0075/2025 - Dezoito anos de TelessaúdeRS na APS brasileira: principais ações e resultados alcançados
Eighteen Years of TelessaúdeRS in Brazilian Primary Health Care: Main Actions and Achieved Results
Autor:
• Erno Hazrheim - Hazrheim, E. - <eharzheim@hcpa.edu.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8919-7916
Coautor(es):
• Dimitris V. Rados - Rados, D.V - <dvarvaki@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0819-5343
• Natan Katz - Katz, N. - <nkatz@hcpa.edu.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0659-7747
• Rudi Roman - Roman, R. - <rudiroman@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2663-4314
• Juliana Pfeil - Pfeil, J. - <juliana.pfeil@telessauders.org.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0677-0386
• Elise Botteselle de Oliveira - Oliveira, E.B - <elisebot@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9552-3282
• Rodolfo Souza da Silva - da Silva, R.S - <rodolfo.silva@telessauders.org.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6848-3385
• Roberto Nunes Umpierre - Umpierre, R.N - <rnumpierre@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9841-5543
Resumo:
Introdução: O TelessaúdeRS foi criado há 18 anos para melhorar a saúde das pessoas. Este artigo apresenta seus principais resultados.Objetivo: Resumir e apresentar os resultados do TelessaúdeRS.
Métodos: Estudo descritivo. Foram revisadas as ações, publicações e compilados os dados do programa ao longo dos últimos 18 anos para expressar numericamente sua produção e impacto.
Resultados: Vinculado à UFRGS e ao HCPA, o projeto começou com teleconsultorias assíncronas e evoluiu para consultorias síncronas e telefônicas, ampliando o acesso e a agilidade. Associadamente, iniciou-se o suporte à regulação de encaminhamentos para atenção especializada no RS. Essas iniciativas somaram mais de meio milhão de discussões de caso clínico. O projeto também criou serviços de diagnóstico remoto em espirometria, oftalmologia, dermatologia e estomatologia, realizando 700 mil telediagnósticos, ampliando o acesso à saúde. Além disso, oferece apoio ao poder judiciário, aplicando medicina baseada em evidências nos pleitos judiciais relacionados à saúde.
Conclusões: Em 18 anos, o TelessaúdeRS alcançou seus objetivos iniciais, ampliando sua atuação para preencher lacunas assistenciais, apoiar a atenção primária e melhorar a eficiência do sistema de saúde.
Palavras-chave:
telessaúde, telemedicina, atenção primária, telediagnóstico, teleconsultoria, judicialização na saúde.Abstract:
Introduction: TelessaúdeRS was created 18 years ago to improve people's health. This article presents its main results.Objective: To summarize and present the main outcomes of TelessaúdeRS.
Methods: Program actions, publications, and databasesthe past 18 years were reviewed to numerically express the program’s production and impact.
Results: Linked to UFRGS and HCPA, the project started with asynchronous text-based teleconsultations and evolved to synchronous and phone consultations, increasing access and efficiency. Additionally, it supported the regulation of referrals to specialized care in Rio Grande do Sul, with more than 500,000 discussions. The project also developed remote diagnostic services in spirometry, ophthalmology, dermatology, and stomatology, performing 700,000 telediagnostics and improving healthcare access. Furthermore, it supports the judiciary by applying evidence-based medicine to legal claims.
Conclusions: Over 18 years, TelessaúdeRS has achieved its initial goals, expanded its scope, filled care gaps, supported primary care, and improved the healthcare system’s efficiency.
Keywords:
telehealth, telemedicine, primary care, telediagnostics, teleconsultations, health judicialization.Conteúdo:
O TelessaúdeRS é um serviço e um metasserviço de saúde1 que usa as tecnologias de informação e comunicação para resolver problemas de saúde que impactam a vida das pessoas e para apoiar a melhor organização do Sistema Único de Saúde (SUS). É um serviço de saúde ao prover cuidado diretamente aos indivíduos(telediagnóstico) e é um metasserviço de saúde ao apoiar a tomada de decisão clínica de médicos e profissionais de saúde da Atenção Primária à Saúde (APS). O objetivo global do TelessaúdeRS sempre foi melhorar a vida das pessoas ao criar estratégias de cuidado direto e apoiar os serviços assistenciais promovendo a qualidade em saúde: paciente certo, no lugar certo, com o profissional certo, no tempo certo.
