0393/2024 - É possível diminuir cesariana em mulheres hipertensas sem aumentar a ocorrência de desfechos negativos?
É possível diminuir cesariana em mulheres hipertensas sem aumentar a ocorrência de desfechos negativos?
Autor:
• Wellington Cunha Lugão - Lugão, W.C - <cunha.lugao@gmail.com>Coautor(es):
• Vitor Barreto Paravidino - Paravidino, V.B - <vparavidino@gmail.com>• Maria do Carmo Leal - Leal, Maria do Carmo - <ducaleal@gmail.com>
• Rosa Domingues - Domingues, R. - <rosamsmd@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5722-8127
• Emanuele Marques - Marques, E. - <emanuelesm.ims@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8633-7290
• Eliseu Junior - Junior, E. - <eliseujunior@gmail.com>
ORCID: Junior, Eliseu
• Diana Barbosa Cunha - Cunha D.B - <dianabcunha@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0900-5628
• Ana Paula Esteves Pereira - Pereira, A.P.E - <anapep@gmail.com>
• Tatiana Leite - Leite, T. - <henriques.tatiana@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2861-4480
Resumo:
Introdução: O “projeto parto adequado” (PPA) é uma iniciativa da Agência Nacional de Saúde Suplementar para diminuir a ocorrência de cesarianas em hospitais privados no Brasil. No entanto, ainda não é sabido se o projeto é efetivo em diminuir cesarianas em mulheres hipertensas, objetivo desta pesquisa. Método: Trata-se de um estudo transversal com mulheres hipertensas participantes da pesquisa “Nascer Saudável - 2017”. Participaram desta análise 382 mulheres. A exposição foi a participação no PPA e os desfechos foram entrar em trabalho de parto, via de nascimento, morbidade materna grave e near miss neonatal. Resultado: O PPA aumentou as chances de mulheres hipertensas entrarem em trabalho de parto (OR=4,7; IC95% 2,7 – 8,0) e terem parto vaginal (OR=8,6; IC95% 3,7 – 20,0). Além disso, os resultados demostram que participar do PPA não aumentou a chance de morbidade materna grave (OR=0,81; IC95% 0,4 – 1,6) e near miss neonatal, avaliado pelo critério da Organização Mundial de Saúde (OR=1,5; IC95% 0,7 – 3.1) e pelo critério da pesquisa “Nascer no Brasil” (OR=0,5 IC95% 0,3 – 7,2). Conclusão: Este estudo evidenciou resultados positivos do Projeto Parto Adequado na promoção da fisiologia do parto, concluindo que é possível reduzir cesarianas em mulheres hipertensas, sem aumentar ocorrência de desfechos maternos e neonatais negativos.Palavras-chave:
Hipertensão, Gravidez, Saúde suplementar, Qualidade da Assistência à saúde, Cesárea.Abstract:
Introduction: The "Adequate Childbirth Project" (PPA) is an initiative by the National Health Agency aimed at reducing the occurrence of cesarean sections in private hospitals in Brazil. However, it is not yet known whether the project is effective in reducing cesarean sections among hypertensive women, which is the objective of this research. Method: This is a cross-sectional study involving hypertensive women who participated in the “Healthy Birth study - 2017”. A total of 382 women were included in this analysis. The exposure was participation in the PPA, and the outcomes were the onset of labor, mode of delivery, severe maternal morbidity, and neonatal near miss. Results: The PPA increased the chances of hypertensive women going into labor (OR=4.7; 95%CI 2.7 – 8.0) and having a vaginal delivery (OR=8.6; 95%CI 3.7 – 20.0). Furthermore, the results show that participation in the PPA did not increase the likelihood of severe maternal morbidity (OR=0.81; 95%CI 0.4 – 1.6) or neonatal near miss, assessed by the World Health Organization criteria (OR=1.5; 95%CI 0.7 – 3.1) and by the "Birth in Brazil" research criteria (OR=0.5 95%CI 0.3 – 7.2). Conclusion: This study demonstrated positive outcomes of the Adequate Childbirth Project in promoting labor physiology, concluding that it is possible to reduce cesarean sections among hypertensive women without increasing the occurrence of adverse maternal and neonatal outcomes.Keywords:
Hypertension, Pregnancy, Supplemental Health, Quality of Health Care, Cesarean Section.Conteúdo:
A hipertensão durante a gravidez é a principal causa de mortalidade materna no Brasil e está associada a diversas morbidades, tanto em mulheres quanto em seus recém-nascidos1. Por essa razão, a cesariana é frequentemente indicada nesses casos, resultando em uma taxa de cesarianas mais elevada entre mulheres hipertensas em comparação com gestantes de baixo risco2. Estudos indicam que mulheres hipertensas têm até três vezes mais chances de ser submetida a uma cesariana em comparação com mulheres normotensas3.
