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Artigos

0041/2024 - Uso de contraceptivos por mulheres atendidas por unidade básica de saúde fluvial em localidades rurais na Amazônia
The use of contraceptives by women attending at riverine basic health unit in rural communities in the Amazon

Autor:

• Anny Beatriz Costa Antony de Andrade - Andrade, A. B. C. A. - <antony.beatriz@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7041-620X

Coautor(es):

• Maria Laura Rezende Pucciarelli - Pucciarelli, M. L. R. - <mlpucciarelli@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5523-5761

• Fernando José Herkrath - Herkrath, F. J. - <fernandoherkrath@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4439-0189

• Maria Luiza Garnelo Pereira - Pereira, M. L. G. - <https://orcid.org/0000-0003-0263-7286>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0263-7286



Resumo:

Este estudo objetiva analisar o acesso e uso de contraceptivos por mulheres ribeirinhas no Rio Negro, Amazonas, atendidas por uma Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF), descrevendo o fluxo de atendimento ao planejamento reprodutivo. Estudo misto sequencial, abrangendo inquérito transversal que investigou o acesso aos serviços e uso de contraceptivos por 196 mulheres em 38 comunidades assistidas por UBSF. Avaliou-se os efeitos das variáveis independentes sobre o uso de contraceptivos, estimando as razões de prevalência e intervalos de confiança a 95%. Realizou-se observação sistemática da rotina de atendimentos realizados pelos profissionais da UBSF. O uso de contraceptivos foi referido por 146 (74,5%) mulheres, destacando injetáveis (44,5%), laqueadura (31,5%) e preservativo masculino (21,9%). O uso esteve relacionado à idade (RP=0,98; IC95%=0,96-0,99), acesso ao serviço (RP=0,69; IC95%=0,49-0,97) e autopercepção da saúde (RP=0,81; IC95%=0,69-0,95). Quanto à organização do fluxo de atendimento, observou-se uma adaptação criativa pelos profissionais, otimizando tempo e acesso ao atendimento, favorecendo o acesso aos contraceptivos, contribuindo na prevalência de uso de injetáveis. Maior tempo de atendimento da UBSF em cada localidade pode favorecer a promoção da saúde sexual e reprodutiva.

Palavras-chave:

População rural, Saúde da Mulher, Uso de serviços de saúde.

Abstract:

This study aims to analyze the access to and use of contraceptives by riverine women in the Rio Negro, Amazonas, who are attended by a Riverine Basic Health Unit (RBHU), describing the flow of reproductive planning care. A sequential mixed-methods study was conducted, comprising a cross-sectional survey that investigated access to services and contraceptive use by 196 women in 38 communities attending at RBHU. The effects of independent variables on contraceptive use were assessed by estimating prevalence ratios and 95% confidence intervals. A systematic observation of the routine of care provided by RBHU professionals was conducted. Contraceptive use was reported by 146 (74.5%) women, with injectables (44.5%), tubal ligation (31.5%), and male condoms (21.9%) being the most common methods. Use was associated with age (PR=0.98; 95% CI=0.96-0.99), access to service (PR=0.69; 95% CI=0.49-0.97), and self-perception of health (PR=0.81; 95% CI=0.69-0.95). Regarding the organization of care flow, a creative adaptation by professionals was observed, optimizing time and access to care, thus favoring access to contraceptives and contributing to the prevalence of injectable use. A longer duration of RBHU attendance in each locality may promote sexual and reproductive health.

Keywords:

Rural population; Women\'s health; Health services accessibility.

