0338/2025 - CONSTRUCTING POPULAR SURVEILLANCE: EXPERIENCE OF WOMEN IN A SOCIO-ENVIRONMENTALLY VULNERABLE COMMUNITY
CONSTRUINDO A VIGILÂNCIA POPULAR: EXPERIÊNCIA DE MULHERES EM UMA COMUNIDADE SOCIOAMBIENTALMENTE VULNERÁVEL
Author:
• Ana Regina Barbosa - Barbosa, AR - <anareginash2016@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0009-0004-9281-7014
Co-author(s):
• Fernando Ferreira Carneiro - Carneiro, FF - <fernando.carneiro@fiocruz.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6625-9715
• Tainá Maria Lima Freire - Freire, TML - <tainafreire@alu.ufc.br>
ORCID: https://orcid.org/0009-0002-0554-2987
• Carla Nayra Sousa do Nascimento - Nascimento, CNS - <carla.nayra.SN@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0005-7279-9928
• Leidiane Sousa Rodrigues - Rodrigues, LS - <srleide83@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0006-0519-1063
• Rosa Lívia Freitas de Almeida - Almeida, RLF - <rliviafa@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6423-543X
• Carl Kendall - Kendall, C - <carl.kendall@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0794-4333
• Vilkiane Natercia Malherme Barbosa - Barbosa, VNM - <vilkimalherme@outlook.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3048-9316
• Tatiana Moreira Fiuza - Fiuza, TM - <tatitatimfc@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5459-6741
• Ana Cláudia de Araújo Teixeira - Teixeira, ACA - <ana.claudia@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2851-5260
• Ana Zaira da Silva - Silva, AZ - <ana.zaira@univasf.edu.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7016-9894
• Ligia Regina Franco Sansigolo Kerr - Kerr, LRFS - <ligiakerr@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4941-408X
Abstract:
The paper reports efforts to build community partnerhips to promote participatory surveillance in a community documenting the strategies used. Members of the community and the Project team constructed a Social Map documenting the elements that promote or threaten health and wellness in the mapped territory. An action-research project was conducted with women living in a peripheral neighborhood of Fortaleza-CE, from October 2021 to September 2022. Community members participating identified the lack of security, employment, basic sanitation, health professionals in the health center, information about important health conditions, and the lack of environmental inspection as priorities. They also noted high levels of domestic violence, garbage, inadequate care of animals, including abandonment of pets and other animals, divisions within the community created by gangs, precarious housing and involvement of young people with drugs. Identified as promoters of health and wellness in the territory: the Cuca (Art and culture center), as well as churches, schools, clinics and other community-serving institutions. The outcome of the activity was not just the community-specified problems and positive institutional responses, but a resolve in the participants to continue confronting the problems through the development of an action plan and an action research group, effectively a collective of women who have been following up on the implementation of this plan.Keywords:
Public Health Surveillance; Health Care; Community ParticipationContent:
CONSTRUCTING POPULAR SURVEILLANCE: EXPERIENCE OF WOMEN IN A SOCIO-ENVIRONMENTALLY VULNERABLE COMMUNITY
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CONSTRUINDO A VIGILÂNCIA POPULAR: EXPERIÊNCIA DE MULHERES EM UMA COMUNIDADE SOCIOAMBIENTALMENTE VULNERÁVEL
Abstract(resumo):
Objetivou-se identificar as potencialidades e estratégias da construção de coletivos de promoção da vigilância popular e cuidado em saúde, através da elaboração de Mapa Social com os elementos que promovem e ameaçam a vida e saúde no território. Foi realizada pesquisa-ação, com mulheres residentes em bairro periférico na cidade de Fortaleza-CE, entre outubro de 2021 a setembro de 2022. As participantes identificaram a falta de segurança, emprego, saneamento básico, insuficiência de profissionais de saúde, informação, fiscalização ambiental, violência doméstica, lixo, pocilga (criação de animais de forma inadequada), abandono de animais, divisão de territórios (facções criminosas), moradias precárias e jovens envolvidos com drogas como elementos ameaçadores da vida e saúde na comunidade. Identificados como promotores de saúde e bem-estar no território: a unidade pública Cuca (centro urbano de arte e cultura), bem como igrejas, escolas, clínicas e outras instituições de atendimento à comunidade. O resultado da atividade não se resumiu apenas aos problemas especificados e a respostas institucionais positivas, mas uma disposição entre as mulheres de continuar enfrentando os problemas por meio do desenvolvimento de um plano de ação, resultando em um coletivo que têm acompanhado a implementação deste plano.Keywords(palavra-chave):