No entanto, pesquisas recentes sugerem que a cesariana pode representar um fator de risco adicional para mulheres hipertensas, estando associada a um aumento da morbidade materna, tanto em hipertensas de baixo risco quanto em casos graves4,5. Nesse contexto, a recomendação atual é considerar a indução do parto e o parto vaginal como uma abordagem segura para interromper a gravidez em mulheres hipertensas, reduzindo os riscos para a mulher e preservando seu futuro reprodutivo4,6, sem comprometer os desfechos neonatais4.
Essa recomendação frequentemente não é seguida no Brasil5, especialmente no setor privado de saúde, onde a cesariana é a via de nascimento predominante, independentemente da presença de hipertensão ou outras comorbidades. No país, o setor público responde por 80% dos partos, com uma prevalência de 43% de cesarianas. Em contraste, no setor privado, 88% dos partos são realizados por cesariana, representando 50% de todas as cirurgias desse tipo no Brasil7
Com o objetivo de reduzir as cesarianas sem indicação clínica no setor privado, o Ministério Público Federal moveu, em 2014, uma ação civil pública contra a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em resposta, a ANS, em parceria com o Ministério da Saúde, o Hospital Israelita Albert Einstein e o Institute for Healthcare Improvement (IHI), desenvolveu o Projeto Parto Adequado (PPA). O principal objetivo do PPA foi identificar modelos de cuidado inovadores e viáveis para o trabalho de parto e o parto, que valorizem o parto vaginal e reduzam a frequência de cesarianas excessivas no sistema de saúde suplementar8.
O PPA foi implementado em três fases. A Fase 1, desenvolvida entre 2015 e 2016, teve como objetivo testar as intervenções propostas em 35 hospitais públicos e privados participantes, envolvendo 19 operadoras de planos de saúde. A Fase 2 foi caracterizada pela ampliação do projeto para uma variedade maior de prestadores e operadoras de saúde. Finalmente, a Fase 3, lançada em outubro de 2019, visou disseminar estratégias eficazes em larga escala, com a possibilidade de incluir todo o conjunto de maternidades e operadoras no Brasil.
Em 2017, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz realizaram um estudo avaliativo externo chamado "Nascer Saudável" para avaliar a implementação e os efeitos do PPA9. Desde sua implantação, o PPA tem se mostrado efetivo em seus objetivos mostrando que sua implantação reduziu o número de cesarianas em 37% entre as mulheres participantes do estudo10. Contudo, ainda não está claro se as mulheres hipertensas também se beneficiaram dessa intervenção.
Diante disso, este estudo tem como objetivo avaliar se a participação no Projeto Parto Adequado aumentou as chances de mulheres hipertensas entrarem em trabalho de parto e terem um parto vaginal, sem aumentar o risco de morbidade materna e near miss neonatal.
MÉTODOS
Desenho de estudo
O estudo “Nascer Saudável” é um estudo avaliativo de base hospitalar, que utilizou uma abordagem de métodos mistos, para avaliar os efeitos do PPA considerando o seu grau de implantação, bem como a sua sustentabilidade após um ano em curso9.
O componente quantitativo foi desenvolvido por meio de um estudo seccional, com coleta de dados em duas etapas: a primeira de março de 2017 a agosto de 2017, seis a oito meses após o término da primeira fase do PPA; e a segunda de maio de 2018 a agosto de 2018.
