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0398/2023 - REFORMULAÇÕES NA POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL: ANÁLISE DE DADOS DE ASSISTÊNCIA NO PERÍODO DE 2012 A 2022
REFORMULATIONS IN THE NATIONAL MENTAL HEALTH POLICY: ANALYSIS OF ASSISTENCE DATA IN THE PERIOD FROM 2012 TO 2022

Autor:

• Laressa Thaís Krefer - Krefer, L. T. - <lkrefer@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0005-2796-2669

Coautor(es):

• Walter Ferreira de Oliveira - Oliveira, W. F. - <walteroliveira.ufsc@gmail.com>



Resumo:

RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar dados de assistência no campo da saúde mental coletiva no Brasil no período de 2012 a 2022, correspondente aos anos anteriores e posteriores à implementação da Nova Política de Saúde Mental. Foi empregada metodologia quantitativa, do tipo estudo ecológico longitudinal. Os dados foram extraídos para o período de 2012 a 2022. As fontes utilizadas foram os Sistemas de Informação em Saúde. Os dados foram compilados em séries temporais e analisados por meio de técnicas de estatística descritiva. Os resultados apontaram fortalecimento dos serviços ambulatoriais e diminuição no crescimento de Centros de Atenção Psicossocial e equipamentos da Atenção Básica após 2017, indicando conformidade com as diretrizes da Nova Política de despriorizar os serviços de base territorial e comunitária. O quantitativo de hospitais psiquiátricos apresentou pouca variação para todo o período, indicando não apenas concordância com o fortalecimento das instituições hospitalares previsto na Nova Política, mas fragilidades na política de desinstitucionalização do período anterior a 2017. Percebem-se efeitos das mudanças nas políticas nacionais na organização, gestão e execução do sistema de saúde e, ao mesmo tempo, continuidade em vários aspectos.

Palavras-chave:

Saúde mental. Política de saúde. Serviços de saúde mental.

Abstract:

This article aims to analyze assistance data in the field of collective mental health in Brazil2012 to 2022, corresponding to the years before and after the implementation of the New Mental Health Policy. For this purpose, a methodology of a quantitative approach was used, of the longitudinal ecological study type. Data were extracted for the period2012 to 2022. The sources used were the Health Information Systems. Data were compiled into time series and analyzed using descriptive statistics techniques. The results pointed to the strengthening of outpatient services and a decrease in the growth of Psychosocial Atencion Centers and Primary Care facilities after 2017, indicating compliance with the New Policy guidelines to deprioritize territorial and community-based services. The number of psychiatric hospitals showed little variation for the entire period, indicating not only agreement with the strengthening of hospital institutions indicated in the New Policy, but weaknesses in the deinstitutionalization policy of the period prior to 2017. This study concludes that the changes in national policies impacts on the organization, management and execution of the health system and, althought a certain continuity in several aspects is observed.

Keywords:

Mental health. Health policy. Mental health services.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
Somando décadas de luta social e importantes conquistas no campo das políticas públicas, a reforma psiquiátrica, apesar dos diversos avanços, ainda não obteve uma consolidação plena em território brasileiro. Quase 15 anos separam a publicação da Carta de Bauru - que anunciou o que seria uma das principais bandeiras do movimento de luta antimanicomial até o presente - e a institucionalização da reforma psiquiátrica no Brasil. O lema adotado na I Conferência Nacional de Saúde Mental, “Por uma sociedade sem manicômios” obteve estatuto legal em 2001 com a promulgação da Lei 10.2016, que versa sobre os direitos dos usuários de saúde mental. Conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, ela estabelece no âmbito político-jurídico a implementação da reforma psiquiátrica nas diretrizes da política nacional, pois preconiza uma mudança no modelo de cuidado em saúde mental, indicando a substituição do modelo asilar pelo de atenção psicossocial1. Apesar de legislar sobre outros assuntos e, principalmente, apontar para a construção de um modelo de cuidado de base territorial e comunitária, um de seus pontos centrais permanece o declarado na Carta de Bauru, o fim das instituições manicomiais. Nos anos seguintes à reforma psiquiátrica a Política Nacional de Saúde Mental se desenvolveu com o estabelecimento de portarias que regulamentaram o financiamento, estrutura e funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e a partir de 2011 da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Ao mesmo tempo, o processo de desinstitucionalização aconteceu a passos não tão largos, com a manutenção dos Hospitais Psiquiátricos como pontos de atenção para a saúde mental, ainda que menos dominantes.
A partir de 2017, com a publicação da “Nova” Política de Saúde Mental, a reforma psiquiátrica perdeu o papel orientador nas diretrizes de cuidado, que admitiram como possível a coexistência com o modelo hospitalar. A reformulação da Política de Saúde Mental foi justificada pela suposta ineficácia do modelo anterior, acusada de contribuir para o aumento do número de suicídios, prevalência de transtornos mentais no sistema carcerário, afastamentos do trabalho e mortalidade de pacientes com transtornos mentais 2
O pouco tempo que separa a institucionalização da reforma psiquiátrica da recolocação das medidas hospitalocêntricas nas políticas federais aponta para a fragilidade da Atenção Psicossocial como modelo orientador no campo da saúde mental coletiva. Desse modo, ainda que sob a luz de debates antigos, a questão sobre os modelos de saúde adotados permanece atual. Torna-se, portanto, relevante a análise dessas políticas no que tange aos efeitos observados na prática assistencial.
O presente artigo é derivado da dissertação de mestrado intitulada “Saúde mental e contrarreforma: indicadores de financiamento, assistência e epidemiológicos no contexto das novas políticas da Rede de Atenção Psicossocial”. Seu objetivo é analisar indicadores do campo da assistência em saúde mental para os anos de 2012 a 2022, que correspondem ao período anterior e concomitante/posterior à implementação da Nova Política de Saúde Mental.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O modo de atenção psicossocial surgiu da prática, na contradição e negação do modelo vigente até o século XX, representado pela ordem psiquiátrica. Sua construção se erige sobre a destruição da lógica manicomial, em um processo que ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica. A Reforma Psiquiátrica foi um movimento de abrangência global, sendo o Brasil influenciado principalmente pela Reforma Psiquiátrica italiana.
No período pré-reforma, a taxa de reinternações era crescente, mesmo com a adoção de novas tecnologias (como o uso de psicofármacos), apontando a ineficácia do hospital psiquiátrico e seus métodos terapêuticos3. Ineficaz pelos próprios padrões da medicina e psiquiatria e violento por padrões de direitos humanos básicos, o manicômio teve (e ainda tem) vida longa no Brasil e disputa espaço com outros modos de cuidado. A atenção psicossocial é um modo de cuidado não apenas concorrente, mas que nasce na própria antítese do manicômio.
Costa-Rosa4 sustenta que a contradição com o modelo manicomial é necessária para entender o modelo da atenção psicossocial. O autor afirma que o processo de transformação da atenção psicossocial em paradigma inicia pela crítica ideológica e teórico-técnica, que é seguida pelo exercício de outras possibilidades práticas, até se configurar como um modelo outro e alternativo. No processo da reforma psiquiátrica italiana, que ficou conhecida como psiquiatria democrática, explicita-se também essa atitude dialética de negação/superação:
Uma psiquiatria, portanto, que não quer somente negar-se enquanto não- ciência, mas quer afirmar-se como anticiência (se por ciência se entende uma ideologia que se encontra sempre a confirmar os valores da classe dominante) através da passagem necessária de uma posição simplesmente contra-transferencial para uma dialética5. (p.12)


