0248/2006 - Novas competências profissionais em saúde e o envelhecimento populacional brasileiro: integralidade, interdisciplinaridade e intersetorialidade
New health professional competences and the aged brazilian population: integrality, interdisciplinarity, intersectonarity.
Autor:
• Luciana Branco da Motta - motta,L.B. - RJ, RJ - NAI/UnATI/UERJ - <l.b.motta@ig.com.br>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
Este trabalho discute as características da formação médica frente ao processo de envelhecimento, e as especificidades da atenção à saúde do idoso, de forma a sistematizar as competências necessárias para profissionais de saúde. A premissa é que existe uma distância marcante entre, por um lado, conteúdos necessários à boa prática geriátrica e diretrizes das políticas de saúde e educação e, por outro lado, o currículo atual da graduação e da pós-graduação.A transição epidemiológica e demográfica coloca a Geriatria e Gerontologia como uma especialidade com mercado em expansão, tanto no setor público como privado, implicando a discussão da normatização da formação e distribuição de RH na saúde. Porém, a pouca valorização da presença de seus conteúdos nos currículos não reflete apenas uma questão pedagógica. Ao que tudo indica, apesar da legislação existente, ainda não está clara a importância destes conteúdos para a sociedade. A inclusão do processo de envelhecimento como curso de vida e em todos os seus aspectos nos currículos de graduação é uma prioridade. É também necessário ampliar a discussão sobre o papel da pós-graduação, da educação permanente e da educação continuada a fim de fazer frente ao desafio de envelhecer com qualidade.
PALAVRAS-CHAVE: educação médica, idosos, envelhecimento, recursos humanos.
Abstract:
This paper discusses the challenges that medical education face regarding the aging process of Brazilian population, with an emphasis on the health-disease process and the heath care for seniors, aiming at systematizing the contents and practices necessary to prepare health professionals to implement good geriatric practice within the framework of health and education policies. In Brazil today there ia a gap between those policies and the medical curriculum, both at the undergraduate and graduate levels.In the context of an epidemiological and demographic transition, a larger job market emerges in the area of Geriatrics and Gerontology , both in the public and private sectors, which demands the discussion of the regulation of educational processes and for the training of human resources in the country. However, the little emphasis of those themes in curricula has become a pedagogical and political pitfall. The inclusion of the aging process as part of the life course in all its consequences in within curricula is a priority for society. It includes problematizing the role of graduate, permanent, and continuing education according to health and educational policies for the challenges of population aging.
KEYWORDS : medical education , medical curriculum, seniors health, aging process, human resources
Conteúdo:
A população brasileira experimenta um processo de envelhecimento marcante e sua Política Nacional do Idoso (PNI/Lei 8842/94 – Brasil1) dispõe sobre a necessidade de ampliação do debate sobre o tema, via sua inclusão em todos os níveis de escolarização. Na área da saúde isto implicaria em ampliar conteúdos específicos na graduação, na pós-graduação e na educação permanente. No entanto, a atual escassez destes conteúdos na graduação coloca desafios extras para a especialização. Profissionais recém-egressos das faculdades não dispõem de competências mínimas para operacionalização da concepção ampliada de saúde na atenção aos idosos, o que implicaria, entre outros fatores, na identificação precoce das situações de risco para a fragilização, isto é, risco de perda de autonomia e independência, na utilização de medidas preventivas e de suporte, e na prática do trabalho em equipe. A busca da uma formação em geriatria (especialidade médica que atende aos idosos), caso restrinja-se ao estudo das patologias mais prevalentes e/ou ao processo biológico do envelhecimento não é capaz de preparar profissionais aptos a adequada atenção aos idosos. Deve incorporar portanto subsídios da gerontologia (disciplina que estuda o envelhecimento) que se caracteriza como um campo de saber onde a prática do trabalho em equipe é central, a interdisciplinaridade é inerente e a intersetorialidade está contida em sua definição. A gerontologia é marcada pela confluência de campos de saber de distintos setores como saúde, educação, direito, urbanismo, ciências sociais, como apontado na PNI .