Vigilância em Saúde Pública; Cuidado em Saúde; Participação da ComunidadeContent(conteúdo):
INTRODUÇÃOA vigilância popular em saúde é um conceito contemporâneo, ainda em construção, que se disseminou a partir dos territórios e movimentos populares como reação de defesa da saúde e da vida frente à pandemia pela Covid 19¹,². A vigilância popular em saúde é baseada no protagonismo popular na construção da autonomia dos sujeitos para a defesa da saúde e da vida, contribuindo para a emancipação de grupos vulnerabilizados em seus territórios marcados pela pobreza, contaminação ambiental, violência, exclusão social e econômica, marginalizados pela condição social, cor da pele e gênero³,4. São grupos que na ausência ou insuficiência da vigilância em saúde como ação do Estado organizam coletivos gerando informação para a ação em defesa da saúde e da vida. A vigilância popular em saúde apresenta novas práticas coletivas e emancipatórias que não visam substituir as ações de vigilância em saúde realizadas pelo Estado, mas contribuir para uma vigilância mais participativa e dialógica, de forma a potencializar as ações do Sistema Único de Saúde (SUS).
A pandemia de COVID-19 trouxe impactos globais significativos nas esferas privada, social e econômica5, além dos desafios relacionados à saúde, questões sociais complexas foram evidenciadas, destacando disparidades entre grupos, incluindo mulheres, moradores de regiões marginalizadas e minorias étnicas. As mulheres pobres são as que enfrentam cotidianamente outras pandemias, como a violência doméstica e a violência de gênero. As mulheres negras são as mais afetadas e prejudicadas, pois, além da estigmatização racial, ainda enfrentam a violência policial e o genocídio dos seus filhos nos territórios vulneráveis6. Este contexto destacou a necessidade de abordagens não convencionais, como o fortalecimento de uma vigilância e educação popular da saúde, que valorize o saber popular e envolva ativamente a comunidade nas ações de prevenção de agravos e promoção da saúde.
A Vigilância Popular em Saúde tem avançado recentemente e tem tido a preocupação de empregar práticas de vigilância que privilegiam o protagonismo das comunidades e dos movimentos sociais. O envolvimento de diferentes graus de atuação do Estado, da academia e de especialistas pode resultar em aspectos bastante positivos, quando os mesmos, reconhecendo esses atores e saberes populares, se envolvam nos processos participativos de forma dialógica7. Ela se diferencia da vigilância de caráter mais institucional porque todo o processo de geração da informação para a ação pode se dar sob o controle popular. Esse enfoque, aplicado à COVID-19, buscou não apenas enfrentar os desafios da pandemia, mas também promover a emancipação dos indivíduos, valorizando o saber popular e, garantir acesso efetivo à saúde para as populações periféricas3.
Os resultados de uma revisão integrativa sobre concepções, experiências, métodos e técnicas existentes em vigilância popular da saúde, ambiente e trabalho no âmbito nacional e internacional sugerem que esse forte envolvimento das comunidades nos projetos de vigilância popular gerou maior consciência, conhecimento, capacidade de enfrentamento dos desafios, infraestrutura e influência a partir de uma parceria entre a comunidade, os serviços de saúde e as instituições de pesquisa2.
Esse estudo tem como um de seus referenciais epistemológicos um modo de fazer ciência mais participativo, que nega a relação sujeito-objeto de pesquisa e busca estabelecer uma relação sujeito-sujeito8 com mulheres de um território de Fortaleza-Ceará de alta vulnerabilidade social. Pretende-se identificar as potencialidades e estratégias da construção de coletivos de promoção da vigilância popular e cuidado em saúde, através da elaboração de Mapa Social com os elementos que promovem e ameaçam a vida e saúde no território.
MÉTODO: Processo Participativo de Pesquisa
Foi realizada uma pesquisa-ação, que pressupõe explícita interação entre pesquisadores e pessoas implicadas na situação investigada visando a discussão e a priorização dos problemas a serem pesquisados e as soluções possíveis de serem encaminhadas sob forma de uma ação concreta9.
