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Artigos

0267/2025 - Base Relacional para Estudos de Utilização de Medicamentos (EUM) no Brasil: Análise e Integração de Dados Ambulatoriais
Relational Database for Drug Utilization Studies (DUR) in Brazil: Analysis and Integration of Outpatient Data

Autor:

• Roberto Eduardo Schneiders - Schneiders, RE - <roberto.eduardo@saude.gov.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0135-2844

Coautor(es):

• Andréia Turmina Fontanella - Fontanella, AT - <00225312@ufrgs.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0455-9429

• Ivan Ricardo Zimmermann - Zimmermann, IR - <ivan.zimmermann@unb.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7757-7519

• Sotero Serrate Mengue - Mengue, SS - <00004640@ufrgs.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3349-8541



Resumo:

O estudo objetiva criar uma base de dados relacional unificada (BEM-SUS) para análise do uso de medicamentos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF), integrando informações de diferentes fontes de dados do SUS. Foram considerados dados de dispensação de medicamentos do CEAF entre 2013-2022 a partir do download de 5.991 arquivos públicos do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS, referentes aos dados de Produção Ambulatorial (PA) e APAC Medicamentos (APAC-M), que continham 239.125.819 e 180.692.466 registros, respectivamente. O APAC-M possui 75,6% dos registros do PA, enquanto o PA carece de variáveis presentes nos arquivos APAC-M. A BEM-SUS foi construída a partir dos dados da PA, com a adição dos dados do APAC-M. O relacionamento determinístico permitiu o vínculo de 99,96% dos registros, resultando em 239.027.991 registros de 6.431.208 diferentes usuários. Estudos de utilização de medicamentos do CEAF devem considerar o tratamento prévio dos dados e vinculações entre os bancos de dados disponíveis. A construção da BEM-SUS demonstra a importância de integrar diferentes fontes de dados para a correta interpretação dos dados em estudos de utilização de medicamentos.

Palavras-chave:

Medicamentos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica; Sistemas de Informação em Saúde; Uso de Medicamentos

Abstract:

The study aims to create a unified relational database (BEM-SUS) for analyzing the use of medicines from the Specialized Component of Pharmaceutical Assistance (CEAF) within the SUS. It integrates information from different SUS data sources and considers data on CEAF medicine dispensing from 2013 to 2022. The study is based on 5,991 public files from the SUS Ambulatory Information System, including data on Outpatient Production (PA) and APAC Medicines (APAC-M). The PA data contains 239,125,819 records, while the APAC-M data contains 180,692,466 records. APAC-M accounts for 75.6% of the PA records, and PA lacks variables in the APAC-M files. The BEM-SUS was constructed from PA data in addition to APAC-M data. Deterministic linking allowed the matching of 99.96% of the records, resulting in 239,027,991 records from 6,431,208 different users. The study emphasizes the importance of prior data treatment and linkages between available databases for a correct interpretation of the data in drug utilization studies (DUR).

Keywords:

Drugs from the Specialized Component of Pharmaceutical Care; Health Information Systems; Drug Utilization

Conteúdo:

