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Artigos

0104/2024 - Efeito da composição étnico-racial da população na mortalidade por COVID-19: uma abor-dagem ecológica espacial das iniquidades em Saúde no Brasil
Ethnic-racial composition of the population COVID-19 mortality: a spatial ecological ap-proach to health inequity in Brazil

Autor:

• Júnia Maria Drumond Cajazeiro - Cajazeiro, J. M. D. - <juniamdc@icloud.com, juniamdc@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0007-8858-4424

Coautor(es):

• Andrey Moreira Cardoso - Cardoso, A. M. - <andrey.cardoso@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7591-7791

• Aline Araújo Nobre - Nobre, A. A. - <aline.nobre@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6306-9257



Resumo:

A pandemia de COVID-19 afetou de forma desigual regiões, países e distintos segmentos étnico-raciais. Fatores socioambientais foram associados à pior evolução da doença, com uma maior chance de mortalidade em pessoas em situação de vulnerabilidade. Este estudo teve por objetivo investigar no Brasil a associação entre proporção de população vulnerabilizada (pretos, pardos e indígenas) e a mortalidade por COVID-19, no período de março de 2020 a fevereiro de 2021. Estimaram-se razões de taxas de mortalidade e respectivos Intervalos de Confiança de 95% (IC95%), através de modelos de regressão binomial negativa. Verificaram-se associações estatisticamente significativas entre proporção dessas populações e taxas de mortalidade, com destaque para raça/cor preta no primeiro quadrimestre, parda, no segundo e, indígena, no terceiro quadrimestre, em que a cada incremento de 10% na proporção dessas populações foi observado um aumento de 54% (IC95%: 1-142%), 16% (IC95%: 5-27%) e 27% (IC95% 3-64%) nas taxas de mortalidade, respectivamente; evidenciando a existência de iniquidades étnico-raciais na mortalidade por COVID-19 no Brasil e que esforços devem ser empreendidos para mitigar desigualdades em saúde, expressão da perpetuação do racismo estrutural e da exclusão social de grupos historicamente vulnerabilizados.

Palavras-chave:

Grupos raciais, iniquidade em saúde, Covid-19, etnicidade

Abstract:

COVID-19 pandemic has unevenly affected regions, countries and different ethnic-racial segments. Socio-environmental factors were associated with worse disease’s evolution, with a greater chance of mortality in people in vulnerable situations. This study aim was to inves-tigate the association between the proportion of vulnerable population (black, brown and indigenous people) and mortalityCOVID-19 in Brazil,March 2020 to February 2021. Mortality rate ratios and respective 95% Confidence Intervals (95%CI) were estimat-ed, using negative binomial regression models. Statistically significant associations were found between the proportion of these populations and mortality rates, with emphasis on black race/color in the first four months, mixed race in the second and indigenous people in the third four months, in which every 10% increase in the proportion of these populations an increase of 54% (95%CI: 1-142%), 16% (95%CI: 5-27%) and 27% (95%CI 3-64%) in mor-tality rates were observed respectively; highlighting the existence of ethnic-racial inequities in COVID-19 mortality in Brazil and that efforts must be made to mitigate health inequali-ties, an expression of the perpetuation of structural racism and social exclusion of historical-ly vulnerable groups.

Keywords:

Racial groups, health inequity, Covid-19, ethnicity

Conteúdo:

Introdução
A pandemia de COVID-19 foi declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em março de 2020, tornando-se uma das maiores e mais importantes crises sanitárias e humanitárias da história1. Os primeiros casos de doença e morte pela COVID-19 no Brasil foram notificados, respectivamente, em fevereiro e março de 20202. Trata-se de uma doença causada pelo novo coronavírus, SARS-CoV-2, que pode apresentar-se como uma Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) que, em muitos casos, exige cuidados médico-hospitalares intensivos e prolongados, gerando sobrecarga aos sistemas de saúde3.
No Brasil, a pandemia de COVID-19 foi um fenômeno que afetou de forma desigual e mais grave os segmentos populacionais mais vulnerabilizados pelas condições geográficas, ambientais, socioeconômicas, étnico-raciais e de acesso à saúde adversas, resultando em maior risco de óbito pela doença nesses grupos4,5,6. Fatores individuais, como idade acima de 60 anos, gravidez e comorbidades, que incluem hipertensão arterial, obesidade e diabetes, também foram associados ao pior prognóstico da COVID-19.5,6
No decorrer da pandemia, uma vasta produção científica sobre iniquidades em saúde foi produzida, demonstrando que os efeitos da pandemia na saúde da população decorreram da mútua potencialização de determinantes sociais da saúde, como, por exemplo, aspectos étnico-raciais, socioeconômicos, geográficos e padrões de saúde, sendo considerada uma sindemia.7 Por exemplo, iniquidades étnico-raciais foram demonstradas por Pontes et al.8, ao reportarem taxas de mortalidade específicas por grupos etários em indígenas superiores às da população geral, com razões de taxas mais elevadas nos grupos etários de 0-9 anos (RT: 7,1) e de 80 anos ou mais (RT: 2,1). A letalidade acumulada por COVID-19, até agosto de 2020, havia atingido 41,8% em indígenas, e 35,1% em não indígenas no país, com heterogeneidade por regiões, sendo as desigualdades mais expressivas no Norte e no Centro-Oeste. Santos et al. (2020) encontraram taxas de mortalidade materna cerca de duas vezes maiores em mulheres pretas quando comparadas às mulheres brancas. Baqui et al.9 verificaram risco significativamente maior de morte em pessoas pardas (HR: 1,45; IC95%: 1,33–1,58) e pretas (HR: 1,32; IC95%: 1,15–1,52) quando comparadas às brancas.
No estudo Epi-Covid, foram feitas pesquisas soroepidemiológicas em todas as 27 unidades federativas do Brasil, em três diferentes ondas, em 133 cidades sentinelas, através de método de amostragem, sendo estimado a soroprevalência de COVID-19 e seus respectivos intervalos de confiança nessas localidades, sendo demonstrado uma soroprevalência cinco vezes maior em indígenas em relação aos brancos, e três vezes maior em pardos em relação aos brancos, nas três ondas. Além disso, foi demonstrado que a soroprevalência foi inversamente proporcional à riqueza, sendo que o quintil mais pobre apresentava cerca de duas vezes mais chance de ter anticorpos em relação ao quintil mais rico, em todas as 3 ondas do estudo. Com relação às regiões do país, 10% da população no Norte do país, em média, tinha ou já havia contraído o coronavírus e, no Sul esse percentual foi de 1%, na terceira onda. Com relação à região Centro-oeste, na primeira onda, todas as cidades analisadas não tiveram resultados positivos de soroprevalência, em contraste com a região Norte, que apenas 32% das cidades analisadas tiveram nenhum resultado positivo.10,11
Diante dessas evidências, o presente trabalho teve como objetivo investigar a associação entre proporção de população vulnerabilizada (pretos, pardos e indígenas) e mortalidade por SRAG decorrente de COVID-19 (COVID-19) no primeiro ano da pandemia, e sua interação com desigualdade socioeconômica e acesso à saúde segundo mesorregiões brasileiras.
ME?TODOS
Desenho e área de estudo
