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0244/2024 - Gravidez em meninas menores de 14 anos: análise espacial no Brasil, 2011 a 2021
Gravidez em meninas menores de 14 anos: análise espacial no Brasil, 2011 a 2021

Autor:

• Isabella Vitral Pinto - Pinto, I. V. - <isabella.pinto@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3535-7208

Coautor(es):

• Regina Tomie Ivata Bernal - Bernal, R. T. I. - <reginabernal@terra.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7917-3857

• Juliana Bottoni Souza - Souza, J. B. - <juliana_bottoni@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9308-7445

• Gisele Nepomuceno de Andrade - Andrade, G. N. - <giseleandrade.85@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0433-8351

• Larissa Fortunato Araújo - Araújo, L. F. - <larissafortunatoaraujo@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6695-0365

• Mariana Santos Felisbino-Mendes - Felisbino-Mendes, M. S. - <marianafelisbino@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5321-5708

• Maria de Fátima Marinho de Souza - Souza, M. F. M. - <mfmsouza@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3287-9163

• Marli Montenegro - Montenegro, M. - <marli.silva@saude.gov.br>

• Nadia Vasconcelos - Vasconcelos, N. - <nadiamv87@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2323-3064

• Deborah Carvalho Malta - Malta, D. C. - <dcmalta@uol.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8214-5734



Resumo:

Objetivo: analisar a distribuição espacial da gravidez em menores de 14 anos e seis meses segundo regiões e municípios brasileiros e características sociodemográficas e de saúde das parturientes e nascidos vivos. Metodologia: Estudo ecológico, analisando o Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC), 2011- 2021, em três grupos etários (< 14 anos e 6 meses, 15-19 e 20 anos e mais), segundo variáveis demográficas e do parto. Foi aplicado o Índice Global de Moran e o Indicador de Autocorrelação Espacial. Resultados: No período foram 107.876 nascidos vivos de meninas 10-14 anos, na maioria negras, 20% em união estável ou casadas, com menor proporção de 7 consultas de pré-natal e captação no primeiro trimestre, maior proporção de baixo peso ao nascer e baixo índice de Apgar, residentes nas regiões Norte e Nordeste. A taxa média de nascidos vivos de 10-14 anos mostrou autocorrelação significativa com o espaço, especialmente Centro-Oeste e Norte. Conclusão: A gravidez de 10 a 14 revela uma sequência de vulnerabilidades sofridas por essas meninas, pela gravidez em idade precoce, maior frequência entre negras, com implicações na morbimortalidade para ela e seus filhos; e pela violência presumida nesses casos, incluindo o acesso negado ao aborto legal.

Palavras-chave:

nascido vivo, estupro, sistemas de informação em saúde, gravidez na adolescência

Abstract:

Objetivo: analisar a distribuição espacial da gravidez em menores de 14 anos e seis meses segundo regiões e municípios brasileiros e características sociodemográficas e de saúde das parturientes e nascidos vivos. Metodologia: Estudo ecológico, analisando o Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC), 2011- 2021, em três grupos etários (< 14 anos e 6 meses, 15-19 e 20 anos e mais), segundo variáveis demográficas e do parto. Foi aplicado o Índice Global de Moran e o Indicador de Autocorrelação Espacial. Resultados: No período foram 107.876 nascidos vivos de meninas 10-14 anos, na maioria negras, 20% em união estável ou casadas, com menor proporção de 7 consultas de pré-natal e captação no primeiro trimestre, maior proporção de baixo peso ao nascer e baixo índice de Apgar, residentes nas regiões Norte e Nordeste. A taxa média de nascidos vivos de 10-14 anos mostrou autocorrelação significativa com o espaço, especialmente Centro-Oeste e Norte. Conclusão: A gravidez de 10 a 14 revela uma sequência de vulnerabilidades sofridas por essas meninas, pela gravidez em idade precoce, maior frequência entre negras, com implicações na morbimortalidade para ela e seus filhos; e pela violência presumida nesses casos, incluindo o acesso negado ao aborto legal.

