0302/2025 - Disponibilidade de Medicamentos do Componente Básico incluídos em PCDT em Relações Municipais de Medicamentos Essenciais
Availability of Basic Component Medicines recommended in CPTG in Municipal Lists of Essential Medicines
Autor:
• Beatriz de Toledo Minguzzi - Minguzzi, BT - <beatrizminguzzi@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0009-0008-5262-4401
Coautor(es):
• Adriane Lopes Medeiros Simone - Simone, ALM - <adrianelopesmedeiros@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2045-1146
• Bruna Bento dos Santos - Santos, BB - <brunabentods@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6291-0857
• Daniela Oliveira de Melo - Melo, DO - <melo.daniela@unifesp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8613-7953
Resumo:
A integralidade do cuidado é uma das diretrizes da Política Nacional de Assistência Farmacêutica e embasa duas ferramentas que orientam o uso de medicamentos: os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) e as Relações de Medicamentos Essenciais. Municípios devem utilizá-las para gestão da saúde, mas o processo de elaboração de relações municipais (Remume) apresenta fragilidades. Objetivo: Descrever potenciais impactos na implementação de PCDT sob a perspectiva da indisponibilidade de medicamentos do Componente Básico da Assistência Farmacêutica (CBAF) em Remume. Métodos: Foram extraídos os medicamentos do CBAF incluídos em PCDT até junho de 2023. Foram definidos 48 municípios para busca pelas Remume e verificação dos medicamentos de interesse. Analisou-se cada PCDT conforme a falta dos medicamentos menos encontrados. Resultados: As Remume continham, em média, 60% (44-75%) dos medicamentos listados e a cobertura média de cada PCDT variou de 2% a 100%. De 62, 11 PCDT foram impactados pela baixa disponibilidade dos medicamentos. Conclusão: Identificou-se falta de cobertura de medicamentos do CBAF nas Remume, o que pode desafiar a implementação dos PCDT, ressaltando a relevância de maior integração dos entes federativos na construção de políticas públicas.Palavras-chave:
Política Nacional de Assistência Farmacêutica, Integralidade em Saúde, Diretrizes ClínicasAbstract:
The integrality of care is one of the principles of the National Pharmaceutical Assistance Policy and underpins two tools that guide the use of medicines: the Clinical Protocols and Therapeutic Guidelines (PCDT) and the Lists of Essential Medicines. Municipalities are encouraged to use them for healthcare management, but the development of municipal lists (Remume) presents fragilities. Objective: To describe potential impacts on the implementation of PCDT from the perspective of the unavailability of medicines from the Basic Component of Pharmaceutical Assistance (CBAF) in Remume. Methods: The CBAF medicines included in PCDT until June 2023 were extracted. Forty-eight municipalities were selected for Remume searching and verification of the medicines of interest. Each PCDT was analyzed according to the lack of the least found medicines. Results: The Remume contained, on average, 60% (44-75%) of the listed medicines, and the average coverage of each PCDT ranged from 2% to 100%. Of 62, 11 PCDT were impacted by the low availability of medicines. Conclusion: A lack of coverage of CBAF medicines in Remume was identified, which may challenge the implementation of PCDT, highlighting the relevance of greater integration of federal entities in the construction of public policies.Keywords:
National Policy of Pharmaceutical Assistance, Integrality in Health, Practice GuidelineConteúdo:
A Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) é uma das diretrizes da Política Nacional de Medicamentos (PNM)1,2, sendo uma ferramenta-chave para a execução da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF)1,3,4. Atualmente, sob responsabilidade da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), a Rename lista todos os medicamentos e insumos incorporados e que podem estar disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), discriminando, para cada item, seu componente de financiamento na assistência farmacêutica: Básico (CBAF), Estratégico (CESAF) e Especializado (CEAF) - seguindo a pactuação entre gestores municipais, estaduais e federal4-7.
O CBAF relaciona os medicamentos que podem ser disponibilizados na Atenção Básica à Saúde (ABS) a partir do uso de recursos do financiamento tripartite, cabendo ao gestor municipal o gerenciamento e fornecimento desses medicamentos, e a própria execução da ABS1,8,9. O CESAF engloba medicamentos que atendem a demandas endêmicas e de interesse especial do Ministério da Saúde e, por isso, seu financiamento, aquisição e repasse aos estados e municípios cabe à União10. Por fim, o CEAF organiza o financiamento de medicamentos cujo uso está definido em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) considerando grupos de financiamento, incluindo um relacionado a medicamentos recomendados em PCDT, mas que se enquadram no CBAF (Grupo 3) e devem ser gerenciados como tal1,11.