Trata-se de um estudo ecológico espaço-temporal para avaliar a associação entre proporção de população vulnerabilizada (população preta, parda e indígena) e mortalidade por COVID-19 no primeiro ano da pandemia, de março de 2020 (mês da primeira morte por COVID-19 no país) a fevereiro de 2021 (mês de início da vacinação contra COVID-19 no país), considerando 137 mesorregiões brasileiras como unidades de análise espacial e três quadrimestres (março a junho de 2020, julho a outubro de 2020 e novembro de 2020 a fevereiro de 2021) como unidades de análise temporal.
A divisão do Brasil em mesorregiões foi adotada em 1989, com a finalidade de compor unidades geográficas capazes de integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. Cada mesorregião inclui um conjunto de municípios geograficamente articulados, com similaridades econômicas, geográficas e sociais, que respeita os limites do estado ao qual pertence (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2017). O Nordeste é a região brasileira com maior número de mesorregiões (42), seguida pelo Sudeste (37), Sul (23), Norte (20) e Centro-Oeste (15) (Figura 1).
Variáveis do estudo, indicadores e fontes de dados
O número de óbitos por COVID-19 foi considerado o desfecho do estudo. A exposição principal neste estudo foi considerada a proporção de população vulnerabilizada, definida como a proporção de população preta, parda e indígena em cada mesorregião. Essas categorias de cor/raça foram também consideradas isoladamente na análise, como exposições secundárias. Foram incluídas como covariáveis do estudo a média do Índice Socioeconômico do Contexto Geográfico para Estudos em Saúde” (GeoSES), como um indicador de condição socioeconômica, a razão de leitos de UTI por habitante, como indicador de acesso à saúde, e o índice de envelhecimento, como indicador da estrutura etária da população. Todos os indicadores do estudo foram agregados por mesorregião e quadrimestre, para as análises. Os dados sobre óbitos por COVID-19 por município de residência foram obtidos pelo Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe) e compuseram os numeradores das taxas de mortalidade por COVID-19 e o desfecho do estudo. A população por categoria de raça/cor e município, posteriormente agregada por mesorregião, foi proveniente do Censo Demográfico brasileiro de 2010 (IBGE, 2010), uma vez que houve atraso na realização do Censo Demográfico de 2020. A soma das populações preta, parda e indígena foi dividida pela população total de cada mesorregião, a fim de se obter a proporção de população vulnerabilizada, de acordo com as proporções do Censo de 2010. O cálculo foi feito tanto para as 3 populações em conjunto, como para cada uma dessas populações separadamente. A estimativa da população brasileira por município, utilizada para o cálculo das taxas de mortalidade por SRAG-COVID-19 no ano pandêmico, foi obtida a partir das projeções de população para o ano de 2020 do IBGE (2020). O “Índice Socioeconômico do Contexto Geográfico para Estudos em Saúde” (GeoSES), gerado por análise de componentes principais, a partir dos dados Censo Demográfico 2010, é composto pelas dimensões educação, mobilidade, pobreza (pobreza absoluta, definida como ausência de capacidade mínima de sobrevivência e acesso a recursos materiais) e riqueza (proxy para todos os recursos econômicos que foram acumulados ao longo da vida), renda, segregação (que se refere a conceito amplo relacionado a habitação separada de diferentes grupos populacionais em diferentes partes de uma cidade e afeta a saúde por intensificar efeitos psicossociais que envolvem insegurança, ansiedade, isolamento social, ambientes socialmente perigosos, bullying e depressão) e privação de acesso a serviços e recursos.12 O índice Geoses varia de -1 a +1, sendo que quanto menor o índice, piores as condições socioeconômicas. O índice já calculado encontra-se disponível para todos os municípios brasileiros no site do IBGE (Downloads | IBGE). Para nosso estudo, calculamos a média do índice por mesorregião.
A razão de leitos de UTI por habitante foi calculada pela razão entre o número de leitos de UTI disponíveis e a população por mesorregião. Os dados referentes ao número de leitos de UTI foram obtidos no DATASUS, pelo cadastro nacional de estabelecimentos de saúde (CNES) (CnesWeb - Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (datasus.gov.br)).