Keywords:

nascido vivo, estupro, sistemas de informação em saúde, gravidez na adolescência

Conteúdo:

Introdução
A gravidez em meninas de 10 a 14 anos tem despertado grande preocupação no campo da saúde pública, devido aos riscos à gestante, como maior mortalidade materna, bem como aos filhos, os quais tem maior chance de prematuridade, baixo peso ao nascer e maior mortalidade perinatal1–5. Além disso, a gravidez nesta faixa etária pode trazer consequências sociais e econômicas, podendo limitar o acesso das meninas à educação, aprofundar desigualdade de renda e alterar1,3. Estudos têm relacionado o evento ao baixo desenvolvimento econômico dos países, à prevalência de casamento infantil, ao baixo acesso aos métodos contraceptivos modernos e à educação sexual e reprodutiva1, às normas sociais e de gênero, e à alta prevalência de violência sexual.
Apesar de ocorrer principalmente em países da África Sub-Saariana e da América Latina e Caribe1, sua importância global foi consolidada com a inclusão de indicadores para monitorar o número de nascidos vivos em adolescentes de 10 a 14 anos e de 15 a 19 anos, no âmbito da Agenda 20306. No Brasil, entre 2000 e 2015, observou-se queda na taxa de fertilidade de adolescentes de 15 a 19 anos, calculada pela divisão entre os nascidos vivos de adolescentes nesta faixa etária e a população de residentes do sexo feminino na mesma faixa etária7,8. Contudo, a taxa de fertilidade em meninas de 10 a 14 anos permaneceu estável entre 2000 e 2012, variando de 3,38 por 1.000 a 3,29 por mil8. Além disso, há evidênicas de heterogeneidade da taxa entre as regiões e estados do Brasil, intimamente relacionado às desigualdades sociais, raciais e de gênero8.
Com intuito de oferecer maior proteção às crianças e adolescentes, o Estado Brasileiro tem estabelecido regras referentes ao casamento e ao início da atividade sexual. Segundo o Código Civil, a idade mínima para casamento é de 16 anos, sendo que entre 16 e 18 anos faz-se necessário autorização dos pais ou representante legal. Adicionalmente, a lei nº 12.015/2009, que alterou o Código Penal, considerou o consentimento para os atos sexuais inválido em indivíduos com menos de 14 anos, e definiu o estupro de vulnerável como “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, independente da idade do parceiro ou do relacionamento estabelecido entre eles9.
De fato, os dados sobre violência mostram um cenário alarmante de violação de direitos de meninas e mulheres, pois além de serem as maiores vítimas da violência sexual, elas ainda enfrentam o risco de uma gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis. Em 2022 foram identificadas 74.930 vítimas de estupro pela segurança pública no Brasil, sendo 88,7% em pessoas do sexo feminino10. Desse total, 56.820 (75,8%) eram casos de estupro de vulnerável, sendo que neste grupo 71,6% ocorreu na residência e 64,4% foi perpetrado por familiares10.
Entretanto, estudos apontam que a iniciação sexual pode ocorrer na adolescência precoce (de 10 a 14 anos), não sendo considerada de forma absoluta como um problema, mas como um alerta para possíveis vulnerabilidades antecedentes e decorrentes da prática. Estudo seccional com escolares na cidade do Rio de Janeiro mostrou que a iniciação sexual nesta fase da vida ocorreu em 25,7% entre os meninos e 12,2% entre as meninas4, enquanto estudo de coorte em Pelotas estimou valores de 20,9% para meninos e 16,4% para as meninas11.
O tema da gravidez em meninas de 10 a 14 anos é complexo e deve envolver a discussão sobre sexualidade, direitos, iniquidades, violências e acesso à saúde e educação. Para tanto, dados atualizados da ocorrência do evento podem contribuir para abordar o problema, em perspectiva com os avanços e retrocessos do contexto político e institucional do Estado.
Portanto, o presente estudo teve como objetivo analisar a distribuição espacial da gravidez em menores de 14 anos e seis meses segundo regiões e municípios brasileiros, no período de 2012 a 2021, bem como as características sociodemográficas e de saúde das parturientes e dos nascidos vivos durante a gestação, parto e nascimento.
Metodologia
Estudo ecológico, descritivo, com uso de dados secundários do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC), no período de 2011 a 2021, no Brasil. Essa base foi obtida junto ao Ministério da Saúde a partir da avaliação da deduplicação dos casos, processo que buscou identificar por meio das variáveis “nome da mãe” e “data de nascimento da mãe” as meninas e mulheres com um ou mais nascidos vivos no período. Portanto, nesta base foram incluídas somente Declarações de Nascidos Vivos com a data de nascimento da genitora válida.
As características dos filhos nascidos vivos foram descritas segundo três grupos etários das parturientes (idade no momento do parto): i. 10 a 14 anos e 6 meses; ii. 14 anos e 7 meses a 19 anos e 11 meses; iii. 20 anos completos ou mais. No primeiro grupo pode-se considerar que as meninas engravidaram antes dos 14 anos completos, ou seja, pela definição legal há presunção de violência sexual. O segundo grupo foi composto por mulheres de até 19 anos no momento do parto, ou seja, ainda adolescentes, segundo a definição das Nações Unidas1. Por fim, no terceiro grupo as mulheres foram consideradas adultas porque o parto ocorreu com 20 anos ou mais. As idades das meninas e mulheres foram calculadas por meio do uso das variáveis “data de nascimento da mãe” e “data de nascimento” do nascido vivo. Foram retiradas as pessoas do sexo feminino com idade menor de 120 meses (10 anos), e mantidas aquelas com idade igual ou maior que 10 anos.
