0344/2025 - GEOGRAPHIC BARRIERS AND ACCESS TO HEALTH: CHALLENGES AND PROPOSALS FOR QUILOMBOLA COMMUNITIES IN THE BRAZILIAN AMAZON
BARREIRAS GEOGRÁFICAS E ACESSO À SAÚDE: DESAFIOS E PROPOSTAS A PARTIR DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS DA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Author:
• Nádile Juliane Costa de Castro - Castro, NJC - <nadiledecastro@hotmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7675-5106
Co-author(s):
• Brenda Caroline Martins da Silva - Silva, BCM - <carol.brenda1994@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3474-2921
• Pâmela Correia Castro - Castro, PC - <pamelacorreiac@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9027-7932
• Eudes José Braga Junior - Braga Junior, EJ - <bragaeudes10@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3503-0264
• Matheus Gabriel dos Santos Cunha - Cunha, MGS - <matheuscunhageografia@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8362-7666
• Raíssa Moura de Almeida - Almeida, RM - <raissamouradealmeida@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0001-3515-4785
Abstract:
The objective of this study was to analyze the geographic and structural barriers that hinder access to health services in quilombola communities in the Brazilian Amazon, proposing solutions based on public policies and community initiatives that promote greater equity in the care of these populations in remote areas. It adopts a qualitative approach, with data collected in March 2022 through interviews with 45 members of three quilombola communities Itacuruçá, Ipanema, and Arapapuzinho, located in riverside areas of the Pará region in the Amazon. The data were later subjected to content analysis and discussed based on the theoretical framework proposed by Milton Santos and Florestan Fernandes. The results indicate that the main barriers were: geographic isolation and reliance on river transport; lack of adequate infrastructure in Primary Health Care Units; and a shortage of healthcare professionals. The findings highlight the urgent need for more inclusive public policies and investments in health infrastructure in quilombola communities in the Amazon, as well as for measures that consider equity issues in access to health services for marginalized and traditional groups.Keywords:
Quilombolas; Access to health services; Equity; Unequal minorities in health and vulnerable populations; Barriers to access to health care.Content:
Ser quilombola significa participar de uma coletividade que preserva tradições culturais, identitárias e territoriais, ancoradas na resistência à opressão e na luta pela manutenção dos direitos fundamentais1,2. Historicamente, a população quilombola tem sido alvo de processos de invisibilidade social, formas de exclusão social, o que impacta, diretamente, o acesso a serviços essenciais2,3,4, frutos do racismo estrutural fundamentado nas relações sociais, históricas e culturais5, em que há práticas discriminatórias e institucionais que permeiam a sociedade brasileira6.
No campo da saúde, essa exclusão se manifesta por intermédio de políticas públicas que não atendem às necessidades e às especificidades dessas comunidades e à ausência e/ou insuficiência dos serviços7,8. Por outro lado, há barreiras geográficas e econômicas que dificultam o acesso aos cuidados básicos de saúde, a exemplo dos déficits ou da ausência de serviços em seus territórios ou no entorno deles8. Não são apenas dificuldades logísticas, mas uma expressão da forma como o território é apropriado por forças políticas e econômicas que marginalizam esses grupos ao acesso desigual aos serviços de saúde2,3,4.
Nesse contexto, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNAISPN), instituída em 2009, surgiu como uma tentativa de mitigar as desigualdades históricas e reconhecer as demandas específicas da população negra. Essa política visa garantir o acesso equitativo à saúde, com foco na promoção, na prevenção e no tratamento de doenças que afetam desproporcionalmente essa população12.
Além disso, é imprescindível aprofundar a compreensão da PNSIPN como resposta às demandas históricas e contemporâneas da população negra3,5,6. Essa política emerge de um contexto marcado por intensas lutas sociais e políticas que buscam combater o racismo institucional12. Contudo, na prática, a implementação revela desafios significativos, especialmente, em áreas rurais e/ou remotas, como as comunidades quilombolas2,3,6,7, nas quais a escassez de infraestrutura adequada e a insuficiência de profissionais de saúde dificultam sua efetivação.
Esses aparecem nas políticas de saúde como população negra, com poucos avanços enquanto comunidade tradicional, observada a necessidade de equidade e justiça social. Isso mostra a imprescindibilidade de estudos que abordem as barreiras específicas enfrentadas em comunidades quilombolas e contemplem, sobretudo, suas realidades geográficas, culturais e socioambientais12,13. Assim, a implementação dessas políticas, sem observar a geografia local e as necessidades culturais das populações, reforça o ciclo de exclusão e a invisibilidade dessas comunidades.
