0398/2024 - Dinâmicas do poder e a dimensão política do cuidado: que capitais importam no campo da saúde?
Power dynamics and the political dimension of care: which capitals matter in the field of health?
Autor:
• José Jeová Mourão Netto - Netto, J.J.M - <jeovamrao@yahoo.com.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0663-8913
Coautor(es):
• Leonardo Damasceno de Sá - SÁ, L.D - <leonardo.sa@ufc.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5983-9132
• Antonia Regynara Moreira Rodrigues - Rodrigues, A.R.M - <regynararodrigues@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7495-2328
• Natália Frota Goyanna - Goyanna, N.F - <nataliagoyanna@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8957-6828
• Maira Buss Thofehrn - Thofehrn, M.B - <mairabuss@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0864-3284
• Aluísio Ferreira de Lima - Lima, A.F - <aluisiolima@ufc.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9747-4701
• Lucilane Maria Sales da Silva - Silva, L.M.S. - <lucilanemaria@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3850-8753
Resumo:
Muitos são os agentes envolvidos para que se concretize o cuidado. Com essa variedade de agentes, tece-se uma imbricada rede de relações de poder que interfere em como é produzido esse cuidado. O estudo objetivou analisar como os diferentes capitais se articulam para determinar as relações de poder no trabalho de enfermeiros e de outros profissionais da saúde. Trata-se de pesquisa exploratório-descritiva, de abordagem qualitativa. A coleta ocorreu em um Hospital de Referência e em duas Unidades Básicas de Saúde de uma cidade do Interior do Ceará, Brasil, entre fevereiro e dezembro de 2020, mediante entrevista semiestruturada. Foram ouvidos enfermeiros, médicos, fisioterapeutas e odontólogos, em um total de 33 profissionais. Os achados foram analisados a partir da Teoria do Habitus de Pierre Bourdieu. Os resultados revelam que as relações de poder interferem na prática dos profissionais, de forma que essas relações são influenciadas por capitais como o conhecimento, as formas de se comunicar, a resolutividade, o gênero e as relações de amizade, configurando elementos que alimentam as relações de poder no campo da saúde.Palavras-chave:
sociologia da saúde; serviços de saúde; trabalho; política.Abstract:
There are many agents involved in making health care a reality. With this variety of agents and their relationships, an intertwined network of power relations is woven that interferes with how this care is produced. The study aimed to analyze how different capitals are articulated to determine power relations in the work of nurses and other health professionals. This is exploratory-descriptive research, with a qualitative approach. Collection took place in a city in the interior of Ceará, Brazil, in a Reference Hospital and in two Basic Health Units, between February and December 2020, through semi-structured interviews. Nurses, doctors, physiotherapists, and dentists were interviewed, a total of 33 professionals. The findings were analyzed based on Pierre Bourdieu's Habitus Theory. The findings reveal that power relations interfere in the practice of professionals, so that these relationships are influenced by capitals such as knowledge, ways of communicating, resolution, gender and friendship relationships, configuring elements that feed relationships of power in the health field.Keywords:
sociology, medical; health services; work; politics.Conteúdo:
No processo de produção da saúde, muitos são os agentes envolvidos para que se concretize o cuidado, de forma que a partir das interações entre eles, tece-se uma imbricada rede, pouco aparente, mas que interfere em como cuidamos.