Para a caracterização das meninas e mulheres foram utilizadas as seguintes variáveis: raça/cor da pele (branca, parda, preta, amarela, indígena); escolaridade (nenhuma, 01 a 03, 04 a 07, 08 anos ou mais); estado civil (casada, separada/divorciada, solteira, união estável, viúva); região do Brasil (Centro-Oeste, Nordeste, Norte, Sudeste, Sul); número de gestações anteriores (nenhuma, 01 ou mais); e número de filhos vivos (nenhum, 01 ou mais). Para a descrição da gestação, investigou-se o tipo de gravidez (única, dupla, tripla ou mais); tipo de parto (vaginal, cesariana); número de consultas pré-natal (nenhuma, 1 a 3, 4 a 6, 7 ou mais); tempo de gestação (<37, 47 a 41, >41 semanas); e mês que iniciou o cuidado pré-natal (até 3, 4 a 6, 7 meses ou mais). Os filhos nascidos vivos foram caracterizados segundo o peso ao nascer (< 2.500 e >2.500g) e o Apgar no 5º minuto (0 a 3, 4 a 7, 8 a 10).
Para comparar a ocorrência de filhos nascidos vivos em decorrência de gravidez em menores de 14 anos e 6 meses, nas grandes regiões do Brasil e nas unidades federativas, procedeu-se ao cálculo da seguinte proporção: número de nascidos vivos de genitoras de 14 anos e seis meses em relação ao total de nascidos vivos, por ano. Os resultados foram apresentados no formato percentual. Para as UF também foi calculada a variação percentual desse evento entre os anos de 2011 e 2021.
Para o âmbito municipal foi calculada a taxa média de nascidos vivos no grupo etário de genitoras com idade igual ou menor que 14 anos e 6 meses no período, sendo escolhido o ano de 2016 como referência pela proximidade da média da população no período avaliado, utilizando a seguinte fórmula:
[Número de filhos nascidos vivos de genitoras com idade igual ou menor que 14 anos e seis meses, no período de 2011 a 2021 ÷ população de meninas com idade de 10 a 14 anos residentes no município, no ano do meio do período (2016)]*1.000.
Com essa taxa buscou-se identificar clusters de municípios segundo a situação da vizinhança, classificando-os em quatro status: a) município com baixa taxa de nascidos vivos com parturientes de idade <14 anos e 6 meses, vizinho de município com a taxa; b) município com baixa taxa, vizinho de município com alta taxa; c) município com alta taxa, vizinho de município com baixa taxa; d) município com alta taxa, vizinho de município com alta taxa.
Para essa classificação foi aplicado o Índice Global de Moran, que avalia a relação de interdependência espacial entre todos os polígonos que compõem a área geográfica do Brasil e é capaz de expressar em um único valor para todo o país. Em seguida, foi utilizado o Indicador de Local de Autocorrelação Espacial (LISA) para detectar os clusters entre os municípios brasileiros em alto-alto, baixo-baixo e os outliers alto-baixo e baixo-alto12. As análises foram desenvolvidas no R Studio e Geoda.
Este estudo foi desenvolvido no âmbito do Projeto “Carga Global da Violência Contra Meninas e Mulheres”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, sob CAAE: 58431622.4.0000.5149.
Resultados
No período de 2011 a 2021 foram identificados no SINASC 30.086.800 nascidos vivos no Brasil. Desse total, 107.876 (0,4%) foram nascidos vivos de meninas de 10 a 14 anos e 6 meses; 4.280.430 (14,2%) de adolescentes de 14 anos e 7 meses a 19 anos e 11 meses; e 25.698.494 (85,4%) de mulheres com 20 anos ou mais (Tabela 1).
Em todos os grupos etários, a maioria dos nascimentos ocorreu entre parturientes negras (pardas e pretas), sendo o maior valor no grupo de 10 a 14 anos e 6 meses (73,6%) (Tabela 1). Entre as meninas de 10 a 14 anos e 6 meses, 6,3% tinham nenhuma ou até três anos de estudo; entre as adolescentes de 14 anos e 7 meses a 19 anos e 11 meses esse valor alcançou 2,5%; e entre as adultas de 20 anos e mais foi de 3,4%. Com relação ao estado civil, 20,7% das meninas de 10 a 14 anos e 6 meses eram casadas ou em união estável. Entre as adolescentes de 14 anos e 7 meses a 19 anos e 11 meses esse percentual foi de 34,1%, e entre as mulheres de 20 anos e mais foi de 58,0%.
A Tabela 1 também mostra que entre as meninas de 10 a 14 anos e 6 meses, a maior proporção de região de residência foi o Nordeste (39,9%). Entre as mulheres com 20 anos e mais, a maior proporção segundo a região de residência foi o Sudeste (39,7%). Destaca-se que no grupo de até 14 anos e 6 meses, 5,0% dos filhos não era a primeira gestação; 4,3% não era o primeiro filho nascido vivo; e 0,9% era resultado de gestação dupla ou tripla.
Com relação ao acesso aos serviços de saúde, 53,8% dos filhos de meninas de 10 a 14 anos e 6 meses tiveram o início do cuidado pré-natal no primeiro trimestre; 45,0% teve 7 ou mais consultas; e em 38,7% o tipo do parto foi cesariana. Entre as adolescentes de 14 anos e 7 meses a 19 anos e 11 meses, 64,7% dos nascidos vivos tiveram o início do cuidado pré-natal no primeiro trimestre; 54,2% tiveram 7 ou mais consultas; e em 39,2% o tipo do parto foi cesariana. Entre as mulheres com 20 anos e mais, 77,0% dos nascidos vivos tiveram o início do cuidado pré-natal no primeiro trimestre; 69,4% tiveram 7 ou mais consultas; e 58,9% dos seus filhos nasceram por cesariana.
Os filhos de meninas de 10 a 14 anos e 6 meses tiveram o maior percentual de nascimento prematuro (18,5%), baixo peso ao nascer (14,6%), e os menores valores de apgar no quinto minuto (4,0% com nota de 0-7) em comparação com os filhos daquelas dos outros grupos etários (Tabela 1).

