0011/2025 - Hiato de gênero na expectativa de vida: o impacto da mortalidade por causas externas em Minas Gerais (1980-2018)
Gender gap in life expectancy: the impact of mortalityexternal causes in Minas Gerais (1980-2018)
Autor:
• Hisrael Passarelli-Araujo - Passarelli-Araujo, H. - <hisraelpassarelli@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3534-8392
Coautor(es):
• Larissa Gonçalves Souza - Souza, L.G - <larissa.souza@unifal-mg.edu.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3536-3912
• Pamila Cristina Lima Siviero - Siviero, P.C.L - <pamila.siviero@unifesp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2042-812X
Resumo:
O hiato de gênero na expectativa de vida reflete desigualdades sociais mais amplas. Apesar dos avanços na longevidade, as disparidades de gênero persistem, especialmente na mortalidade por causas externas. Essas causas, frequentemente evitáveis, elevam a taxa de mortalidade masculina. Em Minas Gerais, a extensão e a natureza dessas disparidades e o impacto das causas externas não foram devidamente exploradas. Este estudo examina o impacto da mortalidade por causas externas no hiato de gênero na expectativa de vida em Minas Gerais entre 1980 e 2018. Utilizando cenários de redução de mortalidade por causas externas (25%, 50%, 75% e eliminação total), o estudo calcula a mudança gerada por diferentes cenários na expectativa de vida ao nascer. Os dados de óbitos foram combinados com dados populacionais para calcular tábuas de múltiplo decremento. Os resultados sugerem que a redução das causas externas diminui significativamente o hiato de gênero na expectativa de vida. A eliminação de 25% das causas externas já reduziria a desvantagem masculina, com ganhos mais pronunciados conforme aumenta a proporção de causas eliminadas. Em um cenário de eliminação total, a desvantagem masculina cairia drasticamente, refletindo também mudanças nas normas sociais e culturais que perpetuam essas práticas.Palavras-chave:
Diferenciais de mortalidade; Gênero; Causas Externas; Minas GeraisAbstract:
The gender gap in life expectancy reflects broader social inequalities. Despite advances in longevity, gender disparities persist, especially in mortalityexternal causes. These often-preventable causes raise the male mortality rate. In Minas Gerais, the extent and nature of these disparities and the impact of external causes have not been adequately explored. This study examines the impact of mortalityexternal causes on the gender gap in life expectancy in Minas Gerais1980 to 2018. Using scenarios of mortality reductionexternal causes (25%, 50%, 75%, and total elimination), the study calculates the change generated by different scenarios in life expectancy at birth. Death data were combined with population data to calculate multiple decrement life tables. The results suggest that reducing external causes significantly decreases the gender gap in life expectancy. Eliminating 25% of external causes would already reduce the male disadvantage, with more pronounced gains as the proportion of eliminated causes increases. In a scenario of total elimination, the male disadvantage would drop drastically, also reflecting changes in the social and cultural norms that perpetuate these practices.Keywords:
Mortality Differentials; Gender; External Causes; Minas GeraisConteúdo:
O hiato de gênero na expectativa de vida é frequentemente utilizado como um indicador das desigualdades sociais mais amplas, incluindo disparidades econômicas, acesso aos cuidados de saúde e status social 1–3. Apesar dos avanços gerais na expectativa de vida, o hiato de gênero persiste, especialmente em relação à mortalidade por causas externas, como acidentes, homicídios e suicídios 4. Essas causas, muitas vezes evitáveis 5, contribuem significativamente para a maior taxa de mortalidade masculina em várias regiões do mundo 6.
