantas e animais exibiriam morfologia, bem como cores ou odores, que pudessem ser relacionados à parte do corpo humano que mereceria cuidados. As características exibidas seriam uma maneira de sinalizar, para a humanidade, as suas propriedades terapêuticas. Completamente desprovida de base científica, a crença parece sobreviver na cultura popular por mais de cinco séculos.
Sugestão para inserir quadro 3
Remédio ou lixo: uma medicina das sobras reencontrada ?
Uma terceira característica comum em frações de animais, ou mesmo em animais inteiros usados como medicinais, é a sua inutilidade para outros fins. Mais da metade (55%) das frações/produtos utilizados no Remanso são subprodutos de animais. Embora estudos sobre a zooterapia popular brasileira ainda não tenham se voltado para a análise quantitativa de uso de sobras ou subprodutos animais, a prática é bem documentada em listagens de zooterápicos obtidas com populações tradicionais em diferentes estados do Brasil1,2,4,5,6,7,22,27. Essa prática já havia sido observada por Holanda 24 para a primeira metade do século XX, quando o autor relata o uso, como amuletos e remédios, de partes de animais silvestres consideradas impróprias para a alimentação ou manufatura de couros, afirmando que a utilidade medicinal destas partes era bastante arraigada na mentalidade popular da época. Cita, entre as partes passíveis de uso, os chifres, os dentes, as unhas, os ossos, os cascos, as couraças e as gorduras.
No caso particular da comunidade do Remanso, é possível sugerir, cautelosamente, três vias explicativas para o uso de sobras ou subprodutos na medicina popular: a primeira de cunho socioeconômico, a segunda de cunho ecológico e a terceira de cunho farmacológico.
A primeira possibilidade seria a de que, sendo formadas por pessoas economicamente excluídas (descendentes de escravos), o uso de sobras teria emergido historicamente tendo como base as sobras alimentares da classe dominante, ou seja, partes desprezadas, sem valor comercial, disponível como matéria prima.
Do ponto de vista da teoria ecológica, o uso de sobras poderia ser justificado como uma tentativa de maximizar os recursos obtidos dos ecossistemas locais, uma vez que a maioria das partes medicinais – chifres, couros, escamas – são impróprias para consumo alimentar devido à dificuldade mecânica para sua ingestão. Assim, a população estaria maximizando o que retira da natureza, utilizando como medicamento partes que, apresentando dificuldades para serem usadas na alimentação diária, seriam descartadas.
Pela via explicativa de cunho farmacológico, a hipótese seria que, em pelo menos alguns desses subprodutos, concentrem-se substâncias bioativas de efeito medicinal as quais, se ingeridas em proporções compatíveis com os objetivos alimentares, teriam efeito deletério sobre o organismo dos seus consumidores – daí a sua exclusão do cardápio e a sua inclusão na farmacopéia. Esta explicação talvez possa ser aplicada não só a frações animais, como também a animais inteiros, cujos espécimes, se consumidos em quantidades compatíveis com os objetivos alimentares, pudessem provocar reações indesejáveis (e. g. , tóxica, alérgica, etc.). Estas reações poderiam incidir, de forma particular, sobre o organismo de pessoas em estados especiais (e.g. doentes, convalescentes, gestantes ou durante puerpério e pós-operatório) e daí a restrição dietética.
As três possibilidades aqui aventadas para explicar o uso de sobras talvez não se apliquem exclusivamente à população estudada, uma vez que o fenômeno do uso de sobras/subprodutos aparenta ser amplo e talvez se constitua numa das características mais marcantes na zooterapia popular brasileira.
Do popular científico ao científico popular: considerações finais