Neste trabalho analisamos os desafios para o aparelho formador decorrentes do envelhecimento à luz do conceito de integralidade da atenção à saúde da população idosa e da necessidade de avançar na direção da interdisciplinaridade na formação em saúde e na intersetorialidade das ações e políticas.
Especificidades do Envelhecimento e Formação Profissional em Saúde
A população idosa apresenta alterações fisiológicas e patológicas que cursam com crescente dependência. Do ponto de vista teórico tal fato demanda aprofundamento de conceitos, tais como níveis de prevenção, paliativismo, suporte e apoio social. Na prática, aos profissionais cabe trabalhar com pacientes e suas famílias/cuidadores, enfrentando juntos situações de perda e morte. Conceitos específicos da gerontologia como síndromes geriátricas, reabilitação, fragilidade, independência (capacidade de executar tarefas sem ajuda) e autonomia (capacidade de autodeterminação) não constam habitualmente dos conteúdos da graduação, mas são operacionais para a proposição de condutas adequadas. Intervenções baseadas em tal moldura extrapolam o modelo biomédico, hegemônico. Enfocando o estudo da doença, o modelo biomédico secundariza aspectos sociais, econômicos e subjetivos na determinação do processo de saúde-doença, e caracteriza-se pelo reducionismo, ao tratar fenômenos complexos como princípios primários simples, e pelo dualismo mente-corpo (Engel2 ).
Um modelo mais ampliado e com maior potencial explicativo foi chamado por Engel2 de biopsicossocial, e permite redefinir o papel profissional, significando, no campo da atenção ao idoso, ampliar a contribuição da gerontologia. Seguindo nesta direção Ramos3 aponta a importância da avaliação da capacidade funcional, entendida como a capacidade de manter-se independente e autônomo, relacionada a fatores sócio-demográficos, percepção subjetiva, saúde física e mental, independência nas atividades do cotidiano, suporte social e familiar e a utilização de serviços, como novo paradigma da saúde pública frente ao envelhecimento: o conceito de saúde se inclina para a manutenção da autonomia, mesmo na presença de doenças crônicas (controladas). O envelhecimento saudável é assim entendido como a interação entre saúde física e mental, independência nas Atividades de Vida Diária (capacidade de vestir-se, tomar banho, fazer higiene, transferir-se, alimentar-se, ser continente), integração social, suporte familiar e independência econômica.
Aliado à falta de treinamento específico para a avaliação da capacidade funcional, evidências indicam que os profissionais de saúde não estão habilitados na identificação e intervenção nas síndromes geriátricas -- apesar da abordagem tecnicamente correta de problemas clínicos isolados. Em estudo realizado no Rio Grande do Sul, Silvestre4 observou que idosos internados em hospitais gerais não recebiam assistência médica e psicossocial de acordo com suas necessidades: problemas típicos da idade não foram identificados ou tratados adequadamente. As conseqüências disto incluem o prolongamento do tempo de internação, redução da capacidade funcional do idoso por ocasião da alta e reinternações mais freqüentes.
Os gastos com saúde tendem a aumentar progressivamente com o envelhecimento populacional, agravando o desafios de promoção da eqüidade. Como cuidar da parcela mais pobre, com maiores comorbidades, e maior incapacidade, através de uma abordagem diagnóstica, terapêutica e de reabilitação adequadas? Grandes gastos não garantem, em si, a melhoria da qualidade de vida dos idosos, sendo necessário trabalhar para a mudança nos princípios que regem a atenção à sua saúde Motta5. O aumento da expectativa de vida traz como conseqüência uma necessidade de mudança no modelo clínico-assistencial e na formação profissional, como aprofundaremos a seguir.
