0124/2025 - O uso de fontes não-tradicionais para a vigilância em saúde: atendimentos de urgência para detecção precoce de eventos
Non-traditional sources for health surveillance: using emergency data for early-detection
Autor:
• João Henrique de Araújo Morais - Morais, JHA - <joao.tlp@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3258-1498
Coautor(es):
• Débora Medeiros de Oliveira e Cruz - Cruz, DMO - <debora.sanitarista@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8325-6866
• Valeria Saraceni - Saraceni, V - <valsaraceni@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7360-6490
• Caroline Dias Ferreira - Ferreira, CD - <carolineferreira.smsrio@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9631-8571
• Gislani Mateus Oliveira Aguilar - Aguilar, GMO - <gislanimateus@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9103-9864
• Oswaldo Gonçalves Cruz - Cruz, OG - <ogcruz@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3289-3195
Resumo:
A preparação e resposta às emergências em Saúde Pública envolve o investimento em sistemas de detecção precoce, alerta e resposta. Esse artigo analisa a estratégia de utilização de dados de atendimentos da Rede de Urgência e Emergência unida à aplicação de modelos de detecção de tendências para geração automatizada de alertas, implementada no município do Rio de Janeiro. A partir de categorias da CID-10 marcadas nos dados dos atendimentos, séries temporais de interesse à Vigilância em Saúde foram monitoradas. Um modelo aditivo generalizado (GAM) foi ajustado às séries para suavização, determinação da inclinação e geração dos alertas. Na comparação de tendências para Covid-19 entre os dados do SIVEP/ E-SUS e os atendimentos da rede de urgência e emergência, verificou-se um ganho na velocidade de identificação de sinais de crescimento. No monitoramento das diarreias, o alerta gerado permitiu a deflagração de estratégias de vigilância pelas unidades de resposta rápida. Os resultados exaltam a potencialidade desses dados na identificação de possíveis emergências de saúde pública, favorecendo uma atuação mais moderna para a Vigilância em Saúde.Palavras-chave:
vigilância em saúde pública, vigilância sindrômica, dados de saúde coletados rotineiramente, sistemas de painéis, registros eletrônicos de saúdeAbstract:
Preparation and response to Public Health emergencies involve efforts in developing systems for early detection, alert and response. In this paper, we present the strategy implemented in Rio de Janeiro municipality, dataurgency and emergency visits were acquired and modeled, in order to detect trend shifts and generate alerts. From the ICD-10 field in electronic records, time series representing events of interest were created. A generalized additive model (GAM) was fitted for smoothing, slope determination in each point, and alert generation. When comparing trends for Covid-19 between SIVEP/E-SUS systems and emergency attendances, a gain in speed was identified. On diarrhea monitoring, the generated alert led to coordinated communication and actions in the territory. We draw attention to the potential in the use of this type of data on identifying events of interest in a timely manner, promoting a more modern approach to Health Surveillance.Keywords:
public health surveillance, syndromic surveillance, routinely collected health data, dashboard systems, electronic health recordsConteúdo:
A rotina do trabalho da vigilância epidemiológica envolve o atendimento, notificação e a digitação de eventos suspeitos nas bases de dados dos sistemas de informações em saúde (SIS), etapas que frequentemente implicam em atraso para a prevenção de casos secundários de doenças transmissíveis 1. Algumas metodologias voltadas para a correção de atrasos de digitação e/ou antecipação da identificação de surtos têm sido desenvolvidas e aplicadas na Vigilância em Saúde (VS), tais como técnicas de nowcasting, por meio de modelagem bayesiana 2,3 e modelos de machine learning 4, respectivamente.