Os parâmetros para a seleção das participantes foram baseados nas necessidades vivenciadas pelas mulheres no cotidiano da comunidade e da unidade de saúde, obedecendo os critérios de pertencer ao território de abrangência do serviço de saúde, ser atendida nos serviços ofertados e aceitar participar da pesquisa. Após a concordância, foi criado um grupo no WhatsApp para contato e comunicação sobre os encontros para a realização das atividades e oficinas. Essa articulação foi facilitada pela primeira autora que é Agente Comunitária de Saúde na unidade e tem familiaridade com o território e com as participantes. As participantes do estudo são consideradas pesquisadoras populares, pois são as protagonistas dessa experiência, a qual também fez parte de um projeto de pesquisa nacional do Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes da Fiocruz Ceará.
A pesquisa foi desenvolvida na Barra do Ceará, bairro periférico situado na cidade de Fortaleza-CE, no período de outubro de 2021 a setembro de 2022. A Barra do Ceará é o segundo bairro mais populoso da cidade, possui grande densidade demográfica, contando com uma população de 72.423 pessoas residentes e tem um dos mais baixos Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital cearense10. É um cenário de muitas contradições, considerando que apesar, de ser situado próximo a áreas turísticas da cidade e de grande interesse imobiliário, tem uma realidade marcada pela violência. É um território com moradias precárias, sem saneamento básico, iniquidades e enraizamento da pobreza.
Utilizou-se a técnica da cartografia social11 para a elaboração do mapa social com base na seguinte questão orientadora: o que promove e ameaça a vida e a saúde no território. Para tanto, foram realizadas nove oficinas que possibilitaram a troca de saberes e vivências das mulheres sobre o território e comunidade onde vivem, com a seguinte estruturação:
1ª Oficina - apresentação do projeto e seus objetivos, formação do grupo e identificação do perfil sociodemográfico das participantes;
2ª Oficina - discussão acerca da questão norteadora: “o que promove e ameaça a vida e a saúde no território”;
3ª e 4ª Oficina - identificação dos elementos ameaçadores e promotores de saúde na comunidade;
5ª e 6ª Oficina - análise dos elementos ameaçadores e promotores de vida e saúde na comunidade;
7ª Oficina - elaboração do Mapa social;
8ª e 9ª Oficina - elaboração do Plano de Ação.
As oficinas serviram como dispositivos para estabelecer diálogos acerca dos temas relevantes e significativos, capazes de compreender as relações entre as práticas de violência, discriminação e acesso a saúde. A partir da discussão e priorização das questões que promovem e ameaçam a vida e a saúde no território, foi elaborado um plano de ação para enfrentamento das ameaças com os seguintes elementos: ação, objetivo da ação, meta da ação, critérios de avaliação, período de realização, responsáveis, estratégias/metodologia.
No início de cada oficina era feita uma vivência de acolhimento às participantes e, as atividades realizadas foram registradas por meio de fotografias e lista de presença. Além disso, foram utilizadas cartolinas para a elaboração do mapa social. Para a análise dos dados foi utilizada a técnica da análise de conteúdo categorial, que facilita a identificação e análise das categorias eleitas pelo estudo12. Considerando que a pesquisa foi realizada no período de pandemia, foram adotadas como medidas de segurança o uso de máscaras e o distanciamento entre as participantes.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Fiocruz Brasília e da Universidade Federal do Ceará (UFC), parecer nº 53887421.00000.8027 e nº 4.617.433, respectivamente. Foram respeitados os princípios éticos de pesquisa com seres humanos, em conformidade com a Resolução n° 466/2012, Resolução n° 510/2016 e com a Lei n° 11.794/2008. Todas as mulheres receberam e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), onde constavam todas as informações sobre os objetivos, procedimentos e dados dos pesquisadores principais da pesquisa, sendo informado que estas poderiam desistir a qualquer momento da participação.
RESULTADOS
O grupo de pesquisa-ação foi constituído por 15 mulheres, com idade entre 25 a 60 anos, sendo predominante a faixa etária de 40 a 58 anos. A maioria das mulheres se autodeclaram pardas (62,5%), 31,5% não concluiu o ensino fundamental e, 93,0% trabalham informalmente, sendo cuidadoras do lar, costureiras ou vendedoras de cosméticos.
