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Artigos

0064/2024 - USO DE PRESERVATIVO E RELATO DE DIAGNÓSTICO DE IST EM HOMENS CISGÊNERO, SEGUNDO ORIENTAÇÃO SEXUAL: UMA ANÁLISE A PARTIR DA PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE DE 2019
CONDOM USE AND REPORTED DIAGNOSIS OF STI IN CISGENDER MEN, ACCORDING TO SEXUAL ORIENTATION: AN ANALYSIS BASED ON THE 2019 BRAZILIAN NATIONAL HEALTH SURVEY

Autor:

• Flávia Bulegon Pilecco - Pilecco, F. B. - <flaviapilecco@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8316-8797

Coautor(es):

• Jonatan da Rosa Pereira da Silva - Silva, J. da R.. P. - <jonatanprd@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9120-2841

• Rafael Steffens Martins - Martins, R. S. - <rafaelstm@outlook.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4817-9789

• Marco Aurélio Máximo Prado - Prado, M. A. M. - <mamprado@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3207-7542



Resumo:

Este estudo investigou o uso de preservativo e o relato de diagnóstico de infecções sexualmente transmissíveis (IST) em homens de 18 a 59 anos, segundo orientação sexual, a partir dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2019. Foram analisados 30.512 sujeitos. Modelos de regressão de Poisson com variância robusta brutos e ajustados foram utilizados para investigar a associação entre orientação sexual e uso de preservativo nos últimos 12 meses e na última relação e o relato de diagnóstico de IST. Embora nas análises brutas homens homo e bissexuais fizessem mais uso de camisinha nos últimos 12 meses e na última relação sexual, após ajuste para a variável morar com companheiro/a, essas associações perderam significância estatística. O relato de diagnóstico de IST, no entanto, manteve-se mais prevalente em homo e bissexuais, mesmo após ajustes (aRP 4,69; IC95% 2,76-7,99). As políticas públicas de prevenção de IST/HIV/Aids devem passar de uma lógica de práticas de risco para a análise de um contexto mais amplo, que inclua os diferentes tipos de relacionamento, suas temporalidades e negociações.

Palavras-chave:

minorias sexuais e de gênero; preservativos; infecções sexualmente transmissíveis; saúde do homem

Abstract:

ABSTRACT
This study investigated condom use and reported diagnosis of sexually transmitted infections (STIs) in men aged 18 to 59 years, according their sexual orientation, based on datathe 2019 Brazilian National Health Survey. A total of 30,512 subjects were analyzed. Crude and adjusted Poisson regression models with robust variance were used to investigate the association between sexual orientation and condom use in the last 12 months and during the last sexual encounter, as well as the reported diagnosis of STIs. Although in crude analyses, homo and bisexual men reported more condom use in the last 12 months and during the last sexual encounter, after adjusting for the variable living with a partner in the models, these associations lost statistical significance. The reported of STI diagnosis, however, remained more prevalent in homo and bisexual men, even after adjustments (aPR 4.69; 95%CI 2.76-7.99). Public policies for STI/HIV/AIDS prevention should shifta logic of risk practices to the analysis of a broader context, including different types of relationships, their temporalities, and negotiations.

Keywords:

sexual and gender minorities; condoms; sexually transmitted diseases; men’s health