A proporção de nascidos vivos resultantes de gravidez de meninas de 10 a 14 anos e 6 meses, calculada dentre o total de nascidos vivos, foi mais elevada nas regiões Norte e Nordeste em todo o período, alcançando 0,58% e 0,39%, respectivamente, em 2021(Figura 1). A região Centro-Oeste mostrou um padrão muito semelhante ao do Brasil. As regiões Sul e Sudeste apresentaram padrões muito semelhantes e as menores proporções no período.

Entre as dez UF com maiores proporções de filhos nascidos vivos de meninas de 10 a 14 anos e 6 meses em 2021, seis estão na região Norte (Acre, Roraima, Amazonas, Pará, Amapá e Tocantins), três na região Nordeste (Maranhão, Alagoas e Piauí) e uma no Centro-Oeste (Mato Grosso) (Tabela 2). A comparação entre os anos de 2011 e 2021 mostrou que quatro UF apresentaram uma variação percentual positiva: Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso do Sul (Tabela 2). Apesar da variação percentual ser alta em São Paulo e no Pará, por exemplo, a diferença entre as proporções encontradas em 2011 e em 2021 é baixa, sendo 1,1% entre todos os nascidos vivos.



Com relação à taxa média de nascidos vivos no grupo etário de meninas de 10 a 14 anos e 6 meses, observou-se que as maiores dez taxas do período foram encontradas nos seguintes municípios: Jacareacanga/PA (22,04/1000); Ponte Branca/MT (18,52/1000); Taquaral De Goiás/GO (16,67/1000); Alto Alegre Do Maranhão/MA (16,59/1000); Governador Nunes Freire/MA (15,99/1000); Vargeão/SC (15,09/1000); Taquarussu/MS (14,81/1000); Almino Afonso/RN (14,62/1000); Peritiba/SC (14,29/1000); e Buriti De Goiás/GO (14,29/1000). De forma geral, a distribuição espacial mostra que em todos os estados há municípios com altas taxas (Figura 2). Entretanto, as regiões Norte e Centro-Oeste, bem como em alguns estados do Nordeste há maior número de municípios com altas taxas de nascidos vivos no grupo etário de meninas de 10 a 14 anos e 6 meses (Figura 2).

As meninas de 10 a 14 anos e 6 meses com filhos nascidos vivos eram residentes de 2.630 municípios brasileiros. A utilização do índice de Moran para a composição da matriz de vizinhança mostrou que somente 546 municípios (20,8%) possuíram autocorrelação significativa na avaliação da taxa média dos nascimentos de filhos dessas meninas (Figura 3).
As áreas em vermelho escuro representam clusters em que municípios com altas taxas são vizinhos de municípios com altas taxas. Destaca-se que há concentração de municípios nas regiões Centro-Oeste (n=45), Norte (n=41) e Sul (n=25). As regiões Sudeste e Nordeste contaram com 9 municípios em cada.
As áreas em vermelho claro representam clusters em que municípios com altas taxas são vizinhos de municípios com baixas taxas. Destaca-se que há concentração de municípios nas regiões Nordeste (n=26) e Sudeste (n=11). A região Norte apresentou 3 municípios e as regiões Centro-Oeste e Sul tiveram 2 municípios em cada.
As áreas em azul claro representam clusters em que municípios com baixas taxas são vizinhos de municípios com altas taxas. Destaca-se que há concentração de municípios nas regiões Centro-Oeste (n=17) e Nordeste (n=14). A região Sul apresentou 11 municípios, sendo que a região Norte e Sudeste teve 4 e 3 municípios, respectivamente.
As áreas em azul escuro representam clusters em que municípios com baixas taxas são vizinhos de municípios com baixas taxas. Destaca-se que há concentração de municípios nas regiões Sudeste (n=162), Nordeste (n=89) e Sul (n=55). A região Centro-Oeste apresentou 14 municípios e a região Norte teve 4 municípios.