Conteúdo:

Introdução
No rural amazônico o incipiente conhecimento da distribuição territorial da população e a desigualdade social somam-se às fragilidades de gestão dos serviços de saúde em áreas remotas, contribuindo para um cenário de iniquidades1,2. Grandes distâncias entre as comunidades e as sedes dos serviços de saúde, a dificuldade de fixação de profissionais e a precariedade de unidades de saúde constituem barreiras de acesso aos serviços3,4.
Como alternativa para redução das desigualdades no atendimento às populações rurais amazônicas, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) promoveu a inserção do atendimento itinerante realizado por Unidades Básicas de Saúde Fluviais (UBSF)5. As UBSFs realizam deslocamentos mensais a cada comunidade a elas vinculadas ofertando um conjunto de serviços básicos à população6. As equipes ali atuantes podem ser compostas por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, cirurgião dentista, técnico em saúde bucal, agentes comunitários de saúde (ACS) e farmacêutico5.
Entre os serviços oferecidos pela USBF há o planejamento reprodutivo, com oferta de métodos contraceptivos e educação em saúde à população. A oferta de ações voltadas à saúde sexual e reprodutiva de homens e mulheres contribui com a equidade de acesso aos serviços de saúde, além da consonância com o quinto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável, “Igualdade de Gênero”7.
A variedade de métodos contraceptivos ofertados e informações a seu respeito visam garantir a saúde sexual de forma livre e consciente. A adesão ao uso de contraceptivos contribui para a redução de gestações não planejadas, aumento do intervalo interpartal, redução da mortalidade materna decorrente de abortamentos clandestinos e especificamente no caso de preservativos, na prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs)8.
O uso do serviço se traduz no contato do usuário com os profissionais, seja em consultas ou ações preventivas que concretizam o acesso9,10, embora a existência do serviço de saúde não garanta o uso do mesmo. Em áreas rurais, fatores socioeconômicos como escolaridade, renda, classe social e relacionados a organização do serviço, como distância e tempo de deslocamento11,12, configuram barreiras que se interpõem ao uso de contraceptivos, dificultando ou interrompendo o acesso.
Considerando as iniquidades vivenciadas em cenário rural e a escassez de investigações relacionadas aos serviços de saúde em comunidades rurais amazônicas assistidas por UBSF, o estudo analisa o acesso e o uso de métodos contraceptivos por mulheres residentes em localidades rurais ribeirinhas vinculadas a uma UBSF, no Rio Negro, Amazonas, descrevendo o fluxo de atendimento ao planejamento reprodutivo ofertado pela unidade itinerante.
Método
Estudo de método misto sequencial com tipologia de estudo de caso. Realizou-se estudo observacional transversal, vinculado a um inquérito epidemiológico de base domiciliar, realizado com a população residente em 38 localidades rurais ribeirinhas localizadas na margem esquerda do Rio Negro, Manaus, Amazonas e observação sistemática dos deslocamentos realizados pela UBSF responsável pela assistência às referidas localidades.
[Figura 1]
As localidades rurais ribeirinhas de interesse do estudo dividem-se em cinco microáreas de abrangência da USBF, totalizando 765 famílias e 2.342 indivíduos. O serviço ofertado pela UBSF é apoiado por unidades físicas instaladas em algumas comunidades e pelos ACSs residentes no território11.
Os profissionais de saúde da UBSF em questão atendem as localidades rurais ribeirinhas localizadas no Rio Negro, no trecho situado entre os municípios de Manaus e Novo Airão. A equipe é composta por: médico, enfermeiro, dois técnicos de enfermagem, dentista, técnico de higiene dental, farmacêutico e ACSs. Os atendimentos são realizados através de dois deslocamentos mensais para área rural, com duração de 10 dias cada13.
Para a abordagem quantitativa calculou-se a amostragem aleatória e estratificada com base na prevalência esperada de 50% do desfecho de interesse, considerando um erro amostral de 5% e um intervalo de confiança de 95% o valor foi ajustado para a população finita, baseado no universo de 400 mulheres entre 14 e 49 anos, residentes no local de estudo, informadas pelos ACS, acrescido de 10% considerando eventuais perdas ou recusas, resultando em 196 mulheres. Optou-se pela inclusão de jovens menores de 18 anos devido à idade de início das atividades sexuais.
Para o presente estudo foram incluídas mulheres na faixa etária selecionada, residentes no território de abrangência da UBSF, que concordaram em participar assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Às menores de 18 anos, ofertou-se o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, com assinatura do TCLE pelo responsável. Foram excluídas do estudo mulheres com alterações cognitivas que impossibilitassem responder ao questionário e a ausência do responsável para assinatura do termo, no caso de jovens menores de 18 anos.
As entrevistas foram realizadas através do questionário desenvolvido no aplicativo Research Electronic Data Capture (REDCap), aplicadas por entrevistadores previamente treinados, através de simulações das entrevistas entre a própria equipe e posteriormente em comunidades rurais não incluídas na análise de dados, possibilitando a testagem do questionário e padronização da coleta.