Para representar a estrutura etária da população, utilizamos o índice de envelhecimento. O cálculo do índice é dado pelo quociente entre os números de indivíduos acima de 60 anos e de indivíduos abaixo de 15 anos de idade. A população nessas faixas etárias foi obtida a partir da estimativa da população projetada pelo IBGE para 2020.
Análise estatística
Mapas temáticos com a distribuição espacial das taxas de mortalidade por quadrimestre e da proporção de população vulnerabilizada, bem como das variáveis razão de leitos de UTI por habitante, média Geoses e índice de envelhecimento foram confeccionados.
Um modelo de regressão binomial negativa foi utilizado para avaliar a associação entre proporção de população vulnerabilizada e mortalidade por COVID-19. A variável de desfecho foi o número de óbitos por COVID-19 por mesorregião. A exposição principal foi a proporção de população vulnerabilizada e a população geral foi considerada como offset do modelo. Além disso, avaliamos separadamente a proporção de população preta, parda e indígena como exposições secundárias. As variáveis razão de leitos de UTI por habitante, média Geoses e índice de envelhecimento foram consideradas como variáveis de ajuste no modelo.
Inicialmente, fizemos o modelo apenas com a variável de exposição bruto (Modelo 1). Em seguida, foram adicionadas ao modelo bruto, progressivamente e de forma cumulativa, cada uma das variáveis de ajuste a seguir, nessa ordem: índice de envelhecimento (Modelo 2), média simples do Geoses (Modelo 3), e razão de leitos de UTI por habitante (Modelo 4). Finalmente, investigamos os indicadores socioeconômicos e de acesso à saúde como possíveis modificadores de efeito sobre a associação em questão, utilizando-se escala multiplicativa, mediante a inserção de um termo de interação no modelo. A não significância do termo de interação indica ausência de modificação de efeito. As razões de taxas de mortalidade estimadas a partir dos modelos ajustados consideraram um aumento em 10% na proporção da população vulnerabilizada. Todas as análises foram realizadas para o período acumulado de um ano e por quadrimestre.
Todas as análises foram realizadas utilizando o software R (R core team, 2022).
RESULTADOS
Entre março de 2020 e fevereiro de 2021, houve 224.430 registros de óbitos por COVID-19 no Brasil, sendo 224.405 deles em pessoas residentes no país. Desse total, 83.125, 85.332 e 55.948 ocorreram, respectivamente, no primeiro, no segundo e no terceiro quadrimestres.
Verifica-se que as taxas de mortalidade por COVID-19 foram mais altas no Norte do país e em algumas regiões do Sudeste e Centro-Oeste, no período acumulado de um ano (Figura 2). As taxas no primeiro quadrimestre foram mais elevadas no Norte e em uma pequena área do Sudeste. No segundo quadrimestre, vemos uma queda nas taxas do Norte e incremento no Centro-Oeste do país, com nova elevação no Norte do país e queda das taxas no Centro-Oeste, no terceiro quadrimestre.
Na Figura 3, pode ser verificada a distribuição espacial das proporções de populações vulnerabilizadas por mesorregião. Observamos uma maior proporção dessas populações no Norte e Nordeste do país, além da região mais ao Norte do Centro-Oeste, bem como a maior proporção de população indígena em mesorregiões a noroeste da região Norte e a oeste da região Centro-Oeste.
A distribuição espacial das covariáveis pode ser visualizada na Figura 4. A média do índice Geoses aumenta gradativamente do Norte ao Sul do país, assim como o índice de envelhecimento. Observamos algumas poucas mesorregiões no Norte e Nordeste com razão de leitos UTI por habitante comparáveis às da região centro-sul do país, que apresenta a maior razão de leitos UTI por habitante do Brasil.
Não foi observada associação estatisticamente significativa no modelo bruto (Modelo 1) para nenhuma das categorias de população vulnerabilizada analisadas (Tabela 1). Após ajustar pelas variáveis índice de envelhecimento, média do índice Geoses e razão de leitos de UTI por população, foi possível verificar associações estatisticamente significativas entre proporções de população vulnerabilizada (RT: 1,12, IC95%: 1,04-1,21) e população parda (RT: 1,09, IC95%: 1,01-1,17) e mortalidade por COVID-19. A cada incremento de 10% nas proporções de população vulnerabilizada ou de população parda, ocorrem aumentos, respectivamente, de 12% e de 9% nas taxa de mortalidade por COVID-19.