Enquanto o desenvolvimento e apropriação de métodos quantitativos para a elaboração de análises em saúde é fundamental para aprimorar a atuação da VS, a diversificação das fontes de dados utilizadas - especialmente com foco na identificação oportuna de surtos e possíveis Emergências em Saúde Pública (ESP) - é também uma abordagem recomendada 5,6. Registros de óbitos, dados laboratoriais, informações sobre vendas de fármacos, rumores em mídias sociais são exemplos de fontes não tradicionais que têm sido exploradas para compor as informações em saúde 7. No contexto nacional, recentemente, o uso de registros eletrônicos de consultas em unidades de atenção primária foi avaliado quanto a possíveis ganhos na detecção precoce de aglomerados de doenças respiratórias 8.
No município do Rio de Janeiro (MRJ), a estrutura de trabalho organizada para o enfrentamento à pandemia de Covid-19 inovou ao utilizar registros não usuais para a VS, como solicitação de vagas zero ao sistema de regulação de leitos e dados das Unidades de Pronto Atendimento, para a antecipação de cenários epidemiológicos 9. A inclusão de atendimentos da Rede de Urgência e Emergência (RUE) no monitoramento indicou uma oportunidade para elaboração de um sistema de detecção, alerta e resposta precoce na cidade, uma das funções essenciais à Saúde Pública 10.
Sistemas para a geração de alertas pressupõem a perspectiva de uma resposta mais oportuna, com garantia de uma investigação imediata do sinal/tendência identificada e comunicação coordenada do evento, alinhando-se ao conceito de inteligência epidêmica 10,11. Um EWARS - Early Warning, Alert and Response System - tem como característica alta sensibilidade e rápida atuação, tanto na detecção de sinais, quanto na deflagração de respostas (verificação do alerta e implantação de medidas de controle) 11. Nesse artigo analisou-se a estratégia de utilização de dados de atendimentos da Rede de Urgência e Emergência unida à aplicação de modelos de detecção de tendências para geração automatizada de alertas, implementada no município do Rio de Janeiro.
Metodologia
Esse manuscrito considerou analisar o potencial dos atendimentos da RUE, a partir de dois contextos (i) situação epidemiológica da Covid-19 ao comparar os dados de atendimentos da RUE versus notificações do SIVEP-Gripe e E-SUS; e (ii) detecção precoce de alterações na tendência de casos de diarreia. Um painel de alertas foi desenvolvido para facilitar o acompanhamento das séries temporais dos atendimentos.
Fonte de dados
Dados de atendimentos realizados em 15 unidades de pronto atendimento (UPA) e 4 Coordenações de Emergência Regional (CER), que integram o sistema municipal de saúde, foram utilizados nas análises, no período entre 2022 e 2024. Essas dezenove unidades representam 82,0% da rede de atenção à urgência e emergência do MRJ (n=23). Os dados analisados incluíram variáveis sociodemográficas, a identificação dos atendimentos segundo categorias da décima revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e informações das unidades de saúde.
Etapas de processamento
A captura dos atendimentos da RUE foi realizada diariamente, de forma automatizada, a partir de conexões via interface de programação de aplicações (Application Programming Interface - API) e carregadas para uma base local de dados no Centro de Inteligência Epidemiológica, implementada em PostGreSQL.
Os dados foram agrupados de acordo com o código identificador do paciente, unidade de atendimento e data de entrada na unidade de saúde - processo que permitiu eliminar registros duplicados. A variável campo de atendimento (contendo a categoria da CID-10) foi utilizada para reclassificação segundo as séries de interesse para a VS e, a partir dessa classificação, foram geradas as séries temporais com a contagem total, diária ou semanal dos atendimentos no município.
As séries do e-SUS e SIVEP-Gripe foram agregadas na unidade temporal semanal, utilizando como referência a data dos primeiros sintomas. O quadro 1 contém as categorias da CID-10 reclassificadas segundo as séries de interesse.