O questionário foi composto por sete cadernos temáticos relacionados às características socioeconômicas, condições de vida, saúde, uso e acesso aos serviços de saúde. Para este estudo, foram selecionadas as variáveis sociodemográficas para caracterização das comunidades e das entrevistadas: idade, raça/cor, escolaridade, convivência com o companheiro, ocupação, recebimento de benefício social e renda familiar. Variáveis relacionadas ao histórico reprodutivo: idade materna na primeira gestação, quantidade de gestações, número de nascidos vivos, abortamentos e uso de contraceptivos. Em caso de resposta afirmativa investigou-se os métodos utilizados; os motivos para o não uso foram igualmente investigados. Também foram selecionadas as variáveis relacionadas ao serviço de saúde: distância do domicílio ao serviço, unidade de saúde responsável pelo atendimento da comunidade, tempo de deslocamento ao serviço de saúde, e busca de consulta médica nos 12 meses antecedentes ao estudo. Também foi avaliada a autopercepção da saúde geral pela participante.
Os dados coletados foram exportados pelo REDCap em planilhas do programa Microsoft Excel versão 2016 e foram analisados através do programa Stata SE versão 15. Inicialmente os dados foram apresentados de forma descritiva. Através dos dados de idade na primeira gestação foi possível calcular o indicador de gestações na adolescência da amostra, representado pela fórmula: (Número total de nascidos vivos de mães com idade ?19 anos/ Número total de nascidos vivos *100).
Construiu-se a variável binária “uso de algum método contraceptivo para evitar a gravidez” (sim/não), para avaliação do desfecho primário. Em seguida, realizou-se análise de regressão de Poisson com variância robusta para avaliar os efeitos das variáveis independentes no uso de métodos contraceptivos, estimando-se as razões de prevalência (RP) com os respectivos intervalos de confiança a 95% (IC95%). As variáveis que apresentaram p-valor ? 0,20 nas análises bivariadas foram inseridas no modelo múltiplo. Foram mantidas no modelo final apenas as variáveis com p-valor < 0,10. O nível de significância adotado para a análise foi de 5%.
Na abordagem qualitativa, ao considerar a peculiaridade do regime itinerante da UBSF e do próprio cenário rural ribeirinho amazônico, buscou-se identificar possíveis especificidades no atendimento ofertado à população. Para isso, foram investigadas as rotinas de organização do serviço para a oferta do planejamento reprodutivo.
Os dados foram coletados mediante observação sistemática da rotina diária dos atendimentos realizados pelos profissionais da UBSF, nos quais acompanhou-se a trajetória percorrida pela usuária, da entrada na unidade ao uso do contraceptivo. A observação englobou todas as fases do programa de planejamento reprodutivo, durante atendimento itinerante das equipes da UBSF. As anotações relativas às observações foram registradas em diário de campo. No conjunto, os procedimentos totalizaram 120 horas de pesquisa em campo.
O componente qualitativo do trabalho de campo ofertou a base para elaborar um desenho do fluxo percorrido pelas usuárias durante o atendimento e apreender as singularidades do processo de trabalho dirigido ao planejamento reprodutivo no regime itinerante característico da atuação em UBSF.
A análise dos dados foi orientada por um conjunto de ferramentas teóricas dentre as quais se destaca a noção de cuidado, caracterizado por Ayres14 como uma interação prática e intersubjetiva entre profissionais e usuários, mediada por ferramentas tecnológicas e científicas, na busca de suprir demandas de saúde e aliviar o sofrimento. Cecílio15 assinalou o caráter multidimensional do cuidado (individual, familiar, profissional, organizacional, sistêmica e societária). Dessas, se destacaram para análise a dimensão profissional na mediação do vínculo entre cuidadores e usuários que se apoia na qualificação técnica dos primeiros e no compromisso de atendimento às necessidades dos últimos. Concomitantemente, a dimensão organizacional do cuidado abrange aspectos como o trabalho em equipe, o gerenciamento da oferta das ações, a definição de fluxos e regras de atendimento e a adoção de dispositivos compartilhados pelos profissionais, como agendas, protocolos únicos, reuniões de equipe, planejamento, avaliação das ações ofertadas15.
A esse conjunto de ferramentas foi adicionada a análise dos fluxogramas ordenadores dos processos de trabalho nos serviços de saúde, com destaque para a caracterização do fluxograma descritor, entendido por Franco16 como “uma representação gráfica do processo de trabalho, buscando perceber os caminhos percorridos pelo usuário, quando procura assistência e sua inserção no serviço”16. O fluxograma analisador, entendido como uma ferramenta que possibilita a análise das finalidades, dos métodos e da motivação dos processos de trabalho17,18, também ofereceu caminhos para analisar o processo de trabalho da saúde reprodutiva na UBSF.
O presente estudo foi aprovado em Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos, sob o CAAE nº 57706316.9.0000.0005 e Parecer n°1.742.086.