No Brasil, o modo de atenção psicossocial nasceu na prática da reforma psiquiátrica, com a criação dos CAPS, Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), centros de convivência e outros serviços dedicados à promoção do cuidado em liberdade. Os CAPS surgiram em São Paulo, na década de 1980. Eles se configuram como serviços substitutivos, pois se propõem a não repetir as relações manicomiais. Seu nome foi sugerido por Ana Pitta, inspirado em serviços fundados na Nicarágua6. Sendo experiências inicialmente regionais, foram modelo para o que viria a ser mais tarde uma política nacional de saúde mental, calcada na reforma psiquiátrica.
A atenção psicossocial empresta da psiquiatria democrática italiana alguns conceitos para construir sua base epistêmica, dentre eles a ideia, exposta por Basaglia7, de que na prática de atenção à saúde mental o sujeito deve ser posto em evidência e o sintoma permanecer entre parênteses. Em termos diretos: tratam-se pessoas, não doenças. Essa concepção, apesar de simples, vai de encontro ao modelo biomédico tradicional, dedicado a compreender o processo saúde-doença a partir de pressupostos como história natural da doença e descrições nosográficas. Suspendendo esses preceitos, abre-se mão de um suposto saber generalista sobre a experiência do sujeito que é atendido e o cuidado passa a ser inevitavelmente singularizado.
Nos anos seguintes à publicação da Lei 10.216, o modo de atenção psicossocial se fortaleceu não apenas pela sua validade legal, mas por sua construção no campo assistencial. Em 2002 foram regulamentadas as regras de funcionamento dos CAPS e Hospitais Psiquiátricos e em 2003 foi lançada a Política Nacional de Humanização (PNH)8, com o objetivo de organizar processos de gestão e cuidado em conformidade com os princípios estabelecidos nas políticas nacionais de saúde, incluindo a saúde mental. Ainda, a criação dos Núcleos de Atenção à Saúde da Família (NASF) em 2008 ampliou e qualificou a assistência em saúde mental para a Atenção Básica, seguindo a premissa do cuidado com base territorial.
Em 2011, por meio da portaria 3088, foi instituída a RAPS. A RAPS é composta por serviços referentes a cada nível de atenção e reforça princípios do SUS como a integralidade e a hierarquização, pois estabelece a co-reponsabilização dos serviços de saúde no cuidado do usuário de saúde mental. Todavia, a inclusão de algumas instituições expressa a contradição de modelos de atenção à saúde mental. Apesar da Lei 10.216 prever a extinção gradual dos Hospitais Psiquiátricos, observa-se que sua existência é garantida no texto da instituição da RAPS, bem como a inclusão das Comunidades Terapêuticas, que são abarcadas nos serviços de atenção em regime residencial9. No ano seguinte da instituição da RAPS foram redefinidas regras de funcionamento e custeio para vários dos componentes da RAPS, incluindo os CAPS, Hospitais Psiquiátricos, Leitos em Hospitais Gerais e Comunidades Terapêuticas.
Dados do Ministério da Saúde demonstram que, após 2011, houve crescimento do número de CAPS credenciados, Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) e leitos psiquiátricos em Hospital Geral10. Neste mesmo período o número de leitos em Hospital Psiquiátrico passou a diminuir progressivamente, passando de 29.953 em 2011 para 17.559 em 2017. Estudos como o de Rocha et al 11 e Miliauskas et al12 verificaram correlação negativa entre a cobertura de CAPS e internações psiquiátricas nos períodos de 2000 a 2014 e 2008 a 2015, respectivamente, demonstrando indícios importantes da mudança de modelo de atenção.
Em 2017, o Ministério da Saúde iniciou a revisão da política nacional de saúde mental com a publicação da Resolução 32, intitulada “Diretrizes para o fortalecimento da RAPS” e da Portaria GM/MS 3.588. Duramente criticadas por organizações científicas e do movimento social de luta antimanicomial, os textos preveem a criação de equipes multiprofissionais especializadas em saúde mental na atenção secundária, fortalecer parcerias interministeriais em relação às comunidades terapêuticas, ampliação do número de leitos para internação psiquiátrica em Hospital Geral e, apesar de vetar a ampliação de vagas em Hospitais Psiquiátricos, instituem o reajuste do valor das diárias nestes hospitais13
Em nota técnica da Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, a RAPS é atualizada com a seguinte configuração:
• CAPS, em suas diferentes modalidades
• SRT
• Unidade de Acolhimento (adulto e infanto-juvenil)
• Enfermarias Especializadas em Hospital Geral
• Hospital Psiquiátrico
• Hospital-Dia
• Atenção Básica
• Urgência e Emergência
• Comunidades Terapêuticas
• Ambulatório Multiprofissional de Saúde Mental - Unidades Ambulatoriais Especializadas
Compilando e comentando o conteúdo dos textos legislativos publicados, a nota técnica afirma explicitamente o descompromisso com a reforma psiquiátrica:
Todos os Serviços, que compõem a RAPS, são igualmente importantes e devem ser incentivados, ampliados e fortalecidos. O Ministério da Saúde não considera mais Serviços como sendo substitutos de outros, não fomentando mais fechamento de unidades de qualquer natureza. A Rede deve ser harmônica e complementar. Assim, não há mais porque se falar em “rede substitutiva”, já que nenhum Serviço substitui outro. 2 (p. 3-4)