Os PCDT são documentos que estabelecem linhas de cuidado, ao nortear o diagnóstico, tratamento e monitoramento de condições clínicas diversas6,12,13. A Rename divide em anexos os medicamentos conforme o componente da assistência farmacêutica e/ou grupo ao qual pertencem4. O Anexo III, especificamente, inclui os medicamentos do CEAF e nele são referenciados os PCDT que os recomendam, entretanto não há menção aos medicamentos do Grupo 3 do CEAF4.
A partir da Rename, espera-se que os municípios elaborem suas próprias relações de medicamentos, as Relações Municipais de Medicamentos Essenciais (Remume), considerando os medicamentos do CBAF1,2,14,15. As Remume orientam profissionais da saúde em relação à prescrição, informam cidadãos sobre o acesso aos medicamentos disponíveis em seus municípios e auxiliam a gestão municipal na organização e programação de uso dos recursos financeiros15,16. Sendo assim, a elaboração e a estruturação eficiente de Remume é estabelecida como uma estratégia de valor para nortear o acesso a medicamento nos municípios, que permite a verificação da adesão a programas e protocolos nacionais na ABS17,18 - inclusive PCDT - e que pode demonstrar o impacto real dos pilares de transparência e busca pela utilização racional de recursos em saúde evidenciados na própria PNAF1,3.
Apesar do reconhecimento da importância de que as Remume sejam desenvolvidas por uma comissão de diferentes especialistas, de forma a atender as demandas epidemiológicas e garantir sua implementação do ponto de vista administrativo e clínico16, não há qualquer normatização e/ou monitoramento sobre esse processo atualmente1. Em uma das avaliações da Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM), foram observados importantes gargalos no processo de seleção de medicamentos na ABS como, justamente, a falta de Comissões de Farmácia e Terapêutica (CFT), o não atendimento completo das demandas em saúde e a limitada utilização de ferramentas orientativas da AF por profissionais de saúde19.
A temática da elaboração, conteúdo e até adoção das Remume já foi abordada em avaliações de âmbito nacional e também local16,18,19,20. Contudo, não foram identificados trabalhos cujo enfoque fosse a compreensão de como a Remume estaria ou não atendendo ao preconizado em PCDT e de como a indisponibilidade de medicamentos do CBAF poderia impactar negativamente na sua implementação. Dessa forma, este estudo teve como objetivo verificar se os medicamentos do CBAF preconizados nas linhas de cuidado estabelecidas em PCDT estavam contemplados nas Remume de uma amostra pré-estabelecida de municípios brasileiros. As Remume foram analisadas sob dois aspectos: acesso ao documento e análise de seu conteúdo.
MATERIAL E MÉTODOS
Trata-se de um estudo observacional e descritivo que contemplou três principais etapas: a discriminação dos medicamentos pertencentes ao CBAF incluídos em PCDT, a obtenção das Remume de uma amostra selecionada de municípios - disponibilizadas virtualmente e/ou mediante solicitação - e a comparação entre o conteúdo das Remume e a lista de medicamentos obtida na primeira etapa, ou seja, a verificação da presença dos medicamentos do CBAF listados nos PCDT nas Remume amostradas, conforme detalhamento a seguir.
Primeiramente foram extraídos os medicamentos pertencentes ao CBAF, conforme listado no Anexo I da Rename de 20224 (vigente à época do desenvolvimento deste trabalho), recomendados nos PCDT vigentes em junho de 2023, discriminados por princípio ativo e apresentação farmacêutica (especialidade farmacêutica). Os PCDT foram obtidos pelo website de PCDT do Governo Federal13 e as especialidades farmacêuticas da seção “Fármacos” de cada PCDT foram extraídas por dois pesquisadores e de forma independente, com possíveis discrepâncias sendo resolvidas por consenso ou por um terceiro pesquisador.
