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0106/2024 - CONTROVÉRSIAS SOBRE AS VACINAS E A VACINAÇÃO CONTRA COVID-19 NO MEIO JORNALÍSTICO
CONTROVERSIES ABOUT COVID-19 VACCINES AND VACCINATION IN THE JOURNALISTIC MEDIA

Autor:

• Bruna Aparecida Gonçalves - Gonçalves, B. A. - <brunaapgonc@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3578-3132

Coautor(es):

• Renata Fortes Itagyba - Itagyba, R. F. - <renataitagyba@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7446-839X

• Camila Carvalho de Souza Amorim Matos - Matos, C. C. S. A. - <camilacarvalhoamorim@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8395-4875

• Marcia Thereza Couto - Couto, M.T - <marthet@usp.br; marthecouto@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5233-4190



Resumo:

No contexto da COVID-19, controvérsias relacionadas às vacinas e à vacinação ganharam proeminência nos veículos de comunicação, atravessadas por debates sobre segurança, eficácia e efeitos colaterais. Este estudo analisou os posicionamentos a favor e contrários às vacinas e à vacinação contra a COVID-19 nos jornais Folha de S.Paulo (FSP) e Brasil Sem Medo (BSM). Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada por meio da análise documental, partindo da perspectiva teórica-metodológica da Teoria Ator-Rede de Bruno Latour. Sobre as vacinas, o BSM apresentou argumentos questionando o desenvolvimento destas vacinas, preocupação com eventos adversos, ineficácia das vacinas, imunidade natural superior à das vacinas e rumores sobre a composição das vacinas. A FSP argumentou em defesa da segurança e eficácia das vacinas. Sobre a vacinação, o BSM criticou as restrições impostas aos não vacinados e defendeu a liberdade individual. A FSP criticou os discursos do presidente na época, Jair Bolsonaro, sobre a vacinação e defendeu a imunização em massa. O estudo evidencia que os jornais difundem perspectivas polarizadas sobre as vacinas/vacinação contra a COVID-19. A controvérsia sobre as vacinas/vacinação está relacionada à crise da expertise no âmbito da tomada de decisões sanitárias.

Palavras-chave:

Vacinas contra COVID-19; Hesitação Vacinal; Desinformação; Meios de Comunicação

Abstract:

In the context of COVID-19, controversies about vaccines and vaccination have gained prominence in the media, stirring debates about safety, efficacy and side effects This study analysed the positioning in favor and against COVID-19 vaccines and vaccination in the Brazilian newspapers Folha de S.Paulo (FSP) and Brasil Sem Medo (BSM). This qualitative research was carried out through documentary analysis of 16 news stories edFSP and 12BSM, based on the theoretical-methodological perspective of Bruno Latour\'s Actor-Network Theory. Regarding COVID-19 vaccines, BSM presented arguments questioning the development of these vaccines, concerns about adverse events, ineffectiveness of vaccines, natural immunity superior to that acquired by vaccines and rumors about the composition of vaccines. FSP argued in defense of the safety and effectiveness of vaccines. Regarding vaccination, BSM criticized the restrictions imposed to unvaccinated citizens and defended individual freedom. FSP criticized the former president Bolsonaro\'s position on vaccination and defended mass immunization. The study shows that newspapers disseminate polarized perspectives on COVID-19 vaccines/vaccination. The controversy about vaccines/vaccination is related to the crisis of expertise in health decision-making.

Keywords:

COVID-19 Vaccines; Vaccine Hesitancy; Disinformation; Communications Media

Conteúdo:

Introdução
No Brasil, a pandemia de COVID-19 foi responsável, até setembro de 2023, por cerca de 37 milhões de casos e 700 mil mortes, situando o país como o segundo em número de mortes e tornando o seu enfrentamento um grande desafio no campo da saúde pública 1.
O desenvolvimento das vacinas e as estratégias de vacinação adotadas por governos tornaram-se uma das principais medidas para conter os avanços da pandemia. Os ensaios clínicos das vacinas foram adaptados para reduzir o tempo de desenvolvimento dada a situação de emergência de saúde pública, representando um desafio e um marco histórico sem precedentes que envolveu a comunidade científica, institutos de pesquisa, indústrias farmacêuticas, governos e organismos internacionais de saúde 2,3.
A hesitação vacinal já era alvo de preocupação por parte de organizações internacionais e governos antes da pandemia, de modo que a OMS a incluiu na lista das dez ameaças a serem combatidas no ano de 2019 4. A pandemia de COVID-19, como acontecimento político e social 5, provocou uma infodemia, referida, pela OMS, como um aumento exagerado no volume de informações sobre a COVID-19 e o risco deste excesso de informações se transformar em boatos e fake news 6.
Desta forma, os temas relacionados às vacinas e à vacinação, até então com pouco destaque na cobertura dos veículos de comunicação, passam a ganhar proeminência pelo fato de serem atravessados por debates sobre segurança, eficácia e efeitos colaterais, principalmente no caso das vacinas contra a COVID-19 7.
A mídia jornalística pode ser considerada um importante meio de difusão de informações sobre vacinas, o que pode contribuir para o aumento da conscientização do público sobre decisões bem-informadas sobre saúde 8–10 e verificação de fatos 10. Por outro lado, a COVID-19 trouxe novos desafios para os jornais, incluindo a dificuldade de compreensão de termos científicos pelos jornalistas e a tradução destes para os leitores 11.
Estudos sobre a abordagem jornalística sobre as vacinas de COVID-19 revelam repercussões entre os leitores de ansiedade e medo 11,12. Somado a isto, a divulgação de eventos adversos das vacinas também pode se constituir em um fator que influenciou a hesitação vacinal 11, como a discussão sobre a obrigatoriedade da vacinação e o embate político-ideológico envolvendo vacinação 7.
Neste cenário, a desordem informacional, termo empregado para designar a disseminação de informações ou falsas ou que intencionam causar danos 13, está relacionada à queda de confiança dos cidadãos nas instituições democráticas e consequentemente ao declínio na credibilidade da informação oficial nos noticiários e a busca por fontes alternativas de informação 14.
A pandemia de COVID-19 pode ser considerada um momento crítico no qual as certezas são substituídas pelo imprevisto nos campos social e político 5. Neste estudo, os posicionamentos de jornais sobre as vacinas e a vacinação de COVID-19 foram analisados sob o prisma da Teoria Ator-Rede (TAR) de Latour, um dos principais autores campo dos Estudos Sociais da Ciência (CTS) 15 e da Sociologia Crítica de Boltanski e Thevenót 16. Estes autores situam-se na corrente da sociologia pragmática francesa, que traz uma análise construtivista da vida social, isto é, de como grupos e fenômenos sociais vão se formando, agem e interagem. Ambos consideram o ator e a experiência elementos centrais da análise, principalmente em situações de desacordo ou dissenso 17. Latour analisou a realidade dos estudos científicos seguindo os cientistas em ação, por meio de uma descrição minuciosa de como a ciência é construída por atores humanos e não humanos 18. Para Boltanski e Thevenót, os atores mobilizam repertórios de críticas e justificações em momentos de crise. A justificação dos atores se faz legítima quando estes generalizam seus discursos 16,19. Em suma, a escolha por esses referenciais se deu pelo fato de que estes enfatizam momentos de ruptura, em que há o recrudescimento de situações de desacordo entre atores.
As controvérsias são situações nas quais há discordância entre os atores, tendo início quando os atores percebem que não podem mais se ignorar e termina quando estes estabelecem um sólido acordo 20. A mídia escrita pode ser considerada um locus no qual as controvérsias ganham visibilidade, pois os jornais buscam enfatizar as controvérsias para tornar o assunto interessante 21,22. No campo da saúde, as controvérsias podem estar relacionadas à politização de questões de saúde nos meios de comunicação. Ela ocorre em três momentos: quando essas questões são abordadas na cobertura jornalística para enfatizar conflitos políticos; o contexto político pode estar inscrito na notícia e o conflito sobre o assunto é tratado em uma dimensão política. Com isso, o público poderia interpretar a questão a partir de uma visão partidária e polarizada 21. Sabe-se que as vacinas/vacinação são atravessadas por controvérsias ao longo da história, em especial a relação entre indivíduo, grupo e sociedade, contrariando as visões reducionista, triunfalista e universalista sobre o tema 23. Portanto, o objetivo do artigo é analisar os posicionamentos pró e contrários às vacinas e à vacinação de COVID-19, no contexto pandêmico, em dois jornais: a Folha de S.Paulo (FSP) e Brasil Sem Medo (BSM).

Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo, o qual utiliza a técnica de análise documental de dados de notícias da FSP e BSM disponíveis nos sites dos jornais, no período de 27 de abril de 2021, quando foi instaurada a CPI de COVID-19, até 26 de outubro de 2021, quando houve a votação do relatório final. A delimitação temporal representa um momento político-social importante de apuração das ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da pandemia, incluindo aquelas relacionadas às vacinas e à vacinação da população 24.
A análise documental permite explorar as posições e transformações de atores, grupos, conhecimentos, conceitos e práticas 25. A forma e o conteúdo dos documentos são características importantes na análise, considerando os modos de inscrição nos materiais, a dimensão performativa e os efeitos dos documentos 26. Os documentos podem ser considerados mediadores, pois “transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam” 15.
A escolha destes jornais como fontes documentais se deu pelo fato de a FSP ser considerada um dos maiores jornais em termos de circulação do Brasil e o BSM, que se autodescreve em seu site como o maior jornal conservador do país, propiciando observar posicionamentos opostos no debate público. A FSP, criada em 1921, pertence a um dos maiores conglomerados de mídia no país, o Grupo Folha 27. No período da ditadura militar, o controle e cerceamento internos e externos às redações foram impostos ao jornal 28. Durante o governo Bolsonaro, a FSP se mostrou como um dos veículos de denúncia e oposição à gestão da COVID-19 por este governo 29. O BSM foi criado em 2019 pelo editor-chefe Paulo Briguet, que em suas redes sociais se identifica como conservador no espectro político. O jornal é uma nova versão do Mídia sem Máscara, fundado por Olavo de Carvalho, conhecido por sua influência ideológica sobre a família Bolsonaro e setores de extrema direita 30. O BSM se coloca como conservador, contrário ao “esquerdismo”, antissistema e apresenta aversão à mídia tradicional brasileira 30.
O corpus documental de notícias passou pela etapa de análise preliminar e em seguida uma análise crítica 25, a partir da perspectiva teórica da TAR, na qual deve-se seguir os atores para compreender suas definições e associações elaboradas por eles 15,18.
Na análise preliminar considerou-se o contexto pandêmico em que o material foi elaborado, identificação dos autores, autenticidade do texto, identificação de conceitos-chave e compreensão da semântica do texto, por meio das seguintes etapas: 1. Busca e seleção de notícias. No campo de busca do site da FSP, utilizou-se as palavras-chave “hesitação vacinal”, “hesitação vacinas”, “antivacina” combinadas com “COVID-19”. O resultado foi 115 notícias. No BSM, foi realizada a busca com os mesmos descritores, no entanto, não foram obtidos resultados. Por isso, a busca no BSM foi adaptada com as palavras “vacinas”, “vacinas” e “COVID-19”, “antivacina”, “recusa vacina”, totalizando 12 notícias. A seleção das notícias ocorreu pela leitura dos títulos, identificação do tema central desde que relacionado à hesitação vacinal e o contexto da pandemia de COVID-19. 2. Leitura preliminar das notícias selecionadas e sistematização de informações (título, data de publicação, caderno/seção, autoria, identificação dos atores mencionados no texto, argumentos utilizados) em planilha do Microsoft Excel. Nesta etapa foram excluídas 99 notícias da FSP por não abordarem o tema e pela escolha por textos dos cadernos ‘Opinião’, ‘Colunas e blogs’ e ‘Editorial’, por possuírem textos opinativos que emitem seus posicionamentos sobre determinado tema 31, totalizando 16. Do jornal BSM, as 12 notícias foram selecionadas para o corpus de análise. O BSM não apresenta divisão em seções. 3. Identificação dos atores sociais e seus posicionamentos a respeito das vacinas e vacinação contra a COVID-19.
Na etapa de análise crítica, utilizou-se o referencial teórico-metodológico TAR 15,18. Dentre esses pressupostos, destacam-se a análise da controvérsia enquanto ainda se constitui numa caixa cinza, isto é, não se chegou a um consenso (caixa-preta); as transformações que um enunciado passa segundo os atores; seguir os diversos lados da controvérsia; em uma acusação de irracionalidade, observar os direcionamentos percorridos pela rede; examinar como as inscrições são combinadas, interligadas e o seu retorno 18. A partir da leitura aprofundada do material, com ênfase na análise dos argumentos dos atores e dos recursos utilizados para legitimar esses argumentos, buscou-se estabelecer as categorias de argumentos que mais se destacaram nas controvérsias identificadas. Por fim, a discussão dos achados foi realizada a partir da literatura sobre o tema e a perspectiva da TAR.