Do ponto de vista da natureza institucional, o TelessaúdeRS é um amálgama de projetos , financiados por diversas instituições, vinculados tanto à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por meio de seu Departamento de Medicina Social e seu Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia, ambos da Faculdade de Medicina, assim como a Faculdade de Odontologia e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). . Para a execução de suas ações e cumprimento dos objetivos de cada iniciativa, o TelessaúdeRS conta com apoio institucional da Fundação de Apoio da UFRGS, da Fundação Médica do Rio Grande do Sul e do HCPA. A chave para prestar serviços contínuos à sociedade brasileira e gaúcha, em especial, é a construção de uma transversalidade organizacional entre os projetos, dividindo as atividades meio entre todos, permitindo que um colaborador possa se dedicar a mais de um projeto, com medidas compensatórias para a correta utilização dos recursos públicos que o financiam, gerando maior eficiência na oferta de ações.
Em novembro de 2024, o TelessaúdeRS contava com 221 colaboradores, dos quais 114 eram profissionais de saúde. Além disso, tem um claro papel acadêmico, tendo em seu quadro 66 alunos de graduação, 12 alunos de mestrado e 23 alunos de doutorado, bem como12 professores da UFRGS. Quanto à estrutura física, o projeto ocupa mais de 1.200 m2 em duas sedes externas à Universidade, está ligado à Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e possui ampla estrutura de computadores, servidores e mobiliário, além de biblioteca física e virtual própria. Além disso, sua Plataforma de Telessaúde possui 6 módulos com uma média mensal de 3 a 4 mil acessos.
De uma forma mais ampla, o TelessaúdeRS está inserido no conjunto dos núcleos de telessaúde do Brasil. Assim como TelessaúdeRS, outros estados possuem Núcleos de Telessaúde com forte atuação dentro do SUS, apoiando e melhorando a saúde das populações. Por exemplo, o Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas de Universidade Federal de Minas Gerais oferece amplos serviços de diagnóstico remoto, especialmente em cardiologia, consultoria, educação e suporte. Da mesma forma, o núcleo do estado de Santa Catarina, vinculado à universidade federal deste estado, também tem forte atuação em telediagnóstico (em especial em dermatologia), educação à distância e produção de conteúdo. Já o núcleo do Amazonas tem forte atuação em oferta de consultas, um desafio natural pela sua grande extensão territorial a característica de acesso remoto a muitas localidades e o de Goias com atuação em diversos serviços de diagnóstico, com especial experiência em oftalmologia.
Este artigo descritivo tem como objetivo apresentar uma revisão histórica do TelessaúdeRS. Descrevemos as ações do projeto, desde a sua ideia inicial e contexto, explicando como se tornaram iniciativas organizadas e como são financiadas e executadas. Também são apresentados os principais resultados destas ações e publicações relacionadas.
Histórico do desenvolvimento e expansão do TelessaúdeRS
O TelessaúdeRS iniciou suas atividades em março de 2007, com financiamento da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), em convênio com a Secretaria de Gestão da Educação e do Trabalho (SGTES) do Ministério da Saúde (MS), dentro do projeto piloto dos Núcleos de Telessaúde em Apoio à APS. As primeiras ações do Telessaúde RS foram a oferta de teleconsultorias de texto e vídeo em apoio aos profissionais de saúde da Estratégia Saúde da Família (ESF) e, também, a oferta de ações educacionais. Inicialmente, o TelessaúdeRS ofertava suas ações para 100 pontos de telessaúde, isto é, 100 Unidades Básicas de Saúde. No ano de 2012, o TelessaúdeRS passou a oferecer teleconsultorias para todas equipes de ESF do Estado do RS. Em nível nacional, no ano de 2011, o MS contratou o TelessaúdeRS para duas ações de escopo nacional: criar a Plataforma Nacional de Telessaúde, plataforma eletrônica que fazia a gestão entre as solicitações e respostas das teleconsultorias, assim como apoiar o surgimento de novos Núcleos de Telessaúde no país.