Uma breve descrição do PPA
O PPA visou alcançar seus objetivos propondo intervenções em quatro componentes majoritários: 1) Governança: formar uma coligação entre lideranças no setor da saúde, alinhando qualidade e segurança nos cuidados de parto e nascimento; 2) Participação das mulheres e das famílias: capacitar as mulheres e as famílias para que participem ativamente em todo o processo de gravidez, parto e cuidados pós-parto; 3) Reorganização da assistência: reorganizar o modelo de assistência ao parto para favorecer a evolução fisiológica do trabalho de parto e garantir que a cesariana seja baseada em critérios clínicos; 4) Monitorização: estruturação de sistemas de informação que permitam a aprendizagem ao longo do tempo9.
Assim, um conjunto de intervenções foram propostas considerando esses quatro pilares. Em relação a governança, foi incentivada que a equipe de saúde realizasse reuniões para trocas de informações (promover a comunicação, compartilhamento de experiências, ensinamentos e integração), definição de objetivos, estratégias e investimentos para alcançá-los, assim como, treinamento e bonificação da equipe para incentivar o cumprimento das metas estabelecidas. Em relação à participação das mulheres, os hospitais foram incentivados a fazer campanhas de promoção ao parto vaginal, incentivo ao plano de parto e a tomada de decisões em conjunto com a equipe de saúde. Além disso, o hospital também promovia grupos de gestantes onde informações e dúvidas sobre o processo reprodutivo poderiam ser esclarecidas. Em relação a reorganização da assistência, foi incentivado o trabalho colaborativo entre a equipe médica e de enfermagem, estabelecimento de protocolos de atendimentos baseados em evidências científicas, e a promoção de um ambiente acolhedor que favorecesse o parto vaginal. Por fim, na monitorização, foi incentivado que os hospitais monitorassem os desfechos perinatais e a satisfação com o atendimento recebido pela mulher e que avaliassem as intervenções realizadas, ajustando, se necessário.
Cada um dos 12 hospitais participantes da fase 1 do PPA definiu a sua população-alvo: em dois hospitais, a população-alvo do PPA foi composta por todas as mulheres primíparas; em outros dois, por mulheres nos grupos de Robson 1 a 411; e em oito hospitais, por mulheres admitidas pela equipe de plantão do hospital. Mulheres no grupo "Exposto ao modelo de cuidado PPA" foram submetidos às atividades do projeto já mencionadas. As mulheres no "Modelo de cuidado usual" foram atendidas de acordo com a prática atual em hospitais privados brasileiros, caracterizada por um médico sendo responsável pelo cuidado pré-natal e pelo parto; baixa participação de enfermeiras/obstetras; alta proporção de cesariana antes do trabalho de parto; e altos níveis de intervenção no cuidado do trabalho de parto e parto.
População de estudo e critérios de elegibilidade
Foram consideradas elegíveis para esta análise todas as mulheres hipertensas, com gestação a termo, participantes da primeira onda da pesquisa “Nascer Saudável”, realizada em 2017, nos oito hospitais onde a população alvo do PPA era composta por mulheres admitidas pela equipe de plantão.
Para identificação das gestantes hipertensas, foram classificadas como tendo síndrome hipertensiva todas as mulheres que apresentassem pelo menos um dos seguintes diagnósticos: hipertensão crônica, pré-eclampsia/ hipertensão gestacional, eclampsia e síndrome HELLP. Como fonte de dados foram utilizados os registros de antecedentes clínicos, dados do pré-natal, histórico da gestação atual, diagnóstico da internação, indicação de cesariana e informações pós-parto disponíveis tanto no prontuário hospitalar como no cartão da gestante.
A inclusão apenas dos hospitais onde a população alvo era composta de mulheres admitidas pela equipe de plantão visou homogeneizar a distribuição de mulheres segundo grupos de Robson entre os grupos a serem comparados, já que em hospitais onde o critério era ser do grupo 1 a 4 de Robson, todo o grupo comparação seria composto de mulheres pertencentes aos grupos 5 a 10, onde a frequência esperada de cesarianas é maior.
