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Introdução
No Brasil, a Nutrição como campo científico (na perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu)1 encontra-se localizada no Colégio de Ciências da Vida, constituindo uma das nove áreas de avaliação das Ciências da Saúde que compõem Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)2. Na árvore de conhecimento estabelecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Nutrição também constitui umas das nove áreas de conhecimento das Ciências da Saúde3.
Essa localização da Nutrição na área das Ciências da Saúde é um fenômeno que remete à própria emergência histórica deste campo de conhecimento tanto no contexto mundial 4-7, como no Brasil 8-11. Por outro lado, análises históricas evidenciam que, além da sua natureza biológica, nas últimas décadas, a Nutrição tem assumido dimensões sociais e ambientais, caracterizando-se como um campo de conhecimento multidisciplinar 4-11, 12-14. Em detrimento da complexidade, amplitude e heterogeneidade metodológica e epistemológica da conformação do campo científico1 da Nutrição8-12, as análises sobre a produção científica revelam a hegemonia de pesquisas com abordagens quantitativas15-16, exigindo a reflexão sobre estratégias de pesquisa que busquem a interdisciplinaridade dos diferentes núcleos de conhecimento que estruturam o campo10-14. Esclarecemos que, em conformidade com as normativas atuais da área de avaliação Nutrição da CAPES 17, cinco diferentes subáreas compõem o campo: i) Alimentos e Alimentação Coletiva; ii) Ciências Humanas e Sociais em
Alimentação e Nutrição; iii) Epidemiologia e Políticas de Alimentação e Nutrição; iv) Nutrição Básica e Experimental; e v) Nutrição Clínica.
São escassos os estudos sobre análises da pesquisa qualitativa no campo da Nutrição brasileira. Na tentativa de localizar o ponto inicial da linha do tempo das análises sobre a pesquisa qualitativa em Nutrição no Brasil, justificamos que se identificou um estudo pioneiro, divulgado em 2009, realizado por Ana Maria Canesqui18, analisando 93 artigos científicos publicados no período de 1985-2007 na base eletrônica Scientific Electronic Library Online (SciELO). À época, Canesqui18 concluiu que as pesquisa qualitativas analisadas possibilitavam a interlocução da Nutrição com as Ciências Sociais e Humanas, entretanto, apontava a necessidade de aperfeiçoamento teórico-metodológico dos pesquisadores deste campo. Para a autora, com a assimilação de conceitos e metodologias das Ciências Sociais e Humanas, sobretudo a partir dos primeiros anos do Século XXI, os pesquisadores do campo da Nutrição ampliavam “a compreensão da complexidade do fato alimentar nas suas dimensões valorativas, simbólicas, subjetivas e motivacionais, além das fisiológicas e materiais” 18 (p.135).
Estudo realizado por Vasconcelos15-16, cujo objetivo foi identificar e analisar as correntes filosóficas e metodológicas do conhecimento científico que embasaram as dissertações e teses produzidas nos programas de pós-graduação em Nutrição no Brasil, no período de 2003 a 2012, identificou que do total de 962 dissertações e teses analisadas, a abordagem quantitativa foi adotada por 92,5% (n=890), enquanto as abordagens qualitativa e mista foram adotadas por apenas 7,3% (n=70). Tais achados, segundo Vasconcelos15-16, denotavam a forte influência que as correntes filosóficas baseadas no positivismo e nas ciências biológicas exerciam na conformação do campo da Nutrição, enquanto as Ciências Sociais e Humanas e as correntes filosóficas, como a dialética e a fenomenologia, exerciam uma influência muito restrita.