No texto, o papel dos hospitais psiquiátricos na RAPS é valorizado, com a denúncia de suposta desassistência ocasionada pela diminuição do número de leitos e a intenção declarada de não realizar novos fechamentos. A recomendação apresentada na nota é a proporção de 1 leito para cada 2,2 mil pessoas 2. Se seguida, o Brasil teria hoje mais de 100.000 leitos psiquiátricos, quase seis vezes mais que o número atual. Destacam-se também as instruções quanto aos internamentos psiquiátricos de crianças e adolescentes, reconhecendo-se a possibilidade de internamentos em hospitais psiquiátricos adultos.
Em estudo realizado por Cruz et al.14 verificou-se a partir de 2016 a diminuição do incremento no número de CAPS no país, com consequente estagnação da cobertura assistencial, que estava em crescimento. Os autores apontam a incompatibilidade da nova política com a Reforma Psiquiátrica e com as recomendações do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e todas as Conferências Nacionais de Saúde Mental realizadas até o momento.

PERCURSO METODOLÓGICO
A pesquisa descrita neste artigo consiste em um estudo de abordagem quantitativa, do tipo ecológico longitudinal. Foram coletados dados relativos a recursos humanos e serviços da RAPS. Como fonte, foram consultados os Sistemas de Informações, acessados por meio do aplicativo TabNet da plataforma DATASUS, tratando-se, portanto, de fontes secundárias. O período delimitado para os dados coletados foi entre 2012 e 2022, que corresponde aos anos anteriores e subsequentes à implantação e execução da Nova Política.
Os dados coletados foram organizados em séries temporais, conforme o período circunscrito, e analisados por meio de técnicas de estatística descritiva. Foram utilizadas medidas de média e proporção para comparar dados e analisar prevalência e crescimento. A discussão foi feita pela comparação dos resultados obtidos com os objetivos previstos nas políticas estudadas, dados e análises para outros períodos e projeções de impactos descritas na literatura científica sobre o tema.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Recursos humanos
Os dados sobre recursos humanos no SUS no campo da saúde mental foram compilados a partir do cadastramento dos profissionais conforme o Código Brasileiro de Ocupações (CBO) no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Foram considerados as categorias: psicólogo, terapeuta ocupacional e médico psiquiatra. Foram contabilizados todos os profissionais dessas categorias cadastrados para atendimento no SUS, mesmo que em organizações de natureza privada. O gráfico 1 apresenta a distribuição dos profissionais por tipo de serviço. Os tipos de serviço foram compilados nas categorias: Atenção Básica (Unidades Básicas de Saúde em todas suas modalidades, Academia da Saúde, NASF); Ambulatorial (centros de especialidades, consultórios isolados, unidades diagnósticas); CAPS; Hospitalar (Hospitais Gerais e especializados); Urgência e Emergência (Unidades de Pronto Atendimento, ambulâncias) e Outros (serviços não-assistenciais, laboratoriais, home care, entre outros). Os serviços Unidade de Atenção em Regime Residencial e Polo de Prevenção de Doenças e Agravos e Promoção da Saúde foram incluídos na categoria Outros e incluem, mas não somente, as comunidades terapêuticas. Observou-se que ao longo de toda a série a categoria que mais congregou profissionais de saúde mental foi a Ambulatorial, seguida da Atenção Básica, Atenção Hospitalar, CAPS, Outros e Urgência Emergência. As proporções de variações foram, entretanto, oscilantes aos longos dos anos, conforme se vê no gráfico 1.