Discussão
Entre 2011 e 2021, foram identificados 107.876 nascidos vivos em meninas de 10 a 14 anos e seis meses, o que representou mais de 26 nascimentos por dia, em média, no período avaliado. Esse grupo era em sua maioria meninas negras (pretas e pardas) e mais de um quinto informou estar em união estável ou casadas e em 5,0% os nascidos vivos não foram a primeira gestação. Em comparação com as parturientes de 20 anos ou mais, as de 10 a 14 anos e 6 meses tiveram menor proporção de início do cuidado pré-natal no primeiro trimestre, menor proporção das 7 consultas do cuidado pré-natal recomendadas, e seus filhos tiveram maior proporção de baixo peso ao nascer e de baixo índice de Apgar. Essa situação evidencia as vulnerabilidades da gravidez nesta faixa etária e também os impactos em seus filhos nascidos vivos.
A proporção de nascidos vivos resultantes de gravidez de meninas de 10 a 14 anos e 6 meses, foi mais elevada nas regiões Norte e Nordeste. A distribuição da taxa média de nascidos vivos de meninas de 10 a 14 anos e 6 meses mostrou autocorrelação significativa com o espaço, sendo possível identificar clusters de municípios com altas taxas, vizinhos de outros municípios com altas taxas, especialmente nas regiões Centro-Oeste e Norte.
Chamou a atenção o elevado percentual de meninas de até 14 anos e seis meses em união estável ou casadas. Resultados semelhantes também foram observados em Maceió, em que mais de 20% das meninas com menos de 14 anos e com filhos nascidos vivos estavam casadas ou em união estável entre 2009 e 201713. O casamento infantil, definido como união formal ou informal com pessoal menor de 18 anos, é considerado uma violação dos direitos humanos e está associada a baixos níveis educacionais, gravidez precoce, violência por parceiro íntimo, mortalidade materna e infantil, infecções sexualmente transmissíveis, bem como pobreza intergeracional14,15.
Estudo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 mostrou prevalência de 3,9% de casamento infantil em indivíduos menores de 18 anos no Brasil, sendo maior entre pessoas do sexo feminino, com cor da pela parda, sem vínculo escolar e residentes da região Norte do Brasil15. No país, até 2019, casamentos com menores de 16 anos poderiam ser autorizados pelos responsáveis mediante ordem judicial especial em caso de gravidez ou para evitar a imposição de pena criminal15, o que revelava as contradições do Estado ao lidar com a presunção de violência contra meninas e adolescentes. Se por um lado, desde 2009 a atividade sexual com meninas menores de 14 ano é considerada estupro de vulnerável, por outro lado o Estado era conivente com a gravidez, absolvendo possíveis casos de estupro pela via do casamento.
A gravidez assim como o casamento ou união estável, além de não se constituírem em eventos esperados durante a adolescência precoce, podem levar à evasão escolar, gerar repercussões biopsicossociais16,17, e modificar o curso de vida, principalmente das meninas18,19. Entretanto, a gravidez na adolescência, principalmente em classes sociais mais baixas, tem sido apontada como um fenômeno social, em que buscam o reconhecimento, concretização de um projeto de vida e até mesmo a afirmação da identidade feminina4,5.
Entre as parturientes de 10 a 14 anos e seis meses, destacou-se o percentual de 6,3% sem escolarização ou com, no máximo três anos de estudo, o que é incompatível até com a idade inferior desse grupo. A educação é reconhecida como fator de proteção para o casamento infantil e para a gravidez precoce2,14. Para além, a educação sexual pode oferecer ferramentas e informações necessárias às adolescentes para o exercício responsável da sexualidade, assim como para reconhecer situações de abuso.
O início do cuidado pré-natal é um indicador importante relacionado ao acesso aos serviços de saúde, bem como à ciência sobre a gravidez. Destaca-se que 32,1% dos nascidos vivos de meninas de 10 a 14 anos e seis meses iniciaram o pré-natal entre quatro a seis meses (16 a 24 semanas de gestação) e 4,7% acima de 7 meses (28 semanas de gestão). Tal fato pode estar intimamente relacionado a situações de violência sexual, já que na maior parte dos casos o perpetrador é geralmente alguém próximo, como pais, padrastos, irmãos mais velhos ou tios, os quais dificultam o acesso das meninas aos serviços de saúde na tentativa de adiar a revelação do abuso sexual. Essa situação pode provocar a busca pela interrupção legal da gravidez em idade gestacional mais avançada, seja pela percepção mais tardia da gestão ou pelo menor suporte social ou familiar nos casos de violência doméstica20.