De acordo com vasta literatura existente, no contexto mundial, a fenomenologia como corrente filosófica e referencial metodológico da pesquisa de abordagem qualitativa, teve a sua emergência e consolidação no final do século XIX e início do XX, a partir dos estudos de Edmund Husserl [1859-1938]19-23. Husserl desenvolveu um pensamento filosófico ou método de pesquisa estruturado em conceitos centrais tais como fenômeno, intuição, intencionalidade, consciência e transcendência - a fenomenologia transcendental ou fenomenologia pura. Uma corrente filosófica ou metodológica voltada à análise das experiências vivenciadas, análise das essências das coisas em si ou do fenômeno, concebendo fenômeno como tudo aquilo que aparece à consciência e toda a consciência como consciência de algo. Em geral, assume-se que a partir dos estudos de Husserl, foram originadas diferentes correntes do pensamento fenomenológico. Entre tais referenciais, destacam-se: i) Martin Heidegger [1889-1976], que dando prosseguimento e/ou mesmo revisando as ideias de Husserl, criou a fenomenologia ontológica, explorando os sentidos do ser do ente humano. Sendo assim, a partir da sua concepção de ser-no-mundo, Heidegger buscou refletir sobre a condição do ser que existe como consciência da sua presença no mundo e no tempo; ii) Alfred Schutz [1899-1959], que idealizou a fenomenologia sociológica, tendo por base a análise das relações intersubjetivas construídas pelos homens (sujeitos do mundo social) em suas experiências de vida ou vivências do cotidiano; iii) Hans-Georg Gadamer [1900-2002], que formulou a fenomenologia hermenêutica filosófica, concebendo que compreensão e interpretação são procedimentos metodológicos intimamente relacionados no processo de busca do conhecimento, portanto, na análise dos significados atribuídos aos fenômenos deveria ser valorizada a linguagem expressa na mediação entre os sentidos do mundo real e a subjetividade dos indivíduos envolvidos; iv) Jean-Paul Sartre [1905-1980], que propôs a fenomenologia existencialista, formulando que no processo de compreensão da relação fenomênica entre o homem e o mundo, a existência precede a essência, além de valorizar a ação social transformadora dos homens (sujeitos) no mundo; v) Maurice Merleau-Ponty[1908-1961], que concebeu a fenomenologia da percepção ou da consciência corporificada, considerando que a consciência decorre da percepção corporal, sendo o corpo (campo criador dos sentidos) o lugar onde o sensível, simultaneamente, constitui objeto de conhecimento e de manifestação da subjetividade; e vi) Paul Ricoeur [1913-2005], que produziu a fenomenologia hermenêutica, partindo do pressuposto que a interpretação dos fenômenos decorre da mediação entre experiências vivenciadas e sua compreensão linguística.19-23
Revisões de literatura realizadas nos últimos anos apontam que o método fenomenológico tem sido usado em pesquisas da área da saúde, com maior frequência no campo da Enfermagem, mas também aparece com menor frequência nos campos da Medicina, Saúde
Coletiva e Nutrição 22-23. Portanto, evidências apontam que ainda são escassos os estudos qualitativos no campo da Nutrição brasileira, quando confrontados com os estudos de abordagem quantitativa 9-12,15,16. A hipótese que se formula é de que deve ser muito mais restrito o número de estudos qualitativos com abordagem fenomenológica no campo da Nutrição no Brasil. Neste sentido, o presente artigo torna-se relevante ao buscar preencher a lacuna do conhecimento e responder a seguinte questão de pesquisa: Quais as características da pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica desenvolvida no campo da Nutrição no Brasil?
O objetivo do artigo foi caracterizar a produção científica que usou referencial fenomenológico no campo da Nutrição brasileira.

Métodos
O artigo relata uma revisão exploratória (descritiva) da literatura cujo objetivo foi caracterizar (ou mapear) a produção científica que usou referencial fenomenológico no campo da Nutrição no Brasil. Os procedimentos metodológicos e/ou as etapas executadas neste estudo não seguem protocolos rígidos recomendados para determinadas “tipologias” de revisão de literatura.24-27 Entretanto, foram adotadas e/ou adaptadas de forma livre as seguintes etapas, tradicionalmente relatadas em revisões sistemáticas, integrativas e narrativas24-27: i) definição da temática objeto de estudo; ii) formulação da questão de pesquisa e/ou dos objetivos do estudo; iii) definição dos descritores e das bases de dados; iv) definição dos critérios de elegibilidade (seleção, inclusão e exclusão de estudos; v) categorização e análise dos estudos (dados); vi) discussão dos resultados e síntese do conhecimento.