Resultados
A relação das notícias selecionadas na FSP e no BSM está disponível nos Quadros 1 e 2, respectivamente. Sobre os porta-vozes recorrentes nas notícias, o BSM abriu espaço para representantes políticos (41,6%), instituições de saúde (41,6%), pesquisadores (33,3%) e profissionais de saúde (25%). A FSP trouxe discursos de pesquisadores/professores universitários (43,75%), jornalistas (50%), editorial do jornal (12,5%), profissionais de saúde (12,5%), universidades (8,3%) e estudantes universitários (8,3%).
Na análise apresentada a seguir, os discursos dos jornais foram explorados partindo de dois eixos: as vacinas contra COVID-19 enquanto imunizantes e a vacinação contra a COVID-19 enquanto medida sanitária direcionada à população.

As vacinas contra a COVID-19: questionamentos e defesas em torno dos imunizantes
Em relação às vacinas de COVID-19 enquanto imunobiológico, as categorias de argumentos encontradas no BSM foram questionamentos sobre o desenvolvimento das vacinas (66,6%), preocupação com eventos adversos (33,3%), imunidade natural considerada superior à proporcionada pelas vacinas (25%), vacinas consideradas “terapias genéticas” (16,6%) e ineficácia das vacinas (16,6%). Já a FSP mencionou a eficácia e segurança da vacina em 37,5% das notícias.
Os autores das notícias do BSM buscam colocar em dúvida a segurança da vacina como nesta matéria: “Alguns especialistas chegam a afirmar que certas vacinas para covid-19 sequer são vacinas, mas terapias genéticas ainda não experimentadas em animais [...]. A especialista em nanotecnologia Giovanna Lara, aponta para os riscos de reações adversas mais perigosas a longo prazo” 32. O tom alarmista transmite a sensação de medo ao leitor ao se afirmar a possibilidade de “reações adversas mais perigosas a longo prazo”.
Outro apontamento do jornal BSM, em várias matérias, é a justificativa de que a imunidade natural seria superior à da vacina. Para defender esta ideia, o jornal cita um estudo, sem fazer referência à instituição de pesquisa ou publicação científica: “Estudo israelense publicado em agosto de 2021 faz uma comparação entre imunizados naturais da covid-19 e imunizados pela vacina e afirma que os vacinados naïve (que não tiveram contato com a doença) têm um risco 13,06 vezes maior de serem infectados com a variante delta em comparação com aqueles que já tiveram a doença. Em outras palavras: ter tido a doença é a melhor vacina que existe” 33.
Na matéria “Vírus, variantes e vacinas: o que dizem os estudiosos”, o BSM questiona a eficácia da Coronavac, por meio da fala do cientista Fernando Kreutz “Submetemos um artigo para a revista “Nature” sobre a amostra que temos [...]. Somente 55% do total atingem o nível que determinamos como esperado de resposta imune ao receber a Coronavac. O que acontece? [...] Temos pacientes que simplesmente não geram anticorpos” 34.
Os eventos adversos relacionados às vacinas, particularmente à da Pfizer, também são expressivos no BSM. A reportagem “CDC indica vacina a gestantes mesmo após registrar 1.464 abortos após vacinação” sugere a associação entre essa vacina e a taxa de abortos entre gestantes vacinadas, citando dados do Sistema de Notificação de Eventos Adversos de Vacinas (VAERS) do Centro de Controle de Doenças dos EUA (CDC) 35. Para embasar seu argumento, a matéria recorre à opinião de um especialista “De acordo com o médico patologista Ryan Cole [...] os fabricantes é que precisam comprovar que suas vacinas não causaram os óbitos, eventos adversos e abortos notificados no sistema do CDC” 35.
Em contraposição ao teor dos argumentos das matérias veiculadas pelo BSM, a FSP procurou fazer afirmações sobre a segurança e eficácia das vacinas, e o discurso veiculado em suas publicações expressa a ênfase na crítica aos atores que atacam as vacinas de COVID-19.
Em resposta às afirmações do presidente Jair Bolsonaro sobre as vacinas, o colunista da FSP, Bruno Boghossian, argumenta que as vacinas são seguras, pois possuem registro em órgão regulador: “[...] o presidente disse que não se pode adotar restrições porque “as vacinas, em grande maioria, ainda são emergenciais”. É mentira. Os imunizantes da Pfizer e da AstraZeneca têm registro definitivo na Anvisa e são 66% das doses aplicadas no país” 36. Além disso, o colunista também se refere a um estudo científico, afirmando que a vacina possui eficácia na redução de transmissão do vírus: “Não é bem assim: estudo publicado no New England Journal of Medicine apontou que a imunização pode reduzir a transmissão em cerca de 50%” 36.