Resultados
As comunidades de interesse da pesquisa estão situadas em áreas de proteção ambiental, com acesso exclusivamente fluvial. A maior parte dos domicílios são construídos em madeira (92,3%), alguns com fornecimento de energia elétrica pela rede pública, no programa “Luz para todos” (38,8%).
A média de idade das mulheres foi de 34,6 anos (±DP=8,9), com predomínio da raça/cor parda (80,6%). Quanto à escolaridade, 114 (58,2%) referiram ter cursado até o ensino fundamental, a maioria com nove anos de estudo (n=23; 11,7%). 97 (49,5%) delas informaram conviver com cônjuge ou companheiro. As principais ocupações exercidas foram atividades domiciliares (43,4%), e relacionadas ao cultivo, extração de alimentos e criação de peixes (34,2%).
A renda familiar variou entre zero e 6.000 reais, com mediana de 674 reais (Q1=400 reais; Q3=1.055 reais). 167 (85,2%) mulheres referiram ter recebido algum benefício nos 12 meses antecedentes à realização do estudo. Em 172 domicílios, ao menos uma pessoa exercia atividade remunerada oriunda de trabalho rural, sendo 50,5% com recebimento eventual. Quanto à influência da cheia ou vazante do rio na remuneração familiar, 85 (43,4%) mulheres referiram não haver diferenças, enquanto 59 (30,1%) informaram piora da remuneração durante a seca dos rios.
Em relação ao acesso aos serviços de saúde, 107 (54,6%) mulheres referiram residir próximo ao serviço ou ponto estratégico de parada da USBF, enquanto 28 (14,3%) consideraram o serviço longe e de difícil acesso. Em 132 (67,3%) casos, a UBSF foi referida como o principal serviço de saúde utilizado, embora 21 (10,7%) delas precisassem se deslocar de sua comunidade de origem para conseguir atendimento na unidade móvel. Foram observadas diferenças quanto ao tempo de deslocamento do domicílio para a unidade de saúde durante a cheia ou a seca do rio. O tempo de deslocamento durante a cheia variou de um a 90 minutos, com mediana de cinco minutos (Q1=3 minutos; Q3=15 minutos). Durante a seca, observou-se uma variação entre um e 180 minutos, com mediana de 15 minutos (Q1=5 minutos; Q3=40 minutos).
Quanto à realização de consultas médicas, 170 (86,7%) entrevistadas referiram ao menos uma consulta nos 12 meses antecedentes ao estudo. Quando questionadas a respeito da autopercepção da saúde, 93 (47,4%) mulheres referiram como “muito boa”, enquanto 55 (28,1%) referiram como “ruim” (Tabela 1).
[Tabela 1]
Quanto ao histórico obstétrico, 185 (94,4%) mulheres informaram ter engravidado ao menos uma vez. A variação de idade da primeira gestação esteve entre 12 e 39 anos, com mediana de 16 anos (Q1=15 anos; Q3= 19 anos). O percentual de gravidez na adolescência da amostra estudada foi de 83,8%. A quantidade de gestações variou de uma a 15, com mediana de três gestações por mulher (Q1=2 gestações; Q3=5 gestações). Os abortamentos caracterizaram 26,5% dos desfechos das gestações referidas.
Quanto ao uso de métodos contraceptivos, 146 (74,5%) mulheres referiram ter utilizado algum método nos 12 meses antecedentes à pesquisa, enquanto 50 mulheres (25,5%) referiram não utilizar. Em relação aos métodos disponibilizados pela USBF, observou-se maior adesão ao contraceptivo injetável (44,5%; 65/146) e preservativo masculino (21,9%; 32/146). Entre os métodos menos utilizados listou-se o método de Ogino-Knaus (1,4%; 2/146), abstinência sexual (1,4%; 2/146), preservativo feminino (0,7%; 1/146) e implante (0,7%; 1/146). O uso de Dispositivo Intrauterino (DIU), diafragma, espermicida e a contracepção de emergência não foi referido pelas entrevistadas.