Estudar o hiato de gênero exige esclarecer alguns conceitos fundamentais, como a distinção entre "sexo" e "gênero". Enquanto "sexo" se refere às características biológicas e fisiológicas que diferenciam homens e mulheres, "gênero" diz respeito aos papeis, comportamentos e expectativas socialmente construídos que são atribuídos a cada sexo 7–9. Essa distinção é crucial porque as normas sociais e culturais influenciam fortemente os comportamentos de risco que levam à mortalidade 10, especialmente por causas externas. Por exemplo, normas de masculinidade que valorizam a coragem e a competitividade levam homens a se envolverem mais em comportamentos de risco, o que está mais relacionado às expectativas sociais do que a fatores biológicos 11. Portanto, o termo "hiato de gênero" é mais apropriado para descrever a diferença entre as expectativas de vida de homens e mulheres, capturando a complexidade dessas influências na mortalidade.
A mortalidade por causas externas continua a ser uma preocupação significativa no Brasil. Desde 1980, as causas externas têm impactado negativamente a estrutura etária das taxas de mortalidade no país, resultando em anos perdidos de expectativa de vida 12. No município de São Paulo, por exemplo, um estudo revelou que as mortes evitáveis, especialmente aquelas causadas por fatores externos, contribuíram consideravelmente para o hiato na expectativa de vida entre homens e mulheres entre 2014 e 2016 13. Esses resultados revelam a persistência das disparidades de gênero na mortalidade evitável, criando desafios tanto para as políticas de saúde quanto para as iniciativas destinadas a reduzir desigualdades entre grupos populacionais específicos 13,14.
Em Minas Gerais, um dos estados mais populosos e economicamente diversificados do Brasil 15, a extensão e a natureza do impacto das causas externas no hiato de gênero na expectativa de vida ao nascer ainda não foram suficientemente exploradas. O que se sabe é que, entre 1999 e 2008, a mortalidade por causas externas entre homens aumentou de 82,7 para 95,7 mortes por 100 mil habitantes, representando um aumento de 15,7% 16. Os autores também demonstraram que as principais causas de morte foram acidentes de trânsito, suicídios e homicídios, com a maioria das vítimas sendo homens jovens adultos (20-39 anos). No período mais recente, a mortalidade por causas externas em Minas Gerais gira em torno de 68 mortes por 100 mil habitantes no ano de 2022 17.
Além disso, pesquisas anteriores já se dedicaram a analisar o perfil dos óbitos por causas externas entre subgrupos populacionais específico, como os idosos em Minas Gerais 18, enquanto outros se propuseram a investigar a qualidade das informações sobre a mortalidade por essas causas no estado 19. No entanto, ainda não se compreende plenamente como a mortalidade por causas externas impacta os diferenciais de expectativa de vida ao nascer entre homens e mulheres em Minas Gerais. Essa lacuna limita a compreensão de como os óbitos por causas externas afetam o hiato de gênero na mortalidade e como essa tendência tem variado ao longo das décadas. Investigar esse impacto é crucial para desenvolver estratégias de saúde pública que abordem as desigualdades de gênero de forma mais eficaz.
Este artigo propõe examinar o impacto da mortalidade por causas externas no hiato de gênero da mortalidade em Minas Gerais ao longo do período de 1980 a 2018. Simular cenários distintos de redução da mortalidade tem sido uma estratégia eficaz utilizada em diversos estudos 20–22, por se mostrar uma importante ferramenta para a avaliação de políticas de saúde, planejamento de recursos, comparação de intervenções e compreensão das interações complexas entre determinantes de saúde. Além disso, trabalhar com diferentes cenários é crucial, pois, na prática, é inviável eliminar completamente a mortalidade por essas causas. A simulação desses cenários fornece dados concretos que podem auxiliar na formulação e implementação de políticas públicas de saúde.
Metodologia
Este estudo utilizou os dados de população de 1980 e 2000, desagregados por idade e sexo, provenientes de censos demográficos brasileiros e os dados de 2018 são resultantes de projeção populacional, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados de óbitos por todas as causas e por causas externas, desagregados por grupos de idade e sexo, são provenientes do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e foram coletados no Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS).