Os resultados demonstram a complexidade dos desafios enfrentados pelas mulheres da comunidade, em um contexto marcado pela violência estrutural e pelas dificuldades de acesso aos direitos em saúde. A presença simultânea de uma unidade de saúde como fator promotor e limitador de saúde reflete a ambiguidade que pode haver nas políticas públicas que, embora existam, muitas vezes não são adequadas às necessidades reais da população. Ademais, a análise dos encontros realizados revelou a importância de criar espaços sensíveis à escuta, superando as barreiras técnicas do modelo biomédico burocrático. Foi necessário considerar as dinâmicas de trabalho e cuidado das mulheres, ajustando horários e duração dos encontros para garantir sua participação efetiva.
As oficinas evidenciaram o poder transformador da união entre as mulheres e pesquisadores em prol de melhorias na saúde da comunidade. Importante considerar que a primeira autora é, além de pesquisadora, uma atriz comunitária, ao passo que também compõe aquele território, o que facilitou o diálogo com as outras mulheres, como também forjou a possibilidade que estas percebessem ativamente o lugar da pesquisa-ação como uma oportunidade concreta de facilitar processos de mudanças no contexto social vivido. A priori, houve um certo estranhamento por parte das mulheres ao ocuparem um espaço mais ativo na pesquisa, mas, com o tempo, elas compreenderam a importância de construir de forma colaborativa em consonância com os marcos teóricos e metodológicos desse estudo.
Desta forma, a construção do conhecimento deu-se de forma conjunta, buscando utilizar linguagens que dialogassem mais com o contexto vivido. Assim, o lugar identitário das pesquisadoras populares foi uma construção coletiva que foi se estabelecendo ao longo dos encontros. As estratégias de pesquisa adotadas buscaram conexão com as realidades vividas por aquelas mulheres, sendo mediadores da leitura que estas faziam de seu contexto. Nesse sentido, o mapa social emerge como possibilidade para a construção de um saber coparticipativo em busca de transformação para a realidade vivenciada no território, favorecendo um processo de luta, participação popular e controle social. O mapa foi elaborado a partir das oficinas com estas mulheres e, foi guiado pelos elementos que promovem e ameaçam a vida e saúde no território (Figura 1).
Figura 1
Neste sentido, construiu-se junto com as mulheres uma prática educativa crítica, democrática, participativa e popular, constituindo uma forma de intervenção na comunidade, em defesa do princípio democrático que rejeita qualquer forma de discriminação, dominação e, incorpora uma atitude de inovação possibilitando a transformação para o bem viver da população na comunidade. Para além disso, a partir dos diálogos e observações, foram identificadas formas de resistência e recriação da vida, em meio às violações sofridas. Surgiram, então, elementos promotores de vida e saúde, conforme listado no Quadro 1.
Quadro 1
A percepção das participantes sobre os elementos que ameaçam e promovem a vida e a saúde é bastante reveladora. O posto de saúde, por exemplo, aparece em ambas as categorias: promove saúde por facilitar o acesso, mas a falta de profissionais compromete sua atuação efetiva. Além disso, fatores como saneamento básico e habitação adequada foram amplamente apontados, destacando a necessidade de investimentos em infraestrutura. Os elementos promotores, por sua vez, são em sua maioria serviços públicos, o que ressalta a importância de políticas públicas para o bem-estar social. A precariedade de habitação e saneamento básico, identificada como fatores ameaçadores, evidencia a necessidade de ações governamentais que integrem saúde e infraestrutura urbana, visando à equidade no acesso aos direitos básicos.
Após essa reflexão, o grupo identificou elementos passíveis de intervenção por meio de organização popular, levando à elaboração de um plano de ação que buscou reforçar a importância da participação comunitária para a melhoria da qualidade de vida, conforme a perspectiva emancipatória de Paulo Freire, chamada de "inédito viável"13. Para tanto, o plano de ação (Quadro 2) foi estruturado com base nas categorias de Thiollent11, as quais foram sistematizadas por Pessoa14, tendo os elementos sido agrupados por aproximação temática, considerando que a resolução de um determinado elemento de ameaça pode, em tese, resolver outro a ele relacionado.