Quadro 1
Modelos estatísticos para monitoramento de tendências
Para a identificação precoce de alterações nas séries temporais foram calculadas e acompanhadas métricas para indicar: (i) a tendência de crescimento ou queda e (ii) o patamar de casos em relação ao valor de controle esperado. Para obter ganhos na oportunidade de resposta para a VS optou-se pela unidade de agregação diária. Modelos Aditivos Generalizados (GAM)12 foram utilizados para remoção do ruído presente nas séries, resultantes da carga diferencial de atendimentos em função do dia da semana e feriados e a extração de uma tendência geral.
Assumiu-se que a contagem diária de atendimentos para uma determinada série segue uma distribuição binomial negativa. Incluiu-se no modelo termos suaves, através das funções f(), que ajustam funções não-lineares aos dados. Um desses termos foi utilizado para representar a tendência temporal, através de uma função spline de regressão cúbica (“cr”); e outro para a captura do efeito diferencial nos dias da semana, a partir de uma função spline de complexidade penalizada (“ps”), conforme a representação:
?_t=?_0+f_1 (t)+f_2 (diadasemana)+? ,
onde ????t é o preditor linear exponenciado para o dia t, ?0 o intercepto do modelo, f() as funções suaves e ? o erro aleatório. Para identificação de alertas de crescimento, estabilidade ou queda, calcula-se a probabilidade da inclinação do último ponto da série suavizada ser positiva. A partir do modelo GAM ajustado, são geradas 100 amostras de trajetória de sua distribuição obtida e calcula-se o coeficiente de regressão linear em uma janela dos quatro últimos pontos, para cada uma das amostras. A probabilidade de crescimento se dá pelo percentual desses coeficientes que são positivos. Em caso de percentual >= 95%, classifica-se a série em crescimento; se menor que 5%, em queda; e caso contrário, em estabilidade. Os quantis históricos 0,2 e 0,8 do número de atendimentos são utilizados para definição de limites de controle para cada série (abaixo, dentro do esperado ou acima do patamar).
Além do monitoramento das séries, acompanham-se também os atendimentos individualizados que referem categorias da CID-10 com potencial para tornarem-se uma possível emergência de saúde pública. Essa estratégia captura eventos de notificação imediata que compõem a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública 12. No momento de atualização diária da base de atendimentos, caso identifique-se entre os novos atendimentos, alguma categoria da CID-10 referente a um evento de notificação compulsória, uma mensagem automática é enviada à equipe do Centro de Inteligência Epidemiológica (CIE) via e-mail. Dessa forma, a verificação do caso pelas equipes da vigilância pode ser iniciada sempre que um atendimento se refere a alguma dessas categorias.
Sinalizou-se adicionalmente, as categorias “novas e reemergentes” - representadas por um novo atendimento sem observação histórica ou que estavam sem observação após um período de tempo superior a 180 dias.
Visualização das séries temporais
As séries de interesse construídas (com e sem suavização) são monitoradas visualmente na forma de gráficos de séries temporais. Os quantis de controle, junto às sinalizações de variações geradas pelos modelos estatísticos, também foram inseridos na visualização. Os resultados foram reunidos em um painel interativo de acesso interno no CIE.
Para as análises foi utilizada a linguagem estatística R 13 (versão 4.3.2) e os pacotes “tidyverse” 14, “mgcv”15, “shiny”16 , “sendmailR”17, e “duckdb”18.
Aspectos éticos
A utilização dos dados e desenvolvimento desse painel interativo foram contemplados em projeto aprovado sob o parecer nº 6.572.784 do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.
Resultados
O monitoramento das séries de sintomas e síndromes por meio do Painel de Alertas iniciou-se no CIE em maio/2023. Na figura 1 encontra-se replicada a tela principal dessa ferramenta, onde visualizam-se seis séries temporais, que consolidaram os atendimentos para arboviroses, bronquiolite, covid-19, diarreia e síndrome gripal realizados no período de julho a fevereiro/2024, nas unidades da RUE.