As informações dos óbitos foram obtidas para os triênios de 1979 a 1981, 1999 a 2001 e 2017 a 2019. A média dos óbitos de cada triênio foi utilizada para representar o número de óbitos por idade em 1980, 2000 e 2018, respectivamente, com o intuito de diminuir possíveis flutuações aleatórias nos dados. O período do último triênio de análise é justificado pela escolha de realizar um estudo livre dos efeitos da pandemia de COVID-19, que teve início em 2020 e produziu um aumento temporário da mortalidade. Em relação ao sub-registro de óbitos, entre 1980 e 2010, o estado de Minas Gerais já apresentava cobertura praticamente completa do registro de mortalidade, por isso não foi necessária a aplicação de fator de correção.
De 1979 a 1995, as declarações de óbito foram codificadas de acordo com a 9ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-9), com as mortes por causas externas classificadas no capítulo XVII (E800-E999). A partir de 1996, entrou em vigor a 10ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), em que as mortes por causas externas passaram a ser classificadas no capítulo XX (V01-Y98). As séries históricas de óbitos por causas externas não apresentaram flutuações anormais no ano de 1996, período de transição da CID-9 para a CID-10. Portanto, foram utilizadas as informações originais de óbitos, sem a necessidade de correções relacionadas ao uso de dados classificados conforme diferentes revisões da CID.
Para analisar o padrão etário do diferencial de gênero na mortalidade, primeiro foram calculadas as taxas específicas de mortalidade por idade para homens e mulheres, por todas as causas e por causas externas, e as razões de sexo entre as taxas específicas de mortalidade por idade por causas externas. A razão de sexo entre as taxas específicas de mortalidade por idade é uma medida comparativa entre o risco de morte de homens e mulheres, quanto maior o seu valor, maior a desvantagem dos homens em relação às mulheres.
O próximo passo consistiu em obter, para cada ano de análise, as tábuas de vida de homens e mulheres, separadamente, com o intuito de examinar o nível do hiato de gênero na expectativa de vida ao nascer. Uma das medidas utilizadas para analisar o hiato de gênero foi calcular o diferencial absoluto e o relativo. O diferencial absoluto é dado pela diferença entre a expectativa de vida feminina e masculina. Já o diferencial relativo indica o quanto, em termos percentuais, o hiato de gênero reduziria em relação aos dados reais, sem a eliminação das causas externas.
Por fim, para analisar o impacto dos óbitos por causas externas no diferencial de gênero na mortalidade foram calculadas tábuas associadas de decremento único. Essas tábuas permitem mensurar a mudança na expectativa de vida ao nascer, caso uma determinada causa de morte fosse eliminada 23,24.
As tábuas associadas de decremento único descrevem um cenário hipotético em que uma causa específica de morte é eliminada, resultando em uma probabilidade de morte por essa causa igual a 0, ou seja, uma probabilidade de sobrevivência de 1. No entanto, a eliminação de uma causa de morte não é feita simplesmente excluindo-se os óbitos relacionados a essa causa logo quando os dados são coletados. Isso ocorre porque, ao eliminar uma causa de morte, as pessoas que anteriormente morreriam dessa causa passam a estar sujeitas, necessariamente, ao risco de morte por outras causas.
Esse cenário exige lidar com a violação do pressuposto de independência dos riscos competitivos. As taxas de mortalidade permanecem inalteradas, mas, com mais sobreviventes em uma determinada idade, haverá um aumento no número de pessoas expostas às outras causas de morte ainda em atuação, o que altera as probabilidades de morte 23.
Para ajustar essa mudança, é necessário calcular a constante de proporcionalidade do decremento i, representada por:
R_x^(-i)=(D_x-D_x^(-i))/D_x
onde, -i indica a causa que está sendo eliminada (óbitos por causas externas) e D_x são os óbitos observados totais por todas as causas combinadas na idade x. Essa constante atribui a cada causa sua importância relativa em relação ao número total de óbitos em cada grupo etário.
A obtenção dessa constante de proporcionalidade segue passos metodológicos detalhadamente descritos no manual do Grupo de Foz 23. Neste artigo, destacamos a importância específica dessa constante, pois é a partir dela que realizamos os procedimentos necessários para simular diferentes cenários de redução de óbitos. Embora o padrão seja a eliminação de 100% das causas, essa coluna permite ajustar diferentes níveis de eliminação (por exemplo, 0,25, 0,5, 0,75) para criar cenários variados de redução de causas externas.