INTRODUÇÃO

Os Estudos de Utilização de Medicamentos (EUM) são uma ferramenta importante da farmacoepidemiologia que permitem o entendimento da interação entre os medicamentos e a população1,2. Tais estudos atendem a diferentes fins, como a descrição de padrões de uso de medicamentos; identificação de variações no perfil terapêutico ao longo do tempo; avaliação do efeito de medidas educativas, informativas e reguladoras; padrões de prescrição entre outros1,3,4. No âmbito da saúde pública, são fundamentais para o planejamento das ações em saúde, permitindo determinar prioridades de ação e apoiar a tomada de decisão3-6.
Embora o uso de dados primários seja uma estratégia utilizada para a realização dos EUM, estes estudos demandam investimento, requerem tempo e costumam lidar com amostras de populações específicas. Neste contexto, os dados secundários, têm sido cada vez mais utilizados, demandando do pesquisador um olhar criterioso acerca da qualidade destes dados7,8. Adicionalmente, o paradigma das evidências de mundo real vem fortalecendo o interesse por dados assistenciais no contexto da regulação e avaliação em saúde9.
Ao analisar a disponibilidade de bancos de dados aplicáveis aos EUM, cerca de 125 possíveis fontes já foram identificadas na América Latina, sendo, entretanto, apenas 30% publicamente acessíveis10. No Brasil, estima-se que estão disponíveis mais de 54 Sistemas de Informações em Saúde de abrangência nacional, sob a gestão do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS)11. Dentre estes, destaca-se o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA-SUS), cujos dados estão acessíveis publicamente e permitem o controle e o monitoramento da produção ambulatorial da Atenção Primária e Especializada realizada pelos prestadores do SUS, sendo o principal SIS utilizado para EUM no país10,11. No âmbito da assistência farmacêutica, destaca-se a disponibilidade de registros individualizados de tratamentos disponibilizados por meio do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) os quais fazem parte dos procedimentos ambulatoriais fornecidos mediante o registro de autorizações de procedimentos ambulatoriais (APAC)10,11.
Os dados do SIA-SUS são disseminados publicamente pelo DATASUS de forma fragmentada, em diferentes arquivos. Aqueles de maior interesse para a pesquisa farmacoepidemiológica são: (i) o arquivo de produção ambulatorial (PA), que reúne as informações de todos os procedimentos ambulatoriais realizados pelos estabelecimentos brasileiros que prestam serviços ao SUS e, (ii) aquele que reúne apenas os procedimentos ambulatoriais referentes aos medicamentos do CEAF (APAC-M). Uma limitação importante disso diz respeito à unidade de registros, a qual é comumente disseminada em arquivos focados no número de procedimentos faturados e não de pacientes. Assim, a condução de EUM exige uma série de transformações dos dados disseminados de modo a viabilizar os objetivos da pesquisa12.
Conforme o exposto, o uso do SIA-SUS como fonte de informações para EUM requer uma etapa prévia de tratamento dos dados, uma vez que o uso dos arquivos na sua forma bruta pode levar a resultados pouco representativos. Apesar disso, ainda são escassos os estudos que buscam validar as transformações necessárias destes bancos, assim como delimitar suas implicações e limitações para a adição em EUM. Desta forma, o objetivo deste estudo é analisar a consistência entre os bancos de registro de procedimentos ambulatoriais (PA e APAC) relacionados ao uso de medicamentos do CEAF e propor a construção de uma base de dados relacional e unificada - Base de dados para Estudos de Utilização de Medicamentos do SUS (BEM-SUS) - a fim de qualificar as fontes de informação para EUM no país.