No contexto amazônico, a situação se agrava devido às vastas distâncias entre as comunidades e os centros urbanos, à dependência do transporte fluvial e à precariedade da infraestrutura local. As barreiras ao acesso à saúde nessas regiões não são apenas uma questão de geografia, trata-se de um processo que envolve tanto as dinâmicas sociais quanto as geográficas. Além de evidenciar que as condições específicas dessas comunidades quilombolas, não apontadas de forma singular na PNAISPN, contribuem para a invisibilidade das populações marginalizadas e para o déficit de equidade no Sistema Único de Saúde (SUS)10.
A falta de infraestrutura adaptada às realidades locais, a escassez de profissionais de saúde em áreas7 e a inexistência de políticas de saúde que levem em consideração a geografia, a identidade e a cultura dessas populações contribuem para uma disparidade crescente no acesso à saúde. Observa-se, por exemplo, que centros urbanos concentram infraestrutura e serviços, enquanto áreas nas quais vivem as comunidades quilombolas permanecem sistematicamente marginalizadas3,7.
Tal constatação elucida que a organização do território, permeada por relações de poder desiguais, intensifica as disparidades no acesso à saúde7. Diante disso, torna-se imprescindível que as políticas públicas sejam reformuladas10 para incorporar as especificidades geográficas, culturais e identitárias dessas populações, garantindo uma distribuição mais equitativa dos recursos e serviços7. Nessa perspectiva, este estudo defende a adoção de soluções ancoradas nas realidades locais, capazes de reduzir as iniquidades e alinhar as ações governamentais aos modos de vida das populações quilombolas.
Este estudo objetiva analisar as barreiras geográficas e estruturais que dificultam o acesso aos serviços de saúde em comunidades quilombolas da Amazônia brasileira à luz do conceito de território como uma construção social, permeada por relações de poder.
MÉTODO
Este estudo, de abordagem qualitativa, descritiva e exploratória, versa sobre a acessibilidade de comunidades quilombolas amazônicas, sob o aspecto do cenário e das peculiaridades do cotidiano de fazer saúde em áreas remotas e de difícil acesso. A construção seguiu as recomendações do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)14.
A metodologia de análise deste estudo fundamentou-se nas teorias de Milton Santos9, com ênfase no conceito de exclusão territorial e no uso do espaço como ferramenta de análise para compreender as barreiras geográficas e estruturais que limitam o acesso das comunidades quilombolas aos serviços de saúde na Amazônia, e na perspectiva de Florestan Fernandes para entender a dimensão histórico-social dessas relações, pois elucida como o legado da escravização de pessoas negras e a formação de uma sociedade de classes estabeleceram processos estruturais de exclusão e marginalização15.
Tais aplicações permitiram uma investigação crítica do espaço vivido por essas populações, de modo a viabilizar o entendimento do território como uma construção social permeada por relações de poder que moldam a dinâmica de inclusão e exclusão, assim como dos processos sócio-históricos construídos. Além disso, foi utilizada a noção de fragmentação espacial para discutir como a localização geográfica e a falta de infraestrutura adequadas reforçam as desigualdades no acesso à saúde16.
O estudo também foi regido pelo princípio que direciona a PNAISPN: a equidade12, de modo que se atribui o segmento de equidade com atenção às necessidades específicas, à redução de desigualdades e de territórios, à exclusão social e à localização geográfica de difícil acesso, discutindo a inclusão desses territórios no sistema de saúde16,17. Ancora-se, ainda, no conceito relacionado à interseccionalidade para analisar como diferentes formas de opressão e desigualdade se sobrepõem e inter-relacionam-se, destacando as múltiplas camadas envolvidas, e como identidade e o poder se cruzam em sistemas de dominação18.
A pesquisa ocorreu nas comunidades de Itacuruçá, Ipanema e Arapapuzinho, localizadas no município de Abaetetuba, no Estado do Pará, Brasil, pertencentes à Associação de Remanescentes de Quilombolas das Ilhas de Abaetetuba (ARQUIA), conforme observado na Figura 1. A escolha aconteceu em virtude da proximidade geográfica. Essas comunidades se caracterizam como quilombolas em vista de sua representatividade das dinâmicas territoriais comuns na Amazônia, às margens de rios, florestas tropicais e dotadas de inter-relações com a natureza que envolvem mobilidade e subsistência, como apontando na Figura 2. Por outro lado, por serem comunidades ribeirinhas, possuem distanciamento da zona urbana, cuja peculiaridade agrava a questão social, de acesso à saúde e à educação em diferentes níveis.