Dentre as muitas profissões que conformam o campo da saúde, está a enfermagem que assume um papel de articulação entre os diferentes profissionais, expressando sua prática por meio da oferta do cuidado autônomo e colaborativo e em todos os ambientes, promovendo saúde, prevenindo doenças, tratando pessoas adoecidas, ou não, deficientes ou no percurso final da vida.1
As interações entre esses agentes conformam uma complexa teia de relações de poder, na qual um, irremediavelmente, influencia o percurso do outro, criando uma atmosfera invisível, mas que influencia a forma como o trabalho em saúde é realizado. É essa atmosfera que configura a dimensão política do cuidado, retratada pelo habitus na Teoria Sociológica de Pierre Bourdieu.2
Por poder, entendemos ser a capacidade transformadora decorrente das interações sociais, de forma que essa capacidade está atrelada às tentativas dos agentes de fazer com que os outros se conformem aos seus desejos.3
Quanto à relação de poder, estas são relações regradas de autonomia e dependência, apresentando sempre uma mão dupla, ou seja, por mais subordinado que seja um dos agentes nessa relação, a própria relação sempre lhe concede algum grau de poder sobre o outro.2,3
O habitus são princípios geradores das práticas, mas são também princípios de classificação, de visão, de divisão e gostos, dele partindo todas as nossas disposições para realizar toda e qualquer ação, sejam as individuais ou as coletivas, configurando as regras não ditas das práticas em sociedade.4
Pierre Bourdieu clarifica como os agentes se movimentam a partir das relações de poder. O autor considera que essa capacidade de influenciar os demais é decorrente do poder simbólico, correspondendo ao poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem, constituindo-se em um poder invisível e que alcança os mesmos efeitos que se alcançaria impingindo força física ou econômica.5
Bourdieu também utiliza o conceito de capital para explicar a movimentação das pessoas no campo. Esses capitais podem ser considerados bens que podem ser acumulados, de forma que são eles que permitem exercer mais ou menos poder, podendo ser bens materiais (dinheiro, imóveis), culturais (títulos) ou sociais (amizades, acessos a determinados grupos).2
Diante da necessidade de compreendermos como essas relações são construídas, discutir sobre relações de poder no contexto da saúde torna-se relevante por possibilitar um melhor entendimento dessa dimensão pouco aparente, mas que influencia a atuação dos profissionais.
São escassos os estudos que discutem as repercussões das relações de poder entre profissionais da saúde, uma vez que grande parte tem analisado essas relações entre profissionais e instituições6,7 ou entre profissionais e usuários.8,9
O estudo objetivou analisar como os diferentes capitais se articulam para determinar as relações de poder no trabalho do enfermeiro e de outros profissionais da saúde.
Métodos
Trata-se de um estudo de campo, exploratório-descritvo, de abordagem qualitativa, realizado nos cenários da Atenção Primária à Saúde (APS) e no Serviço de Emergência de um Hospital Terciário, ambos localizados em um município de médio porte do Estado do Ceará. O artigo integra uma pesquisa maior, intitulada “Repercussões do poder na dimensão política do cuidado da(o) enfermeira(o), no processo de trabalho e na expressão do habitus profissional”.
A escolha do serviço de emergência como cenário deveu-se ao fato de configurar o setor que comporta o maior número de profissionais, característica estruturante para a pesquisa, uma vez que com o maior número de profissionais, também são maiores as interações, assim, sendo mais provável observar e apreender os fenômenos que caracterizam as relações de poder nesse campo.
Na APS, a observação foi realizada em duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) da sede do município, escolhidas por apresentarem mais de uma equipe de saúde na mesma UBS, estando uma localizada em área muito vulnerável e a outra em área de menor vulnerabilidade. A escolha por UBS com mais de uma equipe deveu-se a mesma necessidade da escolha do primeiro cenário, pois quanto mais equipes, mais interações entre os agentes.
A opção por pesquisar em áreas de vulnerabilidades diferentes se justifica por considerar que o perfil e necessidades de cuidados dos usuários poderia interferir na forma como interagem os profissionais, podendo ser identificada uma maior gama de interações.