Até o ano de 2015 a Atenção Básica e os CAPS registraram maior crescimento que os ambulatórios e hospitais no número de profissionais de saúde mental. Após 2018, a categoria Ambulatório é a que apresenta maior crescimento no número de profissionais e os CAPS apresentam as menores taxas de crescimento dentre as quatro primeiras categorias.
O crescimento dos recursos humanos em equipamentos ambulatoriais aponta para o que Guimarães e Rosa15 categorizam como ambulatorização do cuidado. Os autores consideram que, ao instituir equipes especializadas, a Nova Política de Saúde Mental promove um formato de atendimento que tradicionalmente privilegia as intervenções medicamentosas, em detrimento da atenção psicossocial de base territorial e comunitária. Pelo governo federal, o investimento nestas equipes é justificado pela lacuna assistencial para os casos de média complexidade de saúde mental, que fugiriam do escopo da Atenção Básica, mas também não necessitariam da intensidade de um acompanhamento no CAPS16.
Ainda que as ações de ambulatórios multiprofissionais não se restrinjam a apenas intervenções médicas e medicamentosas, a atuação nestes serviços consiste principalmente em atendimentos individuais e que podem emprestar do campo médico uma lógica de atenção prescritiva em vez de psicossocial. Lima, Souza e Jorge17 alertam para a fragmentação do cuidado que uma hierarquização dos níveis de atenção, sem considerar a integralidade, podem gerar. Os autores defendem que os níveis de complexidade em uma rede de saúde mais têm a ver com os recursos empregados e densidade tecnológica do que com a complexidade dos casos. Afinal, nada mais complexo do que a vida em movimento no território vivo. Chiaverini18 defende o caminho oposto ao da especialização no cuidado, argumentando pela compreensão de grande parte das queixas psiquiátricas como fenômenos decorrentes das condições de vida do indivíduo que sofre. O reconhecimento de que a saúde possui determinantes e condicionantes sociais e que, portanto, seu restabelecimento depende de também intervir nesses fatores, não é fato novo na saúde coletiva e está registrado na legislação fundante do SUS19. Assim, é contrária a essa compreensão, e também ineficaz, a estruturação de modelos de cuidado que desatrelam o usuário de saúde mental de seu modo e vínculos de vida.
Analisando os pontos de atenção a partir do prisma da densidade tecnológica coloca-se em questão o papel do ambulatório nesta rede. A saúde mental especializada não depende de serviços de apoio diagnóstico por imagem ou laboratoriais e pode-se argumentar que o principal recurso despendido é o recurso humano. Diferentes dos CAPS, que possuem ao mesmo tempo a especialização em saúde mental e a diversidade na oferta terapêutica, os ambulatórios possuem em relação à Atenção Básica a vantagem da especialização, mas perdem na diversidade de ofertas e recursos terapêuticos. Considerando-se a estimativa de que cerca de 80% das questões de saúde poderiam ser resolvidos na Atenção Básica17, é provável que a alocação de recursos humanos em equipamentos ambulatoriais em detrimento da Atenção Básica aumente, e não resolva, a lacuna de desassistência já constatada.
O enfraquecimento da Atenção Básica não é exclusividade da RAPS, mas uma característica da política governamental federal pós crise econômica de 2015, que culminou na EC do teto de gastos (que congelou gastos com políticas sociais, inclusive de saúde) e outras medidas que enfraqueceram a universalidade e cobertura do SUS20.