Os períodos com tendência de crescimento nas séries temporais foram destacados pela linha contínua na cor preta, enquanto as linhas tracejadas representam os quantis superior e inferior com base na série histórica. Em fevereiro/2024, apenas a série para diarreia apresentava estabilidade, mas com frequência de casos diários acima do esperado. Para as outras cinco séries apresentadas observam-se tendências de crescimento. O painel implantado no CIE permite acompanhar a contagem diária de atendimentos, as tendências obtidas através da suavização, os alertas de crescimento e os quantis de controle para um total de 12 séries.
Figura 1. Atendimentos diários (círculos) e tendência suavizada (linha contínua) de seis séries monitoradas na RUE, MRJ, 15/07/2023 à 15/02/2024.
Fig. 1
Dados RUE frente ao SIVEP e E-SUS na antecipação do cenário epidemiológico
As tendências observadas por meio dos registros da RUE foram comparadas com os dados dos sistemas SIVEP-Gripe (casos graves) e e-SUS (casos leves). Na figura 2 apresentam-se as séries semanais de Covid-19 obtidas pelo monitoramento dos dados oficiais e, ao lado, os atendimentos marcados com as categorias correspondentes à Covid-19 e Síndrome Gripal.
As observações foram divididas em três recortes distintos no tempo: o que era observado até a semana epidemiológica (SE) 4/2024, até a SE 6/2024 e até a SE 8/2024. Este período foi notoriamente marcado por um aumento nos casos de Covid-19 no município 19. Observa-se que, já ao final da SE 4/2024, um aumento nos atendimentos por Síndrome Gripal pode ser observado; esse aumento é notório para a série de atendimentos por Covid-19 na SE 6/2024, e a partir de então o padrão das séries assistenciais assemelha-se ao que seria observado posteriormente nos dados oficiais.
Figura 2. Tendências das séries dos dados oficiais de Covid-19 (SIVEP e e-SUS) e dos atendimentos diários da RUE (atendimentos por Síndrome gripal e Covid-19), MRJ, SE 49/2023 a 10/2024.
Fig. 2
Detecção precoce na ocorrência de casos de diarreia
O processo de detecção precoce foi descrito para o sinal observado em relação ao aumento de atendimentos por diarreia no MRJ em 2023. No processo tradicional da vigilância epidemiológica, um surto de diarreia só seria notificado ao Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN) se configurado como tal, não havendo notificação de casos individuais. Na figura 3, exibe-se a série de atendimentos por diarreia na RUE e a tendência, entre os meses de outubro de 2022 a junho de 2023. Observa-se que a tendência gerou alerta de crescimento a partir de janeiro de 2023, ultrapassando o quantil histórico de 80% em fevereiro do mesmo ano. Observa-se também que o aumento se deu de forma semelhante entre as unidades de atendimento dos casos.
A detecção de crescimento dos casos gerou a verificação do sinal e deflagrou a ampliação das estratégias de vigilância relacionadas ao evento. No período de 16/02 a 20/03, foi estabelecida uma parceria com o laboratório Central de Saúde Pública e iniciou-se a coleta de amostras biológicas em diversas unidades. Essa ação visou detectar e identificar bactérias, vírus e parasitas relacionados à diarreia infecciosa, em circulação naquele momento. As coletas nas unidades sentinela (rotina da vigilância) foram mantidas para fins de comparação dos patógenos identificados.
Figura 3. Atendimentos diários por diarreia (pontos) e tendência suavizada (linha sólida) no município do Rio de Janeiro (a) e nas unidades (b), MRJ, Outubro de 2022 a maio de 2023.
Fig. 3
Estratégia de resposta implantada pela Vigilância em Saúde
Os sinais das séries monitoradas na RUE, junto aos alertas de crescimento e patamares de tendência compõem uma estratégia da VS orientada para a detecção precoce e resposta a eventos de importância à Saúde Pública. No delineamento desse processo considerou-se a capacidade instalada da rede de VS para a verificação dos sinais identificados. Esse fluxo deflagrado frente à identificação de um sinal foi ilustrado na figura 4. Na etapa de verificação do sinal, tanto as áreas técnicas da VS, quanto unidades de resposta rápida das 10 áreas de planejamento da cidade têm sido ativadas.