O levantamento bibliográfico foi realizado no final do mês de agosto de 2024 e atualizado em 22 novembro 2024, nas bases eletrônicas de dados Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD); Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES; Scientific Electronic Library Online (SciELO Brasil); LILACS - Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde; PubMed®/NLM - National Library of Medicine; e Google Acadêmico, usando-se estratégias de busca específicas para cada base, de acordo com a síntese descritiva contida no Quadro 1.
Em função do objetivo do artigo, foram adotados os seguintes critérios de inclusão: estudos originais (dados primários ou empíricos) realizados no campo da Nutrição brasileira, sem filtros ou recorte temporal, publicados nos idiomas português, inglês ou espanhol e disponíveis na íntegra. Nos procedimentos de exclusão foram adotados os seguintes critérios: estudos repetidos e/ou duplicados nas bases de dados; artigos de revisão, ensaios e estudos metodológicos; livros e capítulos de livros; relatórios técnicos, notas informativas, e artigos e/ou resumos publicados em anais de eventos científicos; e estudos originais abordando a temática, mas relativos a outros campos ou áreas de conhecimento.
O fluxograma dos procedimentos de busca, seleção, inclusão e exclusão de estudos encontra-se expresso na Figura 1. Na etapa inicial a busca foi realizada nas bases BDTD, CAPES, SciELO, LILACS e PubMed, sendo localizados 44 títulos, após retirada de duplicatas e repetições (n=5) e aplicação das etapas de triagem e elegibilidade foram incluídos 11 estudos para análise e discussão no conjunto destas bases. Na sequência, visando ampliar o número de estudos, realizou-se busca complementar na base Google Acadêmico. Vale ressaltar que a busca no Google Acadêmico identificou aproximadamente 11.000 resultados, sendo assim, em função das características específicas desta base, que exigiria um exaustivo trabalho de mineração das informações, optou-se por realizar a triagem apenas das 20 primeiras páginas de resultados, o que correspondeu a um total de 200 títulos (dez títulos por página), sendo selecionados mais seis estudos nesta base. Destaca-se que na literatura do campo de revisões bibliográficas que utilizaram a base Google Acadêmico como fonte de dados, verifica-se que não há consenso dos parâmetros relatados em relação ao número de páginas consultadas. Há relatos de uso das cinco primeiras28, das dez primeiras29, das 14 primeiras30 e das 20 primeiras páginas31. Nestes artigos citados, não há relato de um “referencial teórico” que fundamente estas quantidades de páginas. Em geral, os autores relatam que o Google Acadêmico foi uma base complementar e que em função da imensa quantidade de registros localizada, a busca se restringiu a um determinado número de páginas. Ou seja, argumenta-se que não foi objetivo realizar busca exaustiva da literatura, apenas identificar artigos para atingir os objetivos do estudo28-31.
Ressalta-se que no processo de identificação da formação básica e vinculação institucional dos autores para triagem/seleção daqueles vinculados ao campo da Nutrição, consultou-se inicialmente as informações autorais constantes na página inicial dos artigos e, na ausência de informação, foi acessado o currículo Lattes na plataforma do CNPq. Destaca-se, ainda, que como procedimento adicional de busca e seleção de artigos originais, consultou-se a lista de referências dos artigos analisados, tendo sido localizados e incluídos dois artigos ao final. Sendo assim, conforme expresso na Figura 1, ao final dos procedimentos de busca, seleção, inclusão e exclusão, foram incluídos 19 estudos na revisão.
Para a análise, os artigos foram categorizados de acordo com seguintes características: Autoria, ano de publicação, local do estudo e base de localização; objetivo; referencial teórico da fenomenologia; procedimentos relatados; sujeitos do estudo; e tema central. Para extração destas características foram realizados os seguintes procedimentos: 1) Leitura dos títulos; 2) Leitura dos resumos; 3) Leitura da seção/capítulo sobre os procedimentos metodológicos da investigação, quando os dois procedimentos anteriores não foram suficientes para extração das informações; 4) Leitura e análise da lista de referências bibliográficas; e 5) Uso do comando localizar ou pesquisar nos arquivos, quando se fez necessária a busca de determinada informação.