No primeiro quadrimestre, observamos associações estatisticamente significativas entre as taxas de mortalidades por COVID-19 e o incremento nas proporções de populações vulnerabilizada (RT: 1,44, IC95%: 1,23-1,67), parda (RT: 1,36, IC95%: 1,17-1,58) e preta (RT: 1,54, IC95%: 1,01-2,42), após ajuste por indicadores socioeconômico, de acesso à saúde e índice de envelhecimento (Modelo 4) (Tabela 1). No segundo quadrimestre, a proporção de população preta perde significância estatística, permanecendo associadas apenas as proporções de população vulnerabilizada (RT:1,17, IC95%: 1,07-1,28) e parda (RT: 1,16, IC95%: 1,05-1,27). No terceiro quadrimestre, apenas a proporção de população indígena (RT: 1,27; IC95% 1,03-1,64) se manteve associada com maior mortalidade por COVID-19. A cada incremento de 10% na proporção de população indígena, observamos um aumento de 27% na taxa de mortalidade por COVID-19 (Tabela 1).
Na análise de interação multiplicativa, os indicadores socioeconômico e de acesso a saúde não demonstraram ser modificadores de efeito na associação entre proporção de população vulnerabilizada e mortalidade por SRAG-COVID-19 (p-valor > 0,05).
DISCUSSÃO
Em nosso estudo, observamos que no primeiro ano da pandemia de COVID-19 no Brasil, ocorreram taxas de mortalidade mais elevadas nas mesorregiões com maiores proporções de população vulnerabilizada, particularmente no primeiro e segundo quadrimestres, mesmo após o ajuste por variáveis de acesso à saúde, índice socioeconômico e índice de envelhecimento. Ainda na análise estratificada por quadrimestres, observamos que o comportamento das taxas de mortalidade sofreu efeitos diversos a depender da composição étnico-racial das mesorregiões, tendo a proporção de população preta maior efeito no incremento da mortalidade no primeiro quadrimestre, ao passo que a parda teve maior efeito no segundo, e a indígena, no terceiro. Não se observou interação entre o índice socioeconômico ou o acesso à saúde e a proporção de população vulnerabilizada na associação com a mortalidade por COVID-19.
Verificaram-se, proporções mais elevadas de populações parda e indígena no Norte, e de população preta no Nordeste e Sudeste. Além disso, percebeu-se que o mapa da distribuição espacial da população vulnerabilizada se assemelha ao mapa da distribuição espacial da população parda, uma vez que a população parda representa a maior proporção da população total, bem como corresponde espacialmente à distribuição mais desfavorável dos índices socioeconômico e de acesso à saúde e da razão de envelhecimento. Todos esses indicadores exibiram tendência de incremento no sentido norte-sul, coerente com a histórica desigualdade social e econômica e padrões demográficos que distinguem as regiões do país, em que as regiões Sul e Sudeste são socioeconomicamente mais desenvolvidas em comparação às regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte. 13,14,15,16,17
Quanto à estrutura etária, as áreas mais ao sul possuem populações mais envelhecidas em comparação às áreas mais ao norte18, fruto de dinâmica demográfica que reflete maiores fecundidade e mortalidade precoces e menor esperança de vida ao nascer nas regiões Norte e Nordeste.19 Em adição às inequalidades já demonstradas, nas regiões centro-sul do país, a razão de leitos UTI/habitantes é mais elevada, demonstrando menores barreiras no acesso à saúde.15,16,17