A classificação de Robson é recomendada pela OMS para a avaliação e monitoramento das cesarianas11. Nessa classificação, as mulheres são classificadas em 10 grupos mutuamente exclusivos baseados na paridade (primípara, multípara), tipo de gestação (única ou múltipla), apresentação do bebê (cefálica, pélvica, transversa), presença de cicatriz uterina anterior, idade gestacional (prematuro ou termo), e tipo de trabalho de parto (espontâneo, induzido, sem trabalho de parto). Os grupos 1 a 4, compostos por primíparas e multíparas com gestação única, a termo, com feto em posição cefálica e sem cicatriz uterina prévia, são aqueles com maior probabilidade de parto vaginal. Grupos 6 a 9 são compostos por mulheres com gestações múltiplas ou com apresentações pélvicas e transversas, enquanto o grupo 10 é composto por gestações prematuras, sendo grupos com maior probabilidade de cesarianas. Já o grupo 5 é composto por mulheres com cicatriz uterina anterior, sendo um grupo relevante no Brasil, devido a elevada proporção de mulheres com cesariana anterior. Essas exclusões foram realizadas, pois são condições que diminuem a probabilidade de parto vaginal.
Mulheres com gravidez gemelar, e/ou com diagnóstico de infecção pelo HIV, e/ou com diagnóstico de placenta prévia e/ou descolamento prematuro de placenta, e/ou pertencentes aos grupos de Robson de 6 a 9 foram excluídas desta análise, devido à elevada probabilidade de cesariana nessas condições. Gestações prematuras também foram excluídas devida à maior probabilidade de cesariana e de desfecho neonatal negativo.
Modelo teórico-operacional
O Gráfico Acíclico Direcionado (GAD) elaborado representa a associação entre a participação no PPA e os desfechos analisados: trabalho de parto, tipo de parto, morbidade materna e near miss neonatal.
Figura 1
Variável exposição
Foram consideradas como expostas ao PPA, todas as mulheres que pertenciam à população-alvo do PPA em cada um dos oito hospitais, ou seja, terem sido admitidas pela equipe de plantão. Todas as mulheres que não foram admitidas pela equipe de plantão foram classificadas como tendo recebido o cuidado usual.
Definição do desfecho
As análises foram realizadas considerando quatro desfechos, separadamente: 1) trabalho de parto, 2) via de nascimento, 3) morbidade materna grave após o parto e 4) near miss neonatal.
O "trabalho de parto" é uma variável dicotômica e foi dividida em duas categorias: entrou em trabalho de parto de forma espontânea ou induzida e não entrou em trabalho de parto. A “via de nascimento” foi classificada em duas categorias: partos vaginais, incluindo aqueles com o uso de fórceps ou extrator a vácuo, e cesarianas. Ambas informações foram obtidas do prontuário da mulher.
A definição de “morbidade materna grave após o parto” foi realizada baseada no conceito proposto pela OMS para morbidade materna grave, incluindo condições potencialmente ameaçadoras à vida e near miss materno12. Foi considerado caso mulheres que apresentaram pelo menos uma das condições a seguir iniciadas após o parto: hemorragia, diagnóstico de acretismo placentário, rotura uterina, transfusão sanguínea, endometrite, sepse ou infecção sistêmica grave, retorno a sala de cirurgia, laparotomia, hipertensão grave, pré-eclampsia grave e eclampsia, síndrome de HELLP, internação ou transferência para UTI, convulsões, Saturação de O2< 90% por mais de 60 minutos, trombocitopenia aguda (plaquetas < 50.000), histerectomia pós infecção ou hemorragia, intubação e por fim, ventilação mecânica ? 60 minutos não relacionada à anestesia. Para as análises, a morbidade materna foi classificada em duas categorias (sim/não).
O near miss neonatal foi considerado de acordo com dois critérios diferentes. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) os casos foram caracterizados quando o recém-nascido apresentava pelo menos um dos seguintes itens: peso ao nascimento menor que 1750g, idade gestacional menor que trinta e três semanas, APGAR no quinto minuto menor que sete, uso de antibióticos parenterais por até sete dias antes dos 28 dias de idade; uso de dispositivo de pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP); qualquer intubação com duração de até sete dias antes dos 28 dias de idade; fototerapia nas primeiras 24 horas de vida; ressuscitação cardiopulmonar; uso de drogas vasoativas, anticonvulsivantes, surfactantes ou produtos derivados do sangue ou uso de esteroides para tratar hipoglicemia refratária; e qualquer procedimento cirúrgico13. O segundo critério utilizado foi desenvolvido e validado pela pesquisa “Nascer no Brasil”, que classificou como caso de near miss neonatal a presença de pelo menos um dos seguintes itens: peso ao nascer menor que 1.500g, APGAR menor que sete no quinto minuto de vida, ventilação mecânica, idade gestacional menor que 32 semanas e presença de malformação congênita14.
