0003/2025 - Atenção primária à saúde nas pesquisas de base domiciliar do IBGE: limites e possibilidades
Primary Health Care in IBGE's Household Surveys: Limits and Possibilities
Autor:
• Vinicius Siqueira Tavares Meira-Silva - Meira-Silva, V.S.T - <vinicius.smeira@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3271-0811
Coautor(es):
• Luiz Felipe Pinto - Pinto, L.F. - <felipepinto.rio@medicina.ufrj.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9888-606X
Resumo:
Este artigo trata da contribuição das pesquisas domiciliares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o monitoramento da atenção primária à saúde (APS) no Brasil. A APS, componente fundamental do Sistema Único de Saúde (SUS), requer monitoramento constante para garantir a qualidade e efetividade dos serviços. O IBGE, por meio de pesquisas como o Censo Demográfico, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) e a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS), coleta dados essenciais sobre a população brasileira, incluindo informações relevantes sobre as condições de saúde e o acesso e a utilização dos serviços de APS. A inclusão de módulos específicos sobre APS nessas pesquisas, utilizando instrumentos como o Primary Care Assessment Tool (PCATool) e o Net Promoter Score (NPS), permite a obtenção de indicadores fidedignos para a avaliação da APS. A parceria entre o IBGE e o Ministério da Saúde garante a produção de informações estratégicas para o planejamento e a gestão do SUS, contribuindo para a formulação de políticas públicas eficazes e para a melhoria da saúde da população brasileira, comparando todas as 27 unidades da federação do País.Palavras-chave:
atenção primária à saúde; avaliação em saúde; IBGE; inquéritos domiciliares; PCATool; Brasil.Abstract:
This article deals with the contribution of the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) household surveys to the monitoring of primary health care (PHC) in Brazil. PHC, a fundamental component of the Unified Health System (SUS), requires constant monitoring to ensure the quality and effectiveness of services. The IBGE, through surveys such as the Demographic Census, the National Household Sample Survey (PNAD), the National Health Survey (PNS) and the National Demographic and Health Survey (PNDS), collects essential data on the Brazilian population, including relevant information on health conditions and access to and use of PHC services. The inclusion of specific modules on PHC in these surveys, using instruments such as the Primary Care Assessment Tool (PCATool) and the Net Promoter Score (NPS), makes it possible to obtain reliable indicators for evaluating PHC. The partnership between the IBGE and the Ministry of Health guarantees the production of strategic information for the planning and management of the SUS, contributing to the formulation of effective public policies and improving the health of the Brazilian population, comparing all 27 units of the country's federation.Keywords:
primary health care; health evaluation; IBGE; household surveys; PCATool; Brazil.Conteúdo:
Alguns dados ajudam a ilustrar a sua expansão no SUS nos últimos anos. Enquanto, em 2008, a cobertura populacional estimada da APS estava ao redor de 50%, atualmente, aproxima-se de 80%.1 No ano passado, o montante de recursos destinado pelo Ministério da Saúde para seu financiamento ultrapassou 27 bilhões de reais com previsão de aumentar para 35 bilhões em 2024.2
As iniciativas de monitoramento e avaliação da APS não acompanharam o ritmo de expansão dos serviços pelo país.3 O primeiro estudo a abordar a situação do setor em nível nacional foi concluído em 2002. Tratou-se de uma pesquisa censitária empreendida pelo Ministério da Saúde (MS) que analisou aspectos relacionados à infraestrutura e funcionamento de mais de 13 mil equipes em 70% dos municípios brasileiros.4
Nesse contexto, encontravam-se apenas os indicadores fornecidos pelas pesquisas domiciliares conduzidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que consistiam na principal fonte de informações para o setor. Entretanto, a presença de questões específicas sobre a cobertura e o funcionamento deste nível de cuidado nos instrumentos de coleta de tais pesquisas sempre foi pouco expressiva, prevalecendo a avaliação de outros componentes do sistema, em particular a questão da utilização dos serviços de saúde.