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
Historicamente, as ações de prevenção ao HIV/Aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST) tem tido como foco principal homens que se identificam como homo e bissexuais e outros homens que fazem sexo com homens (HSH)1. Em 2022, essa população representava 55,3% das novas infecções por HIV/Aids por via sexual em homens1 e, em 2016, apresentava prevalência de sífilis muito superior àquela relatada na população em geral2. Aqueles que se identificam como heterossexuais, por não serem compreendidos como população-chave, ficaram assim subsumidos à categoria “população em geral”, para a qual não há políticas e ações de prevenção específicas3. No entanto, em 2022, eles representavam 27,7% dos novos casos de HIV/Aids1.
O mais frequente diagnóstico de IST/HIV/Aids por homens homo/bissexuais e a invisibilização dos hetero nas políticas e ações de prevenção contrastam com o que a literatura vem indicando sobre o uso de camisinha. Embora as pesquisas que investiguem o uso de preservativos por homens homo e bissexuais e por homens heterossexuais usem metodologias muito diversas, o que limita sua comparabilidade, elas têm indicado que os homo/bisexuais usam mais preservativo e de forma mais consistente que os hetero4–7, especialmente quando em relações com outros homens8 (no caso de homens que fazem sexo com homens e mulheres), mas que esse uso varia de acordo com o tipo de parceria (sendo mais frequente com parceiros/as comerciais9, do que com eventuais10 e fixos/as4,8, respectivamente) e com o tipo de prática avaliada (mais frequente no sexo vaginal que no anal11 e mais frequente nas relações anais insertivas que nas receptivas8,12).
Cabe salientar que a maioria dos estudos sobre ocorrência de IST/HIV/Aids e uso de preservativo realizadas com homens homo e bissexuais no Brasil se restringe a amostras de conveniência8,13 ou a amostras probabilísticas com potencial limitado de generalização6,9,10,14,15. São poucas as pesquisas elaboradas com metodologias que permitem realizar comparações entre homens homo e bissexuais e homens hetero4,16,17. E são ainda mais escassas as aquelas que coletam dados sobre orientação sexual (a maioria investiga práticas sexuais, com o uso da categoria HSH18). Neste sentido, a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 (PNS 2019) é o único inquérito com amostra representativa da população brasileira que investigou orientação sexual17,19,20.
Este estudo teve, portanto, como objetivo investigar o uso de preservativo e o relato de diagnóstico de IST em homens cisgênero de 18 a 59 anos, segundo orientação sexual, comparando homo e bissexuais com heterossexuais, a partir dos dados da PNS 2019.