Posicionamentos sobre a vacinação enquanto medida sanitária
Sobre a vacinação, o BSM veiculou matérias com críticas às sanções para não vacinados (58,3%) e defendendo a liberdade individual (41,6%). A FSP trouxe a crítica às ações e discursos de Bolsonaro frente à vacinação (81,25%), crítica a grupos contrários às vacinas (62,5%) e a defesa da vacinação em massa (50%).
O jornal BSM usou expressões como “passaporte sanitário”, “passaporte eugenista” e “apartheid sanitário” para criticar as medidas de verificação do certificado de vacinação em espaços públicos ou privados com restrição de acesso visando conter a pandemia de COVID-19. O BSM dá voz ao jurista e escritor Vitor Honesko na reportagem “Passaporte sanitário: uma afronta à lei e à ciência” para dar legitimidade à crítica ao PL 1.674/2021, referente ao Certificado Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (CSS): “Entre todos os abusos cometidos pelas elites mandantes desde o início da pandemia, o maior e mais grave certamente é a criação do passaporte sanitário. O apartheid da vacina desafia abertamente a lei natural, a Constituição, os direitos humanos e a própria lógica científica” 33.
O argumento de liberdade individual é acionado no texto “Israel promete trancar os não vacinados em casa; “a ciência é clara””. O jornal critica o posicionamento do primeiro-ministro de Israel, Naftali Bennet, em impor restrições aos que se recusaram a se vacinar contra a COVID-19. A matéria afirma que essas medidas entram em colisão com a liberdade individual e critica a “autoridade da ciência”: “O país construído pelas vítimas históricas do Holocausto não teve escrúpulos de propor a polêmica discriminação em duro ataque à liberdade individual atraindo para si a autoridade da ciência” 37.
Em relação à percepção sobre a vacinação como medida sanitária, os colunistas da FSP utilizaram argumentos de defesa à vacinação e ao programa de imunizações brasileiro.
O divulgador científico Átila Iamarino reforça a importância da vacinação para a diminuição do número de mortes por COVID-19: “Recentemente, passamos de 100 milhões de brasileiros completamente imunizados contra a Covid-19. [...] vamos atingir a marca de 50% de imunizados. O resultado, colhido diariamente, é que nosso número de mortes continua caindo” 38.
Nesta mesma linha de argumentação, o infectologista, pesquisador e professor da Faculdade de Medicina da USP, Esper Kallás, retoma a noção da “cultura de imunização” no Brasil: “A construção de políticas eficientes e responsáveis de vacinação, pelo Programa Nacional de Imunizações, o PNI, tem alcançado o importante feito de proteger seus cidadãos contra múltiplas doenças infectocontagiosas. [...] Brasileiros também contribuíram enormemente na elaboração de planejamentos e ações para a erradicação da varíola pela vacina, feitos formalmente reconhecidos pela OMS” 39.
Já o colunista Hélio Schwartsman critica a hesitação vacinal, afirmando que esta seria uma estupidez humana: ““Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta”. A frase, de Albert Einstein, captura a essência da chamada hesitação vacinal” 40.
Os colunistas da FSP frequentemente endossam suas críticas em relação ao governo Bolsonaro e a sua relação com a vacinação. Sobre a influência política na decisão sobre se vacinar, o divulgador científico Átila Iamarino afirma que a medida provisória referente à “liberdade de expressão” nas mídias sociais editada por Bolsonaro traria consequências para a percepção das pessoas sobre as vacinas: “A “MP da liberdade de expressão” impede redes sociais de tirarem do ar ou limitarem o alcance de mentiras e desinformação. Para entender as consequências dessas mentiras em tempos de pandemia, basta olhar para a situação da Covid-19 nos Estados Unidos” 41.
Em Editorial, a FSP rotula o presidente Bolsonaro como negacionista por seus discursos sobre as vacinas: “O negacionista Jair Bolsonaro, que sabota os esforços das autoridades na linha de frente do combate ao coronavírus desde o início da pandemia, nunca descansou em sua ofensiva macabra para minar a confiança da população nos imunizantes e nas medidas sanitárias” 42.
Além disso, o mesmo Editorial comemora o avanço da vacinação contra a COVID-19: “Com mais de 100 milhões de habitantes inteiramente imunizados contra a Covid-19, o Brasil alcançou na quarta-feira (13) uma marca que parecia inatingível no início do ano e merece ser celebrada” 42. Como crítica à morosidade no acesso às vacinas, a FSP afirma “As primeiras doses da Coronavac foram aplicadas no país em janeiro. Foi preciso esperar meses pela regularização da entrega dos imunizantes contratados pela Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde, com a AstraZeneca. Somente mais tarde os brasileiros conseguiram ter acesso às vacinas da Pfizer e da Janssen. O governo perdeu tempo precioso, o que só não custou ainda mais vidas graças à estrutura e à reconhecida experiência do SUS em campanhas de imunização” 42.
Em contraposição à ideia de liberdade individual defendida por grupos antivacina e pelo jornal BSM, o jornalista Michael Kepp, estadunidense radicado no Brasil, relata uma experiência pessoal sobre uma discussão por e-mail com um amigo que se recusou a se vacinar contra a COVID-19 e tinha votado em Donald Trump 37. Na perspectiva de Kepp: “Tentei explicar para ele que estamos lidando com uma questão moral, não de liberdade, como muitos do movimento antivacina argumentam. [...] eu, que me recuso a seguir a “lei de Gérson”, argumentei que ninguém tem a liberdade de se negar a tomar vacina e, assim, colocar em risco a vida dos outros” 43.