MÉTODOS
Contexto
As dispensações do CEAF requerem aprovação prévia do gestor estadual para execução e, autorização do ente federal para ressarcimento dos recursos investidos na operação. Assim, cada solicitação de medicamentos do CEAF que cumpra com os critérios clínicos pertinentes, conforme Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da condição que se pretende tratar, precisa ter sua dispensação aprovada pela Secretaria Estadual de Saúde (SES) competente. Para fins de faturamento, é necessário que o órgão apresente ao Ministério da Saúde (MS) uma solicitação de Autorização de Procedimento Ambulatorial (APAC). Cada solicitação tem um código único e inclui: o código do estabelecimento responsável pela dispensação, conforme o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), os dados do usuário para o qual o procedimento se destina, e o código que identifica o procedimento (medicamento), conforme a Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS. Estas solicitações de APAC são enviadas mensalmente pelos Estados e são processadas a nível federal, retornando ao estado na forma de relatório, indicando se foram, ou não, autorizadas. Tanto os dados referentes às solicitações quanto aqueles sobre a autorização das APACs compõem o SIA-SUS. Em termos práticos, uma APAC autorizada significa que a União autorizou o faturamento daquele procedimento e que o Estado poderá executá-lo. Por outro lado, os custos de uma APAC não autorizada, se executada, recairão sobre os cofres da SES competente. Uma APAC compreende a dispensação de um medicamento para uma indicação, por um período de até três meses a um usuário. Assim, a competência de uma APAC é de até 3 meses, ou até 3 dispensações, sendo mandatório que o Estado envie ao MS, a cada mês de competência, a quantidade de unidades farmacológicas dispensadas ao usuário, podendo ajustar esta quantidade para zero quando não houver a efetiva dispensação12.
Embora seja intuitivo assumir que o arquivo APAC-M esteja contido no arquivo PA, essa não é uma verdade. É preciso considerar que o SIA-SUS propõe-se ao registro e acompanhamento das ações de saúde, bem como ao controle orçamentário e financeiro das mesmas, exigindo que o sistema permita consultas tanto a nível dos usuários atendidos quanto a nível de ações executadas e processos12. O arquivo APAC-M, por exemplo, inclui o Cartão Nacional de Saúde (CNS) do usuário de forma codificada (anonimizada), informação que permite a realização de uma coorte a partir de dados secundários. Contudo, este mesmo arquivo não inclui, necessariamente, o registro de todos os medicamentos que são dispensados a um usuário. No arquivo PA não consta o CNS do usuário, o que diminui as oportunidades de análise para EUM, porém inclui o registro de todos os medicamentos dispensados ao usuário13. Soma-se o fato de que a base de dados utilizada possui caráter contábil, sendo focada no processamento em relação ao medicamento e não no indivíduo. Desta forma, usuários em uso contínuo de medicamentos podem ter inúmeras registros, dificultando a análise de suas características individuais, assim como a identificação de sua trajetória no CEAF14.
Acesso aos dados
A análise dos arquivos PA e APAC-M e posterior construção da BEM-SUS, foi realizada em três etapas (Figura 1). A primeira etapa compreendeu o download de 5.991 arquivos de dados do SIA-SUS (3.342 referentes à PA, e 2.759 à APAC-M). Cada arquivo representa a produção ambulatorial de um estado brasileiro em um determinado mês. O download foi realizado diretamente do repositório de dados do DATASUS, a partir de conexão FTP (ftp.datasus.gov.br), abrangendo todas as unidades federativas e os dados enviados pelas Secretarias Estaduais ao Ministério da Saúde no período de janeiro de 2013 até junho de 2022. Todos os arquivos foram acessados no formato DBC e somaram 2,9 terabytes de dados. Em seguida, foram descompactados para o formato DBF a partir do uso do programa Tabwin oferecido pelo próprio DATASUS.
A segunda etapa compreendeu a conversão dos arquivos DBF para o formato.SAV, e sua posterior unificação, tendo como resultado dois arquivos independentes: PA e APAC-M. Para o arquivo PA foram considerados apenas os registros que se referiam aos procedimentos relacionados aos medicamentos do CEAF (procedimentos que iniciam com a numeração “0604”, conforme a Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS), através de filtro aplicado à variável “PA_PROC_ID”. Em ambos os arquivos (PA e APAC-M) foram mantidos apenas os registros cuja competência compreendia o período entre janeiro de 2013 e março de 2022 (filtros aplicados às variáveis PA_CMP e AP_CMP, respectivamente).
A terceira e última etapa, tratou-se da construção de um banco de dados relacional (BEM-SUS). Para tanto, foram selecionadas apenas as variáveis de interesse para EUM de ambos os arquivos (PA e APAC-M) (Quadro 1). Em seguida, foram excluídos os registros duplicados do arquivo APAC-M; sendo considerados duplicados registros de dados iguais para as variáveis: número de autorização da APAC (AP_AUTORIZ e PA_AUTORIZ), mês de dispensação do medicamento (AP_CMP e PA_CMP) e mês de envio dos dados pela SES (AP_MVM e PA_MVM). Por fim, a BEM-SUS foi construída a partir da inclusão do CNS do usuário, disponível no arquivo APAC-M, no arquivo PA (Figura 1). A inclusão do CNS do usuário foi realizada a partir de relacionamento determinístico de dados, tendo como variáveis identificadoras de caso (chave primária) as mesmas que foram utilizadas para a exclusão de duplicatas (15). Para cada codificação distinta do CNS obtido, considerou-se um usuário distinto.
Para as análises, os medicamentos do CEAF foram classificados de acordo com o segundo e terceiro nível da Anatomical Therapeutic Chemical (ATC) da Organização Mundial de Saúde, enquanto a condição que se pretende tratar, ou indicação de uso de cada medicamento, foi categorizado segundo sua categoria pela 10ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) (16,17). Foram consideradas como efetivamente dispensadas as competências de APAC com quantidade produzida (PA_QTDPRO) superior a zero, e como faturadas as competências cuja quantidade aprovada pelo MS (PA_QTDAPR) era superior a zero.
As etapas de transformação e análise foram conduzidas com apoio do programa Satistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 28.0® para Windows (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA) (18).