Para a coleta de informações, a amostra foi selecionada por conveniência e dividida em dois grupos: enfermeiros e não enfermeiros. O grupo de não enfermeiros foi construído a partir da sequência: no hospital, 1° médico, 2° fisioterapeuta, 3° médico, 4° fisioterapeuta, 5° médico e 6° fisioterapeuta; e na APS, 1° médico, 2° odontólogo, 3° médico, 4° odontólogo, 5° médico e 6° odontólogo, até ser atingindo o ponto de saturação das respostas.10 Os participantes foram identificados, a partir de listagem fornecida pelas coordenações dos serviços, e convidados por meio de visitas do pesquisador aos campos. Foram incluídos profissionais com mais de 2 anos de experiência e excluídos os que se encontravam afastados, seja por estarem em período de férias ou por atestados médicos, e os que não apresentaram disponibilidade para participar do estudo. Não ocorreram recusas, mas alguns não puderam participar por conflitos de agenda.
No contexto hospitalar, foram entrevistados 10 enfermeiros(as), 3 médicos e 3 fisioterapeutas, totalizando 16 profissionais. No contexto da APS, foram entrevistados 11 enfermeiros(as), 3 médicos e 3 cirurgiões dentistas, totalizando 17 profissionais. Ao todo, participaram 33 profissionais. Tanto no hospital, como na APS, as três categorias profissionais foram escolhidas por representarem as que, em nível de graduação, mais intensamente interagem durante o trabalho. Não foram incluídas outras categorias profissionais de nível técnico, por compreender-se que o nível da formação seria um fator que poderia configurar um viés.
Foram utilizadas entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram realizadas presencialmente ou remotas, por meio da plataforma Google Meet, devido aos protocolos sanitários decorrentes da pandemia de COVID-19, em horários fora do expediente de trabalho. As entrevistas aconteceram no domicílio dos participantes e, quando realizadas no hospital ou Unidade Básica de Saúde (UBS), ocorreram após o horário de expediente, em sala privativa. Apenas os áudios das entrevistas foram registrados, não sendo capturadas imagens dos participantes.
As entrevistas duraram entre 56 min. e 2h15 min. e foram realizadas entre 22 de fevereiro e 7 de dezembro de 2020. Tanto a coleta como a transcrição foram realizadas pelo mesmo pesquisador, no intuito de minimizar perdas das informações e potencializar a interpretação dos significados do material empírico. As entrevistas foram transcritas, categorizadas e analisadas, tendo com referencial teórico a Teoria do Habitus, de Pierre Bourdieu.2
O roteiro da entrevista envolveu perguntas que foram distribuídas em quatro blocos: (1) narrativa biográfica da trajetória profissional; (2) investigação sobre o que pensam das instituições; (3) percepção sobre seu processo de trabalho e relacionamento da equipe: dores e delícias do serviço; (4) exploração das frustrações, desejos, sonhos, expectativas de futuro, perspectivas de mudança.
As falas foram identificadas por códigos no decorrer do texto, a saber: ENF-APS, enfermeiros(as) da APS; ENF-H, enfermeiros(as) do hospital; MED-APS, médicos(as) da APS; MED-H, médicos do hospital; FIS-H, fisioterapeutas do hospital; ODO-APS, odontólogos(as) da APS.
Aos participantes que realizaram a entrevista remotamente, o TCLE foi enviado, previamente, por e-mail, e, somente após a concordância, registrada na entrevista ou por e-mail, procedeu-se com a coleta. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local, com parecer n° 3.752.721.
Resultados e discussão
No hospital, a faixa etária variou entre 29 e 47 anos, sendo 7 mulheres e 9 homens. O tempo no serviço variou entre 2 e 7 anos. Quanto ao tempo de formação, variou entre 5 e 20 anos. Todos relataram experiências em outro hospital, além do hospital que serve de cenário ao estudo. Todos têm vínculo empregatício determinado pela Lei de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Na APS, a faixa etária variou entre 28 e 59 anos, sendo 12 mulheres e 5 homens. O tempo no serviço de APS variou entre 2 e 22 anos. Quanto ao tempo de graduado, este variou entre 3 e 37 anos. Quanto ao vínculo, apenas 1 é estatutário, 2 estão vinculados ao Programa Mais Médicos e 15 estão vinculados por contratos temporários.