Figura 4. Detecção e resposta às possíveis ESP no MRJ.
Fig. 4
Discussão
A utilização, o processamento e a modelagem de registros da RUE, assim como a estruturação de um painel de alertas, têm permitido o monitoramento rotineiro de séries de interesse para a VS e favoreceu a identificação precoce e atuação oportuna em potenciais ESP. Essa estratégia está alinhada a uma abordagem moderna para a VS ao buscar diversificar as fontes de dados, as formas de consumo, tratamento e visualização das informações 5,6 e em conjunto com outros dados, aproxima-se da ideia de vigilância em mosaico 20.
O Painel de Alertas foi elaborado com a exploração de um dado classificado na literatura como estruturado 6 e ao considerar perspectivas para uma abordagem mais avançada para a VS, trouxe avanços por incorporar métodos analíticos e possibilidade de visualização mais sofisticada para a área. Observou-se que as tendências temporais de atendimentos corresponderam aos padrões observados nos sistemas oficiais, como SIVEP-Gripe, e-SUS e SINAN. Contudo, tem-se considerável vantagem temporal ao utilizar os dados de atendimentos, visto que não houve atrasos envolvidos no processo de notificação, digitação e obtenção desses dados.
Na comparação entre casos de Covid-19 notificados (e-SUS e SIVEP) e atendimentos da RUE, um aumento na tendência temporal de síndrome gripal foi perceptível ao final da SE 4/2024. Por Covid-19, o aumento passou a ser evidente ao final da SE 6/2024. O aumento seria correspondido posteriormente nos dados oficiais, porém somente após a entrada das notificações ou com a aplicação de algum algoritmo de nowcasting 2. Além da rápida identificação de sinais de crescimento, os dados de atendimentos indicaram também mudanças de patamar, no geral. Na mesma situação, para a SE 8/24 foi possível identificar queda na curva de atendimentos de Covid-19, padrão que ainda não era nítido por meio dos dados oficiais, visto que quedas observadas nas semanas mais recentes podem ser resultantes de atraso de notificação. No caso específico da diarreia, o monitoramento da tendência de casos, seguido da identificação oportuna de patógenos causadores passou a ser possível, não dependendo da notificação de surtos para a ação de saúde pública.
O processo de obtenção, tratamento e modelagem dos dados permitiu que os alertas fossem sensíveis a variações diárias. Dessa forma, não se depende da consolidação de dados semanais para identificação de mudanças no padrão e geração de alertas. A recuperação dos registros via API, além de trazer maior segurança para a transferência de dados, também contribui para a extração contínua e automatizada. No modelo implementado, a inclusão de um termo que captura o efeito do dia da semana permitiu o ajuste pelas diferenças nos atendimentos esperados em dias com mais e menos atendimentos. Contudo, o aumento da sensibilidade às mudanças nas curvas pode levar à geração de alertas que futuramente não se concretizam, o que caracteriza um efeito de borda, sendo minimizado pela utilização de splines de complexidade penalizada 21. A quantificação da incerteza no painel de alertas foi apresentada pelos intervalos de credibilidade para as inclinações, através de amostragem das tendências obtidas, permitindo a interpretação em termos de probabilidade de crescimento ou queda 22.
Os dados da RUE indicaram potencialidades na detecção precoce de possíveis emergências. Pelo que foi observado neste estudo, para o monitoramento da síndrome gripal e Covid-19, as séries temporais da RUE precediam o que seria visualizado pela notificação de casos nos sistemas de informação. Em outras iniciativas de implantação de sistemas de resposta rápida no Brasil, observou-se considerável correlação e antecipação dos sinais observados de doenças respiratórias na APS em relação aos dados oficiais 8,23. As vantagens da RUE em relação à APS incluem a demanda espontânea contínua e a cobertura de todos os dias da semana, o que não ocorre na APS. No caso do MRJ, utilizar as duas fontes de dados trará maior robustez ao sistema de alerta.