Os padrões de desigualdades socioeconômicas, demográficas e de acesso à saúde se sobrepõem à distribuição étnico-racial da população, caracterizando uma condição de sindemia, resultando no pior controle da COVID-19 e seus desfechos desfavoráveis nas localidades com maior proporção dessas populações.7 Diversos autores demostraram, por meio de estudos descritivos no nível individual, que a morbidade, bem como a mortalidade e a letalidade por COVID-19 foram mais elevadas em pretos20,21,22, pardos9,21 e indígenas8,9,21 no país. Nosso estudo confirma essa vulnerabilidade também numa abordagem ecológica, demonstrando a existência de iniquidades étnico-raciais que vão além das desigualdades socioeconômicas, demográficas e de acesso à saúde Estrela et al.22ressaltam que o racismo estrutural presente no país e no mundo geram iniquidades em saúde, que levam a um agravamento da situação de saúde nas populações minoritárias. É provável que as iniquidades evidenciadas espelhem um cenário mais amplo de exclusão social com raízes históricas, sendo uma expressão do racismo estrutural.24,25,26
Nacionalmente e internacionalmente, foi amplamente demonstrado no nível individual a associação entre idade acima de 60 anos e risco de morte por COVID-19.6,27 Opostamente, nosso estudo demonstrou que a mortalidade específica por SRAG-COVID-19 no período acumulado foi menor nas mesorregiões com maior índice de envelhecimento, no centro-sul do país, e maior na região Norte. Isso indica que determinantes socais, além dos fatores individuais, operaram de modo a incrementar o risco morte por COVID-19 nas mesorregiões brasileiras4,28. Corroborando essa hipótese, destacamos as maiores taxas de mortalidade nas mesorregiões com menor índice socioeconômico e menor acesso à saúde, demonstrando a relevância prognóstica desses determinantes na pandemia, além do estudo de Ranzani21, que demonstrou que cerca da metade das primeiras 250.000 internações por COVID-19 no país ocorreu em pacientes menores de 60 anos (47%), sendo que a mortalidade nesse grupo etário foi maior nas regiões Norte e Nordeste, chegando a 31% no Nordeste.
Os resultados obtidos a partir dos modelos ajustados, tanto no período acumulado quanto nos quadrimestres analisados, indicam que as populações vulnerabilizadas estiveram expostas à COVID-19 e experimentaram maior risco de morte pela doença em momentos distintos da pandemia. Esse fato pode ser explicado pela dinâmica de espalhamento geográfico da pandemia no país, a introdução de distintas variantes do SARS-CoV-2 e respectivas virulências, e a distribuição geográfica das populações vulnerabilizadas.
Ao analisarmos a associação entre proporção de população vulnerabilizada e mortalidade por SRAG-COVID-19 por quadrimestre, percebemos que essas populações sofreram os efei-tos da pandemia precocemente, particularmente no primeiro quadrimestre, possivelmente como reflexo das próprias vulnerabilidades e barreiras no aceso à saúde, bem como da pró-pria dinâmica de circulação viral nas regiões do país e composição étnico-racial da popula-ção. No período em que tivemos a primeira onda de COVID-19 no país, em que a possibili-dade de se fazer isolamento social não existia para trabalhadores informais, que somam boa parte dos brasileiros em piores condições socioeconômica no país, encontramos associações estatisticamente significativas mesmo após ajuste pelo índice de envelhecimento, índice socioeconômico e proxy de acesso à saúde. Esse resultado ratifica achados de outros estudos já publicados, que demonstraram maior risco de mortalidade em populações vulnerabiliza-das, como pretos e pardos.29,30
Por exemplo, Lana et al31 demonstraram que a transmissão da COVID-19 inicialmente esteve concentrada em alguns grandes centros urbanos, ocorrendo um rápido processo de interiorização em alguns estados, como Amazonas, Rio de Janeiro e São Paulo. A região Norte concentra a maior proporção de população indígena do país e esse fenômeno teve grande impacto nesse segmento populacional, como observado nas pesquisas soroepidemiológicas realizadas que demonstraram uma maior soroconversão na região Norte e nesse grupo populacional.10 No entanto, o maior impacto na mortalidade nesse segmento populacional se deu mais tardiamente, como visto no nosso estudo no terceiro quadrimestre, em que a doença novamente aumentou suas taxas no Norte, o que pode ser explicado pela presença da variante P.1 na região nessa região, que apresentava maior transmissibilidade e uma possível maior letalidade em relação às variantes anteriormente circulantes no nosso país32,33.