Os participantes revelam que percebem profissionais exercendo mais poder do que outros e expressam o que, para eles, pode contribuir para a distribuição assimétrica desse poder, apontando diferentes capitais. Embora muitos capitais sejam citados, alguns se destacaram com maior potencial de mobilização dos agentes no campo, dentre eles encontramos o conhecimento, considerado como o capital mais significativo nas relações, seja ele teórico ou prático, esse último expresso nas falas como experiência.
Um médico exerce mais poder que outro devido ao conhecimento, credibilidade, liderança, poder de comunicação (...) Conhecimento é o principal fator de poder, mas a forma como se comunica, como dá o comando, a educação, a cortesia, influenciam na forma como os outros profissionais vão colaborar (ENF-H-1).
(...) (o poder) depende da experiência de cada um, da quantidade de conhecimento de cada um. Quando você não consegue mostrar conhecimento, autoridade, você acaba perdendo essa capacidade de influenciar (...) (MED-H-1).
Aqueles que tem mais expertise, mais conhecimento, mais desenvoltura acabam se dando melhor, pois os outros reconhecem como bom profissional e isso acaba influenciando (ENF-H-9).
Eu vejo aqueles mais capacitados, mais capacitados na relação acadêmica e também na experiencia profissional. Ele tem mais poder em relação ao recém-formado ou ao que não tem qualificação acadêmica relevante, então, esse mais qualificado acadêmico ou de experiência, tem poder maior em relação aos outros (FIS-H-1).
A distribuição entre eles (de poder) é desigual. Pois tem profissional que não sabe muito, tem uns que a gente não respeita porque a gente sabe que não sabe de nada. Mas vai considerar o que tem mais conhecimento (FIS-H-2).
(...) Acho que a experiência e conhecimento que contam mais (...) (MED-H-2).
(...) Acho que conhecimento sim, experiência, conhecimento mesmo, isso é fundamental (MED-APS-1).
No meu caso, agora, que estou velha, tenho uma boa experiência, sou a mais antiga ...(dizem) ela sabe das coisas. Lá, eles estão me olhando diferente, depois da experiência, me sinto valorizada (ENF-APS-10).
O conhecimento emerge como importante capital no campo da saúde, incluindo-se aqui a experiência (conhecimento prático) que configura um tipo diferente de conhecimento, pois, além de permitir um aprofundamento do saber teórico, compreende o conhecimento das rotinas e fluxos das instituições, necessário para a execução do trabalho em saúde. Na teoria de Bourdieu, esse conhecimento pode ser considerado como competência intelectual, assim, sendo um dos estados fundamentais do capital cultural.11
Pelas falas, é possível percebermos que o conhecimento configura um capital capaz de mobilizar o campo, possibilitando o exercício do poder. O reconhecimento desse saber pelos demais membros da equipe, dota os agentes que o tem também de um capital simbólico e, por isso, gozam de maior prestígio, podendo exercer mais poder. Tal apreensão vai ao encontro do que traz a literatura, quando infere que poder e saber estão intimamente relacionados, pois a partir do saber legitimado é possível produzir poder.12,13
A comunicação eficaz também foi elencada como um capital. Os entrevistados apontaram que a forma como ocorre a interação entre eles poderia determinar o exercício ou não de poder.
A forma de falar é muito importante (ENF-H-4).
Principais Elementos de poder: coerência entre discurso e prática; saber e eloquência, saber dizer, saber comunicar, dar sentido ao que se está fazendo; própria prática, expressão do conhecimento acumulado, habilidade, experiência somada com o conhecimento (ENF-H-1).
Acho que conduta respeitosa com as pessoas: se você é bruto, as pessoas perdem o respeito por você. Pode ficar isolado por não conseguir influenciar a equipe (MED-H-1).
Percebo que têm enfermeiros que influenciam mais, que se comunicam melhor, têm mais poder, ao mesmo tempo que demonstram conhecimento, e ela ganha autoridade. Tem enfermeiros que não se comunicam, e é ruim. Eu gosto dos que se comunicam mais (MED-H-1).