Resultados

O Quadro 2 apresenta uma síntese das principais características dos 19 estudos incluídos na de mestrado. Os estudos analisados foram publicados entre 2002 e 2024, sendo que apenas 6 (31,6%) datam dos últimos cinco anos. Em relação aos locais de publicação, observou-se hegemonia da cidade de Salvador e outros municípios da Bahia, com 10 (52,6%) da produção científica, seguida por Curitiba, Paraná (n=2; 10,5%), Florianópolis, Santa Catarina (n=2; 10,5%), Brasília, Distrito Federal (n=1; 5,3%), Belo Horizonte, Minas Gerais (n=1; 5,3%), Rio de Janeiro, RJ (n=1; 5,3%), Ouro Preto, Minas Gerais (n=1; 5,3%) e Fortaleza, Ceará (n=1;5,3%).
Ressalta-se que, em função do critério de inclusão de estudos produzidos no campo da Nutrição com participação de nutricionistas, observou-se, por consequência, a ocorrência de um viés de seleção intencional quando foi analisada a autoria dos 19 estudos. Portanto, destaca-se que todos os estudos analisados contaram com a autoria de nutricionistas em sua produção, sendo que o primeiro autor não é nutricionista em apenas um deles. Nos 13 artigos de autoria coletiva (dois ou mais autores), em três o nutricionista fez parceria com psicólogos, em quatro teve a coautoria de médicos e em um contou com colaboração multiprofissional (Psicologia, História e Letras) (Dados não relatados nos quadros).
Acerca dos objetivos, observa-se no Quadro 2 que, respeitada a singularidade dos enunciados de cada um deles, ocorre uma unanimidade entre os 19 estudos investigados quanto ao uso de assertivas características da abordagem da pesquisa qualitativa15, a partir do emprego de vocábulos que buscam expressar a ação de pesquisa ou investigação como um ato de compreensão, interpretação, descrição, análise e/ou reflexão sobre percepções, significados, sentimentos, experiências, vivências e sentidos atribuídos pelos sujeitos do estudo sobre o objeto da pesquisa.
De acordo com o referencial teórico da fenomenologia empregado nas 19 pesquisas analisadas (Quadro 2), observou-se que a maioria dos estudos não explicita na seção de descrição dos procedimentos metodológicos qual o referencial fundamentou o estudo, sendo que quase a totalidade faz uso de abordagem multirreferencial (uso de mais de um autor).
Ressalta-se que entre os autores clássicos da fenomenologia, Hans-Georg Gadamer apareceu de forma isolada ou associada a outro referencial teórico em maior frequência (n=6; 31,6%); seguido por Alfred Schutz (n=5; 26,3%); Martin Heidegger (n=4; 21,0%); Paul Ricoeur (n=2; 10,5%); Maurice Merleau-Ponty (n=1; 5,3%). Edmund Husserl, considerado o fundador da Fenomenologia19-23, foi citado em apenas um dos estudos analisados, entretanto, sem ser considerado quadro teórico central. Entre os brasileiros, destaca-se Maria Cecília de Souza Minayo, citada em onze (57,9%) dos estudos investigados, sendo que em três aparece como referencial central da análise.
Sobre os procedimentos relatados relacionados à coleta e análise dos dados (Quadro 2), como características específicas das pesquisas com abordagem qualitativa15, a totalidade dos estudos analisados (n=19; 100%) referiu o uso de entrevistas com roteiros não diretivos ou semiestruturados, usando procedimentos de gravação e de transcrição integral das narrativas.
Três investigações relataram o uso de outros procedimentos de estudos etnográficos, tais como observações diretas, confecção de diário de campo e análise de cartas (correspondências).