MÉTODOS
População do estudo e amostragem
Estudo transversal que utilizou dados da PNS 2019, uma pesquisa de base populacional conduzida pelo Ministério da Saúde em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A população respondente foi composta por adultos com 18 anos ou mais de idade, residentes em áreas urbanas ou rurais, excluídos os setores censitários especiais ou de escassa população19.
O plano amostral por conglomerados foi dividido em três estágios: 1) as unidades primárias de amostragem (UPA) foram os setores censitários ou composição de setores, selecionadas por amostragem aleatória simples, mantendo a estratificação da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD); 2) um número fixo de domicílios particulares permanentes foi selecionado em cada UPA; 3) um morador (com 15 anos ou mais) foi selecionado com equiprobabilidade entre a lista de moradores elegíveis para responder à entrevista individual. Detalhes sobre a amostragem encontram-se disponíveis em Stopa et al., 202019.
O processo de realização de entrevistas envolveu entrevistadores, supervisores e coordenadores treinados pelo IBGE, entre agosto de 2019 e março de 2020. As entrevistas foram realizadas com a utilização de dispositivos móveis de coleta. Ao chegar no domicílio selecionado e explicar os objetivos da pesquisa aos moradores, o entrevistador preenchia uma lista de todos os indivíduos residentes no domicílio, independentemente de concordarem ou não em participar da pesquisa, identificava o(a) morador(a) que proveria as informações sobre os questionários domiciliar e de todos os moradores do domicílio, e sorteava um(a) morador(a) de 15 anos e mais para responder à entrevista individual (a ser agendada)19.
Na PNS 2019, foram visitados 108.525 domicílios e realizadas 94.114 entrevistas individuais, com uma taxa de não resposta de 6,4%. Selecionados entre 15 e 17 anos não responderam às questões contidas no módulo “Atividade sexual” (n=2.317). Foram excluídos da presente análise aqueles(as) que se recusaram a responder as entrevistas individuais (n=1.189), os(as) selecionados(as) que não foram encontrados (n=1.664) e aqueles aos quais o questionário era não aplicável (n=412). Foram incluídos apenas os homens (n=41.662). Em função da falta de detalhamento, foram excluídos aqueles com outra orientação (n=16), que não sabiam sua orientação sexual (n=358) e que recusaram-se a responder esta pergunta (n=757). Assim, dos 40.531 homens que se declararam hetero, homo ou bissexuais, 30.512 tinham entre 18 e 59 anos. Deste total, 423 não tinham tido relações sexuais até o momento da entrevista, resultando na análise final de 30.089 pessoas (Figura 1).
Variáveis de resposta
A frequência do uso de camisinha nos últimos 12 meses foi avaliada através da pergunta “Nos últimos doze meses, nas relações sexuais que teve, com que frequência usou camisinha?”, cujas opções de resposta eram sempre, às vezes, nunca, recusou-se a responder e não aplicável. A esta pergunta, responderam 27.063 homens (dos 30.089 analisados, 29.206 responderam à questão sobre ter tido relações nos últimos 12 meses, 1.872 foram excluídos por não terem tido relação nos últimos 12 meses e 271 por não saber/não lembrar). Para a análise de associação com a variável explicativa, essa variável foi recategorizada como às vezes/nenhuma (caracterizando uso inconsistente de preservativo) e sempre (uso consistente do insumo).
O uso de camisinha na última relação nos últimos 12 meses foi avaliado pela questão “Nos últimos doze meses na última relação sexual que teve, foi usada camisinha masculina ou feminina?”, cujas opções de resposta eram camisinha masculina, camisinha feminina, não usou nenhuma, não sabe/não lembra, recusou-se a responder e não aplicável. Neste caso, camisinha masculina e camisinha feminina foram agrupadas na resposta “sim”, enquanto “não usou nenhuma” permaneceu como a categoria “não” e as demais respostas foram consideradas missings. Responderam a essa pergunta 12.494 sujeitos (ou seja, dos 27.063 que responderam à questão anterior, 14.569 foram excluídos por não terem usado camisinha nenhuma vez neste último ano).
Por fim, o relato de diagnóstico de IST foi avaliado por meio da pergunta “Nos últimos 12 meses, algum médico lhe deu diagnóstico de doença/infecção sexualmente transmissível?”, cujas opções de resposta eram sim, não e não aplicável. A esta questão, responderam 30.512 homens (incluindo aqueles que não tiveram relação sexual nos últimos 12 meses). Os missings, as recusas e as não respostas foram tratados como perdas e os sujeitos nestas categorias foram excluídos das análises.
Variável explicativa
A informação sobre orientação sexual foi coletada através da pergunta “Qual sua orientação sexual?”. A resposta espontânea era, então, categorizada pelo entrevistador em: heterossexual, homossexual, bissexual, outra (especifique). Caso não houvesse resposta espontânea, as opções eram lidas, em voz alta, seguidas, se necessário, do significado de cada alternativa, conforme as informações do manual e do treinamento da pesquisa.
Covariáveis
Para além da orientação sexual, outras variáveis explicativas foram analisadas, como idade (média e faixa etária, categorizada em 18-29 anos, 30-44 anos e 45-59 anos); raça/cor da pele autorreferida (branca, preta, amarela, parda, indígena); mora com companheiro/a (sim e não); escolaridade (fundamental incompleto ou equivalente, fundamental completo/médio incompleto ou equivalente, médio completo/superior incompleto ou equivalente, superior completo/pós-graduação); violência sexual, através da pergunta se alguma vez na vida foi ameaçado ou forçado a ter relações sexuais ou quaisquer outros atos sexuais contra sua vontade (sim e não); estado de saúde (muito bom/bom e regular/ruim/muito ruim); quando consultou um médico pela última vez (até um ano, mais de um a três anos, mais de três anos).
Análise estatística
A análise descritiva foi estratificada pela orientação sexual e todos os dados foram apresentados em frequência relativa e intervalo de confiança 95% (IC95%), considerando-se o desenho e os pesos amostrais. Para variáveis categóricas, as diferenças entre grupos foram avaliadas pelo teste de qui quadrado. A idade foi descrita adicionalmente como média e IC95% e as diferenças entre grupos avaliadas pelo teste t de Student (Tabelas 1 e 2).
Um modelo de regressão de Poisson com variância robusta não ajustado foi usado para avaliar a associação entre orientação sexual e cada variável resposta: uso de camisinha nas relações ocorridas nos últimos 12 meses, uso de camisinha na última relação ocorrida nos últimos 12 meses, e relato de diagnóstico de IST nos últimos 12 meses (modelo 1). Ajustes sequenciais foram feitos para idade e raça/cor da pele (modelo 2), coabitação, escolaridade e violência sexual (modelo 3) e estado de saúde e uso de serviços de saúde (modelo 4). Os resultados foram expressos em Razão de Prevalências (RP) e intervalo de confiança 95% (IC95%). As análises foram realizadas usando o comando survey do software Stata 16.0 (Stata Corporation, College Station, TX), e consideraram efeitos da amostragem complexa e pesos amostrais.
Aspectos éticos
A PNS 2019 foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)/Conselho Nacional de Saúde (CNS) sob o parecer n° 3.529.376, de 23/08/2019. Todos os procedimentos seguiram as recomendações da Resolução 466 de 2012 do CNS e o consentimento foi obtido antes da realização de cada entrevista.

