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0280/2024 - Os arquivos da Fiocruz: fontes para a pesquisa sobre a ciência e a saúde na ditadura militar (1964-1985)
The Fiocruz archives: sources for research on science and health during the military dictatorship (1964-1985)

Autor:

• Paulo Roberto Elian dos Santos - Santos, P. R. E. - <elian@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1045-4375

Coautor(es):

• Felipe Almeida Vieira - Vieira, F. A. - <felipe.vieira@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0009-0003-6581-1648



Resumo:

Analisa a relação entre o processo de redemocratização política do país a partir da década de 1980 e a questão da identificação, preservação e acesso aos arquivos dos órgãos de informação e segurança que durante a ditadura militar (1964-1985) atuaram no combate aos adversários do regime autoritário. Aborda a ação da ditadura sob as instituições universitárias e científicas, de forma a destacar a importância do arquivo institucional da Fundação Oswaldo Cruz, assim como os arquivos pessoais mantidos pelos cientistas e doados à Casa de Oswaldo Cruz. Apresenta os arquivos e coleções organizados e disponíveis à consulta pública, que podem servir como fontes de pesquisa para os estudos históricos sobre a ciência e a saúde na ditadura.

Palavras-chave:

Arquivos da ditadura, Arquivos pessoais, Ditadura militar, Fontes históricas, Fundação Oswaldo Cruz

Abstract:

It analyzes the relationship between the country\'s political redemocratization processthe 1980s onwards and the issue of identification, preservation and access to the archives of information and security bodies that during the military dictatorship (1964-1985) worked to combat the opponents of the authoritarian regime. It addresses the dictatorship\'s action on university and scientific institutions, to highlight the importance of the archive of the Oswaldo Cruz Foundation, as well as the personal papers maintained by scientists and donated to Casa de Oswaldo Cruz. It presents archives and collections organized and available for public consultation, which can serve as research sources for historical studies on science and health during the dictatorship.

Keywords:

Dictatorship archives, Personal papers, Military dictatorship, Historical sources, Oswaldo Cruz Foundation

Conteúdo:

Introdução – sobre os arquivos e a ditadura militar
Lançado em 1985, último ano da ditadura militar, o livro Brasil: nunca mais (1) teve por base centenas de processos do Superior Tribunal Militar (STM), entre 1964 e 1979, produzidos pelas autoridades encarregadas da tarefa de punir os adversários do regime. Com discrição, sigilo e amparados por uma brecha facultada pela Lei de Anistia, de 1979, os advogados de presos políticos e exilados tiveram acesso aos documentos e acionaram uma operação ousada que produziu cópias integrais do acervo (um milhão de páginas microfilmadas), garantiu sua guarda em instituições no Brasil e no exterior, e viabilizou sua divulgação por meio de outras obras, além do livro citado (2).
Como decorrência da mobilização de diferentes atores do campo dos Direitos Humanos, a questão dos arquivos produzidos pelo regime autoritário esteve presente no contexto da transição política e redemocratização do país a partir de 1985, e passou a ocupar papel central na publicidade da memória do período ditatorial marcado pela tortura e outras graves violações de direitos, institucionalizadas pelo Estado e operacionalizadas pelos órgãos oficiais de repressão. A luta pela preservação e guarda sob custódia dos arquivos estaduais, da documentação das extintas Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), foi outro importante capítulo do lento processo de memória e construção da verdade sobre os acontecimentos históricos.
A criação, em 2009, do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985): Memórias Reveladas (3), coroou um percurso iniciado quatro anos antes com a iniciativa da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República de constituir um grupo de trabalho encarregado de elaborar o projeto de um centro de referência para abrigar, documentos, informações, arquivos, objetos e outros materiais sobre as violações praticadas no período da ditadura. A transferência para o Arquivo Nacional, de documentos de órgãos extintos como o Conselho de Segurança Nacional (CSN), a Comissão Geral de Investigações (CGI) e o Serviço Nacional de Informações (SNI); a constituição da Rede Memórias Reveladas; a identificação e recolhimento de documentos produzidos pelos órgãos de informações e segurança interna instalados no governo federal; as campanhas de doação de acervos privados; os editais de estímulo a pesquisa; e a realização de seminários, entre outras medidas, apontavam um cenário promissor para a justiça de transição brasileira. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) que iniciou suas atividades em 2012, pode contar com o acesso a um amplo conjunto de fontes de arquivo e promoveu a preservação e divulgação de outros registros documentais (4).
Nos últimos vinte anos ampliaram-se os estudos acadêmicos e investigações jornalísticas que analisam diferentes aspectos da ditadura militar. Ao lado do fortalecimento de uma historiografia sobre o período, surgiram obras autorais e coletivas que procuram posicionar os temas da memória e dos arquivos no centro do debate (5,6,7,8).
O objetivo deste artigo é traçar um panorama dos arquivos institucionais e pessoais sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz (COC) - instituto da Fiocruz dedicado a pesquisa histórica, a memória e a preservação do patrimônio cultural das ciências e da saúde - e indicar seus possíveis usos e potencialidades para pesquisas que visem compreender os fatos, os personagens, os efeitos e os impactos da ditadura militar nas atividades e na trajetória do Instituto Oswaldo Cruz, criado em 1900, e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituída por decreto de maio de 1970. A seguir, apresentamos uma descrição comentada dos arquivos e coleções que reúnem processos, cartas, relatórios, correspondência administrativa, fotografias, material de imprensa e conjuntos de depoimentos orais, organizados e disponíveis à consulta pública.