A dependência do uso do campo CID para construção das séries foi considerada um fator limitador, visto que designa-se apenas uma categoria para sumarizar o atendimento. Em determinadas situações investigadas, verificou-se também equívocos no momento da digitação do atendimento. Outras potencialidades mostram-se possíveis com a utilização de campos para além dos códigos da CID-10, como o campo aberto das queixas relatadas pelos pacientes. Em iniciativa de modelagem de atendimentos de emergência em Nova York, pôde-se identificar clusters sindrômicos de potencial emergência utilizando modelos de linguagem natural e técnica de scan-clustering 24. Dessa forma, identifica-se o uso desse campo como promissor em passos futuros, podendo colaborar para a captura de sinais e síndromes sem depender da indicação da categoria da CID-10 pelo profissional de saúde.
Outra limitação apontada trata da ausência de registros das unidades estaduais ou que não possuem conexão com a interface de aplicação em uso. Contudo, a representatividade dos dados para as análises não é fortemente comprometida, dado que o conjunto de registros disponibilizados são oriundos de 82,0% das unidades da RUE do MRJ, com cobertura de nove entre as dez áreas de planejamento da cidade. Argumenta-se neste ponto, que o monitoramento proposto cumpre seu papel quanto ao quesito de sensibilidade à mudança de tendências temporais e espaciais, além de favorecer a implementação de medidas de saúde pública, interesse essencial da VS. Ao considerar a dinâmica de doenças transmissíveis (como a Covid-19) e a importância de identificar áreas (foco/índice) para intervenções na cadeia de transmissão foi possível direcionar oportunamente as ações de VS.
O desenvolvimento de um painel de alertas, a partir de dados assistenciais do SUS configura-se como uma ferramenta de grande utilidade para a gestão, a assistência e a vigilância em saúde. O painel promove uma cultura de monitoramento e permite a antecipação de ações estratégicas de respostas territoriais mais rápidas, por meio de um processo totalmente executado pela esfera municipal. Os achados apresentam nível de incerteza tolerável, pois estão acoplados a mecanismos de checagem desenvolvidos pela vigilância epidemiológica.
A possibilidade de expansão da ferramenta para outros locais dependerá do nível de informatização do município, assim como da capacidade técnica dos quadros municipais. Urge a mudança da característica passiva da vigilância em saúde, ao receber notificações e depois sair em campo. É possível detectar casos suspeitos por meio de buscas em tempo real em prontuários eletrônicos e utilizar mão-de-obra qualificada em respostas mais rápidas e mais coerentes com as ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente.
Considerações finais
O processo de aquisição, tratamento e modelagem sobre os dados de urgência e emergência de forma sistematizada representou relevante avanço na detecção e ação rápida em possíveis emergências em saúde pública no MRJ. Desde 2023, múltiplos eventos de interesse resultaram em comunicação coordenada dentro da secretaria, algumas das quais levaram à investigação de campo, a partir de alertas observados no painel. A estratégia representa, portanto, um enorme ganho na identificação precoce de situações que não seriam identificadas rotineiramente ou seriam observadas após considerável intervalo de tempo, tornando-as inoportunas. A implementação do processo totalmente em software livre e de código aberto em todas as suas etapas é um aspecto que facilitou seu desenvolvimento e ampliação dentro da vigilância. Há diversas oportunidades de avanço na estratégia, que incluem ampliação da cobertura territorial dos dados, inclusão de dados de atenção primária e utilização de métodos de linguagem natural sobre campos abertos dos prontuários.
O monitoramento dos atendimentos da RUE por meio do painel de alertas trouxe ganhos à VS ao incorporar dados de fontes não tradicionais e também ao modificar substancialmente a forma de detectar eventos de importância em Saúde Pública.
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