Um dos objetivos das pesquisas sobre o conhecimento ecológico tradicional é a busca das possibilidades de integrá-lo ao conhecimento ecológico acadêmico e uma das estratégias para fazê-lo é gerar hipóteses testáveis. Tal abordagem tem se revelado frutífera para a obtenção de novos medicamentos25. Wilson 25 salienta que o estudo do folclore e da medicina tradicional dos povos indígenas é um meio eficiente para encurtar o caminho que vai desde os organismos silvestres a um produto comercial. Cita o argumento incontestável de que, dos 119 compostos farmacêuticos puros conhecidos sendo usados em alguma parte do mundo, 88 foram descobertos “através de dicas da medicina tradicional”.
Embora farmacopéias científicas e populares listem múltiplos zooterápicos27, o emprego médico e etnomédico de animais ainda permanece como um “fenômeno semi-oculto” na literatura científica, sendo na maioria das vezes omitido pelos informantes de “folk” quando dos primeiros contatos com os pesquisadores, devido, dentre outras possíveis razões, a implicações legais (eg. proibições a caça e consumo de animais nativos). Sabe-se hoje, entretanto, que o percentual de fontes animais para obtenção dos fármacos essenciais é bastante significativo e não fica muito abaixo daquele das fontes vegetais. Dos 252 fármacos essenciais selecionados pela Organização Mundial de Saúde, 11,1% têm origem vegetal e 8,7%, animal28.
Um grande número de pesquisas científicas vem dando suporte à eficácia terapêutica a de animais, que, desde há muito, têm utilização popular. O potencial de utilização terapêutica de produtos da pele de rãs e sapos, por exemplo, vem encontrando, através da pesquisa farmacológica, avaliação positiva e crescente nas últimas décadas revelando pequenos peptídeos dotados de atividades hormonais, psicotrópicas ou antibióticas. (Amiche, Delfour e Nicolas, 1996). Na herpetofauna brasileira, tanto a cascavel (Crotalus sp.) quanto a jararaca (Bothrops sp.) têm tido os seus venenos farmacologicamente pesquisados. Da segunda foram patenteadas, no exterior, substâncias que compõem conhecidos agentes antihipertensivos comercializados no Brasil.
Outro destaque merecido tem sido dado às gorduras. Da mesma forma que autores têm destacado a importância das gorduras (banhas) na medicina popular em todo Brasil (e.g. Ilha Grande, RJ30; Barra do Superagüí, PR31; para Boa Vista, RR32, o potencial terapêutico de gorduras animais vem sendo amplamente discutido na literatura científica 33,34. Atualmente um dos produtos de origem animal mais recomendados na alimentação humana é o ácido docosahexanóico (DHA), conhecido popularmente como ômega 3. Cientistas reforçam o potencial profilático e curativo35,36,37 do produto para uma gama variada de problemas destacando-se: ação preventiva em relação à doença de Alzheimer; potencial para melhorar a visão de pessoas com dislexia; prevenção de doenças coronarianas e aterosclerose e como coadjuvante no tratamento da artrite, asma e esquizofrenia. O produto tem encontrado múltiplas indicações, parecendo mais um daqueles “remédios que servem para tudo”. Diante da tão ampla gama de prescrições e usos populares, caberia inquirir sobre a razão do por quê fazê-lo: estaríamos diante de medicamentos “omnibus” que para nada serviriam ou de pelo menos uma possibilidade real para curas ?
Vale ressaltar que pesquisas realizadas no Brasil na última década encontraram o DHA em gorduras de peixes nativos, quando sua ocorrência era atribuída exclusivamente a peixes de águas geladas e profundas38. Assim sendo, embora se deva levar em conta a não sobreposição total entre as relações de causa/efeito atualmente apontadas pela investigação científica e as tradicionalmente citadas, vale a pena abdicar dos preconceitos e das ideologias em uma época que vê doenças surgirem e ressurgirem (a exemplo da AIDS e da tuberculose multirresistente). Além do mais, situações de emergência (a exemplo de guerras, ações terroristas e catástrofes naturais) serão melhor enfrentadas com a disponibilidade de recursos mais locais e mais independentes da globalização.
As observações feitas neste trabalho, embora de caráter mais especulativo, sugerem a possibilidade de que a medicina popular evolua não apenas como conseqüência de uma aprendizagem decorrente de uma sucessão de erros e acertos: é provável que nas teorias contidas no uso de “medicamentos” resida a capacidade de adaptação da medicina popular, no momento que um grupo migrante necessita incorporar espécies novas (pela ausência das anteriormente utilizadas) à sua farmacopéia. Esta discussão merece aprofundamento, junto com a busca de possíveis padrões para a crença popular na eficácia terapêutica de produtos animais usados tradicionalmente no Brasil.