Os arquivos da Fiocruz: entre história institucional e memórias pessoais
A partir de 1964, a ação da ditadura sobre as instituições públicas, em especial as universidades, centros e institutos de ciência, caracterizou-se por cassações, aposentadorias, perseguições, prisões e inquéritos. O Instituto Oswaldo Cruz (IOC), criado em 1900, e dedicado a pesquisa, ao ensino e a produção no campo das ciências biomédicas, foi uma das instituições atingidas. O “Massacre de Manguinhos”, assim definido por Herman Lent no seu livro testemunho, publicado em 1978, começou a ser tecido desde abril de 1964 quando o Instituto passou a conviver com intervenções, perseguições e inquéritos para apurar supostos atos de subversão política e corrupção de parte de seus funcionários (9). Em abril de 1970, dez cientistas do instituto tiveram seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional n. 5 (AI-5) e foram compulsoriamente aposentados: Augusto Perissé, Tito Cavalcanti, Haity Moussatché, Fernando Ubatuba, Moacyr Vaz de Andrade, Hugo de Souza Lopes, Masao Goto, Herman Lent, Sebastião José de Oliveira e Domingos Machado Filho. Na sequência, aqueles que ali permaneceram passaram a presenciar a “obra” de desestruturação de linhas de pesquisa, fechamento de laboratórios, demissões, afastamento de estagiários e alunos, dispersão e liquidação do patrimônio científico, interrupção de projetos de colaboração e cooperação internacional com universidades e agências como a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O objetivo do presente texto nos coloca diante de tema já enfrentado por muitos: a relação entre o historiador, seu projeto, suas perguntas e o desejo de examinar os documentos, de um lado, e o profissional que responde pelo tratamento, a organização arquivística, de outro lado (10,11). Devem os historiadores compreender o cerne do trabalho arquivístico – a busca do contexto de origem dos documentos -, pois tal conduta pode representar um aporte aos métodos do seu ofício: suas indagações, suas questões de pesquisa, a crítica documental. Ao mesmo tempo, cabe aos arquivistas sempre imbuídos do esforço de contextualizar os documentos, envidar esforços no aperfeiçoamento de seus métodos e técnicas de classificação, descrição e indexação. Queremos dizer que ao ir a campo, pesquisar na base de dados de acesso aberto que disponibiliza informações sobre os arquivos históricos da Fiocruz (12), tal relação - entre historiadores e arquivistas - se revelou com toda sua complexidade. O termo Massacre de Manguinhos se tornou um indexador, mas certamente ele não sustenta uma investigação mais ampla sobre diferentes dimensões da trajetória institucional durante os anos 1964 a 1985. Desta forma, optamos pela escolha de conjuntos documentais que cobrissem essencialmente os anos de 1964 a 1979, portanto, um período que nos permite olhar o “Massacre de Manguinhos”, evento central para pensarmos os impactos da ditadura na Fiocruz, sem perder de vista uma perspectiva ampliada sobre a relação do regime autoritário com a ciência. Ao mesmo tempo, selecionamos arquivos e coleções com espécies e tipos documentais de natureza muito diversa, e criados e acumulados por diferentes entes produtores: o IOC, os próprios cientistas, a Fiocruz e a Casa de Oswaldo Cruz.