Quanto aos sujeitos investigados, conforme observa-se no Quadro 2, seguindo ascaracterísticas das pesquisas de abordagens qualitativas15, a quantidade de indivíduos variou de um (história de vida ou estudo de um caso) ao máximo de 30 entrevistados, sendo que 63,2%(n=12) das pesquisas investigaram até dez sujeitos. O gênero dos sujeitos entrevistados foi hegemonicamente feminino (n=15; 78,9%). Quase a totalidade dos entrevistados nas pesquisas foram adultos e/ou idosos (n=17; 89,5%) e os demais foram adolescentes e adultos jovens (n=2; 10,5%).
Em relação à temática central investigada nos 19 estudos selecionados, conforme Quadro 2, observou-se que as pesquisas sobre significados, sentidos e percepções dos transtornos alimentares (anorexia nervosa, bulimia, compulsão alimentar) foram as mais frequentes (n=4; 21,0%), seguidas por aquelas relacionadas às percepções da obesidade (n=3; 15,8%), aos sentidos dos cuidados nutricionais direcionados às crianças e/ou idosos (n=3; 15,8%), aos significados do aleitamento materno (n=2; 10,5%), às essências das terapias nutricionais de distintas doenças e condições de saúde (n=2; 10,5%) e à interpretação da fome (n=1; 5,3 %), da alimentação saudável ( n=1; 5,3%), da produção de alimentos pela agricultura familiar (n=1; 5,3%), dos comportamentos alimentares frente à morte e ao luto (n=1; 5,3%) e das percepções sobre a atuação do nutricionista na atenção básica em saúde (n=1; 5,3%).

Discussão
A análise dos 19 estudos primários incluídos nesta revisão de literatura evidencia que a emergência da fenomenologia como referencial metodológico da produção científica no campo da Nutrição brasileira ocorreu, no ano de 2002, com a publicação do estudo pioneiro de Freitas19, intitulado uma abordagem fenomenológica da fome. Neste estudo original, Freitas19 relata os resultados de investigação etnográfica realizada com dez famílias de um bairro popular de Salvador, Bahia, tendo como referencial central da análise a fenomenologia hermenêutica de Paul Ricoeur. A fome, objeto de estudo que Freitas19 procurou compreender e interpretar à luz da hermenêutica de Ricoeur, conforme evidenciam pesquisas recentes50-51, continua a bater à porta de milhares de famílias brasileiras. Assim, tomando emprestada uma das metáforas que Freitas19 usou em suas considerações finais para compreender o fenômeno da fome em 2002, diríamos que a fome continua sendo “o ente, a coisa, o vento ruim que chega para assombrar” (p.67) milhões de brasileiros atualmente50-51.
Na linha do tempo que demarca a trajetória da pesquisa com abordagem fenomenológica no campo da Nutrição no Brasil, o segundo artigo só foi publicado seis anos depois (2008). Neste segundo artigo, as autoras Soares & Coelho32 se aventuraram em “compreender as experiências e sentidos do cuidado infantil”, a partir da análise das narrativas de cuidadoras domésticas do município de Caldas de Cipó, Bahia. O também sensível objeto de estudo - cuidado nutricional infantil, foi investigado pelas duas autoras (nutricionista e médica) sob a ótica da fenomenologia ontológica de Martin Heidegger 52 e da socióloga brasileira Maria Cecília de Souza Minayo53. Conforme já apontamos na seção de resultados, Minayo constituiu o referencial de pesquisa qualitativa e abordagem fenomenológica de 57,9% (onze) dos estudos analisados32,35,36,39,47-49 evidenciando a influência dos seus estudos também no campo da Nutrição.
Vale ressaltar que o vazio temporal de seis anos, entre o estudo pioneiro de Freitas19 e o segundo artigo publicado por Soares & Coelho32 não pode ser compreendido como inexistência da realização de pesquisas sobre a temática no período. Limitações metodológicas ocorridas nos procedimentos metodológicos de busca e seleção dos estudos podem ter contribuído para a não inclusão de artigos nos anos de 2003 a 2007. Como exemplos, cita-se a exclusão de produção científica nas modalidades de livro e artigos com abordagem teórico-metodológicas, tais como o livro Agonia da Fome publicado por Freitas54, em 2003; e o ensaio teórico publicado, também em 2003, por Poulain & Proença55, no qual os autores sinalizavam sobre a relevância da fenomenologia no campo da Nutrição brasileira.