Serviços
Foram analisadas as categorias do CNES referentes a serviços de saúde mental, que estão inscritas sob os seguintes códigos: 115 - Serviço de Atenção Psicossocial; 140 – Serviço de Urgência e Emergência e 148 – Hospital Dia. Foram selecionados todos os componentes da modalidade de Atenção Psicossocial (Serviços Residenciais Terapêuticos, de atendimento psicossocial, Unidades de Acolhimento, hospitais e Unidades de Atenção Residencial), o componente Pronto Atendimento Psiquiátrico para a modalidade de Urgência e Emergência e o componente Saúde Mental para a modalidade de Hospital Dia. A maioria destes serviços está cadastrada no subtipo “Atendimento Psicossocial”, seguida dos serviços hospitalares, conforme indicado na tabela 1. Apesar de possuir quantitativos pelos menos 10 vezes maiores que as outras categorias, a classificação “Atendimento Psicossocial” apresentou crescimento menor que os serviços hospitalares para todos os anos da série (gráfico 2). Destaca-se o crescimento das Unidades de Atenção em Regime Residencial, classificação das Comunidades Terapêuticas, que passaram de 4 para 12 entre 2012 e 2016 e de 12 para 52 entre 2017 e 2022.
As Comunidades Terapêuticas são instituições não-governamentais que atendem a pessoas com problemas decorrentes do uso abusivo de substâncias psicoativas. São em sua maioria (mas não exclusivamente) orientadas por princípios religiosos, se baseiam na tríade disciplina-trabalho-espiritualidade e funcionam em regime residencial21. A presença das Comunidades Terapêuticas na RAPS é inerentemente controversa, já que traz consigo um modelo de cuidado que se contrapõe ao modo psicossocial (e em certos aspectos aos próprios direitos humanos). Em inspeção realizada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em conjunto com órgãos de proteção, considerou-se que as comunidades terapêuticas pesquisadas compartilhavam como características a privação de liberdade, exploração do trabalho, abordagem religiosa e abstinência como estratégia central22. Para Santos23, há no modelo de atenção da Comunidade Terapêutica a centralidade do uso de substâncias como um problema e promoção da abstinência como única solução. Já para a atenção psicossocial, que irá utilizar a lógica da redução de danos, haveria um deslocamento para o objetivo de promoção integral de saúde e reconhecimento de um sujeito de direitos.
É significativo que a partir de 2017 haja maior crescimento de Comunidades Terapêuticas inscritas como serviços de saúde, mas a grande maioria dessas instituições permanece fora dessa designação. De acordo com o IPEA21, são cerca de 2000 operantes no Brasil. Em nosso contexto histórico atual, alguns fenômenos são percebidos (pelo menos no campo das políticas públicas) de forma indisputável como questões de saúde mental. O uso e abuso de substâncias, todavia, é objeto de diversos discursos e instituições além da Saúde, como a Justiça e Segurança Pública.
Parcerias do Estado com as Comunidades Terapêuticas são travadas em nível municipal ou estadual desde a década de 80, mas foi a partir de 2011, com a publicação do Plano Crack, que essas instituições conquistaram lugar nas políticas públicas21. Apesar do discurso da “epidemia do crack” ter perdido força nos anos seguintes, as Comunidades Terapêuticas mantiveram seu lugar conquistado dentro das políticas públicas na chamada guerra às drogas, fenômeno que Rodrigues e Silva24 caracterizam como uma política repressiva que legitima práticas de violência e exclusão.
Analisando os serviços de Saúde Mental por tipo de estabelecimento, verificou-se predominância dos serviços ambulatoriais para todos os anos da série, seguidos dos CAPS, serviços da Atenção Básica e serviços hospitalares (gráfico 3). O crescimento do quantitativo do número de CAPS foi gradativamente menor a partir de 2018, atingindo o menor índice de crescimento no ano de 2022, de 1,97% (tabela 1). Para o mesmo período, os serviços do tipo hospitalar apresentaram crescimento gradativo. Com exceção do ano de 2020, os serviços ambulatoriais obtiveram crescimento acima de 7% para todos os anos da série, sendo 2021 o ano com a variação mais expressiva, de 17%. Os serviços da Atenção Básica, por sua vez, obtiveram crescimento acima de 7% apenas nos anos de 2013 e 2014. A partir de 2015 o crescimento nunca superou 3,32%, tendo três anos com registros de decréscimo. Na categoria que inclui as Comunidades Terapêuticas, o maior crescimento se concentrou entre os anos de 2016 a 2019, sendo as maiores taxas observadas para os anos de 2017 e 2018.