Variáveis de confusão
A idade da mulher foi coletada em entrevista no período pós-parto e categorizada em três níveis: até 19 anos, entre 20 – 34 anos e 35 anos ou mais.
A escolaridade da mulher foi utilizada de forma categórica na descrição da população do estudo: 1-12 anos (até ensino médio completo); 13 – 15 anos (superior incompleto), 16 anos ou mais (superior completo). Nas análises principais, foi utilizada de forma contínua.
A raça/cor da pele das mulheres foi autorreferida, de acordo com a classificação do IBGE (branca, preta, parda, amarela e indígena). Essa característica foi agrupada em três categorias nas análises (branca, preta e parda), já que nenhuma mulher se autodeclarou amarela ou indígena nessa subamostra.
A existência de cicatriz uterina anterior é uma variável dicotômica (sim/não) e foi obtida durante a entrevista presencial com a mulher.
O IMC pré-gestacional foi calculado considerando a informação de peso e altura antes da gestação referido pela mulher na entrevista hospitalar. A variável foi estratificada em três categorias: eutrofia (18,5 – 24,9 kg/m2), sobrepeso (25 – 29,9 kg/m2) e obesidade (acima de 30kg/m2)15. Três casos de mulheres com baixo peso foram excluídos por serem suspeitos de erro de digitação.
Análise estatística
Foi realizada uma análise descritiva da população total e estratificada por grupo (“exposto ao modelo de cuidado PPA” e “cuidado usual”), considerando as características socioeconômicas, demográficas, comorbidades, desfechos maternos e neonatais. Foi utilizado o teste qui-quadrado de Pearson para avaliar a diferença entre os grupos em cada variável estudada.
Para avaliar a chance de entrar em trabalho de parto, de realização de parto vaginal, e de ocorrência de morbidade materna grave após o parto e near miss neonatal, foram realizadas regressões logísticas brutas e ajustadas para cada desfecho separadamente. O conjunto mínimo de variáveis de ajuste dos modelos foi selecionado de acordo com a literatura e por meio das relações dispostas nos gráficos acíclicos direcionados utilizando o programa Daggity.
Todas as análises foram realizadas nos softwares SAS On Demand for Academics e no Stata versão 17.0.
RESULTADOS
Foram analisadas 382 puérperas assistidas em oito hospitais participantes da pesquisa Nascer Saudável. A Tabela 1 apresenta as características da população estudada. Considerando a população total, a maioria das mulheres (65,2%) estava na faixa etária de 20 a 34 anos e se autodeclaram brancas (46,9%); mais da metade possuía ensino superior (56,2%) e pertencia à categoria B do nível econômico (65,7%).
A principal forma de hipertensão foi a gestacional/pré-eclâmpsia (43,9%), seguida de hipertensão crônica (24,1%). Em relação às comorbidades, 40,8% apresentavam obesidade e em torno de 13,9% das mulheres apresentaram diabetes gestacional.
Em relação a gestação atual, quase 57,0% das mulheres eram primíparas, a maioria (66,5%) pertencia à classificação do Grupo de Robson 1-4 e 35,9% relataram cicatriz uterina anterior. Em relação aos desfechos analisados, 73,1% não entraram em trabalho de parto, 87,4% tiveram cesárea, 12,3% morbidade materna grave após o parto e de 1,1% a 10,2% near miss neonatal, dependendo do critério utilizado.
Mulheres que faziam parte da população alvo do PPA eram mais jovens, em maior proporção pardas, com menor escolaridade e nível socioeconômico, emmaior proporção eutróficas, sem cicatriz uterina e primíparas, não sendo observadas diferenças em relação ao tipo de síndrome hipertensiva e diagnóstico de diabetes. No grupo “exposto ao PPA”, foi observada maior proporção de mulheres que entraram em trabalho de parto espontâneo ou induzido e que tiveram parto vaginal. Não houve diferenças entre os grupos na frequência de morbidade materna grave após o parto e no near miss neonatal independente da classificação adotada.