Em 2013, o TelessaúdeRS lança o canal de teleconsultoria telefônica via 0800 (Canal 0800), financiado pelo MS; isto é, uma linha telefônica de contato direto com teleconsultores que forneciam resposta síncrona e imediata, para resolução de dúvidas clínicas dos profissionais de APS. Em paralelo e com o suporte do Canal 0800, também em 2013, já com financiamento da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SES-RS), a equipe do TelessaúdeRS passou a regular algumas listas de espera para consultas especializadas de pacientes do interior do Rio Grande do Sul para Porto Alegre. Este foi o embrião do projeto RegulaSUS, ofertando teleconsultorias de apoio aos médicos da APS para todos os casos que não alcançaram critérios de encaminhamento para consultas presenciais com especialistas. No mesmo ano, inicia a oferta de telediagnóstico por meio do diagnóstico assíncrono em espirometria (RespiraNet).
Em sequência, em 2017, o diagnóstico assíncrono de lesões da cavidade oral, EstmatoNet, é lançado, assim como telediagnóstico em dermatologia (DermatoNet). E, também em 2017, o TelessaúdeRS lança sua metodologia de diagnóstico síncrono em oftalmologia, o Teleoftalmo.
No ano de 2019, expandindo sua capacidade de intervir em múltiplos problemas do sistema de saúde, o TelessaúdeRS, baseado na experiência acumulada de muitos anos na seleção, avaliação e divulgação da melhor evidência científica disponível e adaptada para APS, passa a apoiar a Justiça Federal emitindo pareceres técnicos no processo de judicialização para acesso a medicamentos que não constam na lista oficial do SUS. A Figura 1 apresenta uma linha do tempo que resume essas principais ações.
Figura 1. Linha do tempo das principais ações do TelessaúdeRS desde a sua criação, Porto Alegre, 2025.
Fonte: TelessaúdeRS, novembro 2024.
* Em 2024, o Canal 0800 se mantinha ativo para o RS, com financiamento da SES-RS para apoio à regulação, mas foi descontinuado em nível nacional por decisão da Secretaria de Informação e Saúde Digital e da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, que não renovaram convênio entre MS e UFRGS (TelessaúdeRS)
Durante esse longo processo, foram desenvolvidas metodologias de seleção, avaliação e adaptação de evidências para o contexto da APS no SUS, assim como inúmeras ferramentas eletrônicas, como a Plataforma de Telessaúde e aplicativos de apoio à tomada de decisão clínica. Em conjunto, o desenvolvimento dessas tecnologias levaram a produção de 22 patentes originais.
Principais ações e seus resultados
Nesta sessão iremos apresentar os maiores serviços e ações do TelessaúdeRS e seus principais resultados. Uma visão global é apresentada na Tabela 1. As principais ações e serviços desenvolvidos pelo TelessaúdeRS nos últimos 18 anos estão sumarizadas nos parágrafos abaixo. Escolhemos detalhar as de maior volume e, consequentemente, que geram impacto em um número maior de pessoas. Apesar disso, iniciativas em odontologia2,3, enfermagem4,5, nutrição6, educação7,8 e transição do cuidado9,10 também são significativas dentro do projeto.
Consultorias para profissionais ESF
O TelessaúdeRS iniciou suas atividades oferecendo teleconsultorias assíncronas em texto e vídeo para as equipes de Saúde da Família. Como oportunidade de expansão nacional do serviço e, também, apoio ao Programa Mais Médicos, no ano de 2013, foi desenvolvida uma forma alternativa simplificada, mais ágil e com maior penetração de oferecer consultorias. Assim, surgiu o Canal 0800 de consultorias para todas as ESFs do país e este se tornou ao longo dos anos a ação mais conhecida do TelessaúdeRS.
Tratava-se de iniciativa com objetivo de oferecer respostas diretas e baseadas no melhor conhecimento científico disponível para dúvidas clínicas – que surgem em média 5 vezes a cada turno de atendimento11. Partindo das consultorias assíncronas para a discussão telefônica síncrona surgiu a possibilidade de uma troca mais rápida de informações. Com isso, era possível entender o contexto com mais detalhes e fornecer uma resposta que aplicasse o melhor conhecimento científico no contexto demandado. Para atingir esse alvo, foi fundamental ter médicos de família e comunidade proeficientes como principais consultores e responsáveis pela maior parte das respostas, assim como um time de médicos especialistas em outras áreas, como cardiologistas, dermatologistas, endocrinologistas, pneumologistas, psiquiatras, entre outros.