Interfaces das Políticas voltadas para os Idosos
Muitas são as políticas que focam o idoso e sua família, porém, as dificuldades na implementação abrangem desde a precária captação de recursos ao frágil sistema de informação para a análise de condições de vida e saúde, passando, evidentemente, pela inadequada capacitação de recursos humanos. Apesar de, nos últimos anos, o processo de envelhecimento vir sendo mais discutido, as mudanças a ele intrínsecas ainda não parecem claras para a sociedade e suas instituições. Ou seja, do ponto de vista da normatização legal, o envelhecimento é protegido no Brasil, havendo diretrizes a serem seguidas, mas cuja sua implementação ainda não se fez de forma completa. Selecionamos seus principais trechos:
1) Lei Orgânica da Saúde (n° 8080/90 – Brasil6). Dentro dos princípios destaca-se a preservação da autonomia, da integridade física e moral da pessoa, a integralidade da assistência, e a fixação de prioridades com base na epidemiologia.
2) Política Nacional de Saúde do Idoso (Brasil7). Fundamenta a ação do setor saúde na atenção integral à população idosa, em conformidade com a Lei Orgânica e com a Política Nacional do Idoso. Tem como propósito “a promoção do envelhecimento saudável, a manutenção e a melhoria, (...) da capacidade funcional dos idosos, a prevenção de doenças, a recuperação da saúde (...) e a reabilitação daqueles que venham a ter a sua capacidade funcional restringida”. A PNSI aponta diretrizes essenciais para o alcance destes propósitos incluindo a capacitação de recursos humanos especializados.
3) Estatuto do Idoso (Lei 10741/2003 – Brasil8). Enfatiza a interface entre intersetorialidade e direito à saúde: “É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde” (Art.15). Incorpora o conceito de integralidade da atenção, ao afirmar que “O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe (...) todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (Art 2). Coerentemente, o Estatuto do Idoso aborda a problemática de recursos humanos: “As instituições de saúde devem atender aos critérios mínimos para o atendimento às necessidades do idoso, promovendo o treinamento e a capacitação dos profissionais, assim como orientação a cuidadores familiares e grupos de auto-ajuda” (Art.18). O artigo 22 demanda a inserção, nos currículos dos diversos níveis de ensino formal, conteúdos relativos ao processo de envelhecimento, à eliminação de preconceitos e à valorização social dos idosos.
Atenção Integral á Saúde do Idoso
A Constituição Brasileira (Brasil9) incorpora uma concepção ampliada de saúde, entendida como direito de cidadania: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Art. 196).
A Lei Orgânica da Saúde (8080/90) no art 7° explicita, no seu conjunto de princípios, o caráter integral da assistência. Desde então, o conceito de integralidade vem sendo objeto de reflexão na literatura em Saúde Coletiva. Mattos10 confere-lhe três conjuntos de sentido: o de atributo das práticas dos profissionais de saúde, de atributo da organização dos serviços, e o de resposta governamental via políticas voltadas para grupos populacionais específicos.
Nessa perspectiva abrangente, a idéia de prevenção, em todas as seus níveis, perpassa a atenção integral (Leavell e Clark11). Por exemplo, ao trabalhar com patologias crônicas e degenerativas, o profissional de saúde pode objetivar evitar sua instalação (prevenção primária) ou minorar suas conseqüências (prevenção secundária e terciária). O conhecimento do processo de envelhecimento e da cascata de eventos que se seguem à perda do equilíbrio do organismo envelhecido, reiteram a importância do trabalho preventivo. É preciso conhecer as características das enfermidades em idosos, pois seus sintomas são confundidos com transtornos normais do envelhecimento, podendo apresentar-se de forma mascarada ou subaguda, sem os sinais clássicos. É freqüente a superposição de enfermidades crônicas, na forma de entidades sindrômicas: são as chamadas síndromes geriátricas. Estas podem incluir alterações sensitivas, imobilidade, depressão, conseqüências de iatrogenia, estado confusional agudo, desnutrição, quedas, incontinência, déficit cognitivo e presença de pluripatologia.