Fundo documental do Instituto Oswaldo Cruz e arquivos pessoais dos cientistas
As distinções conceituais entre arquivos públicos e privados e arquivos institucionais e pessoais são consagradas no campo da arquivologia. Mas é nos processos cotidianos dos trabalhos de identificação, aquisição, recolhimento e tratamento dos arquivos nas instituições - sejam elas arquivos públicos, museus, ou centros de memória e documentação -, que tais distinções são colocadas a prova e testadas.
Ao longo dos anos o trabalho de identificação e organização dos arquivos provenientes do IOC permitiu reconhecer a presença de determinados conjuntos de documentos comprovadamente relacionados a trajetória de seus cientistas, incluindo em alguns casos documentos de natureza pessoal ; de outro lado, foi possível localizar em variados arquivos pessoais, documentos de natureza institucional, acumulados por seus titulares em razão de interesses e necessidades diversas – acadêmicas, administrativas ou políticas - mas também de práticas que não incluíam a preocupação em separar tais materiais. Portanto, sem prejuízo da nomeação que venham a receber, tais arquivos formam uma rede de conjuntos documentais que se complementam e exigem do pesquisador atenção no seu manuseio e análise.
Sob este aspecto, um dos arquivos que se destaca é o de Walter Oswaldo Cruz, que produziu, guardou, acumulou e manteve preservados centenas de documentos que comprovavam o percurso diário das perseguições, pressões e ameaças que passou a sofrer alguns meses após o golpe de março de 1964. Processos, ofícios, relatórios, depoimentos, memorandos, cartas, entre outros, compõem um caso emblemático ainda a espera de estudos sob a natureza do regime ditatorial que se instaurou no país e como podemos entendê-lo pela chave dos comportamentos sociais a partir, por exemplo, das noções de adesão, acomodação e resistência, apresentadas pelo historiador Rodrigo Patto em suas pesquisas sobre a ditadura (13).
Sem a pretensão de narrar os fatos que atingiram e inviabilizaram o trabalho do hematologista Walter Oswaldo Cruz, internacionalmente reconhecido, líder de um importante laboratório, é possível afirmar que seu arquivo é repleto de registros que podem nos ajudar a compreender o ambiente de constrangimento, delação e “terror” instaurado na instituição.
Após o golpe de 1964, com os novos detentores do poder no país e uma nova direção no Instituto, o clima de suspeição sobre o trabalho e as atividades dos profissionais logo se materializou na solicitação de relatórios e prestação de contas. Nos arquivos de Walter Oswaldo Cruz e Haity Moussatché, localizamos uma profusão de relatórios, solicitados ou não pelas respectivas chefias, dando conta das atividades, equipes, instrumentos, equipamentos e recursos financeiros que dispunham. Em certa medida, tais relatórios ao lado de muitas cartas poderiam funcionar como “peças de defesa” contra as acusações de subversão, privilégios e corrupção no espaço institucional. No caso de Walter Oswaldo Cruz, os questionamentos sobre sua participação “pessoal” em eventos científicos internacionais levaram-no a elaborar respostas frequentes com esclarecimentos, que passaram a constar dos processos administrativos abertos em 1965.
Figura 1 – Despacho de Walter Oswaldo Cruz dirigido ao diretor do IOC para constar do processo 28306/65