Este serviço esteve ativo entre 2013 e 2024 e ao longo de mais de 10 anos de existência, o canal 0800 do TelessaúdeRS respondeu 458.616 consultorias de todos os estados do Brasil. No total, 26.466 diferentes profissionais ligaram para o serviço, discutindo casos de uma infinidade de doenças e situações clínicas diferentes. Como grupo, doenças dermatológicas, endocrinológicas e genitourinárias foram as mais perguntadas; isoladamente diabetes mellitus tipo 2, COVID-1912 e doença renal crônica foram os assuntos mais comuns. Como resultado dessas discussões, 72% dos casos discutidos puderam ser manejados na APS, sem espera de cuidado especializado oportuno e sem necessidade de encaminhamento para centros de atenção secundária e terciária, evitando deslocamentos até outros pontos da rede, aumentando a eficiência do sistema.
Além disso, como resultado do processo constante de revisar a literatura médica e fornecer a melhor resposta científica para perguntas recorrentes, surgiram as Perguntas da Semana. São objetos educacionais, respostas diretas a perguntas frequentes recebidas no Canal 0800, focadas em situações clínicas específicas, frequentes no contexto da APS, baseadas na revisão das principais referências no assunto, publicadas no site do TelessaúdeRS e fontes de consulta imediata para profissionais de saúde. Ao longo dos últimos 3 anos, mais de 9 milhões de visitas ao site foram realizadas para consultar as 359 Perguntas da Semana já publicadas. Destas, quase 2 milhões foram de fora do Brasil, de todos os continentes e de 205 países diferentes. Destaca-se o acesso de países lusófonos (exceto Brasil) com 318.015 acessos.
Apoio à regulação ambulatorial
Desde as primeiras consultorias assíncronas por texto (e após, nas discussões pelo Canal 0800), a fração de casos que necessitavam de encaminhamento para atenção especializada após contato com o TelessaúdeRS se mantinha em aproximadamente 30%. Além disso, quando havia a intenção de encaminhar pacientes pelos médicos de APS antes da discussão dos casos, muitas vezes, essa intenção de encaminhar não representava claramente a necessidade de consulta com médico especialista13, isto é, eram situações clínicas que poderiam ser manejadas no contexto da APS. Ou seja, era altamente provável que, oferecendo informação e suporte aos médicos da atenção primária, a maioria dos casos geradores de dúvidas não necessitariam de atendimento por especialistas. Com isso, o TelessaúdeRS e a SES-RS começaram a explorar os efeitos de intervenções de telessaúde nas longas filas de encaminhamento para consultas e procedimentos ambulatoriais.
Partindo de uma metodologia semelhante à utilizada para responder às consultorias (utilizar a melhor evidência disponível aplicada ao contexto do paciente), foi criado o serviço do RegulaSUS. Através de um método estruturado com sete passos, cada fila de espera pôde ser estudada e protocolos de encaminhamento puderam ser criados14. Os passos envolvem a seleção da fila de espera com acesso crítico, avaliação de uma amostra de encaminhamentos para entender as doenças ou situações clínicas mais comuns, realizando um diagnóstico de demanda. Partindo-se das doenças que perfaziam 70-90% da fila, foram criados protocolos, baseados na literatura existente e nas características do SUS, que definem quais pacientes podem ser manejados na APS, quais situações clínicas devem ir para a atenção especializada, bem como quais são prioritários para o agendamento. Atualmente eles são revisados e atualizados periodicamente. Os protocolos também definem as informações mínimas que o referenciamento deve conter para adequado julgamento clínico por parte da regulação ambulatorial.