A abordagem terapêutica das síndromes geriátricas objetiva preservar a capacidade funcional. A modificação da resposta à enfermidade e o alentecimento dos processos de recuperação, engendram considerações éticas e negociações sobre conduta. A formação de recursos humanos deve pautar-se na compreensão do modelo biopsicossocial aplicado ao envelhecimento e na necessidade do trabalho interdisciplinar e multiprofissional.
A integralidade enseja a flexibilização da divisão técnica do trabalho. Em um estudo empírico sobre equipes de saúde, em quatro cenários de prestação de serviços, Peduzzi12 analisa as concepções que informam o trabalho dos participantes. A autora propõe as categorias de “equipe agrupamento”, caracterizada pela justaposição de ações, e “equipe integração” orientada pela a articulação das ações, com forte ênfase na comunicação. A atenção integral à saúde só é alcançável quando o trabalho se articula quebrando a fragmentação entre os saberes e práticas. Neste caso, “profissionais realizam intervenções de suas respectivas áreas, mas também executam ações comuns, nas quais estão integrados saberes provenientes de distintos campos” (p.108).
Para avançar na direção da integralidade é importante identificar os obstáculos no trato com a população idosa. Adams13 investigou o que médicos atuando na atenção primária (saúde da família e clínicos) consideram particularmente difícil. A lista inclui: a) a complexidade médica e a vulnerabilidade dos idosos aos eventos adversos (apresentação de doença crônica e/ou atípica, rápido declínio do estado geral, interações indesejáveis entre múltiplas medicações, risco de iatrogenia, presença de déficits cognitivos e sensoriais); b) os desafios pessoais e interpessoais da relação (barreiras de comunicação, dificuldade no lidar com familiares, questões éticas e percepção da própria ineficácia); c) os problemas institucionais e administrativos (treinamento insuficiente, pagamento reduzido, recursos comunitários insuficientes, falta de tempo para o correto atendimento), que incluem o isolamento no trabalho como fonte de frustração.
Apesar da geriatria estar se estabelecendo como especialidade médica com identidade própria, ainda não está resolvida a questão do cuidado aos idosos devido ao crescimento desproporcional desta população em relação à formação de especialistas (Cohen14). A atenção básica já é oferecida aos idosos pelos clínicos e médicos de família nas suas práticas. Nela, a capacitação de recursos humanos ganha especial relevância quando o sujeito da atenção é o idoso, sendo necessário problematizar os valores e atitudes dos médicos frente a esta população, a (pouca) importância que lhe é socialmente atribuída, a falta de suporte social para grande número de idosos, os recursos comunitários inadequados, e a necessidade de trabalhar em cenários distintos (Adams13).
Neste trabalho analisamos a literatura sobre características da formação desejável do profissional médico e sua adequação na construção da atenção integral à saúde do idoso frente às demandas advindas do envelhecimento brasileiro. Tendo como referência as políticas de saúde e de educação superior, sistematizamos conteúdos e práticas, habilidades e competências necessárias para este profissional e o processo de ensino-aprendizagem adequado a esta formação segundo a literatura específica nacional e internacional.
O processo educativo estratégico para o enfrentamento do envelhecimento populacional não se restringe somente à graduação ou ao saber médico. Ele compreende níveis educacionais anteriores à graduação e avança para a educação permanente e continuada, com foco no trabalho interdisciplinar e em equipe, porém neste estudo enfatizamos a graduação e a residência médica.
Através da busca sistemática foram selecionadas referências que sistematizam a organização de currículos com descrição de competências a serem desenvolvidas desde a graduação, passando pelo treinamento em Clínica Médica e Medicina de Família até a formação do especialista em Geriatria e Gerontologia. A análise foi organizada em torno das categorias: interdisciplinaridade, competências e currículo.