Figura 1
Figura 2
Quadro 1
Os resultados deste estudo estão organizados em três categorias principais, emergentes da análise de conteúdo das entrevistas realizadas com os membros das comunidades quilombolas: (1) barreiras geográficas e logísticas, como o isolamento e a dependência de transporte fluvial; (2) falta de profissionais de saúde, evidenciando a escassez de médicos e enfermeiros; e (3) propostas de melhoria, que refletem as expectativas das comunidades quanto à inclusão nas políticas públicas de saúde, como observado a seguir.
Barreiras geográficas e logísticas ao acesso à Saúde:
Essa categoria abrange os obstáculos físicos e logísticos que limitam o acesso das comunidades quilombolas aos serviços de saúde. Inclui fatores como isolamento geográfico, dependência de transporte fluvial e falta de infraestrutura de transporte e comunicação.
Também tem o rio que seca e assim não dá pra se deslocar sempre, porque depende muito da maré, então se for algo de imediato pra resolver, fica muito complicado (QA1).
Não ter transporte e ter que ir atrás de um carro, pagar 150, 200 reais até Abaetetuba ou Igarapé-Miri. Têm vezes que a gente anda atrás e não consegue (QI1).
Ocorre fora, porque aqui (Ipanema) dentro não tem posto de saúde, aí a gente tem que se deslocar para o São João (Itacuruçá), lá no médio Itacuruçá para poder ter acesso, quando não, é em Abaetetuba mesmo (QIP13).
Vou em Abaeté (Abaetetuba), sempre vou lá, a gente corre para cá, corre por outro lado, mas quando chega lá (UBS), não tem quase nada. Tem que ir pra Abaetetuba ou Igarapé-Miri (QI5).
Aqui já precisei, mas nunca fizeram nada por mim. Aí vou pra Abaeté direto (QI20).
Precisa se deslocar pra Abaeté sempre, se tiver algo mais grave, a pessoa morre antes de chegar ao hospital (QIP4).
Eu vou pra outro lugar que é Abaeté, porque aqui (Arapapuzinho) não tem (QA3).
Falta de profissionais de saúde e descontinuidade no atendimento:
Refere-se à carência de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde nas comunidades quilombolas, o que acarreta descontinuidade no atendimento e prejudica a qualidade do cuidado.
Aí a gente precisa de um médico mesmo, especialista, um médico bom e não tem. Ter mais enfermeiros, ter um dentista também. O médico poderia ir todo dia, às vezes, a gente precisa e não tem, e vai lá e só tem enfermeiro, às vezes, nem enfermeiro tem (Q3).
Têm dias que tem médico, têm dias que não. Se a gente precisar de alguma urgência, tem que se deslocar pra Abaeté (QI19).
Ter mais médicos, funcionar o posto de manhã e de tarde, porque a gente vai em outro horário, não tem médico ou enfermeiro. Então, se tivesse no próprio posto uma farmácia seria bom, porque se precisar, tem que ir até Abaetetuba para comprar ou nas conveniências daqui. Mais dias de atendimento também seria bom (QI21).
Não tem. Consigo marcar consultas para outros lugares, mas aí (Unidade de Saúde) não; aqui não tem serviços de saúde (QA2).
Eu vou pra Abaetetuba, sempre lá, porque aqui (Ipanema) não tem posto de saúde.
Aí quando adoece tem que ir pra Abaeté (QIP10).
Eu sei que tem consulta com médico, mas não sei os dias que ele atende (QIP4).
Olha eu não sei te dizer, mas é o básico: enfermagem e encaminha pra Abaetetuba (QI14).
Propostas de melhoria e expectativas em relação às políticas públicas
Essa categoria abrange as sugestões e as expectativas das comunidades quilombolas no que concerne ao modo como as políticas públicas poderiam ser melhoradas para atender às suas necessidades de saúde. As propostas também refletem o desejo dos quilombolas de serem vistos e incluídos nas políticas governamentais, assegurando mais atenção às especificidades de suas realidades locais.
Investimento por parte do governo, os programas de saúde precisam ser mais bem executados, como: o hiperdia, pré-natal, também no posto de saúde ter vacina, assim as crianças já podem se vacinar dentro da comunidade, não precisam sair da comunidade para se vacinar, porque vão pra Abaetetuba (QI22).
A gente precisa ser visto, pra depois a gente conseguir esse acesso (QIP4).
O governo investir mais na saúde, colocar um posto pra cá, né, pra nós ribeirinhos, porque precisamos. Aí quando precisa tem que correr pra Abaeté e é um gasto pra gente e, às vezes, quando dá tempo, quando não chega a morte (QIP28).