A demanda por informações relativas ao desempenho da APS, em âmbito nacional, aumentou na mesma proporção da expansão da rede. Os dados informados pelos inquéritos se mostravam limitados e insuficientes para a gestão da APS. O interesse em suprir essa necessidade provocou um reforço da parceria interinstitucional do MS com o IBGE. O alinhamento entre ambos os órgãos vem permitindo a modernização de pesquisas tradicionais e o fomento à realização de outras.
O caminho percorrido pelo IBGE na avaliação dos serviços de atenção primária à saúde no Brasil
Fundado na década de 1930, o IBGE é um órgão da administração pública federal que desempenha um papel fundamental na produção, análise e divulgação de dados estatísticos sobre a realidade brasileira. As informações fornecidas pelo IBGE são de natureza diversa e resultam da aplicação de variados métodos de coleta e investigação.
Uma técnica central empregada pelo IBGE é a pesquisa domiciliar, também conhecida como inquérito domiciliar ou “household survey”. Esse método é aplicado nos principais levantamentos do instituto, incluindo o Censo Demográfico, a maior pesquisa realizada pelo órgão. O Censo, com periodicidade decenal, oferece uma contagem completa da população brasileira, caracterizando sua composição, distribuição espacial e condições de vida.
Diferentemente dos censos, a maioria das pesquisas domiciliares são amostrais e os resultados obtidos a partir de um subconjunto representativo da população são extrapolados para todo o restante. O IBGE conduz regularmente diversas pesquisas domiciliares, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C), a Pesquisa Mensal de Emprego, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS).
Visando organizar as pesquisas amostrais domiciliares, o IBGE criou o Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares (SIPD), no início dos anos 2000. Esta ação buscava integrar o planejamento dos inquéritos e estabelecer uma "amostra mestra" única para todas as pesquisas do gênero, otimizando recursos e prazos e harmonizando variáveis e classificações.5
No campo da saúde, os inquéritos domiciliares têm sido cruciais para obter informações em nível populacional, difundindo-se entre os países, desde a década de 1960,6 com influência da Organização Mundial da Saúde (OMS).7 Eles complementam as medidas sobre a situação de saúde transmitidas pelos sistemas de informação em saúde, que são instrumentos eletrônicos destinados à coleta, processamento e disponibilização de dados padronizados, geralmente oriundos de registros administrativos.8
A maioria das pesquisas domiciliares são estudos transversais que, além de informar características demográficas e socioeconômicas, tratam de aspectos relacionados à saúde e ao estilo de vida das pessoas. Essa abordagem permite analisar os determinantes sociais da saúde e compreender em que medida fatores como idade, gênero, raça, educação, renda e habitação influenciam o bem-estar da população.9
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
Desde a sua criação, em 1967, a PNAD é uma das principais pesquisas domiciliares executadas pelo IBGE. Ao longo do tempo, ganhou alcance nacional e seu escopo foi ampliado a partir de pesquisas suplementares que, periodicamente, investigavam outros assuntos de interesse social e econômico, além dos temas básicos, como habitação e trabalho. Seus “Suplementos Saúde” foram a campo em 1981, 1986, 1998, 2003 e 2008.10
O primeiro questionário adicional de saúde da PNAD foi aplicado em 1981 e continha 68 quesitos sobre: hospitalização, atendimento odontológico, deficiências, morbidades referidas (doenças, problemas dentários, acidentes), vacinação e utilização e gastos com serviços de saúde.11
Em 1986, o questionário sofreu uma redução e os temas abordados foram: acesso a serviços de saúde, suplementação alimentar, associativismo e contracepção.12 Como retrato do sistema de saúde da época, esta pesquisa identificou que, dentre as pessoas que obtiveram atendimento no período analisado, apenas 20,9% buscaram um “posto ou centro de saúde”, enquanto mais de 72% procuraram hospitais, clínicas, policlínicas e consultórios.13