A partir de 2009 até 2024, as publicações com abordagens fenomenológicas no campo da Nutrição brasileira passaram a ter frequência quase que anual. Embora, majoritariamente, concentradas em Salvador, Bahia, tendo como referencial a nutricionista Freitas19,35,39,41,43,48, a pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica espalhou-se por outras unidades federativas do país, tais como Brasília, DF47, Belo Horizonte, MG44, Curitiba, PR33,46; Florianópolis, SC34,42; Ouro Preto, MG45, Rio de Janeiro, RJ40 e Fortaleza, CE36 . Esses resultados embora denotem um processo positivo de atração de um maior leque de pesquisadores às abordagens de pesquisas qualitativas (com ênfase no referencial da fenomenologia), frente ao universo de 30 cursos de mestrado acadêmico e 18 cursos de doutorado coordenados pela área de avaliação da CAPES56, e espalhados por quase todas as unidades federativas do país, expressam por si, a assimetria existente entre pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa no Brasil (temática abordada em estudos prévios15-16).
Em relação à afiliação ou identificação dos autores dos 19 estudos analisados com determinada vertente do campo da fenomenologia, observou-se que, conforme já antecipamos na seção de resultados, foram raros os estudos que explicitaram os pressupostos filosóficos e/ou metodológicos que guiaram a investigação. Em sua maioria, os estudos analisados utilizaram-se de abordagens multirreferenciais. Os referenciais da fenomenologia hermenêutica filosófica de Gadamer36,39,40,43,47,49 e da fenomenologia sociológica de Schutz37,41,45,46,48 foram os mais frequentes, seguidos por Heidegger32,43,44,47, Ricoeur19,35 e Merlou-Ponty33 nos estudos analisados. Vale ressaltar que tais resultados se aproximam daqueles encontrados em revisão de literatura realizada por Silva et al. (2022)23, que analisou 600 dissertações e teses produzidas no período de 1990 a 2022, no campo da Enfermagem no Brasil, que usaram abordagem fenomenológica, verificando-se predominância de referências a Heidegger (n=222), seguido por Schutz (n=194), Merleau-Ponty (n=89) e Paul Ricoeur (n=12). Por outro lado, causa estranheza não constar da lista de Silva et al. (2022)23, estudos usando o referencial Gadamer, o autor mais frequente no campo da Nutrição 36,39,40,43,47,49. Enfatizando que, conforme sinalizamos antes, este e outros estudos têm evidenciado que, a Enfermagem brasileira há décadas se destaca entre os campos científicos da área da saúde na produção de pesquisas de abordagens qualitativas, sobretudo, com uso de referencial fenomenológico22-23.
Em relação aos fenômenos estudados ou objetos de estudo dos 19 artigos analisados, observou-se que os pesquisadores do campo da pesquisa qualitativa em Nutrição com ênfase nos referenciais da fenomenologia têm transitado por temáticas que constituem os paradigmas atuais do campo, tanto no contexto mundial, como no Brasil4-14. Da fome19 à obesidade39,43,49; passando pela necessidade de compreender os significados da atenção nutricional de grupos prioritários como crianças e idosos32,37,38,47,48; focalizando na complexa tarefa de investigar ossignificados atribuídos às relações com o alimento desenvolvidas nas distintas experiências de vida com transtornos alimentares33,34,40,42; até as tentativas iniciais de buscar investigar os sentidos de alternativas e práticas voltadas à sustentabilidade alimentar41,45, os temas centrais investigados parecem dialogar com os atuais dilemas e paradigmas (na perspectiva filosófica de Thomas Khun57) do campo da Nutrição dentro do seu contexto mundial 4-14.