No Brasil, a interrupção legal da gravidez é permitida no caso de gravidez decorrente de estupro, sendo que o Código Penal não traz qualquer limitação à idade gestacional ou ao peso do feto21. Entretanto, o acesso a esse direito é desigual e mediado por diversos fatores. Pesquisa realizada em 2019, com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, identificou que apenas 290 estabelecimentos ofertavam o serviço de aborto legal, distribuídos em apenas 3,6% (N=200) dos municípios brasileiros, e cerca de 1/3 destes serviços não realizaram nenhum procedimento no ano22. Além da barreira geográfica o estudo destacou inúmeras barreiras de acesso aos serviços de aborto legal previsto em lei, como o desconhecimento do serviços e da legislação, o medo da criminalização, a vergonha pelo estigma do procedimento, as barreiras organizacionais, como a exigência de Boletim de Ocorrência, laudo do Instituto Médico-Legal (IML) ou alvará judicial, recusa dos profissionais de saúde em realizar o procedimento, e negativas por suspeição à palavra de quem busca por cuidado22.
Além desses fatores, movimentos conservadores no Brasil têm atuado no sentido de limitar os direitos das mulheres, especialmente no campo da saúde reprodutiva e sexual. O Projeto de Lei nº 1904, de 2024, condena com pena de homicídio os casos de abortamento a partir de 22 semanas de gestação, cuja pena pode chegar até 20 anos de prisão, o que penaliza principalmente meninas de 10 a 14 anos, já vulnerabilizadas pela dupla carga da violência sexual e da gravidez indesejada, assim como das dificuldades para acesso aos serviços e exercício de seus direitos. A Organização Mundial da Saúde considera que a imposição de limite relacionado à idade gestacional para a realização do abortamento tem consequência negativas para as meninas e mulheres, aumentando os riscos para a saúde das mesmas e gerando injustiça social 23.
Outros achados relevantes expõem as iniquidades sociais e raciais do Brasil, em que quanto mais jovem, maior a frequência de nascimentos entre meninas pardas e pretas. Sabe-se que o racismo estrutural, a cultura patriarcal, as iniquidades de renda e a maior prevalência de violência sexual contribuem para a maior vulnerabilidade de meninas e mulheres negras24–26.
Adicionalmente, os resultados deste estudo mostraram desigualdades regionais e municipais importantes em termos das taxas de nascidos vivos em meninas de 10 a 14 anos e seis meses. As regiões Norte e Centro-Oeste concentram grande parte dos municípios com altas taxas, o que pode estar relacionado às normas e padrões de gênero locais, maior presença de população indígena, e também a maiores desigualdades sociais. Contudo, em todos os estados há municípios com altas taxas, o que resulta em desafio para o enfrentamento do problema no país como um todo. Há que considerar que em alguns contextos sociais, a gravidez na adolescência pode ser um plano real, seja para obter reconhecimento e reafirmação por meio da maternidade, pelo ideal de construção de família, por carência afetiva, por limitação nas perspectivas de projeto de vida (Dias e Teixeira, 2010) ou mesmo por questões etno-culturais, como no caso das indígenas.
Independentemente se resultante ou não de estupro, a gravidez em meninas de 10 a 14 anos representa uma situação de vulnerabilidade para a saúde física, psicológica e socioeconômica das parturientes e de seus filhos. Portanto, políticas públicas de saúde e educação devem promover o acesso a informações e insumos para o exercício da sexualidade responsável, segura27, bem como garantir o exercício dos direitos de meninas e mulheres e atuar efetivamente na prevenção de violências.
Dentre as limitações do estudo, destaca-se a seleção das Declarações de Nascidos Vivos com presença de data de nascimento da mãe e data de nascimento do filho válidas, para permitir o cálculo da idade das meninas e mulheres no parto. Todavia, essa decisão implicou em perda de casos, em comparação com a base de dados do SINASC disponível para acesso público. As autoras optaram por não utilizar a variável “idade da mãe” do SINASC devido ao grande percentual de discordância em relação ao cálculo citado anteriormente e por não permitir identificar os meses de vida com maior precisão para realizar os recortes necessários ao desenho do estudo.