Referências
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Agradecimentos:
A primeira autora agradece a toda população do Remanso, em especial ao Agente de Saúde Natalino Nascimento pela valiosa colaboração no acesso ao campo, pela ajuda na análise de dados e pela solidariedade durante os oito meses de campo necessários a pesquisa para realização da Tese.
Quadro 1 – Animais que compõem o repertório zooterápico do Remanso, sua possível identificação taxonômica, parte utilizada e finalidade. Neste ultimo caso optou-se por adotar o termo local para a enfermidade e, quando possível, sua equivalência seguida do símbolo (?). Ressalta-se a dificuldade em traduzir categorias locais para categorias aceitas na medicina convencional uma vez que muitos problemas de saúde não encontram correspondência 1/1 com a medicina oficial.
NOME POPULAR PISTA
TAXONÔMICA PARTE OU PRODUTO FINALIDADE
abelha Apis mellifera mel
ninho gripe
disenteria
andorinha Hirundinidae pena avexado= problemas neurológicos(?)
anu preto Crotophaga ani banha reumatismo
araponga Procnias nudicollis carne tuberculose
arapuá Trigona spinipes mel

ninho fortificante
sinusite
gripe
aruá Pomacea sp. desova inchação=edemas
besouro Hymenoptera ninho surdeza=dificuldade de audição (?)
papeira=parotidite(?)
boi Bos taurus moela (benzoá ?) picada de cobra
cachorro Canis familiaris fezes sarampo
cágado Phrynops geoffroanus carne
casco reumatismo
botando as tripas= prolapso retal (?)


Quadro 1 (continuação)
NOME POPULAR PISTA
TAXONÔMICA PARTE OU PRODUTO FINALIDADE
cancão Cyanocorax cyanopogon pena avexado=problemas neurológicos (?)
capivara Hidrochaeris hidrochaeris osso
casco
bílis derrame=AVC (?)
cascaveio Crotalus durissus banha
língua

chocalho reumatismo
picada de cascavel
proteção contra picada de cobra
catitu Tayassu sp. banha
bucho reumatismo
puxado=asma
cigarra Cicadidae exoesqueleto Surdeza=dificuldade de audição (?)
cumbá Parauchenipterus galeatus esporão homem nojento=impotência
galça Casmerodius albus banha Bronquite/pneumonia
galinha/galo Gallus gallus banha Bronquite/pneumonia
grilo Gryllus sp. perna urina presa=infecção urinária(?)
jabuti Geochelone carbonaria carne
casco reumatismo
botando as tripas=prolapso retal (?)


Quadro 1 (continuação)
NOME POPULAR PISTA
TAXONÔMICA PARTE OU PRODUTO FINALIDADE
jacaré Caiman latirostris banha
dente reumatismo
dente=facilitar nascimento da dentição em crianças
jacaré de mata Paleosuchus palpebrosus (?) couro doença do vento=AVC (?)
jacú Cracidae sp. banha dor de ouvido
jibóia Boa constrictor banha reumatismo
jitaí Tetragonisca angustula mel vilide=leucoma(?)
lagartixa Tropidurus torquatus corpo inteiro ferida que não sara (?)
lesma ... corpo rachadura no pé
asma
mandaçaia Melipona quadrifasciata mel fortificante
piau Leporinus piau banha reumatismo
piranha Serrasalmus brandtii fel amarelidão de neném= icterícia (?)
raposa Cerdocyon thous banha
couro dor de coluna
doença do vento=AVC
rolinha ... sangue da cabeça surdeza=problemas de audição
salamanta Epicrates cenchria banha reumatismo


Quadro 1 (continuação)
NOME POPULAR PISTA
TAXONÔMICA PARTE OU PRODUTO FINALIDADE
sapo Bufo sp. corpo inteiro ferida que não sara
saruê Didelphis sp. banha

escroto dores no corpo
reumatismo
facilitar o parto
sucuiú Eunectes murinus banha reumatismo
socó Tigrisoma lineatun banha Bronquite/pneumonia
teiú Tupinambis merianae banha
casco reumatismo
picada de cobra
doença do vento=AVC (?)
traíra Hoplias lacerdae banha reumatismo
vilide=leucoma(?)
urubú Coragyps atratus banha
crista gripe
fortificante
uruçu Melipona scutellaris mel gripe
sinusite
dor-de-cabeça
zabelê Crypturelus noctivagus zabele sangue da cabeça surdeza=problemas de audição(?)