As duas primeiras edições da PNAD-Suplemento Saúde receberam muitas críticas metodológicas. Nenhuma delas fazia qualquer referência a serviços de APS, exceto nas questões sobre o tipo de estabelecimento de saúde procurado pelo entrevistado.14
Após 12 anos de intervalo, o suplemento retornou na edição de 1998 da PNAD, com financiamento do MS. Seu questionário foi dividido em seis blocos (morbidade, cobertura de plano de saúde, acesso e utilização dos serviços de saúde, internação e gastos com saúde) e foram introduzidas a abordagem autorreferida de morbidades, baseada no relato do entrevistado sobre a presença de doenças crônicas, e a autoavaliação do estado de saúde. O monitoramento destes indicadores persistiu nas pesquisas subsequentes, dando origem a uma série histórica.15
O índice de morbidade referida fornecido pelos inquéritos domiciliares indica a frequência de diagnóstico prévio e tem sido utilizado para estimar a prevalência de algumas doenças na população.16,17 Contudo, este dado parece sofrer influência de diferentes fatores, mostrando-se mais fidedigno para algumas condições em relação a outras. Dessa maneira, é importante a sua complementação com informações provenientes de outras fontes, como os registros clínicos.18,19
A PNAD-Suplemento Saúde (2003) manteve boa parte da estrutura da versão anterior, adicionando quesitos destinados à verificação do acesso a procedimentos para rastreamento do câncer de mama e de colo do útero na população feminina.20
Na PNAD (2008), foi veiculada a última edição dos Suplementos Saúde. Nela, foram incluídos novos temas, como hábitos e estilo de vida (tabagismo, prática de atividade física), exposição à violência (física, sexual, psicológica e no trânsito) e, pela primeira vez, uma avaliação do PSF, através da estimativa de sua cobertura a partir do percentual de cadastramento dos domicílios.14
Naquele ano, um total de 47,7% dos entrevistados declarou estar inscrito em uma unidade de Saúde da Família, havendo maior proporção de domicílios cadastrados na Região Nordeste (64,8%) e entre os grupos de renda mais baixa e com menos anos de estudo formal. A menor cobertura foi observada na Região Sudeste (35,9%), enquanto Norte (51,0%), Sul (50,3%) e Centro-Oeste (49,1%) apresentaram resultados intermediários.21
Outra dimensão captada pela PNAD, desde o Suplemento Saúde-1998, é o gasto das famílias com saúde, incluindo diferentes categorias de despesas: medicamentos, plano de saúde, consultas, internações, cuidados domiciliares, exames e outros.22 Os dados sobre os gastos privados das famílias com saúde podem ser utilizados como indicadores da desigualdade de acesso.23
PNAD Contínua – módulo Saúde Infantil
A PNAD, a partir de janeiro de 2012, passou por um processo de revisão metodológica em sua estrutura estatística, e passou a se chamar “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua”, e com isso, trimestralmente, em todas as unidades da federação do País, passou a produzir informações sociodemográficas, de educação e de mercado de trabalho. E manteve, em seu escopo, alguns módulos com levantamentos amostrais anuais.24
Um exemplo ocorreu no 2º trimestre de 2022, em que houve a avaliação da Saúde Infantil nas unidades de atenção primária de todo o País. O instrumento utilizado foi o Primary Care Assessment Tool (PCATool) versão reduzida para usuários até 13 anos. Esta foi a primeira pesquisa nacional a lançar mão do Net Promoter Score (NPS) para avaliação geral do serviço, além do questionário de qualidade da relação médico-paciente (PDRQ-9) adaptado e validado para o Brasil.25
PNAD Covid-19
No contexto da pandemia de Covid-19, o IBGE formulou, em tempo recorde, uma edição especial da PNAD Contínua com ênfase na detecção de sintomas autorreferidos de síndrome gripal e na caracterização da procura por atendimento médico, inclusive em unidades de APS. Também foi indagada a necessidade de hospitalização e procedimentos, como sedação e intubação.