A seção “Fármacos” lista todos os medicamentos recomendados para o tratamento da condição clínica em questão ou sintomas associados, considerando, inclusive, alternativas terapêuticas ou mesmo apresentações que não são descritas nas recomendações da seção “Tratamento” do mesmo documento. Sendo assim, os PCDT com especialidades farmacêuticas indisponíveis ou pouco encontradas nas Remume foram revisitados para compreensão do real possível impacto da falta de cada uma delas no tratamento da correspondente condição clínica.
Com o objetivo de definir uma amostra de municípios representativa para análise das Remume nacionalmente, foi realizado cálculo amostral em que foi definida a necessidade de coleta de dados para 823 municípios, considerando uma proporção de 10% de perdas. Posteriormente, foi realizada a amostragem, a partir de análise epidemiológica realizada com a ferramenta de acesso aberto OpenEpi. O cálculo se baseou em um intervalo de confiança de 95%, dividindo tamanhos de amostra de municípios em 4 grupos conforme o número de habitantes e a respectiva proporção desse tipo de município no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Foram incluídas ainda as capitais das unidades federativas e do Distrito Federal, totalizando 824 localidades. Os municípios brasileiros foram, então, listados e separados em grupos para seleção, conforme a Tabela 1.
Tab. 1
Este trabalho analisou especificamente os resultados dos municípios incluídos com mais de 500 mil habitantes (n=48) sob a perspectiva de impacto nos PCDT cujas especialidades farmacêuticas não foram encontradas ou foram encontradas em baixa frequência (em menos de 3 Remume).
Em sequência, foi realizada a busca pelas 48 Remume em websites oficiais. As relações não encontradas no endereço virtual foram solicitadas via Lei de Acesso à Informação - se disponível no formulário da plataforma Federal FALA.BR - e/ou via pedido direto às Secretarias, Ouvidorias ou Prefeituras por e-mail, em até 3 tentativas de contato, por dois pesquisadores, entre outubro de 2023 e julho de 2024. Informações a respeito da elegibilidade dos documentos obtidos para análise estão resumidas na Figura Suplementar 1.
Por fim, as especialidades farmacêuticas obtidas dos PCDT foram procuradas em cada uma das Remume coletadas. Os resultados foram analisados conforme os seguintes indicadores:
1. Disponibilidade de cada especialidade farmacêutica entre as Remume em valores absolutos (total de Remume que as contêm) e relativos (total de Remume que as contêm entre o total de Remume obtidas).
2. Cobertura média das especialidades farmacêuticas nas Remume, em valor absoluto e relativo. Cálculo da média da quantidade de especialidades farmacêuticas disponíveis em cada Remume e seu correspondente valor relativo ao total de 104 especialidades farmacêuticas.
3. Cobertura média dos PCDT, em porcentagem, a partir da média da disponibilidade da(s) especialidade(s) farmacêutica(s) incluída(s) em PCDT entre as Remume. Cálculo: Média da quantidade de especialidades farmacêuticas disponíveis em cada Remume em relação ao total de especialidades farmacêuticas incluídas em cada PCDT.
RESULTADOS
Dos 103 PCDT vigentes até junho de 2023, 62 incluíam medicamentos do CBAF e, destes, foram extraídas 104 especialidades farmacêuticas.
Para os 48 municípios elencados, foram obtidas 45 (94%) Remume e suas características estão descritas na Tabela 2. Majoritariamente, as Remume estavam disponíveis nos websites oficiais das Secretarias Municipais de Saúde (93%) e mais da metade foi atualizada entre 2020 e 2024 (62%). Nenhuma Remume cobriu integralmente a lista de 104 especialidades farmacêuticas, sendo 60% a disponibilidade média de especialidades farmacêuticas, que variou de 44% (Fortaleza-CE) a 75% (Natal-RN).
Tab. 2
A Figura 1 resume as especialidades farmacêuticas mais (n = 33) e menos (n = 12) frequentemente encontradas nas Remume analisadas e, conforme ilustrado, apenas 6 especialidades farmacêuticas foram encontradas em todas as Remume.
Fig. 1
Considerando as 33 especialidades farmacêuticas mais frequentes nas Remume (em pelo menos 90% delas), observam-se medicamentos anti-hipertensivos/ação cardiovascular (ácido acetilsalicílico, espironolactona, besilato de anlodipino, furosemida, hidroclorotiazida, losartana e captopril), antidiabéticos (cloridrato de metformina e glibenclamida), anticonvulsivantes (carbamazepina, fenitoína, fenobarbital e ácido valproico), analgésicos (paracetamol e dipirona) e anti-inflamatórios corticoides (prednisona, acetato de dexametasona e fosfato sódico de prednisolona).