A diferença entre a expectativa de vida total e a expectativa de vida após a eliminação de um grupo específico de causas permite avaliar o ganho potencial no indicador, caso essa causa seja eliminada. Neste estudo, analisamos quatro cenários hipotéticos de redução da mortalidade por causas externas: 25%, 50%, 75% e 100%. Esses cenários permitem não apenas estimar o ganho potencial máximo de expectativa de vida ao nascer em um cenário de eliminação total das causas externas, mas também avaliar ganhos em diferentes faixas de redução.
A metodologia detalhada para obtenção das tábuas associadas de decremento único pode ser consultada em Preston et al. 24 e Grupo Foz 23. Os softwares utilizados no estudo para a análise dos dados foram o Microsoft Excel 2019 e R 25.
Como o estudo utilizou apenas dados agregados, que são publicamente disponíveis e não permitem qualquer forma de identificação pessoal dos indivíduos, não foi necessário o registro e avaliação pelo sistema do Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP). A utilização de dados dessa natureza garante que todas as análises realizadas respeitem os princípios éticos de confidencialidade e privacidade, assegurando que nenhum participante pudesse ser identificado direta ou indiretamente.
Resultados
No estado de Minas Gerais, ocorreram 94.447 óbitos em 1980, dos quais 7.645 (8,1%) foram por causas externas. Em 2000, esse número foi de 96.093, com óbitos por causas externas representando 8,5% do total. Em 2018, tais mortes representaram 9,8% dos 130.603 óbitos ocorridos. No entanto, quando desagregamos os óbitos por sexo da pessoa que faleceu, o cenário muda: em todos os anos analisados, a representatividade dos óbitos por causas externas no espectro total de causas foi sempre mais expressiva para os homens do que para as mulheres (Tabela 1).
A Figura 1 apresenta as taxas específicas de mortalidade por idade e sexo, por todas as causas de morte e, separadamente, por causas externas. A queda da mortalidade, entre os anos em estudo, pode ser observada nos gráficos da mortalidade por todas as causas (quadrante superior). No entanto, esse processo foi mais homogêneo para as mulheres, uma vez que é possível notar reduções em todas as idades, nos três anos. Para os homens, ficou claro o aumento da mortalidade dos jovens em 2018, chegando a níveis semelhantes aos observados em 1980 (Figura 1).
A análise do padrão etário da mortalidade por causas externas ajuda a explicar essas diferenças (quadrante inferior). Embora a estrutura das curvas seja semelhante, é possível notar que os níveis das taxas masculinas por causas externas foram muito mais elevados do que para as mulheres, especialmente nas idades jovens e adultas (Figura 1).
No caso masculino, as taxas de mortalidade por causas externas nas idades jovens foram muito semelhantes às taxas de mortalidade por idade geral, sugerindo que o risco de morte nas idades jovens para os homens é explicado majoritariamente pelas causas externas. No entanto, conforme a idade avança, a taxa específica por todas as causas apresentou uma tendência de aumento, ao passo que a de causas externas permaneceu constante, exceto para aqueles com mais de 70 anos. Em 2018, entre os 15 e 25 anos de idade, o risco de morte foi maior do que os demais anos (Figura 1 – quadrante inferior).
Para as mulheres, foi visível que a queda dos níveis de mortalidade por causas externas, em todas as idades entre 1980 e 2000, mas em 2018 esses ganhos foram observados apenas entre as crianças. As taxas foram menores do que aquelas observadas para os homens, alcançando níveis semelhantes apenas após os 75 anos (Figura 1, quadrante inferior).