No arquivo de Herman Lent constam cerca de 850 páginas de documentos textuais relacionados ao Massacre de Manguinhos que somados a outros 350 itens documentais pertencentes ao fundo IOC/Departamento de Entomologia, conformam um acervo significativo sobre o instituto nos anos 1960, e todo o processo da cassação e aposentadoria do grupo e seus desdobramentos, sua repercussão na comunidade científica, nos meios políticos e na imprensa. Por sinal, é possível empreender uma análise do posicionamento e da cobertura da imprensa por meio de dezenas de recortes de jornais e revistas que incluem editoriais, artigos de opinião, colunas de política, reportagens, cartas, entrevistas e outros registros. Grande parte deste material, Herman Lent reuniu durante o período de 1964 a 1979 e serviu como fonte imprescindível para seu livro (9). Aqui destaca-se material dos jornais que repercutiam no ano de 1979, a campanha pela Anistia e como os cientistas de Manguinhos, a própria imprensa e a classe política se mobilizavam em torno do tema. Vale mencionar ainda a presença de farta documentação sobre Walter Oswaldo Cruz, com manifestações em defesa de sua atividade, sua projeção internacional e homenagens póstumas ao cientista falecido a 3 de janeiro de 1967, vinte dias antes de completar 57 anos.
A ação persecutória do diretor do Instituto e posteriormente ministro da Saúde, Francisco da Rocha Lagoa, na trama e no conjunto de atos que culminaram com a cassação dos cientistas é público e bem explorado em inúmeros depoimentos, memórias e no livro de Daniel Elian dos Santos O Massacre de Manguinhos: a ciência brasileira e o regime militar (1964-1970) (14). Mas Rocha Lagoa contou com uma rede de colaboradores e informantes que minou o ambiente institucional, espalhou e alimentou a intriga e a delação, e se formou com inúmeros atores institucionais – cientistas e técnicos com “nome e sobrenome” -, e está descrita na análise de Santos (14) sobre os inquéritos instaurados no IOC. No arquivo Walter Oswaldo Cruz, documentos destacam a atuação de Eitel Duarte, chefe da Divisão de Patologia e autor do memorando ao diretor do Instituto em 22/09/65 que exigia um enquadramento, uma punição exemplar a rebeldia do pesquisador que teria retido um documento e era merecedor de um “corretivo legal” para preservar a autoridade e “manter a disciplina”.
Figura 2 – Memorando do chefe da Divisão de Patologia para o diretor do
Instituto Oswaldo Cruz

De volta ao ano de 1964, vale destacar o arquivo de Augusto Perissé um dos dez cientistas atingidos pela ditadura. Em carta de 30/06/1964 dirigida ao presidente da Subcomissão de Investigações do IOC, Olympio da Fonseca Filho, Perissé afirma não lhe caber defesa diante da acusação de “ato contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade administrativa” visto que jamais houve provas de qualquer ato da sua parte e contesta como “inverídica” citação de seu nome pelo Dr. Antonio Augusto Xavier como membro de um grupo de “conselheiros” da direção do Instituto. São inúmeros os documentos que mencionam personagens colaboradores do novo status quo estabelecido com o regime militar e o poder alcançado por Francisco Rocha Lagoa.
Se de um lado havia colaboração, denúncias infundadas, perseguições e pressões, de outro, estabeleciam-se laços de solidariedade e colaboração entre (e com) os atingidos pelas cassações. Mas também havia preocupação com aqueles que permaneciam, estudantes, jovens pesquisadores, como comprova a carta de Augusto Perissé dirigida ao cientista Maurício Rocha e Silva (1910-1983), professor da Faculdade de Medicina em Ribeirão Preto, em 7 de abril de 1970. Escrita poucos dias após a cassação, Perissé narra as incertezas vividas e pede por Renato Cordeiro, jovem pesquisador, estagiário e bolsista de Haity Moussatché na Divisão de Fisiologia e Farmacodinâmica do Instituto Oswaldo Cruz, entre 1968 e 1970. Nos primeiros anos da década de 1970, foi bolsista sob orientação do cientista Mauricio Rocha e Silva na Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (SP), até sua seleção e entrada na primeira turma de Doutorado da Pós-graduação em Farmacologia do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP.
Figura 3 – Carta de Augusto Perissé para Maurício Rocha e Silva, de 07/04/1970