Quadro 2
De tal forma, o plano de atuação foi pensado a partir do que foi considerado mais factível de ser realizado. A partir dos encontros de pesquisa, as mulheres, pesquisadoras populares, perceberam a necessidade de se organizarem enquanto coletivo. E neste sentido, nasce da pesquisa o agora denominado Coletivo de Mulheres da Barra do Ceará, que até março de 2025 se encontrava em plena atividade, provendo atividades diversas no bairro, participando de reivindicações junto aos poderes públicos estadual e municipal, entre outras atividades. E como pode ser visto no plano, estas são proponentes do plano, assim, ativas na resolução das problemáticas que foram identificadas coletivamente. Destaca-se que, mesmo findada a pesquisa, o grupo de pesquisa-ação continuou seu trabalho para implementação do plano de ação e outras atividades comuns. Este grupo segue reunindo-se quinzenalmente e, buscando ao mesmo passo que compreender e acessar informações sobre os direitos e cidadania, ocupar espaços reivindicatórios que possibilitem a vivência da militância em saúde. Ademais, fortalecer as possibilidades concretas de mudanças de práticas e acesso e garantia de direitos no território de atuação em diálogo com outros atores e atrizes. As pesquisadoras populares são as protagonistas dessa experiência, que fez parte de um projeto de pesquisa nacional do Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes da Fiocruz Ceará. Um dos resultados desse projeto foi a elaboração de um Guia de Vigilância Popular em Saúde, no qual as mesmas também são autoras2.
DISCUSSÃO
A desigualdade social e as negligências enfrentadas pela classe trabalhadora frequentemente impedem o acesso à informação necessária para a conscientização e tomada de decisão no processo de autonomia do cuidado. O modelo biomédico neoliberal, ofertado em diversos níveis, não atende às demandas da população, desencadeando uma crise histórica na condução das práticas de cuidado nos serviços de saúde15. As práticas embasadas neste modelo favorecem relações de poder desiguais, nas quais os usuários assumem uma postura passiva em relação às intervenções, o que compromete sua participação ativa nas decisões sobre os processos saúde-doença que os afetam diretamente16.
A vigilância popular em saúde é uma estratégia que favorece que as comunidades participem ativamente no diagnóstico, análise e na construção de soluções de seus problemas de saúde3, por meio da produção de informação para a ação. Ao adotar essa abordagem, é possível que estas mulheres se percebam como agentes ativos na promoção de seu próprio bem-estar, rompendo com a lógica do modelo hegemônico biomédico17. Em territórios com altos índices de violência e desigualdade, como a Barra do Ceará, a vigilância popular pode oferecer um espaço ativo para as vozes marginalizadas articularem suas necessidades e reivindicarem políticas públicas mais alinhadas às suas realidades que pode se potencializar pela produção de um saber compartilhado entre SUS, comunidade e academia. Esse processo favorece a solidariedade e reforça o papel da organização social, como exemplificado pelo Coletivo de Mulheres da Barra do Ceará, que nasce a partir desta pesquisa.
A continuidade das atividades do Coletivo de Mulheres da Barra do Ceará, mesmo após o término formal da pesquisa, é um indicativo de que a pesquisa-ação conseguiu fortalecer a organização comunitária. Isso se alinha à concepção de Thiollent11, segundo a qual a pesquisa-ação deve resultar em algum tipo de ação planejada e deliberada pelos participantes. As mulheres da comunidade passaram a ocupar espaços reivindicatórios, a exemplo do coletivo "Lindofas" que reúne mulheres da comunidade participantes e não-participantes da pesquisa, que se inseriram no grupo para fortalecer a autonomia, a visibilização e o enfrentamento dos processos de violências vividos. Além disso, o grupo também participou de eventos promovidos pela Fiocruz e outras instituições formativas em saúde, fomentando debates sobre a participação popular em saúde e a atuação da mulher no fortalecimento de estratégias territoriais em saúde. Merece destaque uma das iniciativas de implantação do plano de ação da pesquisa, em relação ao tema da violência contra a mulher, a visita da Casa da Mulher Brasileira, que se caracteriza como equipamento público da rede de proteção social. Nesse espaço, o grupo obteve orientações relacionadas às políticas públicas de proteção dos direitos das mulheres.