Interdisciplinaridade e Intersetorialidade na Saúde do Idoso
O debate acadêmico acerca da interdisciplinaridade emerge no bojo da crítica à fragmentação do saber e da produção de conhecimento. Para alguns autores extrapola a mera agregação dos seus campos de origem, visando à associação dialética entre dimensões polares como teoria e prática, ação e reflexão, conteúdo e processo. (Lück15). Ambiciona avançar na superação da visão restrita de mundo e resgatar a centralidade humana na produção do conhecimento como determinante e determinada. A integração entre diferentes áreas e a abordagem de problemas de forma criativa demanda uma mudança individuais, institucionais, e ações intersetoriais.
Vasconcelos16 descreve alguns obstáculos que construção tão ambiciosa enfrenta. O arcabouço das Instituições de Ensino Superior (IES), organizado em faculdades e departamentos que eventualmente não se comunicam, pode impedir o desenvolvimento de cultura acadêmica que desenvolva e compartilhe o trabalho de forma interdisciplinar. Além disso, a formalização das profissões implica em reivindicações de saberes e competências exclusivos, às quais é atribuído um mandato social para realização de tarefas específicas, controle de recursos e responsabilidade legal, cristalizando a divisão social e técnica do trabalho. A institucionalização de organizações corporativas exerce controle na formação, nas normas éticas e na defesa de interesses econômicos e políticos dos respectivos grupos. Assim, as práticas na saúde incorporam estratégias de negociação saber/poder, de competição intra e intercorporativa em processos institucionais e socioculturais que impõem barreiras à troca de saberes cooperativa.
O desenvolvimento de práticas interdisciplinares envolve flexibilização dos mandatos sociais e revisão das legislações profissionais, bem como a ampliação destas práticas na formação dos profissionais, buscando uma nova profissionalização capaz de enfrentar novos desafios teórico-práticos. Inclui a integração do ensino-pesquisa-extensão, a democratização da hierarquia institucional, e a possibilidade de quebra das defesas corporativas, permitindo a troca e o aprendizado (Vasconcelos16).
No campo da saúde, a interdisciplinaridade acena com a possibilidade da compreensão integral do ser humano no contexto das relações sociais e do processo saúde-doença (Feuerwerker17). Sua construção ultrapassa a mera renovação de estratégias educativas, necessitando ser consolidada pela reestruturação acadêmica e institucional via o compromisso com as necessidades sociais de saúde.
A Gerontologia é intrinsecamente interdisciplinar, pois o processo de envelhecimento permeia todos os aspectos da vida. Incorpora conteúdos científicos e técnicos de vários campos, nos quais destacam-se a Biologia, a Psicologia e as Ciências Sociais (Martins Sá18). A Gerontologia opera a criação de novas estruturas conceituais que, ao romperem com as estruturas disciplinares de origem, são recombinados e sintetizados de forma a configurar uma nova totalidade. Seu campo de saber, competências e responsabilidades confluentes às diversas profissões, é caracteristicamente intersetorial, com a participação potencial de todas as ciências que estudam e atuam no envelhecimento.
Assim, enfocar as competências na atuação junto ao idoso objetiva novos recortes do conhecimento e sua contextualização no processo social do envelhecimento e na prestação de serviços. Inclui a capacidade de atuação frente à imprevisibilidade e diversidade de situações, almeja o trabalho em equipe multiprofissional, e a mobilização de conteúdos diversos buscando a atuação integral ao nível do profissional de saúde, das estruturas organizacionais, e dos arranjos políticos.
Competência Profissional
O trabalho em saúde é marcado pelas relações interpessoais entre os profissionais e usuários (DeLuiz19). Caracteriza-se por ser um trabalho reflexivo e dependente do recrutamento de saberes distintos: científico, técnico, derivado de experiências de trabalho e sociais e de valores ético-políticos. Distingue-se também pela complexidade, isto é, incorpora a diversidade profissional, dos atores e interesses, das tecnologias, da organização do espaço; pela heterogeneidade devido à variedade de processos de trabalhos coexistentes; e, pela fragmentação conceitual, do pensar e fazer, da técnica (pluralidade profissional) e social (divisão social do trabalho e entre as categorias).