RESULTADOS
Homens homo e bissexuais eram mais jovens (55,5% estavam na faixa de 18 a 29 anos, mesma situação de 28,0% dos hetero; média de idade 31,0 vs. 38,1 anos), coabitavam menos frequentemente com companheiro/a (22,6%, vs. 67,1%), tinham maior escolaridade (69,6% tinham ensino médio completo ou mais, em comparação a 35,6%), relataram ter sofrido mais violência sexual (6,5% vs. 0,8%) e estar em melhor estado de saúde (81,5% vs. 23,3%) que os homens heterossexuais. Não houve diferenças estatisticamente significativas entre grupos no que tange a raça/cor da pele e tempo desde a última consulta médica (Tabela 1).
Sempre usar caminha nos últimos 12 meses (56,3% vs. 25,7%) e ter usado na última relação ocorrida nos últimos 12 meses (80,5% vs. 41,1%) foi mais frequente entre homo e bissexuais em comparação aos hetero, assim como ter tido relato de diagnóstico de IST nos últimos 12 meses (6,0% vs. 0,5%) (Tabela 2).
A Tabela 3 mostra que, na análise bruta, ser homo ou bissexual esteve associado a sempre usar camisinha nos últimos 12 meses (RP 1,78; IC95% 1,58-2,01) e a ter usado este insumo na última relação nos últimos 12 meses (RP 1,66; IC95% 1,53-1,81) e que estas associações se mantiveram após a inclusão de idade e raça/cor da pele nos modelos (modelo 2). No entanto, no modelo 3 (para ambas as variáveis resposta), a associação se tornou estatisticamente não significativa após a introdução da variável “mora com companheiro/a” no modelo. Cabe salientar que, entre os que se identificaram como homo e bissexuais, 37,9% (IC95% 26,4%-51,0%) dos que moravam com companheiro e 62,4% (IC95% 53,1%-70,9%) dos que não moravam usavam camisinha de forma consistente, mesma situação de 13,4% (IC95% 12,6%-14,3%) e 57,0% (54,9%-59,2%) dos hetero, respectivamente. Já a associação entre orientação sexual e relato de diagnóstico de IST manteve-se significativa mesmo após ajustes, com homens homo e bissexuais tendo maior prevalência de relato de diagnóstico de IST no último ano que homens hetero (modelo bruto: RP 8,88; IC95% 5,54-14,24; modelo 4: aRP 4,69; IC95% 2,76-7,99).