Por outro lado, também na Figura 1 é possível identificar que 12 especialidades farmacêuticas não foram encontradas (3) ou foram pouco frequentes (9 especialidades, em menos de 3 Remume). Essas 12 especialidades farmacêuticas foram recomendadas em 20 PCDT (Tabela Suplementar 1) e para 11 deles não havia descrição de substituintes às especialidades farmacêuticas de interesse ou alternativas pertencentes ao CBAF, configurando, assim, potenciais lacunas na assistência à saúde: Puberdade Precoce, Ictioses Hereditárias, Psoríase, Doença de Paget, Hidradenite Supurativa, Doença Falciforme, Raquitismo e Osteomalácia, Artrite Psoríaca, Artrite Reativa, Artrite Idiopática Juvenil e Hipotiroidismo Congênito.
No Gráfico 1 são demonstrados os valores resultantes da média da disponibilidade das especialidades farmacêuticas por PCDT entre as Remume. Apenas 8 PCDT tiveram todas as suas especialidades farmacêuticas incluídas em todas as Remume analisadas e houve uma variação da disponibilidade média de especialidades farmacêuticas de cada PCDT de 2% a 100% em toda a amostra.
Gráfico 1
DISCUSSÃO
Nenhuma Remume analisada incluía todas as 104 especialidades farmacêuticas do CBAF recomendadas em PCDT. A maior cobertura foi de 75% e a média foi de 60% em uma amostra de municípios com mais de 500 mil habitantes, ou seja, que provavelmente têm melhores condições estruturais para a gestão da AF15,21. Dessa forma, esse resultado ainda pode estar superestimado ao considerarmos a realidade de todos os municípios brasileiros.
Sabe-se que, historicamente, os PCDT têm um foco na racionalização do uso de medicamentos de alto custo, haja vista que foram criados para regulamentar inicialmente a dispensação excepcional de medicamentos, ainda que, atualmente, abranjam todos os medicamentos incluídos do CEAF22. Entretanto, considerando a integralidade do cuidado, cada nível de atenção à saúde passa a ter igual importância para que os resultados almejados em relação ao sucesso terapêutico e a racionalidade do uso de recursos financeiros do SUS sejam atingidos22,23. Sendo assim, esperava-se maior concordância entre as especialidades farmacêuticas do CBAF recomendadas em PCDT e as encontradas nas Remume.
Ressalta-se, para fins de consideração em relação aos resultados deste estudo, que em levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) a respeito da aquisição de medicamentos traçadores da ABS por municípios brasileiros, foi evidenciado que, nos casos de ausência na aquisição dos medicamentos, esta estava, majoritariamente, relacionada à não inclusão dos mesmos nas Remume correspondentes24.
Um exemplo que demonstra essa disparidade e como ela pode afetar o acesso aos medicamentos é o PCDT de Hidradenite Supurativa. No caso desse PCDT, pacientes em estágio Hurley I teriam maior probabilidade de acesso ao que seria, idealmente, sua terceira linha terapêutica25 de acordo com os achados deste trabalho. O PCDT recomenda o uso de fosfato de clindamicina (gel a 1%) como terapia tópica inicial para alguns subtipos da doença25, encontrado em apenas 1 Remume. Em caso de falha ou para os estágios Hurley II e III (IHS4 moderada a grave), o PCDT preconiza o uso de terapia sistêmica a base de cloridrato de tetraciclina (cápsula de 500 mg)25, encontrada em apenas 2 Remume. Por fim, como terceira linha terapêutica ou em casos mais graves da doença, a recomendação se trata do uso de cloridrato de clindamicina (cápsula de 300 mg), em combinação com rifampicina (cápsula de 300 mg)25. Nota-se que apesar de o cloridrato de clindamicina (cápsula de 300 mg) ser adquirido e distribuído pelo próprio Ministério da Saúde26, esse foi encontrado em 61% das Remume. Isto pode evidenciar como a Remume pode estar desalinhada ao preconizado em PCDT para além de questões econômicas, ou ainda como há necessidade de um olhar mais refinado para a questão da pactuação de responsabilidades entre os níveis federativos na Comissão Intergestores Tripartite (CIT)1,4 e/ou de disseminação da informação sobre essa pactuação na rede, uma vez que a procura por determinados medicamentos nos municípios pode ser baixa.