Fundo Presidência da Fiocruz – Informes de Pessoal da Seção de Segurança Nacional e Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Ministério da Saúde

No arquivo histórico da Presidência da Fiocruz encontram-se as fichas de Informe Pessoal produzidas pelos órgãos de segurança e informações. Este conjunto compreende as fichas funcionais submetidas a Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Ministério da Saúde com dados pessoais visando à contratação pela CLT, bolsa de pesquisa, e substituição de funcionário, acompanhadas eventualmente de currículos e correspondência, entre os anos de 1966 e 1979. Tais fichas após análise do órgão de informação retornavam à Fiocruz com aprovação ou não da contratação do indivíduo candidato ao cargo.
Organizados em 14 dossiês com cerca de 900 documentos, foram microfilmados, digitalizados e os originais encaminhados à Diretoria Regional Arquivo Nacional em Brasília, em decorrência da criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, em 2009, sob coordenação do Arquivo Nacional. Constam ainda, algumas dezenas de informes dos anos 1966-1969 da Seção de Segurança Nacional, antecessora da Divisão de Segurança e Informações (DSI). A partir da criação do Serviço Nacional de Informações - SNI (Lei n. 4.341, de 1964), e a necessidade preponderante das informações de segurança interna que a conjuntura exigia, o governo militar passou a ser assessorado, diretamente por aquele órgão que assumiu o encargo de centralizá-las a nível nacional. Três anos após, em 1967, as seções de Segurança Nacional dos ministérios civis foram transformadas em divisões de Segurança e Informações, passando à condição de órgão de assessoramento direto e imediato dos respectivos ministros nos assuntos pertinentes à Segurança Nacional, à Mobilização e às Informações.
Este aparato de controle da ditadura sobre instituições e pessoas gerou documentos em larga escala. No caso dos informes, trata-se de uma documentação em que predomina um padrão estável de dados, expresso nas fichas, mas junto a estas podemos localizar ofícios, relatórios, plantas e outros materiais, por exemplo, sobre a organização e funcionamento da Divisão e da Assessoria de Informação e Segurança que atuava na Fiocruz. Vale dizer que o arquivo da DSI do Ministério da Saúde, também recolhido ao Arquivo Nacional, em 2007, cobre o período de 1964 a 1990 e constitui fonte de interesse para pesquisas sobre a Fiocruz e a área da saúde pública no período. É interessante observar nestes documentos a preocupação constante dos órgãos de segurança em investigar, ao lado do suposto ativismo político ou militância partidária, qualquer fato ou denúncia que envolvesse o mau uso dos recursos públicos.
Em um conjunto de informes dos anos 1960 constam, além dos dados pessoais, transcrições de registros colhidos junto aos arquivos do DOPS, conforme o exemplo de um candidato a posto de trabalho na Escola Nacional de Saúde Pública: “Aluno do curso de Ciências Sociais da Faculdade Nacional de Filosofia, cursando o 3º ano, é elemento de esquerda, agitador costumaz, tomou parte em todas as manifestações desencadeadas por membros do D. A Livre. Inclusive, sendo suspenso disciplinarmente pelo diretor daquela faculdade. Em 20/6/66, foi preso no interior do restaurante da referida faculdade, quando promovia manifestações contrárias às punições aplicadas aos alunos. DOPS/SI/SFA – No. 007.043 de 11/8/66”. Nesses informes, era frequente a menção a militantes que atuavam em “células” do Partido Comunista ou praticavam atividade comunista em algum órgão, ministério ou empresa pública.
Ao lado de muitos informes que indicavam o “nada consta” com relação os candidatos, encontramos outros tantos nos quais havia o carimbo vermelho com a expressão “Não satisfaz as exigências estabelecidas”, data e assinatura do general chefe da DSI/MS. Em alguns casos, encontramos ainda ofícios da mesma chefia dirigido ao diretor do Instituto Oswaldo Cruz ou ao Supervisor Setorial de Ensino, quando eram candidatos a Escola Nacional de Saúde Pública.
Figura 4 – Informe Pessoal N. 5/76 da DSI/MS, de 20/08/76
Projetos de História Oral
Projeto Remanescentes do Massacre de Manguinhos
Algumas perguntas orientaram o projeto “Remanescentes do Massacre de Manguinhos”, realizado entre 2017 e 2019: como era o ambiente em Manguinhos no contexto dos anos 1960, especialmente após o golpe de 1964? O que teria motivado a cassação dos dez cientistas em 1970? Como ficaram as pesquisas e os rumos do trabalho científico?
Idealizado pelo pesquisador e biólogo Pedro Jurberg no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (15), o projeto coletou depoimentos de nove profissionais que ingressaram em sua maioria no IOC no início dos anos 1960, estudantes ou recém-formados nas áreas de biologia, botânica, farmácia, história natural, química e veterinária. Trata-se de fonte (16) inédita ainda não explorada por pesquisadores e reúne memórias, que cotejadas com documentos e outras fontes podem ajudar a reconstituir aspectos da trajetória institucional, o ambiente interno, as áreas de pesquisa e as lideranças científicas, o comportamento dos atores envolvidos no período pós-1964, e os sentimentos daqueles que permaneceram. A surpresa com a cassação, os nomes incluídos na lista dos cassados e a interrupção abrupta de suas trajetórias dá o tom das entrevistas.
Durante cerca de doze horas de depoimentos os pesquisadores relataram suas impressões sobre o significado do Massacre de Manguinhos, os trabalhos desenvolvidos nos laboratórios, os aspectos subjetivos em relação à política na época da ditadura, o funcionamento e a vida institucional da Fiocruz, no período compreendido entre 1960 até 1985, considerando, sobretudo, os anos mais críticos de 1964 até 1970. Além destes aspectos, os depoentes expuseram suas impressões sobre a instituição e os significados da atividade científica hoje.