Vejo também como a comunicação é importante, todos os aspectos da comunicação. Como na abordagem do enfermeiro, a valorização. Se ele consegue fazer uma escuta daquele usuário, ele já ganha a credibilidade dele (...). A comunicação comanda muita coisa. Quando você tem conhecimento, tem um reconhecimento e credibilidade, pode atrair as pessoas, mas nem sempre é tão efetivo pois tem um jeito ou outro da pessoa que pode afastar os outros membros. (...) (ENF-APS-6).
Com certeza têm enfermeiros com poder diferente. Tem enfermeiro que consegue dialogar melhor, tem enfermeiro que tem propostas de trabalho, que organiza melhor, atende melhor e acaba que ele consegue escutar melhor os técnicos, os ACS e têm aquela empatia e acaba sendo até mais ajudado ainda (ODO-APS-2).
Sobre as diversas formas de comunicação, é necessário considerar que configuram sistemas simbólicos que desempenham uma função como instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, contribuindo para que ocorram diferentes mobilizações no campo a partir do exercício de poder.5
A prática linguística comunica, inevitavelmente, além da informação declarada, uma informação sobre a maneira de comunicar, isto é, sobre o estilo expressivo a que se concede um valor social14, estando a forma de se comunicar intimamente relacionada ao capital cultural, pois o discurso permite o acúmulo de poder simbólico a partir da expressão desse capital, formado pelo conjunto de conhecimentos, habilidades e a forma de nos expressarmos em público.15
A comunicação é um tema estruturante para o trabalho em saúde, pois subsidia as relações interpessoais para o desenvolvimento do trabalho em equipe e a atuação interprofissional. Estudos têm revelado que a interação respeitosa entre profissionais da saúde é determinante para a prestação de cuidados de qualidade, evidenciando como a comunicação, elemento essencial na conformação da dimensão política do cuidado, pode interferir na produção do cuidado.16,17
Aos nos comunicarmos, nossas expressões emanam sinais, dos quais podem deduzir nosso preparo, medo, insegurança, capacidade de acertar ou errar uma intervenção, despertando no outro confiança, respeito e segurança, ou o contrário, podendo se refletir em capital simbólico e, caso necessário, em poder simbólico.
O ato de nos comunicarmos está intimamente relacionado ao encanto e ao carisma, elementos que designam, de fato, o poder de alguns para impor18, ratificando a importância do “como” em comparação ao “o que” se diz durante as interações.
Os achados revelam assimetrias de poder que podem ser disfuncionais ao serviço, pois revelam um potencial de limitar o trabalho em equipe, o que é preocupante pois o trabalho em saúde é pautado pela inter-relação entre os profissionais, de forma que o trabalho em equipe tem se revelado como promotor de melhores desempenhos.19,20
A resolutividade, a capacidade de responder às necessidades de cuidado dos usuários, também figurou como um capital, sobretudo na Atenção Primária à Saúde, contexto no qual a atuação dos profissionais pode ser considerada mais ampla.
A partir do momento que um paciente se consultou comigo e gostou, que a minha conduta fez a diferença e o paciente traz uma positividade da evolução dele, isso me contempla como profissional (ENF-APS-5).
(...)acho que o que pode ainda ficar invisível (o trabalho dos enfermeiros) é porque, na grande maioria das vezes, o final daquele procedimento dentro da unidade vai ser o médico, então ele passa pelo SAME, vai ao enfermeiro e no final vai ao médico, então na cabeça deles só quem resolve é o médico. Mas quando estão lá para resolver, muitos processos são finalizados ali (com o enfermeiro) então quando é finalizado ali, sem precisar do médico, (...) ele pensa: eu fui ao enfermeiro e ele resolveu (MED-APS-1).