DISCUSSÃO
Nossos achados apontam que, nos 12 meses que precederam a PNS 2019, homens homo e bissexuais de 18 a 59 anos usaram mais preservativo de forma consistente, incluindo na última relação, mas também tiveram mais relato de diagnóstico de IST que homens heterossexuais na mesma faixa etária. Embora a literatura tenha constantemente indicado um uso mais frequente e mais consistente de preservativo por homens homo e bissexuais do que por homens heterossexuais4–7,17, nossos resultados evidenciam, no entanto, que após ajustes para coabitação com companheiro/a, a diferença no uso de preservativo entre os dois grupos torna-se não significativa estatisticamente. Ou seja, o maior uso de preservativo entre homens homo e bissexuais é explicado parcialmente pelo fato de que eles coabitam menos frequentemente com companheiro/a em comparação aos heterossexuais.
Estudos anteriores4,9,10,17,21 realizados tanto com homens em geral quanto com HSH, indicam que, em relacionamentos mais estáveis e duradouros, o uso de preservativo é menos frequente. Segundo a PCAP de 2013, entre homens, em geral, de 15 a 64 anos sexualmente ativos nos 12 meses anteriores à pesquisa, 44,6% usaram camisinha na última relação sexual, percentual que chegou a 72,5% quando a relação foi com parceria casual. Já o uso de camisinha em todas as relações nos últimos 12 meses antes do inquérito com qualquer tipo de parceria foi declarado por apenas 27,5%, variando de 22,1% para aqueles com parceria fixa, a 60,9% para aqueles com parcerias casuais4. Na PNS 2019, apenas 25% (IC95% 74,0-75,9%) dos homens, em geral, casados ou em coabitação usaram preservativo na última relação, mesma situação de 73,1% (IC95% 71,5%-74,8%) dos não coabitantes21. Na RDS HSH de 2016, por sua vez, enquanto três quartos dos entrevistados usavam camisinha de forma consistente com parceiros comerciais9, menos de 50% usava o insumo de forma consistente com parceiros eventuais10.
Há que se considerar, nesse contexto, que os sujeitos, a partir da mobilização do aprendizado coletivo de como lidar com as IST, fazem sua gestão de risco, tentando equilibrar suas necessidades e o risco de exposição22, sem que isso signifique, onecessariamente, um abandono ou desinteresse pela prevenção23. A prática de relações sexuais sem o uso de preservativo com companheiro em cohabitação pode simbolizar maior comprometimento, intimidade e envolvimento emocional dos parceiros com a relação24. Na literatura internacional, esse não uso de preservativo com um parceiro primário estável e seu uso com parceiros ocasionais, tem sido chamado de segurança negociada25. Além disso, a dimensão do prazer e do desejo também podem implicar no uso menos frequente da camisinha26. Neste mesmo sentido, negociações, alterações e intermitências são importantes em uma certa gestão de risco de parcerias sexuais27 gerando acordos e contratos que usualmente podem ser relevantes no uso ou não de preservativos. A análise do tempo de relacionamento, que poderia auxiliar na compreensão desta associação entre coabitação e uso de preservativo, não está disponível na PNS.
Intervenções e grupos de apoio para discutir a negociação envolvida no uso podem ser importantes para incrementar o uso de camisinha26. Da mesma forma, o uso de estratégias biomédicas e/ou comportamentais, como o tratamento como prevenção, a profilaxia pós-exposição, o aconselhamento e testagem e a soroadaptação podem ser usadas como alternativas na gestão de riscos22,26,28.
Nossos achados também indicam que homens homo e bissexuais tiveram mais relato de diagnóstico de IST nos 12 meses que antecederam a pesquisa que homens heterossexuais, o que é consistente com a literatura. Neste sentido, a PCAP 2013 indicou que 9,9% dos homens sexualmente ativos entre 15 e 64 anos (independente da orientação) tiveram algum sintoma que pudesse indicar IST ao longo da vida4. Isso contrasta com os dados da RDS HSH 2016, que indicou que quase 20,0% dos HSH entrevistados apresentaram algum sintoma de IST no ano anterior à pesquisa, e que apontou para uma prevalência de IST auto relatada na vida de 27,8%, com destaque para sífilis (52,1%), HIV/Aids (27,5%) e gonorreia (23,4%)2. A comparação de pesquisas com temporalidades (2013 e 2016), amostragens (população representativa do Brasil e HSH de redes específicas) e perguntas distintas (sintomas de IST em geral vs. prevalência aferida) como a PCAP 2013 e a RDS HSH 2016 é uma limitação importante, em função da inexistência de estudos nacionais que investiguem os dois grupos simultaneamente. Além disso, no Brasil, cabe ressaltar que, embora a epidemia do HIV/Aids tenha se transformado muito em sua trajetória, ainda é concentrada em grupos com determinadas praticas sexuais, como os HSH29. Estudos que analisaram a trajetória da epidemia do HIV/Aids28 evidenciaram que o estigma e o preconceito são fatores permanentes, que se relacionam com aumento de vulnerabilidades e que se vinculam com os cuidados à saúde e com a gestão de riscos nas práticas sexuais29.