Tabela 1
A Tabela 2 apresenta a associação entre o PPA e os desfechos maternos e neonatais. A participação no PPA aumentou as chances de as mulheres entrarem em trabalho de parto (OR=4,7; IC95% 2,7 – 8,0) e de terem parto vaginal (OR=8,6; IC95% 3,7 – 20,0). Não houve diferenças entre os grupos em relação à morbidade materna grave após o parto (OR=0,81; IC95% 0,4 – 1,6) e nem em relação ao near miss neonatal, seja pelo critério adotado pela OMS (OR=1,5; IC95%=0,7–3,1), seja pelo critério desenvolvido pela pesquisa “Nascer no Brasil” (OR=0,5; IC95%=0,3 – 7,2).
Tabela 2
DISCUSSÃO
Os resultados desta pesquisa indicaram que o PPA foi efetivo em aumentar as chances de mulheres hipertensas atendidas no setor privado entrarem em trabalho de parto e terem parto vaginal. Além disso, os resultados mostram que participar do PPA não influenciou a morbidade materna grave após o parto e o near miss neonatal, reforçando a segurança do parto vaginal entre o público alvo da pesquisa.
O PPA tem se mostrado uma estratégia efetiva na promoção da fisiologia do parto e na redução das taxas de cesariana em hospitais privados10. Apesar das intervenções propostas terem sido implementadas de forma variada e com baixa adesão nos hospitais participantes16, o projeto demonstrou uma redução de 37% das cesarianas, considerando mulheres com classificação de Robson de 1 – 410. No entanto, o aumento de parto vaginal poderia estar restrito a alguns subgrupos específicos não envolvendo mulheres hipertensas. Os resultados encontrados pela atual pesquisa demostram que o PPA reduziu a proporção de cesáreas em mulheres hipertensas, um objetivo não postulado pelo projeto, ainda que fosse desejável.
Apesar dos resultados positivos obtidos em outras pesquisas mostrando os benefícios do parto vaginal em mulheres hipertensas4,5, o Brasil possui uma cultura intervencionista na assistência ao parto que, muitas vezes, leva à percepção de que a cesariana é a opção mais segura para mulheres com essa morbidade. Além disso, não podemos deixar de mencionar que mulheres do setor privado possuem “preferência” pela cesariana, principalmente as multíparas com cesárea prévia17, tornando essa questão ainda mais complexa. Ainda assim, apesar da questão cultural e da suposta preferência das mulheres pela cesariana em determinado contexto, nossa pesquisa mostrou que o PPA conseguiu diminuir a proporção de cesárea nessa população sem aumentar desfechos maternos e neonatais negativos, evidenciando a viabilidade do PPA não apenas para reduzir cesarianas, mas também para promover desfechos seguros e saudáveis para mulheres e recém-nascidos.
Nesse contexto, é fundamental promover e fortalecer iniciativas como as sugeridas pelo PPA, tanto em instituições públicas e principalmente nas privadas. Em outra publicação do nosso grupo envolvendo a avaliação do PPA o componente “Reorganização da assistência”, um dos quatro pilares do PPA, foi apontado como sendo o mais importante para o aumento do parto vaginal dentro dos hospitais privados avaliados10. A combinação de práticas como evitar agendamento de cesarianas eletivas, oferecer as mulheres informação e acesso a boas práticas no trabalho de parto e parto e, por fim, respeito ao plano de parto, mostrou uma probabilidade de 80% de parto vaginal10, evidenciando a importância na mudança das práticas oferecidas pelos profissionais de saúde que trabalham na assistência.
Além disso, a redução das cesáreas como uma política pública deve ser apoiada por campanhas em massa, explicando os riscos das cesáreas sem razões clínicas para a mulher e o bebê, bem como as vantagens do parto vaginal. Considerando as mulheres hipertensas, é importante informar que a cesariana pode ser um fator de risco adicional configurando um risco aumentado de morbimortalidade materna.