Quadro 2 – Administração de animais segundo a lógica do sistema de oposição binária quente x frio.
INDICAÇÃO ANIMAIS (PARTES E PRODUTOS) INDICADOS CAUSAS
ATRIBUÍDA À DOENÇA INFORMAÇÃO LOCAL JUSTIFICATIVA (?) SEGUNDO O SISTEMA DUAL
calor frio
doença do vento/derrame = AVC couro da raposa X “Tem que dar um defumador que faz a pessoa suar. Na hora que está trocendo a boca faz o defumador e abafa”. O “derrame” tem sua causa atribuída ao fato de uma pessoa suada se expor a uma corrente de vento. O calor devolveria ao corpo a temperatura normal.
dor de cabeça


disenteria mel de abelha X “O mel de jataí é o mel mais fresco que tem”.

Idem A dor de cabeça tem como causa principal o excesso de sol recebido durante o trabalho nas roças.
A disenteria e outros problemas digestivos têm causas atribuídas ao calor.
dor de coluna banha de jibóia X “No tempo de friagem a pessoa sente mais (dor), ai pega essas banhas, essa mesma de Jibóia e passa morna”. Dores de coluna, no corpo, assim como reumatismo manifestam-se predominantemente durante a estação fria.
dor nos peitos banha de galinha X “passa a banha morna e depois não pode pegar vento”. Idem anterior.
Continuação do Quadro 2
INDICAÇÃO ANIMAIS (PARTES E PRODUTOS) INDICADOS CAUSAS
ATRIBUÍDA À DOENÇA INFORMAÇÃO LOCAL JUSTIFICATIVA (?) SEGUNDO O SISTEMA DUAL
calor frio
fraqueza de homem = impotência esporão do cumbá X “o cumbá não pode ser comido por todo mundo. Ele é muito quente. É comendo ele e dando uma suadeira. É o viagra natural”. Aos alimentos de difícil digestão considerados quentes atribuem-se propriedades de fortalecer e/ou aquecer o corpo.
reumatismo
banha da cascavel

X “a pessoa fica com reumatismo de tanto tomar friagem pescando nesse rio. O remédio é a banha da cascavel”. Reumatismo tem causa atribuída ao excesso de frio recebido durante a pescaria. A banha da cascavel morna pode aquecer o corpo.

vilide = leucoma ? banha da traíra X “é muito fresco; a traíra é o peixe mais manso que tem. Ele não ofende a ninguém”. Problemas oftálmicos têm causa atribuída ao excesso de calor. A traíra é um peixe considerado fresco.







Quadro 3 – Exemplos da administração de partes e produtos de animais, de acordo com a “teoria das assinaturas”.
Indicação Animais (partes e produtos) Informação local justificativa (?) de acordo com a teoria das assinaturas
fraqueza = impotência cumbá “Porque o cumbá é um peixe de muita ciência: o macho de todos viventes só tem dois bagos, ele tem uma penca.” Atribuem à capacidade de excitação sexual masculina, ao fato do peixe apresentar testículos franjados e volumosos.
Parto difícil capanga do saruê = couro do escroto “O saruê foi o único animal que ajudou Nossa Senhora dando leite para Menino Jesus. Ai ela disse: você vai parir sem dor. Não tem melhor do que o couro dele para apressar o parto; pode o menino está atravessado...” O fato de o saruê ser um marsupial sugere que ele não apresente dor ou dificuldades na hora do parto; seria, portanto, indicado para apressar o parto difícil.
reumatismo banha da cascavel



“Passa ela, esfrega e depois não pode sair no sereno. Só serve se a cobra ficar esticada depois que morrer. Se a cobra se envergar não adianta pegar a banha, pois a pessoa fica mais envergada ainda”. Associa-se a forma do animal
morrer (curvo ou reto) para conferir a sua utilidade.





CONTRIBUIÇÕES INDIVIDUAIS DE CADA AUTOR NA ELABORAÇÃO DO ARTIGO


Este trabalho faz parte da tese de Doutorado da primeira autora, orientada pelo segundo autor.



Legenda das figuras:
Figura 1 – Farmácia caseira: gorduras de animais, encontradas em uma residência do povoado do Remanso.
Figura 2 - Farmácia caseira: frações animais usadas com finalidades terapêuticas encontradas em uma residência do povoado do Remanso.



















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