RESULTADOS
Análise dos arquivos PA e APAC-M
Os arquivos PA e APAC-M apresentam 239.125.819 e 180.692.466 registros, respectivamente. Cada caso representa uma de até três competências de uma APAC. Em outras palavras, pode-se dizer que um caso identifica um medicamento para uma indicação (CID-10), a ser utilizado por um usuário em um determinado mês.
Ao analisar os diferentes arquivos (PA e APAC-M), observou-se que todos os registros constantes no arquivo APAC-M também aparecem no arquivo PA. Contudo, o arquivo APAC-M apresenta apenas 75,6% de todos os registros do arquivo PA. Foi observado menor número de casos no arquivo APAC-M para todos os trimestres analisados (Figura 2A), independentemente da faixa etária, região de residência ou sexo dos usuários ao qual se referia aquela competência APAC. Quando considerados os registros que se referiam a usuários com menos de um ano de idade identificou-se que apenas 20,6% daqueles que constavam no arquivo PA também apareciam no arquivo APAC-M (Tabela 1).
O sub-registro observado no arquivo APAC-M, em relação ao arquivo PA, também ocorreu de forma irrestrita à indicação ou categoria ATC do medicamento (Tabela 1). A indicação (CID-10) com menor proporção de registros encontrados no arquivo APAC-M foi “doenças do olho e anexos (46,9%), seguido de “doenças do aparelho geniturinário” (48,9%) e “fatores que exercem influência sobre o estado de saúde e o contato com serviços de saúde” (49,6%). Considerando o agrupamento da ATC, a maior proporção de sub-registro ocorreu para “medicamentos para transtornos relacionados à acidez” (9,8% dos casos encontrados). Ademais, há registros que aparecem apenas no arquivo PA: referentes aos medicamentos imunoglobulina humana 3,0 gramas e octreotida 0,5mg/ml. Dos 344 diferentes medicamentos ao qual se referem os registros do arquivo PA, 71 (20%) possuem menos da metade dos registros relacionados no arquivo APAC-M.
Análise da BEM-SUS
Uma vez consolidados os arquivos PA e APAC-M, formou-se a BEM-SUS. A base de dados unificada apresenta os mesmos 239.125.819 registros do arquivo PA, com a inclusão da informação CNS codificado do usuário, proveniente do arquivo APAC-PA. O relacionamento determinístico dos dados permitiu o vínculo de 99,96% dos registros, remanescendo 97.828 registros (0,04%) para os quais a informação CNS está ausente. Desta forma, a BEM-SUS apresenta 239.027.991 registros vinculados referentes a 6.431.208 diferentes usuários, além de 97.828 para os quais não há vínculo com usuário.
Do total de registros da BEM-SUS, 84% representam casos que geraram a efetiva dispensação do medicamento e 82% referem-se a competências com faturamento autorizado pelo MS (Figura 2B). A diferença absoluta entre registros dispensados e faturados é de 42.201.364 (17,5%) casos durante o período analisado.
Segundo análise pela categoria de CID-10, os casos relacionados a “neoplasias” são aqueles que mais apresentam competências que não geraram a efetiva dispensação do medicamento (34%). Por outro lado, os códigos categorizados como “fatores que exercem influência sobre o estado de saúde e o contato com serviços de saúde” e “algumas doenças infecciosas e parasitárias” apresentaram dispensação efetiva em mais de 90% dos registros. Se consideradas as subcategorias temos que os CID-10 B34, B22 e G51, G82 e G25 apresentaram a maior proporção de registro com dispensação não efetivada (aproximadamente 45%), enquanto os CID-10 G35, Z94, B18, G12 e E74 apresentaram mais de 90% dos registros com alguma quantidade dispensada.
Para 35 medicamentos, mais da metade dos registros não apresentam quantidade dispensada, enquanto para outros a quantidade dispensada foi igual a zero (Tabela 2). Ao analisar pelo segundo nível da ATC, a proporção de registros que possuem maior número de casos de dispensação efetivada foram para os “antivirais para uso sistêmico (92%). Outrossim, 96% dos registros dos “Medicamentos para transtornos relacionados à acidez” possuem quantidade dispensada igual a zero.