O fenômeno da obesidade, doença complexa e multicausal, que afeta elevado contingente populacional tanto no Brasil como no mundo, atingindo de forma indiscriminada todos os grupos etários, sem fazer distinção entre sexo, raça/cor e classe socioeconômica 58, foi objeto de investigação de pelo menos três dos estudos incluídos na revisão39,43,49. Estes três estudos procuraram, a partir da fenomenologia hermenêutica de Gadamer19-23, compreender e interpretar os significados atribuídos pelos indivíduos investigados aos seus corpos obesos, seus pesos e formas corporais, seus corpos habituais e corpos atuais, seus corpos vividos e corpos de fato. Ou seja, procuraram nas análises das entrevistas em profundidade dos sujeitos investigados, valorizar a linguagem expressa na mediação entre os sentidos do mundo real e a subjetividade de quem experienciava o cotidiano estigmatizado do corpo obeso. Estes três estudos analisados32,33,34 e outros identificados na literatura de distintos campos do conhecimento 59-60, evidenciam a relevância, adequação e pertinência de investigar a obesidade para além do olhar quantitativo, biológico e epidemiológico, procedimento metodológico hegemônico observado no campo da Nutrição brasileira9-12, 15-16.
Verificamos que quatro dos estudos incluídos 33,34,40,42 ousaram aplicar o método fenomenológico19-23 para investigar os significados atribuídos às relações com o alimento desenvolvidas nas distintas experiências de vida de indivíduos com transtornos alimentares. A fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty19-23, filósofo que defendia que a consciência era uma decorrência da percepção corporal e que o corpo humano (campo criador dos sentidos), simultaneamente, era objeto de conhecimento e de manifestação da subjetividade, foi o principal referencial metodológico usado em estudo que procurou descrever a experiência corporal de oito mulheres de 16 a 26 anos com a anorexia nervosa, além de buscar compreender os sentidos atribuídos às práticas corporais de restrição e purgação desenvolvidas nesse tipo de transtorno alimentar33. O estudo de Bosi & Teixeira (2016)40, realizado a partir de entrevistas não diretivas e observação livre, com doze mulheres com idade entre 18 e 55 anos, apresentando obesidade mórbida (índice de massa corporal maior que 40 kg/m2), procurou demarcar a problemática do transtorno da compulsão alimentar periódica, ilustrando, com as experiências de vida relatadas pelas entrevistadas, a multidimensionalidade dos transtornos do comportamento alimentar. As autoras relataram que foram guiadas pela abordagem da fenomenologia hermenêutica de Gadamer 19-23, embora também façam referências ao uso de pesquisados brasileiros, tais como Mauro Martins Amatuzzi, autor de Psicologia fenomenológica: uma aproximação teórica humanista 20. Já os estudos de Nunes & Vasconcelos (2010)34 e de Petry & Vasconcelos (2017)43, usaram abordagens fenomenológicas multirrefenciais para compreender as percepções, significados e sentimentos da complexa relação que mulheres adolescentes e adultas jovens desenvolveram com a alimentação nos transtornos alimentares de anorexia nervosa e bulimia. Nunes & Vasconcelos (2010)34 buscaram apreender a essência das narrativas de sete adolescentes, sexo feminino, com idade entre 17 e 20 anos, fundamentados na fenomenologia ontológica de Heidegger19-23,52, entretanto, também apoiados pelos procedimentos metodológicos da fenomenologia descritiva de Amadeo Giorgi34, bem como de pesquisadores brasileiros vinculados ao campo da Psicologia fenomenológica20-21. Na mesma direção, Petry & Vasconcelos (2017)43, procuraram compreender os sentimentos e percepções de três mulheres com idade entre 21 e 24 anos, durante o processo de recuperação de fenômenos de anorexia nervosa, usando os procedimentos metodológicos da pesquisa fenomenológica propostos por Amatuzzi20.