Projeto Memória de Manguinhos
O Projeto de História Oral, Memória de Manguinhos, foi um dos primeiros projetos da Casa de Oswaldo Cruz, criada em 1985, durante a gestão do sanitarista Sérgio Arouca na presidência da Fiocruz. Dedicada a realização de entrevistas com personagens ligados à história do Instituto Oswaldo Cruz, a iniciativa constituiu um acervo de 330 horas e procurou cobrir o período compreendido entre a década de 1930 e o Massacre de Manguinhos, em 1970 (17). Entre os trinta entrevistados estavam nove dos dez cientistas cassados e aposentados compulsoriamente em 1970, além de outros nomes, como Amilcar Vianna Martins, diretor do IOC entre 1958 e 1960 e aposentado compulsoriamente pelo AI-5, em 1969, quando chefia o Departamento de Parasitologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Fundo Vinícius da Fonseca
A segunda metade dos anos 1970 trouxe algumas mudanças para Manguinhos. A nomeação em 1975 do economista Vinícius da Fonseca, quadro técnico da Secretaria de Planejamento da Presidência da República, para presidente da Fiocruz, colocou na agenda institucional a proposta de um “projeto de recuperação”. Diante de um quadro de franca deterioração, perda de recursos e infraestrutura, o principal legado de sua gestão, segundo Nara Azevedo (18), foi o de estruturar uma área de produção com estatuto próprio, integrada ao sistema de desenvolvimento científico e tecnológico e capaz de substituir um modelo quase artesanal pela produção industrial de vacinas e soros.
Seu arquivo constitui-se de documentos textuais, do período entre 1973 e 1989, e reúne cartas, memorandos, ofícios, telegramas, relatórios de atividades, discursos, resoluções, convênios, instruções normativas, portarias e recortes de jornais, entre outros documentos referentes à trajetória do titular como presidente da Fundação Oswaldo Cruz, entre 1975 e 1979 (19).
A ligação com o ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, um economista de visão tecnocrática e desenvolvimentista, lhe permitiu traçar um conjunto de estratégias para recuperar a Fiocruz. Um dos principais objetivos de sua administração, ao lado da restruturação da área de pesquisa biomédica, foi dotar a instituição de uma infraestrutura de produção de vacinas capaz de atender às necessidades dos programas de imunização do Ministério da Saúde, bem como contribuir para o projeto a longo prazo de autossuficiência em imunobiológicos do país (20). Nesse sentido destacam-se documentos relativos ao Plano de Modernização da Fundação Oswaldo Cruz que procurou implementar durante seu mandato. Existem, por exemplo, alguns relatórios que traçavam um detalhado diagnóstico da situação da instituição, como o relatório do “Grupo de Trabalho” designado ainda em 1973 para “estudar e propor a reestruturação funcional da Fiocruz e de seu quadro de pessoal”. O fundo também contém documentos relativos a iniciativas de cooperação técnico-científica com outas instituições, destacando-se os acordos com o Instituto Mérieux da França para a produção de vacinas.