Laqueadura e/ou vasectomia anteriores foram informadas tanto como métodos contraceptivos, quanto motivo para não utilização dos métodos ofertados pela UBSF, totalizando 46 (23,5%) casos. As mulheres que referiram a laqueadura estavam na faixa etária entre 28 e 49 anos, sendo 43 (93,5%) delas entre 30 e 49 anos.
Entre as mulheres que referiram o uso de algum método contraceptivo, identificou-se oito (5,0%) relatos de uso combinado dos métodos, sendo o preservativo masculino comum em todos os casos. A maioria dos usos simultâneos se deu entre o preservativo masculino e o contraceptivo injetável (5 casos).
Entre os motivos apontados para o não uso de métodos contraceptivos, nove (11,7%) mulheres referiram a ausência de relações sexuais com homens, seis (7,8%) o receio dos efeitos colaterais, cinco (6,5%) relataram amenorreia, cinco (6,5%) mulheres referiram não se importar em engravidar, três (3,9%) referiram estar no ciclo gravídico-puerperal, duas (2,6%) referiram não adaptação ao anticoncepcional, duas (2,6%) referiram que o parceiro não apoia o uso. Houve um (1,3%) relato de uso de métodos caseiros, um (1,3%) relato de dificuldade de acesso ao local de distribuição dos contraceptivos e dois (2,6%) casos sem informação.
Nas razões de prevalência ajustadas, observou-se a idade (p=0,002), considerar o serviço de saúde de difícil acesso (p=0,033) e a autopercepção da saúde (p=0,008) como fatores associados ao uso dos métodos contraceptivos (Tabela 2).
[Tabela 2]
A observação da rotina diária de trabalho na UBSF identificou uma adaptação criativa e não burocrática à oferta do planejamento reprodutivo (Figura 2).
[Figura 2]
Na adaptação de rotinas na unidade, a usuária que deseja iniciar a contracepção pode ser encaminhada diretamente ao laboratório de análises clínicas para realizar o teste de gravidez ou passar inicialmente por uma consulta médica e daí ser encaminhada ao laboratório da UBSF. Em tendo resultado do exame negativo ela irá ao atendimento médico para orientação e escolha do contraceptivo adequado. Em seguida a usuária é atendida no consultório de enfermagem e por fim, segue para a assistência farmacêutica. Caso o teste de gravidez resulte positivo, o laboratório colhe de imediato material para realização dos demais exames pré-natais e a usuária é encaminhada ao consultório de enfermagem para iniciar o acompanhamento pré-natal.
Na rotina adotada na UBSF o profissional farmacêutico mostrou-se elemento essencial para o funcionamento do programa de planejamento reprodutivo. Ainda que o médico efetue uma prescrição trimestral do medicamento o acompanhamento contínuo para o fornecimento da medicação é realizado pelo farmacêutico. Este criou uma caderneta direcionada ao programa, onde especifica-se o tipo de medicação, esquema de uso e aprazamento da próxima retirada. A caderneta propicia orientação para a usuária e favorece a disseminação da informação sobre a prescrição para todos os membros da equipe. Além disso, assistência farmacêutica oferece escuta qualificada para dúvidas e orientação sobre uso do contraceptivo e potenciais efeitos colaterais. A cópia-espelho das cadernetas, que fica em poder da equipe, também auxilia no planejamento, a cada viagem, das quantidades de contraceptivos, necessárias para efetuar a dispensação para as usuárias cadastradas e suprir as novas prescrições. A criação do sistema de cadernetas permitiu otimizar o uso do espaço limitado destinado à farmácia numa embarcação e regularizar a dispensação mensal de medicamentos trimestralmente prescrito para as usuárias, haja vista a impossibilidade de armazenar, de uma só vez, o quantitativo de medicamentos necessários ao atendimento nos protocolos de prescrição trimestral.
Caso a usuária descontinue o tratamento por alguma razão, é orientada a procurar o farmacêutico para solicitar novo exame de gravidez, seguindo-se, a partir daí a rotina já descrita.