Diante das limitações impostas pelas medidas de distanciamento social, o Instituto precisou reinventar algumas técnicas, aderindo à coleta de dados por entrevista telefônica. Durante sete meses, de maio a dezembro de 2020, a PNAD COVID-19 foi realizada semanalmente, tomando como referência o conceito de semana epidemiológica, o que favoreceu a comparabilidade de seus resultados com os dados de sistemas eletrônicos como o e-SUS e o SIVEP-Gripe.26
Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)
O planejamento para o primeiro inquérito nacional de saúde começou anos antes de sua execução. Em 2009, foi instituído um Comitê Gestor, no âmbito do MS, composto por técnicos da pasta e especialistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cujo objetivo era elaborar as diretrizes da PNS.27
MS e IBGE firmaram uma parceria para a realização da pesquisa. O Ministério se responsabilizou pelo financiamento do projeto, empregando recursos do Fundo Nacional de Saúde, e o Instituto se encarregou de sua operacionalização. A partir dessa cooperação, surgiu a PNS, um inquérito nacional de base domiciliar exclusivamente dedicado ao monitoramento e avaliação da saúde da população brasileira. Ela foi integrada ao SIPD e passou a compor o calendário de pesquisas do IBGE, com previsão de periodicidade quinquenal.28
A PNS-2013 foi a campo preservando a série histórica das últimas PNAD-Suplementos Saúde, sobretudo os indicadores de acesso e utilização da rede pública e os quesitos relacionados à saúde suplementar. Seu questionário foi ampliado, novos módulos foram incluídos, enquanto outros foram aprimorados. Foi o primeiro inquérito nacional capaz de registrar medidas de peso, altura e pressão arterial e de realizar a coleta de material biológico para análises laboratoriais.29
A primeira edição da PNS estimou a cobertura das unidades de Saúde da Família em cerca de 53,4% dos domicílios brasileiros. Também foram medidos dados relativos à frequência de visitas de agentes comunitários e de combate a endemias. O estudo ainda demonstrou que as unidades básicas configuravam como o principal estabelecimento procurado pelos entrevistados quando precisavam de atendimento, afirmando sua função de porta de entrada para o sistema de saúde.30
Na PNS-2019, as tradicionais séries sobre acesso e utilização de serviços de saúde e sobre os planos de saúde, introduzidas na PNAD-Suplemento Saúde (1998), também foram conservadas,31 completando 20 anos de acompanhamento destes indicadores. Nesta edição, foram agregados ao questionário módulos sobre doenças transmissíveis (tuberculose, hanseníase, ISTs), atividade sexual e paternidade/pré-natal. A seção sobre violência foi reformulada e, para uma subamostra da população, os registros de peso e altura foram mantidos.32 Porém, uma das principais inovações da PNS-2019 foi a introdução de um módulo inteiramente destinado à avaliação da APS a partir de seus atributos,33 o qual será abordado mais adiante.
Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF)
Iniciada na década de 1970, a POF é uma pesquisa domiciliar do IBGE com objetivo de caracterizar a estrutura de gastos, consumo e rendimento das famílias brasileiras. Além de fornecer detalhes sobre as despesas domésticas com saúde, alimentação, transporte, vestuário, lazer, impostos e outros,23 ela inclui uma autoavaliação da qualidade de vida a partir de diferentes aspectos, como condições da moradia e do entorno, acesso a serviços de utilidade pública, saúde, educação, insegurança alimentar, padrão de vida, lazer e transporte. Este inquérito permite o cálculo de indicadores de pobreza e vulnerabilidade multidimensionais não monetários.34
Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS)
A PNDS teve edições em 1986, 1996 e 2006. Seu surgimento se insere no contexto do projeto internacional de Pesquisas de Demografia e Saúde (DHS), cujo objetivo era estimular o levantamento de dados, em escala global, com ênfase na saúde da população em idade fértil e infantil.35 No final de 2023, após um vácuo de quase 20 anos, a PNDS voltou a campo para visitar mais de 130 mil domicílios. Pela primeira vez, o IBGE foi responsável pela condução da pesquisa, realizada em parceria com a Secretaria de Atenção Primária à Saúde do MS.36
Com abrangência de todo o território nacional, a PNDS-2023 teve como população-alvo pessoas em idade fértil – definida entre 15 e 59 anos, no sexo masculino, e 15 e 49 anos, no sexo feminino – mais seus filhos de até 5 anos de idade. Foram coletadas informações sobre diversos temas, como: fecundidade, utilização e conhecimento sobre métodos contraceptivos, planejamento reprodutivo das famílias, gravidez e parto, saúde da criança, incluindo hábitos, alimentação e condições comuns da infância, e orientação sexual/identidade de gênero.37
A PNDS-2023 incorporou em seu questionário um grupo de itens voltado para a caracterização do acesso aos serviços de saúde, enfatizando a avaliação da APS através de questões adaptadas dos instrumentos PCATool e de uma questão-síntese empregando o NPS. Foram adotados apenas os três itens dos módulos de investigação do atributo acesso do PCATool-Brasil - versão reduzida.