Coleções e documentos avulsos
A Coleção Raymundo de Britto (21), é composta por 1.549 documentos iconográficos e 70 textuais, sobretudo o período entre 1935 e 1996, e percorrem a vida pessoal e trajetória profissional do titular como médico, ministro da Saúde, secretário de Saúde do estado da Guanabara, diretor do Hospital dos Servidores do Estado, presidente do Instituto de Previdência e Aposentadoria dos Servidores do Estado e membro de sociedades e associações médico-científicas. Raymundo de Moura Britto (1909-1988) foi ministro da Saúde entre abril de 1964 e março de 1967, sendo o único a ocupar o cargo durante todo o governo Castelo Branco. Na coleção há um conjunto específico de documentos fotográficos relativos à sua atuação a frente do ministério. Além de imagens da posse e outros eventos oficiais do ministério, constam documentos referentes à campanha de vacinação contra a Poliomielite em 1966, eventos da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-Americana de Saúde, obras de ampliação e melhoramentos no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no Instituto Nacional de Câncer e a inauguração do Hospital Pinel.
A Coleção Ministério da Saúde (22) é formada por duas séries de documentos iconográficos, relacionadas a atuação de dois ministros de governos militares na década de 1970. Mário Machado de Lemos (1922-2003) foi ministro da Saúde entre 1972 e 1974, durante a presidência de Emílio Garrastazu Médici. A série relacionada a sua trajetória cobre o período entre 1971 e 1974 e retrata atividades da Fundação Serviços de Saúde Pública (FSESP), como o tratamento e abastecimento de água para regiões remotas, da Campanha de Erradicação da Malária (CEM) e a criação do Instituto Nacional de Epidemiologia. O segundo, Paulo de Almeida Machado (1916-1991), foi o único ministro da saúde do governo Ernesto Geisel, entre 1974 e 1979. A série cobre os anos de 1971 a 1978, em função de documentos relacionados à sua atuação, anterior a de ministro, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). O conjunto constitui-se por 736 itens, também entre fotografias e cópias-contato, e as imagens retratam a posse do ministro, sua participação em eventos por todo o país, entre os quais a V Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1975, e reuniões interministeriais. Destacam-se ainda as imagens relacionadas ao convênio entre o Instituto Mérieux e a Fiocruz para a produção de vacinas, incluindo a visita do ministro a sede da instituição na França e a unidade-piloto de produção de vacinas brasileiras no Rio de Janeiro. Outro conjunto de imagens significativas é o que registra a Campanha de Vacinação contra a Meningite iniciada em 1974, com vacinas desenvolvidas emergencialmente pelo próprio Instituto Mérieux.
Por fim, vale destacar o Dossiê Plano de Operação Cívico Social da Divisão Blindada do Exército que integra uma Coleção de Documentos Avulsos (23). Constituído de um documento de 89 páginas, 94 fotografias, e intitulado “Plano de Operação Cívico Social”, de 1969, foi encaminhado pelo general Tasso Villar de Aquino, comandante da Divisão Blindada no Rio de Janeiro, para o gabinete do ministro da Saúde, cargo então exercido por Francisco da Rocha Lagoa (1919-2013). Trata-se de um conjunto de relatórios das “ações cívico militares de assistência às populações rurais” desenvolvidas no Estado do Rio de Janeiro, mais especificamente nas cidades de Barra Mansa, Piraí, Rio Claro e Mendes, durante o mês de outubro de 1969. O documento aborda essa atuação dos militares como parte do “cumprimento de suas atribuições de segurança interna”, pois seria uma ação “antiguerrilha” focada em “núcleos populacionais afastados das sedes dos municípios” e com “emprego da tropa contra o inimigo interno nas suas manifestações armadas”. As ações relatadas, que integraram esforços de “organizações públicas e privadas”, ofereceram assistência médica e odontológica, vacinação, distribuição de medicamentos e material escolar, além de atendimento veterinário em propriedades rurais.
Considerações finais
Os arquivos desempenham importante função na sociedade contemporânea como instrumentos para o exercício da democracia e dos direitos civis. Tal importância acentua-se quando se trata de documentos que sobreviveram aos regimes autoritários, que em grande parte lhes deram origem. Os historiadores cumprem papel fundamental na formulação de perguntas que nos levem a produção de conhecimento confiável, apoiado em procedimentos verificáveis, evidências factuais e análise lógica, sobre o mais longo de período de autoritarismo na história política republicana.
O amplo acervo histórico da Fiocruz é fonte inestimável para os estudos das relações entre a ciência e a política, a ciência e a cultura. A diversidade de materiais documentais, ainda pouco explorados, podem trazer novas análises e uma melhor compreensão das práticas e dos impactos da ditadura sobre a atividade científica, as relações cotidianas, os comportamentos sociais e a vida das instituições. A historiografia da ciência e da saúde no Brasil sobre o período do regime militar tem a sua frente uma extensa agenda de pesquisas. Ao mesmo tempo, uma política de memória, em diálogo com o conhecimento histórico, tende a se beneficiar destes e outros arquivos que na condição de provas documentais, podem trazer luz sobre fatos e personagens da nossa experiência ditatorial e promover justiça e reparação.
Inúmeras pessoas - dirigentes, pesquisadores, técnicos, e familiares - em distintos momentos, mobilizadas por diferentes desejos e necessidades de memória doaram a Fiocruz e a Casa de Oswaldo Cruz, arquivos e documentos, que ao deslocarem-se da esfera privada para o espaço público contribuíram e ainda podem contribuir com o conhecimento sobre os processos históricos e sociais, coletivos e individuais da ciência e da saúde no país. Tais atos, são gestos essenciais para o fortalecimento da ciência, da democracia, da cidadania e da vida.

Agradecimentos:
Bianca de Rezende Carvalho
Nathacha Regazzini

Financiamento:
Fundação Oswaldo Cruz


Referências
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2. Disponível em: https://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/

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Santos, P. R. E., Vieira, F. A.. Os arquivos da Fiocruz: fontes para a pesquisa sobre a ciência e a saúde na ditadura militar (1964-1985). Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/Jul). [Citado em 09/09/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/os-arquivos-da-fiocruz-fontes-para-a-pesquisa-sobre-a-ciencia-e-a-saude-na-ditadura-militar-19641985/19328?id=19328

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