Quanto às atividades de educação em saúde, devido ao espaço limitado da embarcação, não existe um agendamento específico para atividades coletivas. As mesmas são realizadas de forma individual durante as consultas ou em pequenos grupos que caibam no consultório da enfermagem ou na própria farmácia.
Discussão
As mulheres rurais ribeirinhas deste estudo caracterizam-se como grupo com baixa escolaridade e renda, que atuam no cuidado domiciliar, agricultura e pesca, além de apresentar elevada ocorrência de gestações na adolescência. O percentual de gestações entre adolescentes descrito no estudo é cinco vezes maior do que a média nacional entre 2008 a 201819. Elevados percentuais nesta faixa etária são igualmente observados em outras comunidades rurais do Amazonas. Segundo Cabral et al.20,21, em estudos realizados com mulheres ribeirinhas próximas aos municípios de Alvarães (AM) e Tefé (AM), baixa escolaridade e renda predominante nos territórios contribui com altos índices de gestações na adolescência, uma vez que a longa distância entre as zonas rurais e os centros urbanos adensam as dificuldades de acesso regular aos recursos financeiros, educacionais e de saúde.
A interiorização do atendimento propiciada pela presença da UBSF nos territórios potencializou o acesso geográfico aos cuidados com a saúde reprodutiva. A busca do serviço, mesmo enfrentando um tempo maior de deslocamento a considerar o regime das águas, e o custo do deslocamento do domicílio até a UBSF, se mostra mais factível do que a ida à Manaus, dificultada pela grande distância, custo de transporte e ausência de garantia de atendimento na capital, no período de permanência no meio urbano diante do longo tempo de espera nas consultas. Inquérito populacional realizado com 4.001 adultos na região metropolitana de Manaus, identificou que o tempo de espera para consultas são longos (mediana de 125 minutos) quando comparados a outros contextos nacionais (5 a 85 minutos) e o maior tempo de espera ocorreu entre mulheres, usuários com baixa escolaridade, renda e residentes no interior do Amazonas22.
Observou-se que o aumento da idade, a dificuldade de acesso ao serviço de saúde e a autopercepção da saúde insatisfatória foram fatores que contribuíram para menor prevalência no uso dos contraceptivos entre as participantes do estudo.
A diminuição do uso de contraceptivos entre as mulheres conforme a progressão da idade pode estar relacionada à laqueadura prévia em período que antecede a implantação do serviço itinerante da UBSF na região. A esterilização configura-se como método preferencial entre mulheres residentes em outras áreas rurais da Amazônia não assistidas por UBSFs. Para as mulheres ribeirinhas de Alvarães (AM)20, a laqueadura confere maior segurança quando comparada à instável oferta dos serviços de saúde. Situação similar foi encontrada em estudo realizado com 398 mulheres nas comunidades rurais de Santarém (PA)23, onde observou-se padrões de reprodução durante a adolescência, para abreviar o processo de esterilização. Apesar da irreversibilidade do método, constatou-se ali que a preferência é consequente às longas distâncias entre moradias e serviço de saúde, indisponibilidade dos demais métodos oferecidos e receio de efeitos colaterais.
A preferência pelo uso de contraceptivos injetáveis observada neste estudo também pode estar relacionada ao regime itinerante do serviço ofertado pela USBF. As visitas mensais às comunidades e a organização do atendimento fazem coincidir a presença da UBSF e o tempo de administração dos injetáveis, que pode ser mensal ou trimestral sem comprometer a eficácia do fármaco. O método injetável garante também a redução do risco de esquecimento do uso da medicação pela mulher, frequentemente observado entre as pílulas hormonais24.