Mais uma vez, a parceria entre IBGE e MS resultou em ganhos para sociedade brasileira ao reativar a PNDS e integrá-la ao SIPD. Esta pesquisa, além de permitir projeções populacionais, fornece indicadores relativos a áreas prioritárias para a APS: planejamento reprodutivo e saúde na infância. Além disso, a partir de sua edição mais recente, a PNDS passou a ser uma importante fonte de dados sobre a qualidade do cuidado ofertado na rede de APS segundo a perspectiva deste grupo de usuários.
A inclusão da avaliação dos atributos da APS nos inquéritos domiciliares do IBGE
O primeiro inquérito de alcance nacional específico para a saúde executado pelo IBGE foi a PNS-2013. A PNS-2019, por sua vez, foi pioneira ao incorporar um módulo inteiramente dedicado à avaliação dos serviços de APS com base nos seus atributos.33 O instrumento escolhido para cumprir esta função foi a versão reduzida do PCATool validada para usuários adultos.38
No mesmo período, o MS publicou uma atualização do “Manual do Instrumento de Avaliação da Atenção Primária à Saúde (PCATool-Brasil)”, cuja primeira versão fora lançada em 2010.39 Contendo uma descrição detalhada da técnica para aplicação dos questionários e processamento dos resultados, estes manuais estimulavam sua utilização tanto para fins acadêmicos, quanto no apoio à gestão da APS.
A edição do segundo trimestre de 2022 da PNAD Contínua efetuou uma avaliação inédita da atenção primária voltada para o público infantil, associando o NPS ao PCATool.40 Ao analisarem os resultados desta pesquisa, alguns autores encontraram uma correlação entre os escores mais altos do PCATool e a proporção de usuários que melhor avaliaram os serviços de saúde pelo NPS, os chamados “promotores da unidade de saúde”.41
Este achado tem maior relevância por ser fruto do maior inquérito domiciliar brasileiro com amostra probabilística que avaliou os cuidados prestados a usuários menores de 13 anos em unidades de APS localizadas nas 27 unidades da federação.42
O Quadro 1 apresenta uma descrição do conteúdo dos instrumentos de coleta de dados das principais pesquisas domiciliares do IBGE segundo a abordagem de temas relacionados à APS. Nota-se a presença marcante do módulo de avaliação do “acesso e utilização dos serviços de saúde” nos questionários de quase todas as pesquisas. A manutenção deste grupo de questões permite a comparação dos resultados, constituindo uma série histórica.
Somente mais recentemente, na PNS-2019, houve a incorporação da avaliação dos outros atributos, com a adoção da versão reduzida do PCATool para usuários adultos. Na PNDS-2023, foram incorporados apenas alguns itens do instrumento original, impossibilitando o cálculo dos escores. A Figura 1, adaptada de Pinto et al.,43 representa uma linha do tempo das pesquisas domiciliares do IBGE nos últimos cinco anos.