(...) o enfermeiro é uma peça tão importante, porque além de incluir atendimento, cuidado com o pessoal, quando você pega um enfermeiro que não consegue resolver nada, o serviço não anda. Quando tem conhecimento e consegue fazer, a gente vê que o atendimento flui (MED-APS-2).
A resolutividade relaciona-se ao conhecimento, pois não seria possível aos profissionais serem resolutivos sem conhecerem a necessidade de cuidado do usuário e as possibilidades de resposta de seu núcleo de saber ou mesmo dos serviços.
A resolutividade pode se converter em capital simbólico, pois trouxe reconhecimento ao trabalho dos participantes, devendo ser considerada como elemento importante do processo de trabalho em saúde.
Para ser resolutivo, é necessário ter autonomia. Assim, a autonomia pode ser considerada um instrumento de trabalho que está condicionado ao conhecimento, discernimento, atitude, postura profissional, respeito e reconhecimento de sua capacidade pela equipe de saúde.21
Em particular, esse capital guarda íntima relação com o habitus profissional do enfermeiro, pois um habitus com disposições mais amplas, pode subsidiar um maior leque de respostas e práticas mais adequadas. Assim, quanto mais conhecimento tem o enfermeiro sobre a clínica das doenças e desequilíbrios do corpo, suas possibilidades de intervenção e a legislação que o rege, mais amplo seu habitus e mais resolutiva sua prática.
Outros capitais também foram apontados, como relações de amizade, idade, gênero e tempo no serviço. Os títulos acadêmicos também figuraram como capitais, mas apenas quando associados a expressão de conhecimentos e habilidades observados na prática, configurando um capital com pouca capacidade de mobilizar o campo.
Títulos acadêmicos também não interferem pois o que interessa é o conhecimento que é aplicado. Se aquele título não reflete em conhecimento, ele não tem valor (ENF-H-1).
(...) Eu percebo que eu consegui esse poder com aqueles que são mais jovens, não sei se é por inexperiência, mas acho que não, mas eu penso que é porque ele estuda mais e a gente consegue persuadir, não sei se pela forma de falar, não sei se pela idade mais próxima que a minha. Os mais velhos são mais resistentes (ENF-H-7).
A minha relação de amizade facilita o trabalho. É mais fácil para um médico entender que o paciente está grave quando eu digo, do que (quando) outros colegas (dizem). Mas, mesmo assim, eu tenho dificuldade (ENF-H-6).
Acho que existe uma questão de gênero. A gente percebe que, muitas vezes, entre médica mulher e enfermeiro homem não vejo problema, mas entre médico homem e enfermeira mulher, acho que ainda existe dificuldade (ENF-H-8).
Sobre os títulos acadêmicos, o estudo revelou pouca importância entre os participantes, se considerados isoladamente, diferentemente de outros campos, como o campo acadêmico, no qual o título, para ter valor como capital, não precisa, necessariamente, estar acompanhado de um saber aplicado na prática.
As relações de amizade foram referidas como facilitadoras das interações no campo de trabalho. Esse fenômeno envolve relações de troca, correspondendo a um meio de instaurar relações duráveis de reciprocidade, mas também de dominação e sentimentos de obrigatoriedade.2
Questões de gênero também foram observadas. As falas ratificam a visão androcêntrica da sociedade, assim continuamente legitimada pelas próprias práticas que ela determina: pelo fato de suas disposições resultarem da incorporação do preconceito desfavorável contra o feminino.22
As relações de gênero na saúde têm sido objeto de estudos, evidenciando que interferem no trabalho, estando a enfermagem, muito frequentemente, em situação de desfavorecimento nessas relações23, sendo que o fato de se constituir em uma profissão de maioria feminina24 possa ser um fator que contribua para o desenho desse cenário.
A relação entre médicos e enfermeiros, que constituem as profissões que atuam mais próximas e interagem mais efetivamente nos serviços, foi fortemente influenciada pela estrutura social decorrente dos antagonismos entre masculino e feminino.