Com critérios definidos, é possível atuar nas filas de espera por consultas especializadas do Rio Grande do Sul. Um médico regulador do TelesaaúdeRS regula todos os casos de uma determinada fila de espera (por exemplo, neurologia adulto) junto à Central Estadual de Regulação de Consultas da SES-RS, deixando para trás a abordagem reativa e pivotando a regulação de toda fila, organizando a demanda legítima e priorizando pacientes com maior risco de prejuízo à saúde. Tão importante quanto ter clareza da demanda é poder oferecer consultorias pelo Canal 0800 para os médicos da APS para os encaminhamentos que não são elegíveis para consulta especializada presencial. Assim, o TelessaúdeRS regula todos os caso de uma fila de espera, estabelece o grau de prioridade clínica de cada caso, agenda os caso prioritários e encaminha para teleconsultoria pelo Canal 0800 todos os casos que não atendem aos critérios de encaminhamento definidos nos Protocolos de Regulação já citados. Em suma, a estratégia como um todo aumenta a eficiência no uso dos recursos. Também fornece ao gestor a possibilidade de reduzir ou ampliar ofertas, de acordo com a demanda identificada.
Entre 2013 e 2024, 161.779 casos referentes a encaminhamentos foram discutidos e quase um milhão de encaminhamentos foram regulados pelo TelessaúdeRS. Essa estratégia foi capaz de reduzir o tempo de espera por consulta especializada em 23 dias de uma forma geral, baixando de aproximadamente 600 dias para menos de 250 dias nos casos prioritários15. Além disso, no total 347 protocolos de encaminhamentos em 45 diferentes especialidades foram produzidos e utilizados no Rio Grande do Sul e em muitos outros lugares do Brasil. Destes, 119 foram chancelados pelo MS com validade nacional.
Telediagnóstico: espirometria
Ainda nos primeiros anos do projeto foi identificado que as doenças respiratórias eram a terceira causa de morte no RS dado que diferia do restante do país e mesmo dos demais estados da região Sul. Este fato oportunizou que os encaminhamentos para pneumologia de um município de médio porte e marcado pela mineração de carvão fossem analisados, sendo constatado que não havia acesso à espirometria para pacientes da APS no Rio Grande do Sul. Da forma como estava estabelecido o cuidado às pessoas com doenças pulmonares crônicas, elas necessitavam ser encaminhadas para o pneumologista que só então solicitaria o exame de função pulmonar, essencial para diagnóstico e manejo de asma e DPOC16,17. Para resolver este problema surgiu a ideia do RespiraNet e, desde 2013, este programa ofertou espirometrias para toda a população do Rio Grande do Sul.
Visando a melhor integração com a rotina de atendimento, qualquer médico cadastrado na APS no Rio Grande do Sul pode acessar a plataforma do TelessaúdeRS, informar dados básicos do paciente, bem como informações clínicas. A partir disso, o paciente é direcionado para um dos centros do RespiraNet para realização de espirometria remota. Nestes locais, um técnico treinado realiza o exame. A partir desta coleta, as curvas ventilatórias do paciente são carregadas na plataforma e um pneumologista do TelessaúdeRS as avalia e fornece o laudo online, seguindo as recomendações das diretrizes mais atuais.
Até o momento, foram realizadas 42.418 espirometrias solicitadas por aproximadamente 3 mil diferentes profissionais em seis centros de telediagnóstico distribuídos pelo estado. Para fins de comparação, estima-se que no mesmo período ocorreram entre 30 e 40 mil encaminhamentos para pneumologia no RS. Com as espirometrias, incontáveis encaminhamentos para atenção especializada que visavam apenas a realização deste exame foram evitados. O tempo médio entre a solicitação do exame e o laudo é de 60 dias e o médico recebe o resultado em um aplicativo no seu celular. Apesar de não haver dados diretos para comparação, pode-se inferir que este tempo é marcadamente menor que o prévio, uma vez que dispensa o encaminhamento ao pneumologista e o tempo de espera interno (e heterogêneo) de cada serviço especializado.