DISCUSSÃO
Há um número crescente de publicações que utilizam os arquivos de produção ambulatorial para inferir sobre a dispensação e uso de medicamentos no Brasil; porém carentes de detalhamento metodológico quanto à seleção e tratamento dos dados analisados.
Conforme mostram os resultados, os arquivos PA e APAC-M apresentam fragilidades com implicação direta aos resultados. Embora o uso dos arquivos APAC-M permita análises que considerem os usuários como unidade de observação, estima-se que seu uso sem a devida vinculação com os arquivos do banco PA acarretaria resultados subestimados em aproximadamente 25%. No arquivo APAC-M não é possível verificar os registros que houve a efetiva dispensação do medicamento; assim, a subestimação do número de usuários atendidos tende a ser ainda maior. A consideração exclusiva dos dados dos arquivos PA, por sua vez, além de não permitir análises a nível de usuário, pode levar a uma superestimação de 16% dos resultados, caso não sejam desconsiderados os registros em que não houve a dispensação efetiva do medicamento, ou de 18% caso o objeto de interesse se restrinja às dispensações faturadas pelo Ministério da Saúde.
Para entender os motivos que levam à subestimação dos registros nos arquivos de APAC-M é necessário conhecer o fluxo de execução do CEAF e a operacionalização da APAC no SIA-SUS. Para que o usuário tenha acesso aos medicamentos é necessário que faça uma solicitação à SES, a partir da entrega do Laudo de Solicitação de Medicamentos (LME), acompanhado de documentos clínicos. Cada LME comporta o preenchimento de múltiplos medicamentos, para apenas uma indicação (CID-10). É a partir das informações desta LME que o estado alimenta o SIA-SUS. Por mais que sejam registrados dois medicamentos diferentes no SIA-SUS, se forem destinados ao mesmo usuário para a mesma condição de saúde, a informação disseminada pelo arquivo APAC-M contemplará apenas um destes medicamentos (um registro por LME), acarretando na subestimação da informação. Essa alegação fica evidenciada quando analisados os registros referentes às “doenças do olho e anexo”, que incluem o glaucoma (apenas 46,9% dos registros constantes no arquivo PA aparecem no arquivo APAC-M), já que o tratamento desta condição envolve a combinação de diferentes medicamentos. Tal sistemática pode gerar inconsistências importantes, já que em um mês poderá haver o medicamento A e no outro, o medicamento B, o que dificulta ainda mais a execução de análises farmacoepidemiológicas a partir deste conjunto de dados.
A superestimação dos dados de utilização de medicamentos no arquivo PA refere-se à vigência de uma APAC. Quando o usuário possui solicitação aprovada pela SES, possui o direito de retirar este medicamento por um determinado período, que pode ser de até 3 (nos anos de 2013 – 2019), ou 6 meses (2019 -2022). Assim, são geradas 1 ou 2 APAC para cada LME. Supondo que o período aprovado para dispensação seja de 3 meses, o estado deve enviar as informações para o SIA-SUS nesses três períodos independentemente se houve a efetiva dispensação. Nesse caso, no campo relacionado à quantidade dispensada do medicamento no SIA-SUS será zero.
Ainda sobre o tempo de vigência, é importante considerar que o registro dos procedimentos no SIA-SUS é realizado para todas APACs apresentadas pelas SES. Caso haja a aprovação do pedido e geração da APAC e o usuário não faça a retirada do medicamento em um determinado mês, o registro deste procedimento não é excluído, porém a quantidade dispensada permanecerá igual a zero. Casos com esta característica representam dispensações que não ocorreram, e que podem superestimar os resultados. Tal limitação pode ser contornada a partir da aplicação de filtros de análise, ou de seleção de casos específicos, motivo pelo qual os arquivos PA são preferidos em relação ao APAC-M.
Apesar das fragilidades identificadas serem marcantes, em especial se considerado o arquivo APAC-M, não foram encontrados outros estudos que tenham apresentado ou discutido tais questões como potenciais limitações à análise destes dados. O que se observa nas publicações realizadas a partir dos dados do SIA-SUS19-26, sejam de EUM quanto para estimativa do número de usuários ou de análise de impacto orçamentário para inclusão de medicamentos no âmbito do SUS, é que muitas vezes não é informado qual foi o arquivo considerado para a análise dos dados; e, quando informado que o arquivo utilizado foi o APAC-M, não há qualquer menção a limitações, provocando incerteza acerca da validade dos resultados produzidos a partir destes conjuntos de dados até hoje.
Como forma de contornar as fragilidades reveladas propõe-se a construção de uma base de dados relacional: BEM-SUS. Além de representar o total real de procedimentos efetivamente executados pelo CEAF, permite a realização de análises de dados considerando duas unidades de observação distintas: medicamentos e usuários. Explica-se: embora o arquivo PA seja preferido para análises de medicamentos do CEAF, esse não traz informação acerca do número do CNS de o usuário; já o arquivo APAC-M o traz, permitindo que sejam realizadas análises tendo o usuário como unidade de observação. Assim, relacionando os dois arquivos PA e APAC-M constrói-se um conjunto de dados pelo qual podem ser realizadas análises farmacoepidemiológicas, incluindo coortes retrospectivas. Iniciativas de integração de bases de dados do DATASUS já tem sido propostas, mas com escopos distintos, como o SISONCO e a base nacional de dados de Terapia Renal Substitutiva27,28.
Optou-se por manter os registros em que não foi efetivada a dispensação pois trata-se de uma métrica importante para análise retrospectiva de adesão do medicamento ao longo do tempo. Da mesma forma, as variáveis relacionadas a quantidade do medicamento dispensada e a aprovada pelo MS foram mantidas na base pois possuem propósitos distintos: enquanto a quantidade produzida informada pelo estado constitui na efetiva dispensação do medicamento ao usuário, sendo útil para EUM, a quantidade aprovada pode medir o gasto a ser financiado pelo MS. A diferença no número de registros e de usuários ao considerar o total de registros em comparação com os registros que possuem uma quantidade de medicamentos dispensada ou aprovada é grande o suficiente para considerar a necessidade de tratamento dos dados para EUM.
O número de usuários identificados na BEM-SUS (6.431.208) é semelhante ao encontrado em estudo que analisou os arquivos APAC-M entre 2008 e 2019 (6.505.722). Os dados relacionados ao sexo e faixa etária também são semelhantes, o que corrobora a consistência dos dados encontrados29.
Ao proporcionar uma visão mais abrangente do perfil de utilização de medicamentos, a BEM-SUS auxilia na identificação de utilização e adesão de medicamentos de forma mais robusta e confiável. Dessa forma, a base possui o potencial de contribui diretamente para a otimização dos recursos e a melhoria da qualidade da assistência farmacêutica oferecida à população.
A construção de uma base de dados desta envergadura não é uma novidade, pois outros autores já haviam identificado a carência de tal ferramenta e proposto sua construção29,30. Contudo, tal tarefa se constitui em um processo dinâmico, já que os dados utilizados são provenientes de diferentes fontes/arquivos e seu registro e disseminação pode ser alterado ao longo do tempo, seja por modificações à nível de gestão e execução do componente ou à nível de gestão e estruturação dos próprios arquivos pelo Datasus, por exemplo. Soma-se a fragilidade da documentação e registro, não apenas das alterações que ocorrem (por exemplo, a mudança de competência de 3 para 6 meses por LME e a renovação automática do LME e de processamento de APAC ocorrida durante a pandemia de COVID-19)31. Portanto, o que se apresenta neste artigo é uma proposta aprimorada do que já existia em literatura, já que se trata de uma base de dados centrada nas pessoas – que tem o usuário de medicamentos como unidade de observação principal – e que permite análises longitudinais, a exemplo da formação de coortes específicas, impossíveis de serem realizadas a partir dos arquivos de dados originais. Esta, contudo, não tem a pretensão de ser a versão final, admitindo que ainda possam existir questões ainda não identificadas e discutidas pelos autores, e que poderão ser apresentadas por outros pesquisadores que realizam EUM.
Uma das principais limitações deste estudo refere-se a possível duplicação de usuários, visto que um paciente pode possuir mais de um CNS14,21,24. Porém, em termos práticos, estima-se que raramente haverá um mesmo usuário cadastrado na base que utilize o mesmo medicamento para a mesma indicação e no mesmo mês.