Ao analisar as razões de sexo entre as TEMs por causas externas, foi possível perceber uma desvantagem masculina na mortalidade por causas externas, uma vez que a razão de sexo foi maior do que 1 em todos os anos e todas as idades (Figura 2). Em 1980, o padrão era de U invertido, com o pico na idade de 35 a 39 anos. Nesse ano, o risco de morte por causa externa para um homem de 35 a 39 anos era quase 6 vezes o risco de morte para uma mulher na mesma idade. A partir de 2000, foi possível perceber duas mudanças: o aumento do nível em praticamente todas as idades, sugerindo que o risco relativo dos homens, em relação às mulheres, vem aumentando ao longo do tempo e; o rejuvenescimento da curva, uma vez que o pico passou a ser nas idades mais jovens. Em 2000, o risco de um jovem rapaz de 20 a 24 anos morrer por uma causa externa era 7 vezes o de uma jovem na mesma idade. Em 2018, esse risco foi de quase 8 vezes.
A Tabela 2 apresenta a expectativa de vida ao nascer, para homens e mulheres, além das diferenças entre as duas, para 1980, 2000 e 2018. Além disso, apresentam-se também os resultados dos quatro cenários de eliminação das causas externas (25%, 50%, 75% e 100%) e seus ganhos nas expectativas de vida e, como consequência, os efeitos no hiato de gênero relacionado ao nível da mortalidade em Minas Gerais.
Em 1980, uma mulher mineira esperava viver, em média, 69,0 anos, com vantagem de 6,0 anos em relação aos anos de vida média dos homens. Em 2000, essa diferença passa para 7,0 anos, com os homens alcançando uma expectativa de vida ao nascer de 70,9 anos. Em 2018, apareceu o primeiro indício de redução do hiato de gênero no nível de mortalidade, com os homens apresentando uma desvantagem de 6,6 anos em relação às mulheres. Entretanto, é importante ressaltar que, ainda que o diferencial observado tenha reduzido e alcançado 6,6 anos em 2018, ele ainda foi superior ao observado em 1980 (6,0 anos) (Tabela 2).
Nos quatro cenários propostos de eliminação das causas externas, observou-se uma redução do hiato de gênero na mortalidade, explicados, principalmente, por maiores ganhos nas expectativas de vida masculinas. Por exemplo, no primeiro cenário, eliminando 25% das causas externas, a desvantagem masculina diminuiria para 5,6 anos em 1980 (uma redução de 6%), 6,6 anos em 2000 (5% menor) e 6,1 anos em 2018 (7% de redução). Conforme aumenta-se a proporção de causas externas eliminadas, observou-se que os níveis do hiato por gênero diminuíram, com uma mudança importante em relação aos dados reais: a partir de 75% de redução (cenário 3) a desvantagem em 2018 passou a atingir níveis semelhantes aos observados em 1980. Neste cenário, em 1980 a desvantagem masculina seria de 5,0 anos (17% menor) e, em 2018, de 5,1 anos (14%). Com a eliminação total das causas externas (cenário 4), a desvantagem masculina reduziria bastante: 4,6 anos (23%) em 1980; 5,5 anos em 2000 (21%) e 4,6 anos em 2018 (29%).
A Figura 3, que traz o hiato de gênero nos ganhos em expectativa de vida em Minas Gerais, nos anos em estudo, complementa essa análise. Como esperado, os maiores ganhos seriam em um cenário de eliminação completa das causas. No entanto, é possível perceber que, mesmo em um cenário moderado, a desvantagem masculina reduziria, especialmente em 2018.
Discussão e Conclusão
Este estudo buscou examinar o impacto da mortalidade por causas externas no hiato de gênero da mortalidade em Minas Gerais ao longo do período de 1980 a 2018. A simulação de diferentes cenários de redução das causas externas mostrou uma diminuição significativa no diferencial de gênero na expectativa de vida ao nascer. A eliminação de apenas 25% das causas externas reduziria a desvantagem masculina na mortalidade em diversos períodos analisados, com ganhos mais pronunciados conforme aumenta a proporção de causas eliminadas. Em um cenário de eliminação total, a desvantagem masculina cairia drasticamente, demonstrando que as causas externas são um importante fator que contribui para o hiato de gênero na mortalidade. A redução dessas mortes teria um impacto significativo na expectativa de vida dos homens, diminuindo a desvantagem na mortalidade em relação às mulheres.