Discussão
A análise das notícias evidencia a existência de perspectivas opostas entre a FSP e o BSM sobre as vacinas/vacinação contra a COVID-19, configurando uma série de controvérsias. Esse conceito permeia a TAR, pela qual o social é entendido pela heterogeneidade e complexidade dos elementos, atores humanos e não humanos que compõem a rede 15. Considerando a definição de ator-rede enquanto um “alvo móvel de um amplo conjunto de entidades que enxameiam em sua direção” 15, a FSP e o BSM mobilizam seus porta-vozes, formando atores-rede. A FSP traz os discursos de pesquisadores e jornalistas, em sua maioria, e BSM constrói sua rede com os discursos de políticos, instituições de saúde e pesquisadores.
Na FSP, o deslocamento do posicionamento de sua rede de porta-vozes caminha com maior ênfase em direção à crítica aos grupos contrários às vacinas, às declarações de Bolsonaro e às medidas de seu governo frente à vacinação. O deslocamento discursivo do BSM se dá tanto no ataque à eficácia e segurança das vacinas quanto às políticas de vacinação e às sanções aos não vacinados. Ambos reivindicam seus posicionamentos sobre a vacinação por meio da generalização de seus discursos, recorrendo ao campo da ciência. Este processo de generalização transforma a crítica e a justificação em operações legítimas 19.
A FSP, para dar sustentação e legitimidade à sua justificação sobre a defesa das vacinas, recorre ao argumento “vacinas salvam vidas” em conjunto com a atuação do SUS e do PNI, partindo da noção de “cultura de imunização”, ou seja, a adesão da população brasileira aos programas de imunização 44. Além disso, a FSP expressa sua crítica em relação ao governo Bolsonaro e aos discursos do então presidente contrários às vacinas. Para contestá-los, realiza a verificação de fatos para apurar se uma afirmação dada por ele ou outros atores contrários às vacinas é falsa.
Já o BSM, para dar solidez à sua crítica às vacinas de COVID-19, utiliza argumentos se referindo ao mundo da ciência e da política, recorrendo a expertises do campo científico. Por exemplo, o BSM declara que “alguns especialistas” afirmaram que as vacinas seriam “terapias genéticas ainda não experimentadas em animais” 32. Assim, o ator busca utilizar fontes de especialistas que utilizam suas credenciais para questionar consensos científicos estabelecidos em áreas nas quais não possuem expertise, para questionar estes consensos e se contrapor a autoridades reconhecidamente produtoras de conhecimento 45. Os discursos do BSM remetem a ideia de que a verdade subjetiva, a partir da emoção ou crença pessoal, é mais importante do que os fatos objetivos 46. Estes elementos que o BSM recorre podem impulsionar o negacionismo no debate público.
Ambos os jornais analisados incorrem no mesmo modus operandi individualizador de culpabilização pelas consequências da (não) vacinação e na produção do medo, algo já observado na cobertura midiática de outras epidemias 47. Isso ocorre especialmente nos discursos que associam “não vacinação” à “negligência” ou “estupidez”, como encontrado na FSP.
Com isso, pode-se considerar o debate sobre as vacinas/vacinação contra a COVID-19 um problema público e de relevância coletiva, pois os atores pró e contrários às vacinas formam comunidades ligadas por preocupações comuns acerca da questão 48. A controvérsia se desenvolve a partir da formação de grupos dispostos em oposição que elaboram uma teia de análise das relações em disputa 16. Os grupos se associam, debatem, criticam, buscam aliados para dar voz a seus posicionamentos, delimitando seu problema de alcance público 19,48, como a FSP e o BSM. Como a maioria das questões em saúde que emergem à esfera pública, a pandemia constituiu um cenário de competição discursiva, entre lados opostos 21. Isso acontece porque as disputas discursivas em torno do cenário pandêmico transcendem a questão da saúde e das medidas sanitárias: elas representam disputas entre visões de mundo acerca das relações humanas, da política, da organização da sociedade e da economia 5.
Outro aspecto a se considerar é que os jornais fazem parte do “mundo da opinião”, no qual as pessoas têm a possibilidade de “atribuir um ordenamento entre os seres e chegar ao acordo em uma ordem justa levando em conta apenas as opiniões dos outros” 16 e sua relação de grandeza é a identificação do público com o seu interlocutor. Desta forma, percebe-se que a FSP e o BSM procuram atingir leitores cuja percepção político-social seja semelhante à destes veículos. Os jornais ao utilizarem discursos de especialistas, que se distinguem pela visibilidade do seu caráter persuasivo e informativo, se colocam como formadores de opinião 16.