Além do trabalho de parto e da via de nascimento, a presente pesquisa também investigou a relação do PPA com a morbidade materna grave. O recorte “após o parto” visou excluir complicações anteriores à exposição ao PPA, bem como evidenciar possíveis afeitos adversos do programa na saúde materna. Considerando a disponibilidade de dados, foi usado um critério que mesclou definições da OMS para as “condições potencialmente ameaçadoras à vida” e para o “near miss materno”, ressaltando-se que todos são critérios de morbidade materna grave. Nossos resultados mostram que não houve diferença na frequência de morbidade materna após o parto entre os grupos analisados evidenciando a segurança do parto vaginal em mulheres hipertensas, corroborando com achados de pesquisas anteriores4,5. O desfecho óbito materno não pode ser avaliado devido a ausência de casos.
Um dos desfechos mais complexos de serem analisados nessa pesquisa foi o near miss neonatal. É importante pontuar que não há consenso na literatura sobre a sua definição18. Assim, devido a importância desse desfecho, optamos por trabalhar com duas classificações, uma sugerida pela OMS e outra validada pela pesquisa “Nascer no Brasil”. A classificação da OMS considera um número maior de informações, uma vez que leva em consideração vários aspectos relacionados ao manejo do recém-nascido nos primeiros dias de vida. No entanto, são informações de difícil acesso, dificultando a comparação de dados com pesquisas epidemiológicas maiores, onde, muitas vezes, não conseguimos dados detalhados ou fonte de dados secundários. Por outro lado, a classificação pragmática proposta pela pesquisa “Nascer no Brasil” é de mais fácil operacionalização, permitindo a comparabilidade com estudos nacionais e internacionais, principalmente, provenientes de países em desenvolvimento, além de possuir elevada sensibilidade (73,5%) e especificidade (98%)19. Considerando ambos os critérios, o PPA não se mostrou associado ao near miss neonatal.
Para melhor entender os resultados desta pesquisa é necessário analisar seus pontos fortes e limitações. Entre as fragilidades, é importante ressaltar que as mulheres dos grupos "Exposto ao modelo de cuidado PPA" e "Cuidado Usual" foram atendidas no mesmo hospital, o que pode ter promovido contaminação entre os grupos analisados. Com isso, o efeito encontrado em relação a todos os desfechos pode estar subestimado. Além disso, a amostra foi limitada a mulheres que foram admitidas pelas equipes de plantão, com o objetivo de equilibrar a distribuição dos grupos de Robson. A inclusão de hospitais onde a população-alvo fosse composta exclusivamente de mulheres pertencentes aos grupos 1 a 4 de Robson resultaria em resultados favoráveis ao PPA, com maior frequência de partos vaginais, que seriam decorrentes provavelmente da própria característica das mulheres, e não da intervenção em si. Assim, se por um lado essa estratégia permitiu melhor comparação entre os grupos PPA e cuidado usual, não permite inferência para resultados do PPA em mulheres que não foram admitidas pela equipe de plantão. Foram incluídas apenas gestações a termo, não sendo os resultados aplicáveis a nascimentos prematuros, sejam eles espontâneos ou induzidos pelo profissional. Para finalizar, foi utilizada uma amostra de conveniência dos hospitais, o que pode limitar a representatividade para o setor privado no Brasil. Em contrapartida, como ponto forte, destacamos a coleta de dados padronizada feita por profissionais treinados, incluindo entrevistas com puérperas, dados de prontuário e do cartão de pré-natal, permitindo uma avaliação abrangente do cuidado, em amostra representativa para cada hospital incluído no estudo. Deve-se também destacar a condução da pesquisa em hospitais privados, que apresentam a maior prevalência de cesariana no Brasil, devendo ser alvo prioritário de estratégias que visem a reduzir a prevalência de cesarianas sem justificativas clínicas e o aprimoramento dos cuidados com a saúde da mulher e do recém-nascido.
Por fim, este estudo evidenciou resultados positivos do Projeto Parto Adequado na promoção da fisiologia do parto, concluindo que é possível reduzir cesarianas em mulheres hipertensas no setor privado, sem aumentar ocorrência de desfechos maternos e neonatais negativos.
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