Em síntese, como vimos na seção anterior, as formas de enunciar os objetivos, os procedimentos de coleta e análise de dados e as características dos sujeitos investigados (número, sexo, idade, condições socioeconômicas) denotam um padrão característico das pesquisas com abordagens qualitativas, conforme apontam os compêndios de metodologia da pesquisa53,61-62. Em estudo anterior15, sinalizou-se que os pesquisadores deste subcampo específico (a pesquisa qualitativa em Nutrição) ao compartilhar dos mesmos paradigmas e habitus científicos, criavam as condições simbólicas que poderiam possibilitar o reconhecimento de um padrão identitário de comunidade científica 1,57.
Além dos aspectos de limitações metodológicas já sinalizados anteriormente, é preciso ressaltar que esta revisão não teve por objetivo analisar o mérito, o rigor e/ou a qualidade metodológica, nem os resultados dos estudos incluídos, limitando seu escopo à descrição exploratória das suas características bibliográficas ou bibliométricas básicas para compreensão da pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica realizada no campo da Nutrição brasileira. Portanto, uma análise da qualidade metodológica ou análise do rigor dos
procedimentos metodológicos usados pelos estudos incluídos, apontando suas potencialidades e limitações, ainda está porvir.

Conclusão

A pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica emergiu no campo da Nutrição brasileira no início do Século XXI. A caracterização da produção científica analisada revela que, nos 22 anos que separam as publicações do primeiro (2002) e do último artigo (2024) incluídos na revisão de literatura, ocorreu uma leve expansão de estudos sobre esta temática no país, mas que continua concentrada na comunidade científica de sua origem, em Salvador, Bahia, liderada pela nutricionista Maria do Carmo Soares de Freitas. Neste aspecto, nossa expectativa é que esse tipo de abordagem metodológica possa ser expandido no país, nos próximos anos, envolvendo um número maior de pesquisadores dos distintos programas de pós-graduação em Nutrição.
Os objetos de estudo (fenômenos investigados) abordados nas pesquisas analisadas (fome, obesidade, transtornos alimentares, aleitamento materno, alimentação saudável, entre outros) caracterizam-se como temáticas complexas, sensíveis e multidimensionais. Compõem o complexo e paradoxal cenário epidemiológico nutricional do país. São fenômenos que fazem parte do cotidiano, das experiências e vivências diárias de milhões de brasileiros. Portanto, além do método epidemiológico (quantitativo), são fenômenos que também podem ser investigados pelo método fenomenológico (qualitativo) – um conjunto de procedimentos que buscam a compreensão dos fenômenos, investigando-os em profundidade, para além das suas aparências.
Nesta dimensão, nossa compreensão é de que a pesquisa com abordagem fenomenológica pode ser entendida como uma estratégia complementar aos estudos com abordagens epidemiológicas, clínicas e experimentais, contribuindo para a resolução dos complexos dilemas e paradigmas nutricionais brasileiros.
Entre os autores que embasaram os procedimentos metodológicos dos estudos incluídos, destacaram-se por ordem de frequência: Gadamer, Schutz, Heidegger, Ricoeur e Merlou-Ponty. O uso destes cinco relevantes autores clássicos e dos demais referenciados denota que os pesquisadores do campo da pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica em Nutrição têm procurado aperfeiçoamento, consistência e qualificação de seus estudos, fundamentando-os com um quadro referencial filosófico, epistemológico e metodológico que é compartilhado por pesquisadores de outros campos do conhecimento, tanto no Brasil como em outros países. Neste sentido, recomenda-se a realização de novos estudos neste campo, incluindo análise da qualidade metodológica ou análise do rigor dos procedimentos metodológicos usados pelos estudos incluídos, apontando suas potencialidades e limitações.
Enfim, a pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica em Nutrição permanece revelando-se como campo de estudo relevante, sedutor e promissor, podendo contribuir de forma concorrente, alternativa e/ou complementar para a investigação e resolução dos problemas (fenômenos) nutricionais do país. Talvez essa revisão da literatura possa estimular a ampliação de pesquisas qualitativas com abordagem fenomenológica nos programas de pós-graduação em Nutrição do Brasil.

Referências
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