Telediagnóstico: oftalmologia
Com o sucesso da estratégia do RespiraNet, outros gargalos do acesso ao sistema de saúde pela população do Rio Grande do Sul foram analisados a fim de identificar em quais deles um serviço de telediagnóstico poderia trazer benefícios. As longas filas de espera por oftalmologia com tempos de espera de mais de um ano foram um dos problemas selecionados. Assim, no ano de 2015 um edital da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do MS foi um estímulo para se criar uma grande força tarefa que envolvia diversas áreas da UFRGS (TelessaúdeRS, Instituto de Avaliação de Tecnologias em Saúde, Instituto de Informática, Centro de Processamento de Dados) junto com a SES-RS para concorrer com um projeto inovador em saúde ocular. O projeto Teleoftalmo foi escolhido para ser contemplado pelo edital. Entretanto com a crise econômica que se abateu sobre o país o edital foi cancelado e buscou-se outras formas de financiar essa estratégia disruptiva de acesso à oftalmologia. Nesta busca por parceiros, o Hospital Moinhos de Vento, por meio do projeto PROADI-SUS, foi escolhido como o parceiro que poderia financiar a aquisição dos equipamentos oftalmológicos e apoiar logisticamente a criação do TeleOftalmo, com sete consultórios oftalmológicos completos distribuídos estrategicamente pelo Rio Grande do Sul
Trata-se de um serviço plenamente integrado à oferta de atendimentos do estado do Rio Grande do Sul. O médico da atenção primária realiza uma solicitação de teleconsulta pelo sistema de encaminhamentos do estado da mesma forma que referencia um paciente para qualquer especialidade. A partir desta solicitação, a equipe do TelessaúdeRS localiza o consultório remoto mais próximo do domicílio do paciente e agenda uma consulta. No dia da avaliação o paciente é recepcionado por uma equipe de técnicos e enfermeiros que realizam a coleta dos exames, como retinografia e pressão intraocular18. Ao longo da avaliação, um oftalmologista do TelessaúdeRS participa sincronicamente de parte da avaliação, utilizando ferramentas de telepresença, para complementar a avaliação, principalmente a análise da acuidade ocular, e definir recomendações de manejo para o médico solicitante.
Até o momento, aproximadamente 60 mil pessoas foram avaliadas nos consultórios remotos do Teleoftalmo e receberam um diagnóstico de forma remota e com menores necessidades de deslocamento. A acurácia da iniciativa mostrou-se similar ao atendimento presencial19. Além disso, o serviço tem a mesma qualidade do que atendimentos presenciais com ganho econômico para o sistema de saúde20. Em 70% das vezes foi possível resolver a demanda do paciente sem necessidade de complementação com consulta presencial21, com emissão da prescrição de lentes, quando necessárias. Quando é imperativa a realização de consulta presencial adicional, esta era usualmente para realização de procedimentos cirúrgicos. Atualmente, são seis consultórios remotos espalhados pelo Rio Grande do Sul realizando as coletas.
Telediagnóstico: dermatologia e estomatologia
Com a crescente demanda de consultorias pelo Canal 0800 e associado com a popularização de smartphones com câmeras progressivamente melhores, o TelessaúdeRS passou a receber um grande número de imagens clínicas para complementar as consultorias telefônicas. Assim surgiu a oportunidade e necessidade de serviços específicos de diagnóstico em dermatologia e estomatologia: DermatoNet e EstomatoNet. Sua criação também se baseou na percepção que, para alguns tipos de consultoria, a coleta de informações de forma assíncrona não prejudicava a qualidade da resposta fornecida.
A sistemática de funcionamento é semelhante às espirometrias: o profissional (médico ou dentista) da APS entra na plataforma do TelessaúdeRS e gera uma solicitação de telediagnóstico, respondendo perguntas sobre o caso e anexando imagens clínicas do caso, com orientações no site e plataforma de como adquirir melhores imagens. A partir destas informações e imagens, os consultores dermatologistas e odontólogos do TelessaúdeRS avaliam o caso e fornecem hipóteses diagnósticas e sugestões de tratamento para o profissional da APS, que recebe elas no aplicativo ou na plataforma.
Quanto ao DermatoNet, foram 28.517 avaliações realizadas para diagnóstico remoto, ou seja 250 a 300 atendimentos no mês desde o início do serviço. Com essas respostas, 72% dos pacientes não necessitaram de encaminhamento ao especialista. De forma similar, no EstomatoNet foram quase 5 mil laudos realizados de 778 profissionais diferentes e com uma taxa de resolução na APS de 62%. Em ambas as iniciativas, o tempo de espera para o laudo é menor que 7 dias (enquanto o tempo de espera para dermatologia de 111 dias e estomatologia 147 dias).