A estrutura doméstica tradicional, fortemente alimentada por um pensamento patriarcal, na qual o masculino é dominante e o feminino é dominado, na qual o primeiro pensa e o segundo executa as várias atividades essenciais à vida, foi transportada aos espaços de produção da saúde, onde o trabalho de um é o importante e o do outro, menos importante. Então, as duas profissões reproduzem essa dinâmica, já que os médicos eram, em sua maioria, homens e as enfermeiras, mulheres.
Embora tenhamos percebido avanços nessa configuração, com inserção de mais mulheres na graduação em medicina25, e mais homens na graduação em enfermagem24, a dinâmica entre as duas profissões foi constituída sobre essa acepção e não será superada facilmente. A relação existente entre as práticas médicas e as da enfermagem traduz, por exemplo, as ligações entre gênero, classe e poder, alimentando a (re)construção cotidiana do poder médico e a dominação que exercem às práticas no campo da saúde.26
Os achados permitem reconhecer os capitais que subsidiam as relações de poder entre os profissionais no campo da saúde, conformando a dimensão política do cuidado e influenciando a atuação profissional. São esses capitais que permitem o exercício de mais ou menos poder.
Estudos têm discutido a interferência das relações de poder entre profissionais da saúde, sobretudo entre médicos e enfermeiros, e evidenciaram que essas relações influenciam fortemente a qualidade e capacidade de prestar cuidados pelos profissionais27,28, enfocando o conhecimento como principal elemento constitutivo das relações de poder nesse cenário29; porém, não expandem a análise para outros fatores que podem interferir nessas relações.
Nossos achados extrapolam essas análises, pois apontam outros capitais envolvidos diretamente na conformação das relações de poder no campo da saúde, ampliando a compreensão sobre as dinâmicas do poder e a dimensão política do cuidado em saúde.
Como referencial teórico, a maioria dos estudos encontrados se concentrou em Hannah Arendt27 e Michel Foucault6,7,12,29, diferentemente do nosso, que assentou sua análise a partir da teoria sociológica de Pierre Bourdieu, não sendo encontrados estudos que se assemelhassem quanto à abordagem teórica para discutir relações de poder entre profissionais da saúde.
Nos estudos encontrados6,7,12,27,29, embora discutissem as relações de poder, percebemos pouco aprofundamento nos elementos que interferem nessas relações e mais detalhamento sobre qual a repercussão dessas relações, muitas vezes, disfuncionais. Em nosso estudo, avançamos ao apontarmos alguns desses elementos e os efeitos dessas relações, muitas vezes representados por limitações da atuação profissional.
Apontamos como limitação o fato das entrevistas terem sido remotas, uma vez que pode limitar, em comparação à presencial, a percepção da comunicação não verbal, que para a pesquisa qualitativa é um aspecto importante e deve ser considerado.
Entendemos, ainda, que a ausência das vozes de outros atores, como agentes comunitários de saúde, técnicos de enfermagem, outras categorias profissionais e, ainda, usuários, que dividem os espaços de produção da saúde com os enfermeiros, impedem que contemplemos todas a nuances envolvidas no exercício e distribuição do poder no campo da saúde.
Considerações finais
É possível referir que o trabalho em saúde envolve relações de poder, relações essas que conformam a dimensão política do cuidado e que influenciam de forma significativa o trabalho e a prestação do cuidado pelos profissionais.
Identificamos que muitos são os capitais que influenciam nas relações de poder no campo da saúde, sendo os principais o conhecimento, as formas de se comunicar e a resolutividade. No entanto, outros capitais também participam na construção dessas relações, como o gênero e as relações de amizade.
A análise da dimensão política do cuidado dialoga intimamente com outros conceitos, como o de trabalho em equipe e trabalho interprofissional, sendo necessários mais estudos que clarifiquem os elementos constitutivos dessa dimensão do cuidado e em que medida ocorre a interface com outros conceitos do campo da saúde, para que sejam possíveis novas análises do processo de trabalho e contribuições para a sociologia da saúde.
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