Ainda em relação às taxas de mortalidade relacionadas à população indígena no terceiro quadrimestre, no nosso estudo foi demonstrado que a cada incremento de 10% na proporção de população indígena, houve um aumento de 27% na taxa de mortalidade por COVID-19 na mesorregião, corroborando com os achados de outros estudos, que também demonstraram maior mortalidade8 e letalidade8 nessa população específica. No estudo de Pontes et. Al8, por exemplo, foram observados diferenciais de mortalidade expressivos, em que a razão de taxas de mortalidade entre a população indígena e a população geral foram de 7,1 para grupo de 0 a 9 anos de idade, 3,6 para o grupo de 10 a 19 anos, 2,3 para 50 a 59 anos e 2,1 no grupo de 80 anos ou mais. Tais achados ratificam que a população indígena no nosso país possui indicadores de saúde desfavoráveis quando comparado com outros grupos populacionais35 e que essa população foi particularmente afetada pela pandemia de COVID-198,20,21.
Apontamos como limitações do estudo a falta de um censo demográfico atualizado que impõe desafios ao cálculo mais preciso da proporção de população por raça/cor, necessária para o cálculo da proporção de população vulnerabilizada. O crescimento das populações não se trata apenas de um fenômeno demográfico, associado ao crescimento demográfico da população geral brasileira. A autodenominação de sua cor/raça é um fenômeno que possui influência do meio, características econômicas e situação política em que as pessoas estão inseridas, algo que ocorreu de forma importante nas populações indígenas do país nas últimas décadas.34,35 Dessa forma, populações podem ter variações em seu crescimento não explicadas somente pela demografia, que podem influenciar na magnitude das taxas específicas de mortalidade por raça/cor e nas proporções de população vulnerabilizada. No entanto, as fontes de dados utilizadas eram as únicas disponíveis, que foram utilizadas em todos os demais estudos sobre a temática.
Os resultados do nosso estudo evidenciam um padrão consistente de maior mortalidade por SRAG-COVID-19 em mesorregiões com maiores proporções de pardos, pretos e indígenas, com incrementos mais expressivos relacionados a pardos e indígenas no Norte e Centro-Oeste, e a pretos no Sudeste. Esses resultados são contundentes em demonstrar que a pandemia foi um fenômeno que afetou em maior grau as regiões com maiores proporções de população vulnerabilizada. Verificam-se superposições de distintas vulnerabilidades que se refletem em iniquidades étnico-raciais em saúde, em um fenômeno que pode ser caracterizado como uma sindemia. Apesar disso, não se confirmou efeito sinérgico entre índice socioeconômico e acesso à saúde e etnicidade sobre os níveis de mortalidade. Isso evidencia que outros aspectos não controlados na análise múltipla perpetram seus efeitos na mortalidade por meio da condição relacionada à cor da pele no Brasil, podendo ser mencionado o racismo estrutural. O presente trabalho traz importantes resultados no que tange às iniquidades em saúde vivenciadas no nosso país e se torna um instrumento importante na luta por sua mitigação.
Contribuição dos autores:
JMD Cajazeiro, AA Nobre e AM Cardoso participaram da concepção do trabalho, análise dos dados e interpretação dos resultados. JMD Cajazeiro fez a redação do manuscrito. JMD Cajazeiro, AA Nobre e AM Cardoso conduziram a revisão e aprovaram a versão final do artigo.
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Fig.3
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Cajazeiro, J. M. D., Cardoso, A. M., Nobre, A. A.. Efeito da composição étnico-racial da população na mortalidade por COVID-19: uma abor-dagem ecológica espacial das iniquidades em Saúde no Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/Abr). [Citado em 06/10/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/efeito-da-composicao-etnicoracial-da-populacao-na-mortalidade-por-covid19-uma-abordagem-ecologica-espacial-das-iniquidades-em-saude-no-brasil/19152?id=19152

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