Medicamentos previamente incluídos no CBAF não costumam ser repactuados quanto ao financiamento ao serem recomendados nos PCDT. Considerando os resultados do estudo, foram identificadas situações que mereceriam discussões e até repactuação para garantir o acesso à população a medicamentos previstos em linhas de cuidado de condições raras, pediátricas ou que envolvam o uso de apresentações pouco demandadas na ABS. Dos 62 PCDT analisados, 11 podem ter sido impactados pela falta ou baixa disponibilidade das especialidades farmacêuticas nas Remume, sobretudo aqueles que incluem a população pediátrica (Doença Falciforme, Raquitismo e Osteomalacia, Ictioses Hereditárias, Hipotireoidismo Congênito, Artrite Idiopática Juvenil, Puberdade Precoce e o de Hidradenite Supurativa)25,27-32 e/ou baixa incidência das condições clínicas (Hipotireoidismo Congênito, Artrite Idiopática Juvenil, Puberdade Precoce e o de Hidradenite Supurativa)25,30,31,32. Ambas características estão, inclusive, atreladas à própria baixa oferta de medicamentos no mercado farmacêutico33,34. Da mesma maneira, um exemplo que merece atenção é o do PCDT de Ictioses Hereditárias, que recomenda a pomada de ácido salicílico (pomada a 50 mg/g, 5%) citando que “as ictioses vulgar e ligada ao cromossomo X, formas mais frequentes das ictioses hereditárias, apresentam manifestações clínicas consideradas leves e podem ser controladas com cuidados tópicos”, ou seja, hidratação da pele e o uso desse medicamento29. Esta condição clínica apresenta taxas de incidência que variam conforme a forma da doença, podendo chegar a 1 em cada 100 nascimentos29. Fica clara, portanto, a importância do tratamento tópico à base de ácido salicílico (pomada a 50 mg/g, 5%) que foi, contudo, encontrado em somente 1 Remume e não é frequentemente utilizado na ABS35,36.
Essa análise permitiu identificar aspectos que demonstram descompasso entre documentos federais, como a Rename e os PCDT, e municipais (Remume). Da mesma forma que a falta de medicamentos do CBAF recomendados em PCDT revelam que a política pública instituída pelo governo federal e recomendada pela Conitec pode não estar sendo implementada em âmbito municipal. Das três especialidades farmacêuticas não encontradas em nenhuma Remume, duas (hidroclorotiazida (comprimido de 12,5 mg) e omeprazol (cápsula de 10 mg)) não possuíam registro sanitário válido na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)37, reforçando a necessidade de que a Rename e os PCDT fossem atualizados continuamente e de forma mais dinâmica. De fato, das 104 especialidades farmacêuticas extraídas para este trabalho, 14 não tinham registro válido na Anvisa37. Entende-se, contudo, que a atualização recorrente dos PCDT pode ser desafiadora, considerando que precisam ser publicados como portarias13. Há ainda outras particularidades, como o fato de que, por exemplo, o próprio PCDT de Esclerose Sistêmica38, que incluia a apresentação de 10 mg de omeprazol em cápsula na seção “Fármacos”, não estava recomendando seu uso no documento, fazendo recomendações apenas acerca da apresentação de 20 mg - encontrada em 98% das Remume.
Cabe ressaltar a complexidade dos processos de construção da Rename e dos PCDT, o que pode levar a situações como o caso dos medicamentos acetazolamida (comprimido de 250 mg) e cabergolina (comprimido de 0,5 mg), que na Rename de 2022 faziam parte tanto do CBAF quanto do Grupo 2 do CEAF (fornecimento para o tratamento de Glaucoma e de Acromegalia e Hiperprolactinemia, respectivamente, sob a responsabilidade da União)4, estando listadas em apenas 22% e 40% das Remume, respectivamente. Na Rename de 2024, a acetazolamida permanece em ambos os componentes, enquanto a cabergolina foi mantida apenas no CEAF26. Isso pode contribuir para o desalinhamento em relação à padronização desses medicamentos em âmbito municipal, novamente por conta da falta de clareza nos instrumentos federais.