A organização social de mulheres desempenha um papel crucial na defesa dos direitos à saúde e à vida em contextos de desigualdade e violência18. Ao se mobilizarem, essas mulheres não apenas fortalecem-se mutuamente, mas também, desenvolvem uma capacidade crítica de agir sobre as condições que perpetuam as dificuldades de acesso a saúde e a garantia de direitos sociais16,19. O Coletivo de Mulheres da Barra do Ceará exemplifica como a união e a ação coletiva, podem enfrentar as barreiras de acesso a serviços essenciais e desafiar as dinâmicas de poder que historicamente excluem as mulheres dos espaços de decisão19. Essa mobilização gera uma conscientização que transcende a esfera individual, criando um movimento que fortalece toda a comunidade19.
As metodologias participativas, como a pesquisa-ação, são exemplos de possibilidades de materialização de uma vigilância participativa e dialógica. O processo da cartografia social permitiu a produção de um saber compartilhado de experiências, mostrou a potência de existência e resistência de quem vive em um território com inúmeras vulnerabilidades13, como observado em outros países2. A vida que pulsa e vale a pena ser vivida emergiu como guia na construção co-participativa. A cartografia é um processo de produção do conhecimento que não está dado a priori, mas acontece no encontro com outros corpos, reconhecendo todos como produtores intensivos do conhecimento20.
A cartografia social, utilizada como método de problematização e diagnóstico situacional, mostrou-se uma ferramenta eficaz para visualizar as desigualdades sociais e ambientais16. Este processo colaborativo reforçou o senso de pertencimento ao território e promoveu maior adesão das participantes às práticas coletivas. A inclusão ativa das mulheres nos processos de construção das ações de saúde reafirma o potencial da vigilância popular, na qual as próprias comunidades se tornam protagonistas na identificação e resolução de seus problemas3.
A cartografia possibilitou a construção do mapa social que operacionalizou os elementos ameaçadores e promotores da saúde do território, o que foi uma estratégia potente de tornar as questões analisadas mais concretas e próximas da realidade vivida. Além de reafirmar a relação de pertencimento a um território, desperta nas comunidades o interesse pela solução de seus problemas21, uma vez que, a partir disso, sensibiliza para o reconhecimento do território como seu e de como este tem sido ocupado, seus atravessamentos, potencialidades e desafios de pertencer ao espaço19. O senso de pertencimento favorece a adesão às práticas coletivas de participação e cooperação para o bem comum social16.
Para tanto, no processo de problematização, aos moldes de Freire22, o essencial é a participação dos sujeitos implicados com as temáticas que os afetam na construção de ações com vistas a transformar sua realidade. Desse modo, a pesquisadora desempenha um papel de facilitadora dos diálogos propostos, sendo o coletivo formado o protagonista das ações. É a organização compartilhada deste grupo e seu envolvimento que torna possível a execução do plano de ação.
Contudo, pode-se constatar um consenso entre os relatos das mulheres sobre a falta de segurança e a violência que assolam o território, as interlocutoras da pesquisa enxergam a situação como um elemento de ameaça constante, na qual existe a ausência tanto do Estado quanto uma disputa do poder paralelo em que a população tem poucas chances de transformação na conjuntura do território. Sofrem com as consequências perversas dos efeitos das estruturas de desigualdades sociais e econômicas reveladas pela marginalização e pela exclusão social da população do território, que refletem no processo saúde-doença. As próprias participantes revelam algumas problemáticas que poderiam explicar por que, sobretudo, as mulheres periféricas do Brasil, enfrentam além das condições financeiras precárias, desemprego, o estigma e a humilhação por habitarem territórios estigmatizados, e ainda se somam a esse contexto a violência doméstica, mulheres que não são ouvidas ou protegidas, tendo sua condição já precária maximizada, por estarem constantemente expostas às agressões físicas e, por vezes, até correndo risco de morte.
O Estado tanto pode ser garantidor de proteção e direitos como pode instaurar e reproduzir violências e, por vezes, suas ações não dialogam com as reais necessidades dessas populações. Essa questão repercute no ser mulher e viver em territórios vulnerabilizados, amplia estigmas que são socialmente compartilhados - é a transversalidade de gênero reforçando outras exclusões. São formulações socialmente produzidas a partir de uma visão geral que se tem das mulheres e, do que seria “o melhor” para elas20.