O conceito de competência tem caráter polissêmico, sendo descrito como: capacidade para aplicar habilidades, conhecimentos e atitudes; habilidade de utilizar o conhecimento a fim de chegar a um propósito; capacidade de utilizar conhecimentos e habilidades adquiridos para o exercício profissional; capacidade de mobilizar saberes -- saber-fazer, saber-ser, saber-agir; capacidade para resolução de um problema (Depresbiteris20). Perrenould21 destaca a capacidade de mobilização de conhecimentos que "supera o tatear reflexivo (...) e aciona esquemas constituídos" (pag 23). Bourdieu (1972, apud Perrenould21) chamou de “habitus" ao conjunto de esquemas constituídos que permitem práticas adaptadas a situações renovadas. A reflexão também depende do “habitus”, pois a conscientização e o pensamento formal passam pela implementação de esquemas de pensamento, avaliação e julgamento, os quais podem ser utilizados em contextos diversos. Assim sendo, competência significa a construção de disposições e esquemas que permitem mobilizar os conhecimentos, no momento certo e com discernimento. A competência seria a capacidade de orquestração destes esquemas. Um especialista é competente porque é capaz de dominar rapidamente situações comuns com esquemas que entram em ação automaticamente e, além disso é capaz de, coordenar e diferenciar rapidamente os esquemas de ação e os conhecimentos para enfrentamento de situações inéditas (Perrenould21).
A formação profissional tradicional, no modelo voltado para a qualificação, objetiva disciplinar o trabalhador e ensinar-lhe um ofício. Nesta, o nível de escolaridade relaciona-se ao nível da complexidade necessária para o exercício profissional, correlacionando-se com a posição do treinando na hierarquia social. Os diplomas atestariam a qualificação profissional, isto é, a capacidade de desempenhar um papel, bem como, em geral, a inserção de classe de seu portador. Com as mudanças no mundo do trabalho que valorizam a subjetividade e o saber tácito, a qualificação real passa a se contrapor à formal. Assim, competência é “... mecanismo subjacente que permite a integração de múltiplos conhecimentos e atos necessários à realização da ação" (Ramos22), sendo condição de desempenho pois expressa os recursos articulados e mobilizados frente a uma situação. Sendo assim, o desempenho seria conseqüência das competências, porém uma única ação pode mobilizar várias competências, que correspondem tanto ao resultado do trabalho quanto à reflexão das condições da produção, meios usados, finalidade e organização da ação. A formação baseada em competências se denominou pedagogia diferenciada, e se fundamenta em um processo centrado na aprendizagem (e não no ensino), na valorização do aluno como sujeito e na construção do conhecimento (Ramos22).
No que tange ao objeto desse estudo, a formação profissional em saúde do idoso, observa-se que, apesar da adequação curricular ser mencionada na PNI e na PNSI, não há uma especificação das competências a serem desenvolvidas nestes processos. As competências profissionais emergem com maior significado, porém, nas Diretrizes Curriculares para a Graduação, conforme discutido a seguir.
O currículo e a formação do profissional médico frente ao envelhecimento populacional
O currículo pode ser definido como o mecanismo através do qual um dado conhecimento é distribuído socialmente, traduzindo escolhas, conscientes ou não, ...”através das quais a sociedade seleciona, classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento educativo considerado público [refletindo] a distribuição do poder e dos princípios do controle social" (Bernstein,1980, apud Sacristán23). Ou seja, o currículo expressa a função socializadora da escola, sendo elemento orientador da prática pedagógica. Como ponto de cruzamento entre componentes: pedagógicos, políticos e administrativos, está no cerne da qualidade do ensino e da mudança das práticas, fomentando (ou não) o aperfeiçoamento dos professores, a renovação institucional e a inovação escolar (Sacristán23). Por estas razões mudanças curriculares são muitas vezes lentas.