A autopercepção negativa da saúde relacionada à menor prevalência no uso de contraceptivos pode resultar do contexto vivenciado pelas mulheres. Análise sobre a autopercepção da saúde com 60.202 adultos entrevistados pela Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)25, identificou que a percepção negativa estava associada ao aumento da idade, baixa escolaridade e não exercício de atividade remunerada. Nos mesmos dados analisados com estratificação por zona de habitação26, observou-se que residentes em área rural apresentaram pior autopercepção da saúde quando comparados ao contexto urbano, igualmente relacionados à menor escolaridade e renda. A baixa adesão ao serviço de saúde configura como uma das consequências importantes desta autopercepção negativa27. Ressalta-se, porém, que, dentre as entrevistadas, somente uma relatou dificuldade de acesso ao local de distribuição dos contraceptivos, sugerindo boa cobertura da UBSF nesse item. Neste estudo, observou-se que a itinerância da UBSF impossibilita a oferta de alguns contraceptivos, como o DIU. Segundo Barreto et al.28, o uso do DIU na APS está relacionado ao conhecimento de sua oferta, que pode ser menor entre mulheres em maior situação de vulnerabilidade, quando comparadas a mulheres com maior escolaridade e fácil acesso ao serviço de saúde. Também é necessário considerar que os protocolos estabelecidos para inserção do DIU requerem um preparo prévio das mulheres, agendamento da aplicação e estrutura física do serviço para aplicação28,29, além da necessidade de retorno breve da paciente para verificar a adaptação ao DIU. Tais condições instituem uma restrição na oferta desses contraceptivos em comparação a outras unidades básicas de saúde.
A reorganização das rotinas disponibilizadas para as usuárias de contraceptivos evidência simultaneamente uma preocupação em prover cuidados que favoreçam o bem-estar e a segurança das mulheres atendidas no curto tempo de permanência em cada localidade. A convergência dos esforços de diversos membros da equipe multiprofissional e o protagonismo de outros profissionais de saúde no compartilhamento do cuidado permite reduzir a demanda pelo atendimento médico, ao assumirem tarefas que em outras UBS integrariam parte da demanda espontânea feminina. Paralelamente à preocupação em ampliar as oportunidades de atendimento, os dados também demonstram a adesão às ferramentas tecnológicas adequadas ao trabalho de contracepção, como a adoção de testes prévios de gravidez, a criação de instrumentos de registro e monitoramento da dispensação dos medicamentos e a racionalização no uso do espaço físico limitado da UBSF. São características que atendem plenamente às características do conceito de cuidado, tal como caracterizado por Ayres14 e em particular à sua dimensão organizacional no sentido proposto por Cecílio15.
A adaptação de trajetos específicos a serem percorridos pelas usuárias durante a permanência da UBSF no local, expressa-se em um protocolo unificado, capaz de agilizar e ampliar a cobertura e eficiência do atendimento realizado. Tais iniciativas da equipe propiciaram a descrição gráfica da inserção das usuárias nas rotinas de serviço, reconstruindo os trajetos por elas percorridos.