Ademais, a epidemiologia tem permitido considerar que na realidade de Fortaleza, a violência não ocorre de forma homogênea, mas especialmente em espaços e regiões onde estão presentes outras doenças de determinação social23. Nesse sentido, trabalhar na perspectiva de garantia de direitos sociais configura um desafio para profissionais e redes de atenção à saúde na promoção do cuidado. Os achados desta pesquisa nos possibilitam pensar estratégias na construção conjunta em busca de soluções. Especialmente, considerando os contextos periféricos e o protagonismo de mulheres nesta construção.
Para tanto, a pesquisa-ação mostra-se como estratégia importante para favorecer processos emancipatórios9. Especialmente, considerando os desafios de lidar com a violência estrutural e as dinâmicas de gênero que permeiam o cotidiano das comunidades periféricas. A violência, enquanto produto de desigualdades sistêmicas, afeta diretamente o bem-estar físico e psicológico das mulheres, e pode restringir o acesso destas a espaços de participação social e poder24. Desta forma, é importante que a ação da pesquisa esteja alinhada com a emancipação social que fomente de forma ativa a análise das problemáticas e a construção de soluções coletivas que desafiem as estruturas opressivas20. Esta pesquisa, que tem como um dos produtos a mobilização social do Coletivo de Mulheres da Barra do Ceará, demonstra a relevância de ações que visem ao empoderamento das mulheres como um meio de transformar suas realidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta travessia, a pesquisa propôs um arcabouço metodológico para a construção do saber compartilhado, articulando contribuições dialógicas com a população. Para isso, a proposta ancorou-se na pesquisa-ação com a técnica de cartografia social, tomando a cartografia como estratégia para a aproximação e criação de vínculo com o grupo de pesquisa, forjando estratégias de participação mais efetivas das mulheres, que refletem sobre as problemáticas e constrói dialogicamente formas de enfrentamento a estas.
Experienciar as possibilidades de construir uma vigilância popular em saúde com o compartilhamento de singularidades foi possível pelas afetações do grupo, a partir da parceria firmada entre academia, serviço de saúde e comunidade, resultando na conscientização acerca dos processos de vida e saúde no território. O trajeto iniciou-se, não com a pretensão de disponibilizar receitas, mas inspirações teóricas e metodológicas para uma ação mais participativa e efetiva na defesa da saúde e da vida das populações que habitam espaços vulnerabilizados.
Pôde-se constatar que a violência estrutural afeta o direito à saúde da população do território, assim como o agravamento das desigualdades e, consequentemente, a exclusão social. Nesse sentido, julgamos que o enfrentamento desse problema exige grande investimento por parte do Estado e dos gestores do SUS. Assim, devem-se implementar ações articuladas, tanto no âmbito do macro, quanto do micro das políticas públicas de segurança e de saúde, produzindo ações orientadas pelas necessidades das populações.
Com a experiência, percebeu-se que a humanização do cuidado passa pela radicalidade democrática do partilhar, pois não se cuida efetivamente de indivíduos se não cuidarmos de populações. O vínculo é visto como fator importante para a atenção à saúde, contribuindo no conhecimento dos reais problemas da população, além de facilitar o relacionamento dos usuários com os profissionais de saúde.
A pesquisa mostrou que a vigilância popular pode contribuir para a produção social da saúde. Retornar ao território é dar visibilidade e voz à periferia por seu potencial de inovação na transformação de realidades, é incorporar novos paradigmas às estruturas de poder técnico-assistenciais, é aprender a agir com o diferente, articular grupos e comunidades para cuidar de pessoas. Nesse sentido, realizar pesquisa-ação em territórios vulneráveis exige uma práxis que garanta um processo dialógico com embasamento na problematização, fortalecendo a relação com os sujeitos, contribuindo para a efetivação do direito à saúde, a participação comunitária e social para a constituição de novas práticas de saúde.
Por fim, entende-se que este trabalho pode contribuir para a construção de metodologias participativas para a vigilância e/ou cuidado em saúde. Mostrou-se a necessidade de pensar ações sistêmicas e integradas entre os serviços de saúde e a população, o envolvimento dos sujeitos engajados potencializou a organização popular como fator de proteção à saúde, evidenciando o território como espaço de análise e intervenção. Evidencia-se o enfoque participativo como estratégia para a melhoria da qualidade de vida da população sob uma perspectiva crítica e emancipatória, base para uma vigilância popular em saúde na defesa da vida.
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