A literatura fornece diferentes explicações que ajudam a compreender os resultados encontrados no presente estudo. Do ponto de vista demográfico, a mortalidade por causas externas, como acidentes, homicídios e suicídios, é significativamente mais alta entre os homens, especialmente em idades jovens e adultas 4,13. Este comportamento resulta em um aumento desproporcional na mortalidade masculina comparado à feminina, impactando negativamente a expectativa de vida masculina – algo que tem sido observado em diferentes localidades no Brasil 20,26, em cidades latino-americanas 27 e em outras partes do mundo 28. A eliminação dessas causas externas resultaria em um aumento substancial na expectativa de vida masculina, reduzindo assim o hiato de gênero.
Estudos anteriores corroboram a assertiva de que as taxas de mortalidade por causas externas são mais elevadas entre os homens devido a comportamentos de risco e maior exposição a ambientes perigosos 4,29. Por exemplo, em Minas Gerais, tanto no ano 2000 quanto em 2018, os homens registraram uma proporção maior de mortes em acidentes de transporte em comparação com as mulheres, apesar de uma leve redução dessa diferença em 2018 30. Além disso, os dados publicamente disponíveis também revelaram um aumento significativo na porcentagem de óbitos por agressões entre os homens, que são predominantemente mais afetados por essa causa em ambos os períodos 30.
Os achados de Minas Gerais dialogam com as evidências disponíveis em diferentes áreas geográficas. Um estudo dos perfis de mortalidade adulta em dez países latino-americanos revelou que as causas externas, particularmente homicídios e acidentes de trânsito, são contribuintes significativos para as taxas mais altas de mortalidade masculina 31. O estudo enfatizou que, apesar dos níveis variados de mortalidade adulta geral entre esses países, o padrão de alta mortalidade por causas externas entre os homens permanece consistente, indicando um problema regional generalizado 31.
A análise dos padrões etários da desvantagem masculina na mortalidade em Minas Gerais entre 1980 e 2018 apresentados neste estudo revela duas tendências principais: o aumento do nível em praticamente todas as idades e o rejuvenescimento da curva de mortalidade por causas externas. Esses padrões são consistentes com achados de outros estudos em diferentes localidades, incluindo São Paulo 32,33 e diferentes países desenvolvidos 34.
O rejuvenescimento da curva de mortalidade por causas externas indica que os homens jovens são cada vez mais afetados por esses fatores, o que pode ser atribuído à urbanização e migração de jovens para áreas urbanas no final do século XX em busca de melhores oportunidades 35, podendo aumentar a exposição a riscos associados a causas externas de morte, como violência urbana e acidentes de trânsito, que afetam desproporcionalmente os homens jovens 4. Outras questões como mudanças nas normas sociais e exposição a riscos ocupacionais (empregos de maior risco como construção civil e setor de transportes onde a probabilidade de acidentes fatais é maior) também são possíveis hipóteses para o rejuvenescimento da desvantagem masculina em Minas Gerais, mas que requerem investigações mais aprofundadas.
Outro ponto a ser esclarecido é que o hiato de gênero na mortalidade reflete desigualdades sociais mais amplas enraizadas em normas sociais, condições econômicas e práticas culturais 10. Sociologicamente, a maior mortalidade masculina por causas externas pode ser atribuída aos papeis de gênero que incentivam comportamentos de risco e agressivos entre os homens 11,36,37.
A masculinidade tradicional muitas vezes valoriza a bravura, a competitividade e a predisposição ao risco, aumentando a probabilidade de envolvimento em situações perigosas 36,38. Além disso, as normas de gênero tendem a incentivar os homens a serem assertivos e competitivos em contextos sociais e profissionais, resultando em comportamentos agressivos e arriscados, como brigas ou esportes extremos, para afirmar sua posição 39.