A American Geriatrics Society24,25,26 propõe que a gerontologia e geriatria sejam integradas no currículo nas diversas séries da escola médica, e que a experiência em geriatria seja requerida para completar a formação em medicina. Porém, estudo feito pela OMS mostrou que, mesmo em países com rápido processo de envelhecimento, a inserção da geriatria no currículo médico ainda não aparece como prioridade (Keller27).
No Brasil, uma das estratégias utilizadas para a transformação curricular da graduação é a diversificação de cenários de ensino-aprendizagem, o que significa a alocação de carga horária expressiva dos estudantes e preceptores em unidades básicas de saúde e organizações comunitárias. Tais iniciativas colocam-se como oportunidades de avanços via práticas interdisciplinares e multiprofissionais. Não se trata apenas de mudar o local onde se desenvolve a prática, mas
"a incorporação e a inter-relação entre métodos didático-pedagógicos, áreas de prática e vivências, utilizando tecnologias e habilidades cognitivas e psicomotoras...[incluindo] a valorização dos preceitos morais e éticos orientadores de condutas individuais e coletivas (...). Relaciona-se ao processo de trabalho, ao deslocamento do sujeito e do objeto do ensino e à revisão da interpretação das questões referentes à saúde e à doença" (Feuerwerker e cols28).
Ou seja, novos cenários ensejam novos conteúdos e práticas curriculares, redirecionando a perspectiva sobre intervençôes em saúde, com potencial estabelecimento de relações mais simétricas de colaboração entre os participantes (incluindo o usuário e seus familiares). Novos cenários são espaços de expressão de conflitos entre poderes/saberes e entre escolhas políticas e éticas, favorecendo a articulação entre teoria e prática na identificação das necessidades de saúde. A expectativa é de que a participação dos estudantes das diversas carreiras no cotidiano dos serviços permitirá a vivência responsável da realidade, permitindo ao processo pedagógico situar seu eixo na solução de problemas, e potencialmente transformando o processo de trabalho.
Os benefícios da diversificação de cenários na formação de profissionais capazes de atuar junto ao processo de envelhecimento e com idosos incluem a potencial redução dos preconceitos, pela facilidade de contato com idosos saudáveis, e também o enfrentamento do processo de envelhecimento do próprio profissional de saúde. O desenvolvimento precoce do trabalho em equipe e a inserção do aluno em atividades com responsabilidade crescente reforçam a compreensão da importância de cada profissional na construção da integralidade na atenção à saúde. A articulação do processo de ensino-pesquisa-extensão nos novos cenários permite ao aluno contextualizar melhor seu papel social através de contribuições concretas às instâncias prestadoras de serviço ao longo de toda a graduação (Aguiar e Cordeiro29).
O diálogo entre saúde e educação e a interação entre serviços e universidade se impõe. A partir de demanda da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil30), as carreiras da área de saúde discutiram diretrizes curriculares para vigorarem em todo território nacional. As Diretrizes Curriculares para o Ensino da Graduação em Medicina, homologadas pelo Conselho Nacional de Saúde em 2001, vêm normatizar aspectos como o modelo pedagógico (centrado no estudante), o equilíbrio entre teoria e prática, a inclusão de novas tecnologias (à luz das demandas sociais e das mudanças epidemiológicas), com foco na promoção da saúde e prevenção de doenças em todas as fases do ciclo de vida.
As competências para a atenção ao idoso estão contempladas indiretamente nas diretrizes, posto que o envelhecimento faz parte do ciclo de vida. Sua ausência ou insignificância, na concepção do currículo médico “construído socialmente”, aponta para a restrita importância atribuída socialmente a esta parcela da população. Na implementação das diretrizes, é necessário incluir conteúdos sobre envelhecimento, saúde do idoso, trabalho em equipe e a noção de saúde ampliada em quase todas as disciplinas ao longo do curso, dado que a geriatria e a gerontologia alicerçam-se nas áreas básicas (fisiologia, bioquímica, farmacologia), na área clínica e cirúrgica, nas Ciências Humanas e na Saúde Pública. De fato o envelhecimento coloca-se como potente alavanca impulsionadora da integração do currículo e pode mobilizar desenvolvimento de atitudes e habilidades úteis para atenção em saúde de boa qualidade em geral.