A contribuição do TelessaúdeRS no desenvolvimento do NAT-Jus e seus impactos na judicialização da saúde
Em 2016, o TelessaúdeRS foi convidado a integrar as reuniões do Comitê Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul do Conselho Nacional de Justiça para discutir a criação de um Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS) no Estado, em conformidade com o CNJ. Essas reuniões culminaram em oficinas e discussões com outros NAT-JUS do Brasil, o CNJ e o Ministério da Saúde, por meio de seu Departamento de Gestão das Demandas em Judicialização na Saúde. Entre 2016 e 2019, o projeto de NAT-JUS atravessou diversas etapas de pilotagem e desenvolvimento, permitindo a construção de um modelo de nota técnica que atendesse aos seguintes objetivos: (i) subsidiar os magistrados com informações relevantes para a tomada de decisão; (ii) alinhar-se à estrutura do sistema nacional de notas técnicas em saúde (e-NATJus); e (iii) utilizar a medicina baseada em evidências (MBE) para fundamentar as análises.
Atualmente, o TelessaúdeRS desempenha o papel de NAT-Jus para a Justiça Federal do Rio Grande do Sul e o Tribunal de Justiça do estado de Rondônia. As avaliações técnicas são realizadas mediante intimações judiciais, que fornecem acesso à documentação médica pertinente, especificando a tecnologia de saúde em questão e o contexto clínico do requerente, com confidencialidade e sigilo. Com base nesses dados, uma equipe multiprofissional treinada em MBE realiza revisão da literatura científica para produzir notas técnicas individualizadas, abordando eficácia, acurácia, efetividade, segurança e custo-efetividade das tecnologias de saúde pleiteadas.
Utilizando-se o recorte de dados de 2024, as notas técnicas do NatJus estiveram presentes em 28% dos casos relacionados à saúde da Justiça Federal do Rio Grande do Sul (1.339 notas em 4.649 processos). Já no tribunal de Rondônia, no mesmo período, atuamos em quase dois terços das ações em saúde (907 notas técnicas em 1.541 processos de saúde). Neste período (entre 2019 e novembro de 2024), o TelessaúdeRS elaborou 7.422 avaliações técnicas com tempo médio de elaboração de 24 dias, das quais 83% apresentaram recomendação desfavorável ao provimento jurisdicional. Essas recomendações baseiam-se em fatores como imprecisão das indicações clínicas, preocupações relacionadas à segurança do paciente, existência de alternativas terapêuticas melhores, fragilidade das evidências disponíveis e limitações de custo-efetividade. É relevante destacar que o NAT-Jus do TelessaúdeRS é o único no Brasil, até o momento, a incluir análises de custo-efetividade em suas avaliações.
Além disso, a análise histórica demonstra que em 87% das avaliações técnicas, a decisão da primeira instância foi concordante com o parecer emitido pelo TelessaúdeRS, o que reflete a relevância das informações técnicas fornecidas. Análise de amostra de 963 processos contra a União e com avaliação técnica do TelessaúdeRS demonstrou redução de 50% nos deferimentos em primeira instância na comparação com dados apurados pelo CNJ 22. Nesta análise a economia potencial estimada para o conjunto de processos (963) foi de R$142 milhões. O retorno sobre investimento foi calculado em R$106,79 para cada real aplicado no projeto NAT-Jus do TelessaúdeRS.
Esses resultados evidenciam que a implementação de práticas baseadas em evidências contribui significativamente para a racionalização do uso de medicamentos, materiais e procedimentos em contexto clínicos questionáveis, reduzindo o impacto financeiro da judicialização da saúde sobre os recursos públicos.
Além dessas ações citadas acima, é importante destacar que o TelessaúdeRS busca sempre inovar e explorar novas fronteiras no uso de tecnologia de informação e comunicação para a melhoria do SUS, com ações experimentais sendo testadas a cada ano. Atendimento remoto para obesidade, pacientes vivendo com estomias, consultoria para feridas, uso de inteligência artificial23 são alguns dos exemplos de ofertas sendo testadas atualmente pelo TelessaúdeRS.