Entre 2012 e 2022, o número de CAPS aumentou a cada ano, com taxa de crescimento maior que 6% até 2016. A partir de 2017, o crescimento não superou 4,4%. Dividindo a série em dois períodos, 2012-2016 e 2017-2022, obtém-se uma taxa de crescimento do ano inicial até o final de 36,67% para o primeiro e 12,81% para o segundo. Os hospitais psiquiátricos cadastrados no CNES apresentaram pouca variação quantitativa para todo o período de 2012 a 2022 (gráfico 4).
Os dados sobre esses serviços são congruentes com as intenções explicitadas na atual Política de Saúde Mental, que defende o fim da lógica de substituição do modelo manicomial pelo de atenção psicossocial. Há tanto a estagnação no crescimento do número de CAPS quanto na diminuição do número de hospitais psiquiátricos. O número de hospitais psiquiátricos apresenta pouca variação para todos os anos da série, não apenas após a contrarreforma de saúde mental, indicando que, mesmo sob uma legislação explicitamente mais comprometida com a reforma psiquiátrica, a lógica manicomial permanecia atuante no período anterior a 2017.
A primeira década pós reforma psiquiátrica produziu mudanças importantes no cenário da Saúde Mental. Em 2001 o financiamento hospitalar era mais que o triplo do extra-hospitalar, mas em 2006 esta proporção se igualou e em 2009 os gastos com serviços ambulatoriais passaram a representar pouco mais que o dobro dos hospitalares25. O aporte de financiamento para os serviços extra-hospitalares de saúde mental reflete no crescimento expressivo no número de CAPS neste mesmo período. Em 2001 eram 295 CAPS no Brasil, que passaram a 1620 em 2010, um crescimento de 282%26. É esperado que, após um período de implementação de novos serviços haja uma diminuição no crescimento quantitativo de CAPS quando se atingirem níveis mínimos de cobertura regional. O estudo de Macedo et al27 aponta que a maioria das Regiões de Saúde conta com pelo menos dois pontos de atenção da RAPS (pelo menos uma equipe da Atenção Básica e um CAPS, de qualquer modalidade). Os índices de cobertura caem muito, entretanto, quando se considera a modalidade de CAPS. Em 2017, menos de 15% das Regiões de Saúde com critério populacional para implementação de CAPS III possuíam este serviço, o que Macedo et al27 caracterizam como um vazio assistencial. Considerando a característica do CAPS III de possuir leito para atenção 24h, a defasagem na cobertura deste serviço torna por outro lado mais difícil a desativação de leitos em hospitais psiquiátricos.
Apesar do crescimento indicado no gráfico 2 no número de serviços cadastrados como “Atendimento Psicossocial”, não parece haver uma correspondência com o crescimento de serviços representativos da Atenção Psicossocial, como os CAPS. É possível que outros tipos de estabelecimentos, que não trabalhem da forma que a Atenção Psicossocial é conceituada no campo da reforma psiquiátrica, estejam se credenciando nessa modalidade.
Mesmo com a diminuição (ainda que pequena) no quantitativo total de hospitais psiquiátricos do país, a análise por regiões revela que alguns locais tiveram crescimento numérico destes serviços (tabela 1). Apenas Norte e Sudeste registraram diminuição no número de hospitais psiquiátricos cadastrados, as demais regiões registraram aumento destes serviços, com destaque para o centro Oeste, que passou de 21 para 30 instituições. O aumento mais expressivo ocorre no ano de 2017 para as regiões Centro-Oeste e Sul, e no ano de 2021 para o Nordeste.