Essa maior frequência de relato de diagnóstico de IST no último ano anterior à pesquisa também pode se dever parcialmente à sobretestagem de homens homo e bissexuais, uma vez que os heterossexuais são invisibilizados nas políticas e programas voltados à testagem e à prevenção de IST/HIV/Aids e não se percebem como estando em risco30. Neste sentido, uma pesquisa realizada em Campo Grande, Curitiba e Florianópolis, em 2019, apontou que mais de 80% dos HSH nas três cidades já haviam se testado para HIV ao longo da vida e mais de 50% deles tinham se testado no último ano anterior à pesquisa16. Isso contrasta com dados da PCAP 2013, que indicam que, entre homens sexualmente ativos entre 15 e 64 anos (independente da orientação), apenas 27,3% se testou alguma vez na vida4.
Cabe salientar algumas limitações da presente pesquisa. A forma como a orientação sexual foi inquirida na PNS (por autodeclaração espontânea e recategorizada pelo entrevistador em heterossexual, homossexual, bissexual, outra (especifique) e, em caso de não resposta, leitura das alternativas seguida de explicação) pode ter resultado em subdeclaração de homo/bissexuais, reduzindo a magnitude das medidas de associação observadas. Considerando a elevada frequência de preconceito e discriminação na sociedade brasileira, estes dados sempre devem ser contextualizados. Para além da orientação, outra variável que pode ter sofrido viés de informação foi o relato de diagnóstico de IST (inquirida através da pergunta “Nos últimos 12 meses, algum médico lhe deu diagnóstico de doença/infecção sexualmente transmissível?”). Além de ser uma pergunta inespecífica (impossibilita investigar de qual IST se trata), restringiu a resposta apenas àqueles que tiveram um diagnóstico fornecido por um médico.
No entanto, apesar das limitações, nossos achados são importantes à medida que a PNS foi o primeiro estudo nacional com amostra representativa da população adulta a investigar a orientação sexual, e não práticas sexuais20. Habitualmente, na área da saúde, utiliza-se o conceito de HSH, que, embora tenha importância histórica, especialmente no contexto do deslocamento do foco das ações preventivas de grupos de risco para práticas de risco, não contempla a diversidade de identidades de gênero e orientaçöes sexuais que tenta abarcar, com seus comportamentos preventivos e prevalências distintas de IST/HIV/Aids, e escancara a centralidade do sexo e da genitália na elaboração das políticas públicas18.
Embora seja fundamental que existam políticas públicas de saúde direcionadas a grupos historicamente vulnerabilizados e alijados do sistema de saúde, como homens homo e bissexuais, nossos achados indicam que as estratégias de prevenção de IST/HIV/Aids devem ser repensadas, de forma a passar de uma lógica de práticas de risco para a análise de um contexto mais amplo, que inclua, por exemplo, os diferentes tipos de relacionamento, suas temporalidades e negociações. Considerar o contexto mais amplo, particularmente as formas e tipos de relacionamentos, as negociações neles envolvidas e o tempo destas negociações nos sugere um caminho promissor de novas pesquisas que possam tornar ainda mais complexa a compreensão dinâmica sobre as crescentes taxas de infecções de HIV e outras IST entre homo e bissexuais. No que diz respeito ao uso consistente de camisinha entre os homens hetero, nossos resultados reforçam o que a literatura já vem indicando3, que a ausência de políticas públicas direcionadas a prevenção de IST/HIV/Aids entre esse grupo reduz suas oportunidades de diagnóstico em tempo oportuno e os torna mais exposto ao risco de novas infecções.


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Pilecco, F. B., Silva, J. da R.. P., Martins, R. S., Prado, M. A. M.. USO DE PRESERVATIVO E RELATO DE DIAGNÓSTICO DE IST EM HOMENS CISGÊNERO, SEGUNDO ORIENTAÇÃO SEXUAL: UMA ANÁLISE A PARTIR DA PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE DE 2019. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/Mar). [Citado em 07/10/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/uso-de-preservativo-e-relato-de-diagnostico-de-ist-em-homens-cisgenero-segundo-orientacao-sexual-uma-analise-a-partir-da-pesquisa-nacional-de-saude-de-2019/19112?id=19112

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