A eliminação das causas externas, como acidentes de trânsito e homicídios, teria um impacto significativo na redução das mortes associadas a esses comportamentos e, consequentemente, no hiato de gênero na mortalidade 40,41. No entanto, essa redução não ocorreria isoladamente; ela refletiria mudanças mais amplas nas normas sociais e culturais que perpetuam tais práticas 42. A diminuição dessas mortes indicaria não apenas uma melhoria na saúde pública, mas também uma transformação nas normas culturais que sustentam a masculinidade tradicional 43. Normas que antes valorizavam bravura, competitividade e exposição a riscos seriam gradualmente substituídas por uma maior valorização da saúde e da segurança, tanto no âmbito pessoal quanto social. Assim, ao trabalhar na redução das mortes por causas externas, estaríamos simultaneamente promovendo uma mudança cultural que valoriza a equidade de gênero e a longevidade saudável 41.
Embora a redução do hiato de gênero na mortalidade por causas externas seja frequentemente atribuída aos maiores ganhos que a população masculina teria comparativamente às mulheres, é fundamental analisar essa questão sob a perspectiva feminina para uma compreensão mais completa das dinâmicas envolvidas. A redução das mortes por causas externas reflete não apenas uma mudança nas normas que perpetuam os comportamentos de risco masculinos, mas também uma transformação na dinâmica de gênero que pode impactar a saúde feminina de maneiras ainda não completamente exploradas 44,45.
Ao mesmo tempo em que os homens teriam maiores ganhos em expectativa de vida com a redução de comportamentos de risco, as mulheres também enfrentariam mudanças significativas em suas próprias experiências de mortalidade e longevidade. Estudos recentes destacam que o aumento da participação feminina em setores tradicionalmente dominados por homens, como serviços de emergência, saúde, aviação e indústrias técnicas, traz novos desafios ocupacionais para as mulheres, incluindo riscos físicos e biomecânicos específicos 46. Essa vantagem feminina na longevidade poderia ser ameaçada se as mesmas normas sociais que anteriormente protegiam as mulheres de certas exposições de risco começassem a mudar, incorporando-as em contextos e a comportamentos de risco antes dominados por homens.
Assim, para uma visão mais equilibrada, é fundamental considerar que a redução do hiato de gênero na mortalidade não é apenas uma questão de ganhos masculinos, mas também de como as mudanças nas normas sociais e culturais estão remodelando as experiências de mortalidade e longevidade de ambos os gêneros 47. À medida que as normas sociais e culturais evoluem, incentivando menos comportamentos de risco, a mortalidade por causas externas tende a diminuir, reforçando a ideia de que essas mudanças sociais podem ter um impacto direto na saúde pública 48,49.
Este estudo contribui para a literatura recente ao fornecer evidências de como os óbitos por causas externas afetam o hiato de gênero na mortalidade em Minas Gerais e como essa tendência tem variado ao longo de diferentes décadas. No entanto, também reconhecemos a existência de algumas limitações. Primeiramente, a análise se baseia em dados de mortalidade agregados, o que pode mascarar variações intrarregionais significativas e diferenças socioeconômicas dentro de Minas Gerais. Além disso, a qualidade dos dados de mortalidade pode variar ao longo do tempo e entre diferentes regiões, potencialmente afetando a precisão das estimativas de mortalidade por causas externas.
Os próximos passos da pesquisa incluem a realização de análises mais detalhadas em sub-regiões de Minas Gerais para identificar áreas com maiores necessidades de intervenção. Estudos futuros também poderão incorporar dados qualitativos, como entrevistas e grupos focais, para explorar os fatores culturais e sociais que influenciam os comportamentos de risco entre os homens. Outro aspecto essencial é examinar como diferentes faixas etárias e principais causas de óbito contribuem para a variação nas taxas de mortalidade por causas externas, utilizando métodos de decomposição adequados. Além disso, é importante investigar outras medidas de desigualdade, como a variabilidade na idade ao morrer nos municípios de Minas Gerais, derivadas das tabelas de sobrevivência estimadas tanto para os homens como para as mulheres.
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