O processo de coleta de dados, realizado em permanente diálogo com a equipe da UBSF, resultou numa reflexão feita a posteriori com a própria equipe, sobre o alcance, características e finalidades das adaptações paulatinamente construídas pelos profissionais da UBSF, resultando no fluxograma aqui apresentado, que propiciou a análise das finalidades e métodos do serviço ali prestado, bem como na motivação dos profissionais em adequar os processos de trabalho às circunscrições impostas pela itinerância da UBSF, ainda que sem descurar do atendimento às necessidades das usuárias de contraceptivos17,18.
Tais características expressam a criatividade das equipes itinerantes áreas rurais, na busca de minimizar as barreiras de acesso. Elas perduram no tempo e espaço, sendo comuns a diversas comunidades rurais, onde são correntes as grandes distâncias entre alguns domicílios e os locais de atracação da embarcação, a ausência de transporte coletivo para locomoção oportuna até o serviço, conforme observado em inquérito domiciliar com idosos em áreas rurais12. Na região-alvo deste estudo, relatos de incompatibilidade da renda familiar com o valor do combustível gasto pelas famílias para chegar até a unidade móvel e o tempo limitado que a UBSF dispõe para oferta dos serviços em cada comunidade11 foram descritos como fatores que impactam negativamente o acesso. São barreiras tanto individuais quanto coletivas, que indicam a complexidade dos processos de utilização do serviço.
Cabe então às equipes envidar esforços para adaptar os serviços de APS às características dos locais remotos assistidos bem como o curto tempo de permanência da UBSF em cada localidade de parada. Faz-se igualmente necessário prever o quantitativo de medicação necessária para ampliar o volume de atendimentos e manter a cobertura a um número maior de localidades em cada viagem da unidade móvel.
Os esforços da equipe da UBSF contribuíram para contornar as dificuldades enfrentadas pela população e para ampliar o acesso a contraceptivos por populações rurais. No entanto, persiste o limitado acesso da população a outros métodos disponíveis no SUS, como o DIU.
Medidas como o aumento do tempo de atendimento da USBF em cada comunidade, ampliação da equipe para maior disponibilidade de consultas e a busca ativa das mulheres feita pelo serviço podem oportunizar a ampliação das estratégias de planejamento reprodutivo, a intensificação de orientações sobre o uso adequado de contraceptivos e seus potenciais efeitos colaterais, além da prevenção de ISTs, independente do contraceptivo escolhido, contribuindo com a promoção global da saúde sexual em territórios rurais.
Colaboradores
Todos os autores participaram ativamente de todas as etapas de elaboração do manuscrito.
Financiamento
Financiamento através do projeto “Estudo exploratório das condições de vida, saúde e acesso aos serviços de saúde de populações rurais ribeirinhas de Manaus e Novo Airão, Amazonas”, Aprovado em Chamada Pública FAPEAM/SUSAM/DECIT-MS/CNPq N° 001/2017 – Programa Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde - PPSUS-AM; PROEP-Labs/ILMD Fiocruz Amazônia Chamada n.001/2020. O presente trabalho foi desenvolvido sob o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, através da RESOLUÇÃO N. 005/2022 – POSGRAD FIOCRUZ – Edição 2022/2023 - Programa de Apoio à Pós-Graduação Stricto Sensu - POSGRAD.

Referências
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Andrade, A. B. C. A., Pucciarelli, M. L. R., Herkrath, F. J., Pereira, M. L. G.. Uso de contraceptivos por mulheres atendidas por unidade básica de saúde fluvial em localidades rurais na Amazônia. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/fev). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/uso-de-contraceptivos-por-mulheres-atendidas-por-unidade-basica-de-saude-fluvial-em-localidades-rurais-na-amazonia/19089?id=19089&id=19089

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