PCATool na autoavaliação de equipes e como eixo de monitoramento da APS
O PCATool pode ser usado como ferramenta para autoavaliação das equipes, especialmente no momento de implantação delas nos municípios, traçando uma linha de base para que o gestor possa comparar os resultados em período posterior (seis meses a um ano após o início das atividades).
Também pode ser empregado para uma comparação entre as perspectivas das avaliações de usuários, profissionais de saúde de nível superior (médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas) e gerentes.39
O PCATool é um instrumento válido, confiável, de fácil aplicação e barato, que pode ser usado para avaliar os atributos da APS. Além disso, faz um diagnóstico rápido sobre a organização e o desempenho dos serviços de APS revelando diferenças relevantes entre avaliações na perspectiva de diferentes grupos ou entre modelos de atenção distintos.
Conforme destacou Margaret Chan, ex-diretora da OMS, "qualquer país que pretende alcançar a cobertura universal de saúde deve ser capaz de medi-la”.44 A capacidade de prestar serviços de saúde primários abrangentes em nível comunitário é essencial para progredir nessa direção, permitindo, em última instância, que as pessoas vivam mais e melhor.
Uma forma de se realizar uma estimativa rápida dos atributos é aplicar as versões reduzidas do PCATool com menor número de itens por atributo. Havendo cadastros de usuários fidedignos e atualizados, a coleta de dados poderia ser feita através de totens automatizados (os mesmos amplamente usados em pesquisas de satisfação), com pessoas treinadas para orientar os usuários que passaram por consultas médicas a responderem o questionário. Posteriormente, técnicas estatísticas de amostragem, como a pós-estratificação e o espaçamento ao longo dos turnos e dias da semana de atendimento, poderiam gerar uma amostra próxima da realidade para o universo de usuários respondentes de uma determinada unidade de saúde.
Na Espanha, Rocha et al.45 realizaram uma pesquisa de base populacional com uma amostra de 12.933 pessoas acima de 15 anos, utilizando uma versão reduzida com 10 itens – o PCAT10-AE. Foram avaliadas a consistência interna, a correlação entre itens do instrumento e demonstrada a validade externa da pesquisa. Eles concluíram que, quanto melhor a avaliação dos cuidados primários em saúde, maior o grau de satisfação das pessoas com o sistema de saúde. Posteriormente, estudaram a população menor de 15 anos e encontraram, com essa mesma versão reduzida do instrumento, altos escores (> 6,6) para todos os atributos.46
Em síntese, os estudos e levantamentos amostrais domiciliares informam e reforçam a possibilidade de avaliação dos atributos da atenção primária e outras características sociodemográficas, hábitos e ciclos de vida que podem influenciar nos desfechos que se deseja medir. Enfatizamos a importância do uso no Brasil do instrumento validado nacional e internacionalmente – PCATool. Sua enorme versatilidade e versões curtas e longas para diversos públicos-alvo permitem, no mundo real, a aplicação por gerentes, gestores do SUS e, mais recentemente, na saúde suplementar em todos os cinco continentes do mundo que o utilizam. A adaptação cultural, se faz necessária, porém, não se perde a comparabilidade dos seus resultados.
Considerações finais
As pesquisas domiciliares do IBGE têm sido uma ferramenta fundamental para a avaliação da saúde da população brasileira, na perspectiva dos usuários. A inclusão de módulos específicos para avaliação da APS associada à incorporação de instrumentos de coleta e indicadores internacionalmente validados, como o PCATool e o NPS, representa um avanço importante para a obtenção de dados mais completos e detalhados sobre a qualidade dos serviços oferecidos.
Merece destaque o papel da parceria interinstitucional entre IBGE e MS, que tem permitido alinhar a capacidade operacional do Instituto na condução de pesquisas populacionais de alta qualidade ao fornecimento de informações relevantes para o planejamento e gestão do SUS. A criação de novos inquéritos nacionais em saúde, como a PNS, e a reativação de temáticas estratégicas, como a PNDS, são exemplos dos benefícios que essa colaboração pode produzir.
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Quadro 1
Fig.1