Questões específicas da geriatria e gerontologia incluem o conhecimento das síndromes geriátricas e sua abordagem preliminar, agravos como abandono, maus-tratos, desordens afetivas e do humor e o exercício da sexualidade. Além destes, também o uso dos instrumentos de avaliação da capacidade funcional e cognitiva, a avaliação geriátrica ampla, o treinamento em equipe e em diferentes cenários devem ser inseridos no currículo, bem como o conhecimento do sistema de saúde e dos recursos de apoio social disponíveis.
Aspectos operacionais das competências em geriatria e gerontologia são encontradas na literatura internacional. A British Geriatric Society31 e a American Geriatric Society24 sistematizam atitudes e habilidades a serem desenvolvidas na graduação. A lista é sofisticada e inclui a apreciação da diversidade entre os idosos, o equilíbrio entre qualidade e prolongamento de vida, a valorização do trabalho de todos os membros da equipe, o reconhecimento dos idosos como parte da sociedade, os preconceitos relacionados ao envelhecimento (de si próprio e do outro), a importância relativa da idade cronológica, o trabalho do cuidador e a mudança de paradigma do trabalho em geriatria usando a otimização funcional. Preconiza treinar o aluno na capacidade de comunicação, mesmo em presença de déficits sensoriais, na avaliação geriátrica ampla, e na avaliação funcional, cognitiva, da marcha e do equilíbrio (são testes relativamente simples que podem constar das atividades regulares da graduação). Ressalta as síndromes e doenças comuns no envelhecimento, o processo de planejamento de metas para abordagem em equipe, o conhecimento dos recursos de suporte sociais disponíveis e as características do sistema de saúde.
A pós-graduação
Segundo o Joint Committe on Higher Medical Education32 o geriatra pode ser definido como o profissional especialista em: avaliação geriátrica ampla, manejo de doenças agudas e crônicas, em diversos cenários e na presença de várias comorbidades, diagnóstico e manejo das síndromes geriátricas e de pacientes com problemas de abordagem complexos; maximização da independência funcional; trabalho em equipe interdisciplinar voltado para o planejamento da abordagem conjunta, especificidades do processo de envelhecimento na fisiologia, patologia, farmacologia; e um crescente papel no cuidado de idosos fragilizados e dos que necessitam de cuidados paliativos. Pode-se acrescentar sua atuação na produção de conhecimento e pesquisas na área do envelhecimento, no aperfeiçoamento do sistema de informação, e na educação, formação e treinamento de recursos humanos, na graduação e na pós-graduação.
A escassez de especialistas em geriatria e gerontologia no Brasil é hoje uma realidade. Os poucos programas de Residência Médica existentes se situam predominantemente na Região Sudeste. Os cursos de especialização em geriatria são numericamente restritos e localizam-se no mesmo eixo espacial. A caracterização do especialista em Geriatria e Gerontologia é uma importante atribuição, no Brasil, da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), visando a uma melhor definição inserção deste profissional no sistema de saúde dentro de suas especificidades.
Hoje, como a graduação não fornece o treinamento e conhecimentos minimamente adequados, para a pós-graduação coloca-se um desafio gigantesco. Seus conteúdos vêm limitando-se, em muitos casos, a suprir a falta de conhecimento prévio. Em outras palavras, hoje formam-se especialistas com o conteúdo básico que deveria constar da graduação, somados a fragmentos do treinamento que seria específico da pós-graduação. A institucionalização da área de geriatria e gerontologia, após sua devida inserção na graduação, deverá cursar com uma grande sofisticação dos parâmetros para os currículos de Residência Médica e especialização e pós-graduação estrito senso.