CONCLUSÕES
A utilização dos arquivos de produção ambulatorial para EUM no âmbito do CEAF deve considerar a necessidade prévia das devidas transformações e vinculações entre os bancos de dados disponíveis. Tais requisitos são consistentes com os aspectos operacionais desse Componente. A não consideração destes passos confere implicações na interpretação dos dados. Espera-se que os passos descritos para construção da BEM-SUS, bem como seus dados consolidados, possam ser utilizados para contribuir em futuros EUM, análises de impacto orçamentário de novas tecnologias e avaliação do uso racional de medicamentos, um dos pilares da Política Nacional da Assistência Farmacêutica.

CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
RES trabalhou na concepção, metodologia e resultados do artigo; ATF, nos resultados, discussão e revisão final; IRZ, na discussão e revisão final e; SSM, na metodologia, resultados e revisão final.


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REFERÊNCIAS
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Schneiders, RE, Fontanella, AT, Zimmermann, IR, Mengue, SS. Base Relacional para Estudos de Utilização de Medicamentos (EUM) no Brasil: Análise e Integração de Dados Ambulatoriais. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/jul). [Citado em 05/12/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/base-relacional-para-estudos-de-utilizacao-de-medicamentos-eum-no-brasil-analise-e-integracao-de-dados-ambulatoriais/19743

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