A estabilidade no número de hospitais psiquiátricos cadastrados se relaciona com a desaceleração de crescimento dos CAPS, já que o avanço da rede substitutiva se ajusta à redução dos serviços que estão sendo substituídos. A ideia contraditória expressa na Nova Política de coexistência entre dois modelos de atenção incompatíveis talvez já estivesse em germe na própria lei fundante da Reforma Psiquiátrica no Brasil, que permitiu a permanência de hospitais psiquiátricos enquanto não houvessem leitos suficientes em Hospitais Gerais¹. Expoentes da Reforma Psiquiátrica italiana, como Franco Basaglia5 e Franco Rotelli28, defendem a ideia da impossibilidade de criar um novo modelo sem a destruição do manicômio e convocam a adotar a radicalidade de uma antipsiquiatria. A tentativa de conciliação entre os modelos asilares e psicossocial, mais ou menos explícita nas legislações de saúde mental das últimas décadas, pode ter culminado no presente em uma etapa de estagnação da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve como objetivo analisar indicadores de saúde mental no contexto de reformulações na Política Nacional de Saúde Mental, no período de 2017 a 2021. Esse período corresponde a mudanças importantes no governo federal e nas políticas executadas, em um cenário de crise político-institucional. Para tanto, foram analisados dados deste período e do anterior (2012 a 2016).
Observou-se que vários dos resultados obtidos estão em consonância com as mudanças propostas na política, como a despriorização do modelo de atenção psicossocial de base comunitária e territorial e o incentivo ao modelo ambulatorial, hospitalar e a instituições como as comunidades terapêuticas. Apesar de ambulatórios, comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos serem serviços que se contrapõem ao modo de atenção psicossocial de base territorial e comunitária, esses três tipos de serviço não se reduzem a um mesmo modelo. Paradigmas distintos, como a psiquiatria clássica, o modelo biomédico moderno e a religião embasam as práticas nesses serviços e se relacionam a interesses de setores distintos, como igrejas, instituições privadas de saúde e indústria farmacêutica. Destaca-se o crescimento das comunidades terapêuticas que, diferente dos hospitais psiquiátricos e ambulatórios, conquistou lugar nas políticas públicas em tempo relativamente recente, justamente no período em que a reforma psiquiátrica estaria aparentemente se consolidando.
Percebem-se efeitos das mudanças nas políticas nacionais na organização, gestão e execução do sistema de saúde e, ao mesmo tempo, certa continuidade em vários aspectos. A atenção psicossocial, ainda que eleita como modelo ordenador do cuidado em saúde mental nas últimas décadas, não chegou a ocupar status de hegemonia. Outros modelos, por mais que descontinuados em alguns aspectos, permaneceram sendo fortalecidos em outros e, com a mudança política, ganham mais potência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2 Brasil. Ministério da saúde. Nota técnica nº 11/2019 CGMAD/DAPES/ SAS/MS. Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.

3 Silveira, N. O mundo das imagens. São Paulo: Ática, 1992.


4 Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P, organizador. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. p. 141-168.


5 Basaglia F, Ongaro FB, Casagrande D, Jervis G, Comba LJ, Pirella A, Schittar L, Slavich A. Considerações sobre uma experiência comunitária. In: Amarante P, organizador. Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. p. 11-40.


6 Costa-Rosa A, Luzio CA; Yasui S. Atenção Psicossocial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: Amarante P. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau, 2003. p. 13-44.


7 Basaglia F. Um problema de psiquiatria institucional: a exclusão como categoria psiquiátrica. In Amarante P, organizador. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamon, 2005. p. 35-60.


8 Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de humanização: PNH. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.


9 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2011, 23 dez.


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Krefer, L. T., Oliveira, W. F.. REFORMULAÇÕES NA POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL: ANÁLISE DE DADOS DE ASSISTÊNCIA NO PERÍODO DE 2012 A 2022. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2023/dez). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/reformulacoes-na-politica-nacional-de-saude-mental-analise-de-dados-de-assistencia-no-periodo-de-2012-a-2022/19024?id=19024&id=19024

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