Conclusão:
Os dados do SINASC entre 2011 e 2021 revelam a preocupante situação de gravidez em meninas menores de 14 anos no Brasil, o que, no limite da lei, envolve violência sexual. Foram mais de 107 mil ocorrências em onze anos, concentradas em parturientes negras, na região Norte e com piores desfechos de acesso ao pré-natal e com relação aos nascidos vivos. Esses achados revelam uma sequência de vulnerabilidades sofridas por essas meninas, seja pela gravidez em idade precoce, com implicações de morbimortalidade altas para ela e seus filhos; seja pela violência presumida nesses casos. Políticas públicas de saúde e educação devem promover o acesso a informações, insumos e cuidado integral para a garantia de direitos e prevenção de violência contra meninas e mulheres, bem como acesso ao aborto legal nos casos cabíveis.

Referências:
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2. World Health Assembly. Early Marriages, Adolescent and Young Pregnancies: Report by the Secretariat. World Health Organization; 2012. Accessed June 15, 2024. https://iris.who.int/handle/10665/78901
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Pinto, I. V., Bernal, R. T. I., Souza, J. B., Andrade, G. N., Araújo, L. F., Felisbino-Mendes, M. S., Souza, M. F. M., Montenegro, M., Vasconcelos, N., Malta, D. C.. Gravidez em meninas menores de 14 anos: análise espacial no Brasil, 2011 a 2021. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/Jun). [Citado em 30/06/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/gravidez-em-meninas-menores-de-14-anos-analise-espacial-no-brasil-2011-a-2021/19292?id=19292&id=19292&id=19292

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