Para sintetizar as intervenções propostas para enfrentar os desafios de acesso à saúde nas comunidades quilombolas da Amazônia, considerando as dimensões da geografia, do modo de vida tradicional e da promoção da equidade, estruturou-se o Quadro 2. Cada dimensão é analisada em consonância com os desafios identificados e as potenciais intervenções, visando à melhoria das condições de saúde e à redução das desigualdades enfrentadas por essas comunidades.
Quadro 2
O Quadro 2 mostra as interações entre os desafios e as intervenções e a maneira pela qual cada intervenção pode impactar a equidade e a melhoria do acesso à saúde, enquanto considera a geografia e o modo de vida das comunidades quilombolas.
DISCUSSÃO
Os registros evidenciaram que as barreiras geográficas e estruturais, enfrentadas pelas comunidades quilombolas, são uma manifestação das dinâmicas de exclusão territorial e fragmentação espacial¹4. Essas dinâmicas tornam o espaço geográfico um fator de marginalização, exacerbando as desigualdades no acesso aos serviços de saúde e refletindo o uso desigual do território. Além de destacar que as características do “espaço usado” por essas comunidades impactam diretamente sua mobilidade e acessibilidade, alinhando-se às práticas de resistência e adaptação locais, no intuito de propor políticas públicas que considerem a territorialidade e as especificidades locais19,20,21.
Uma primeira contribuição de Milton Santos para o estudo da Saúde está no diálogo entre a Geografia e a Epidemiologia. O avanço da globalização, com o expressivo aumento das relações sociais e econômicas, ampliou o entendimento sobre a circulação de doenças, relacionada ao deslocamento de pessoas e vetores22. Diante dessa nova situação analítica, tornou-se urgente a garantia de políticas públicas em Saúde que alcance todas as comunidades e territórios, uma vez que todos estão inseridos nessa reconfiguração global, proposta na visão miltoniana22.
Nesse sentido, o território espelha as relações de poder desiguais que determinam a concentração de serviços que, no caso de comunidades quilombolas amazônicas, não se restringem a fatores físicos isolados, mas emergem de uma organização espacial que privilegia determinadas regiões em detrimento de outras. Pode-se notar a fragilidade de efetivação de tais políticas, tendo em vista que as barreiras geográficas enfrentadas pelas comunidades revelam uma utilização do espaço que favorece a exclusão social e territorial.
Mediante tal aspecto, dada a perspectiva sócio-histórica15, nota-se que essa fragilidade não é apenas fundamentada em uma realidade física, mas o resultado de relações sociais colonialistas, que resultaram em práticas excludentes que se perpetuam ao longo do tempo, configurando um cenário de exclusão institucional e social15 e não se originam apenas de condições geográficas contemporâneas, como também de uma história de exclusão e marginalização do regime escravocrata.
Dessa feita, o espaço não é meramente uma entidade física, mas uma construção social utilizada por diferentes grupos, por vezes, de forma desigual17. No caso das comunidades quilombolas, essa construção espacial é marcada por políticas públicas que não consideram as especificidades territoriais dessas populações, perpetuando um ciclo de marginalização e invisibilidade já sinalizado em outros estudos3,4,7,8. Isso é percebido na configuração dos territórios, na dependência exclusiva do transporte fluvial para o deslocamento para unidades de saúde, na carência de unidades de saúde próximas, na escassez de profissionais de saúde, na ausência de serviços contínuos e na necessidade de recursos financeiros para deslocamento.
Estudos têm demonstrado que a exclusão territorial é uma dinâmica recorrente16,21. A concentração de serviços de saúde em centros urbanos, a falta de infraestrutura adequada nas áreas rurais, a dependência de transporte fluvial e as longas distâncias são condições que intensificam as desigualdades no acesso à saúde. Soma-se a isso os meios de transporte precários, observada a realidade dos transportes fluviais amazônicos16. Trata-se de um exemplo de fragmentação espacial, cujo território é dividido de maneira desigual, limitando o acesso de grupos marginalizados a serviços essenciais.
Os resultados indicam que, embora a PNSIPN tenha sido um avanço importante para as populações negras, ela não aborda, eficazmente, as barreiras geográficas e culturais que comunidades quilombolas de região remota enfrentam. Como relatado pelos participantes, a ausência de unidades de saúde próximas torna o acesso aos serviços de saúde extremamente difícil. Essas peculiaridades não estão suficientemente contempladas na PNSIPN, o que reforça a necessidade de reformular essa política para incluir estratégias adaptadas às condições específicas das comunidades quilombolas a partir das singularidades dos territórios23,24.