Considerando que o social não é previamente dado, e sim rastreável a partir de sua modificação pelos atores-rede 15 e estes possuem reflexividade e capacidade crítica para analisar a situação em que vivem 16, a FSP constrói seu ideal de social a partir da solidariedade ao promover discursos de valorização da imprensa confiável e da ciência, da necessidade de vacina para todos 5. Já os vestígios deixados pelo BSM vão em direção ao conflito entre a liberdade individual e as normatizações implementadas por instituições de saúde e Estado em relação ao binômio vacinas/vacinação. 5,30. O que está em jogo não é a defesa liberal dos direitos individuais, relacionada ao reconhecimento da alteridade e das desigualdades, mas um libertarianismo de direita, ou seja, uma liberdade ausente de constrangimentos e sanções, em direção à “liberdade de expressão” 30. Neste aspecto, percebe-se que a discussão sobre vacinação contra a COVID-19 remete ao conflito entre o individual e o coletivo 49.
No recorte deste estudo, percebeu-se que a controvérsia envolve a expertise no âmbito da tomada de decisões sobre vacinas/vacinação para o enfrentamento da COVID-19. Sobre isto, os cientistas são pressionados a tomar decisões sobre questões técnicas sem que o consenso científico esteja estabelecido para a tomada de decisões 50,51, como no caso do desenvolvimento de vacinas contra a COVID-19 e as campanhas de vacinação. Somado a isso, os ataques à ciência concentram-se na “ciência reguladora”, áreas que elaboram recomendações políticas 51.
A pandemia além de ser considerada um evento natural, também é um fenômeno político-social, e por isso, abre espaço ao imprevisto, rompendo padrões que gerenciam o mundo 5. Momentos de crise, como o contexto pandêmico, reacendem o populismo, que pode ter características reacionárias ou progressistas. Além de surgir em situações em que as demandas da população não são atendidas, o populismo se constitui a partir de práticas político-discursivas que evocam um antagonismo entre eles (as elites) x nós (os dominados/o povo). Este antagonismo mostra os posicionamentos extremos da sociedade, que são alvos de contestação e difícil de se estabilizarem. O discurso “negacionista” buscou minimizar a gravidade da pandemia e defender a sustentabilidade da economia, enquanto o discurso “científico” trouxe argumentos em defesa da saúde e da sustentabilidade da vida 5.
Deve-se considerar que a crise pandêmica ocorreu em um momento de crise democrática. Em 2013, o país passou por uma crise político-econômica e em 2018, Bolsonaro foi eleito presidente com um discurso antissistêmico e conservador, além de se opor à construção de coligações e à política democrática 52. Estes momentos contribuíram ainda mais para que os meios de comunicação promovessem perspectivas polarizadas de ciência e saúde, com isso, indivíduos passam a identificar assuntos científicos controversos como polarizados politicamente, culminando na descrença na expertise, como no caso da vacina contra a COVID-19 53.
Em suma, pode-se concluir que embora as expertises acionadas pela FSP e pelo BSM apresentem consensos de acordo com os respectivos posicionamentos de cada jornal, as controvérsias acerca das vacinas/vacinação contra a COVID-19 ocorrem na contraposição dos discursos destes dois veículos. Apesar de o foco deste estudo ser as disputas discursivas dos jornais, a publicização do debate pode ter contribuído para moldar a perspectiva do público sobre a configuração do Estado e sociedade em relação às medidas sanitárias de enfrentamento à COVID-19.
As limitações desta pesquisa estão relacionadas à etapa metodológica e ao recorte temporal escolhido. Apesar da escolha por restringir a seleção de notícias da FSP às seções ‘Opinião’, ‘Colunas e blogs’ e ‘Editorial’ ter sido intencional, textos de outras seções que poderiam ser relevantes para a análise não foram incorporados no corpus analítico. A escolha por restringir a seleção de notícias publicadas durante o período da CPI deveu-se a este período ter ocorrido a visibilização do debate das vacinas/vacinação no âmbito do acontecimento da COVID-19.