Os resultados relacionados às especialidades farmacêuticas mais frequentemente disponíveis nas Remume analisadas também trazem percepções interessantes, uma vez que, dentre as 33 especialidades farmacêuticas encontradas em mais de 90% das Remume, identificam-se 11 medicamentos traçadores da ABS24 e, especificamente, o ácido acetilsalicílico, o omeprazol, o paracetamol e a furosemida alinham-se a relatórios que os apontam como alguns dos medicamentos mais adquiridos e utilizados no SUS35,36.
Considerando a amostra de municípios analisada, chama a atenção que 6 Remume não foram encontradas em websites oficiais, e 3 desses municípios não disponibilizaram suas Remume mesmo após solicitação via Lei de Acesso à Informação. A estruturação e publicização de um documento como a Remume é essencial não só para a gestão da AF no âmbito municipal, afetando os processos técnicos-gerenciais para oferta de medicamentos nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), como também para permitir que os pacientes, profissionais da saúde e outros atores, como o Poder Judiciário, possam ter acesso à informação sobre a disponibilidade ou não dos medicamentos na rede pública municipal6,15,39,40. A iniciativa digital do Med-SUS, reformulada em 2024, prevê que os entes federativos alimentem o aplicativo com informações em tempo real sobre os medicamentos padronizados e em estoque disponíveis nas farmácias das UBS, nas Farmácias do CEAF e nas farmácias credenciadas ao Programa Farmácia Popular41. Espera-se que em cumprimento a atualização deste repositório virtual, as Remume sejam, num futuro próximo, de fácil acesso.
Conforme os achados desse trabalho, observa-se que os instrumentos da AF, na prática, têm oportunidades de se alinharem às expectativas da PNAF. A falta de clareza nas ferramentas federais e a discordância identificada com Remume contribuem para o cenário de gastos exorbitantes com demandas judiciais, como é o caso do relatório emitido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que demonstrou em pesquisa com quase dois mil municípios a capilarização e intensificação da judicialização pelo país, o crescente número de casos de fornecimento de medicamentos não incorporados e seu significativo impacto orçamentário aos municípios42. Ademais, ressalta-se que a aquisição não programada de medicamentos leva a casos de utilização de recursos inicialmente destinados a outros processos de execução da própria PNAF43. Por fim, a não inclusão de medicamentos em Remume tem consequências para todo o planejamento logístico da AF, podendo levar ao desabastecimento e a compras pontuais, geralmente de custo elevado44.
Entre as limitações do estudo, podemos citar que a análise evidencia a disponibilidade de especialidades farmacêuticas de interesse em uma amostra pré-definida, portanto suas conclusões não podem ser extrapoladas para todos os municípios brasileiros. Entretanto, analisando os municípios com maior número de habitantes, é possível inferir que as fragilidades identificadas possam ser ainda mais graves. Nota-se ainda que a inclusão das especialidades farmacêuticas nas Remume não garante o acesso aos medicamentos, sendo essa outra limitação do estudo, ainda que sua presença na Remume seja um pressuposto de programação de aquisições e da prescrição, ou seja, tem relação direta e intenção de delimitar quais medicamentos estarão disponíveis no município e que poderão ser prescritos na rede pública municipal de saúde.
CONCLUSÃO
Há espaço para melhorias na execução da PNAF, sobretudo em questões que envolvem a atuação conjunta dos entes federativos, como é o caso da implementação do que é recomendado nos PCDT. Os resultados mostram que mesmo em municípios maiores têm havido lacunas na disponibilidade de medicamentos recomendados em PCDT, o que pode dificultar que a sequência terapêutica prevista no PCDT seja cumprida. Certamente, há necessidade de maior compatibilização entre as políticas federais (PCDT e Rename) e municipais (Remume).
Colaboradores
BT Minguzzi foi responsável pelo desenvolvimento do artigo, coleta de dados, análise e discussão dos resultados e redação do artigo. ALM Simone foi responsável pela discussão dos resultados, redação e revisão do artigo. BB dos Santos foi responsável pela discussão dos resultados, redação e revisão do artigo. DO de Melo orientadora e idealizadora do projeto, foi responsável pela definição metodológica, discussão dos resultados, redação e revisão crítica do artigo.
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Apêndice Suplementar
Sumário
Figura Suplementar 1. 2
Tabela Suplementar 1. 3
Tabela Suplementar 2. 7