Considerações finais
A mídia jornalística é considerada um meio no qual as controvérsias são publicizadas e ganham destaque 21,22. No tema das vacinas/vacinação de COVID-19, a politização do debate na FSP e no BSM está presente nos argumentos e nos discursos de seus porta-vozes. O momento de crise pandêmica concomitante com a crise democrática realçou o antagonismo de discursos opostos sobre as decisões político-sanitárias envolvendo a COVID-19 a partir de posicionamentos político-ideológicos diametralmente opostos. O aumento da desigualdade e a propagação desregulada de informações impulsionam a extrema direita no interior de uma perspectiva de liberdade neoliberal. Neste aspecto, os atores sentem que tem permissão para reivindicar o poder de elaborar suas próprias verdades 46.
Neste estudo, percebeu-se que a controvérsia em torno das vacinas/vacinação de COVID-19 estava relacionada aos dissensos dos atores-rede sobre as produções de artefatos e enunciados pela ciência e a expertise. A estabilização desta controvérsia em uma caixa-preta é algo possivelmente difícil de ocorrer, pois a junção entre a ciência e as esferas jurídica e política incorre no atrito entre o tempo para a ciência produzir seus artefatos e tempo necessário para tomada de decisões regulatórias 50,51, como as de saúde pública.

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Gonçalves, B. A., Itagyba, R. F., Matos, C. C. S. A., Couto, M.T. CONTROVÉRSIAS SOBRE AS VACINAS E A VACINAÇÃO CONTRA COVID-19 NO MEIO JORNALÍSTICO. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/abr). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/controversias-sobre-as-vacinas-e-a-vacinacao-contra-covid19-no-meio-jornalistico/19154?id=19154&id=19154

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