Apesar de reconhecerem a necessidade de equidade, as políticas públicas falham ao lidar com as especificidades territoriais. Os gestores de saúde não conseguem alinhar os serviços e as ações com as peculiaridades de comunidades quilombolas em regiões remotas, perpetuando as desigualdades7. Há uma concentração de recursos e serviços nos centros urbanos, deixando as áreas remotas sem cobertura adequada21,23,25.
Sabe-se que a fragmentação não é uma característica inerente ao território, entretanto, ela se apresenta como uma construção social¹6. Portanto, para compreender essa fragmentação de forma holística e crítica, é imprescindível conceber que esse processo não provém apenas de barreiras geográficas, mas do modo pelo qual o território é organizado e usado pelas forças sociais e econômicas. As distâncias sociais, representadas nas falas dos quilombolas, potencializam as desigualdades que já se apresentam nas relações de poder e no modo como o espaço é produzido e apropriado.
Verifica-se, pois, que as situações contemporâneas decorrem de dois mecanismos que impactam a realidade de acesso aos serviços de saúde e partem das dinâmicas de circulação do capital e das relações de poder8,15 e daquelas que emergem da herança histórica da exclusão social e racial15. E ainda que os mecanismos sejam diferentes, os processos afetam as iniquidades sociais e de saúde2.
Essa fragmentação reproduz relações de poder desiguais, em que as populações quilombolas ficam à margem do sistema de saúde. Nesse sentido, a reorganização das práticas de saúde pelas comunidades não é apenas uma adaptação às dificuldades, mas uma forma de criar espaços de resistência e autonomia dentro da lógica territorial existente¹7. Em vista disso, é necessário reescrever os delineamentos das políticas a partir do territórios.
Nesse sentido, para além da questão histórico-social dos territórios, é fundamental entender a interação entre Geografia e exclusão territorial10, que impõe desafios únicos e intensifica as barreiras no acesso aos serviços de saúde. Essas comunidades, dispersas nos territórios, estão localizadas em áreas remotas, nas quais o transporte fluvial é a principal forma de mobilidade e rios e as águas são parte das dinâmicas sociais11 e do modo de vida9.
Segundo Milton Santos10, o território não pode ser entendido apenas como um espaço físico, mas, sim, como uma construção social, resultado das interações entre diferentes agentes e das relações de poder que moldam seu uso. No caso das comunidades quilombolas da Amazônia, essa construção territorial é marcada por um uso desigual do espaço, cujos recursos e serviços são concentrados em áreas urbanas, deixando as populações rurais e tradicionais à margem do direito aos serviços básicos de saúde.
Além disso, há outras questões que moldam o cotidiano como a dependência das marés dos rios e a precariedade da infraestrutura rodoviária, que exacerbam o isolamento e agravam as condições de acesso à saúde dos quilombolas8, uma realidade amplamente subestimada nas políticas públicas de saúde. Essa invisibilidade reflete questões de racismo estrutural5, historicamente perpetuado3,6,15 que é central nas dinâmicas de exclusão e uso do território10.
Há também a dependência das apresentações das múltiplas estações climáticas, que envolve o aumento dos níveis dos rios e a estação de seca, condição que, em vias navegáveis, tornam-se impraticáveis em muitas comunidades e, frequentemente, impedem a mobilidade11. O acesso a serviços de saúde básicos, como vacinação ou consultas médicas regulares, depende de deslocamentos longos e dispendiosos até centros urbanos, o que contribui para a exclusão do acesso a serviços de saúde9.
A dependência de condições naturais, como a maré dos rios, que tornam o deslocamento ainda mais incerto e dispendioso, somado a dependência de recursos financeiros para deslocamento, é uma peculiaridade dessas comunidades amazônicas. A ausência de serviços como o da Estratégia Saúde da Família (ESF) e da rotatividade de profissionais exemplifica a dinâmica de exclusão que se manifesta8. Além disso, populações quilombolas estão associadas a maiores taxas de doenças crônicas e a dificuldade de manter o acompanhamento médico adequado, o que agrava a vulnerabilidade das populações quilombolas.
Nota-se que essa organização tem favorecido as iniquidades em saúde. Acerca disso, é fundamental a visão miltoniana¹7, em que o isolamento não é observado tão somente como uma questão geográfica ou falta de recursos, mas de como o espaço é configurado para privilegiar certos grupos em detrimento de outros. Assim, a marginalização das comunidades quilombolas é uma consequência direta da lógica capitalista que orienta o uso do território e perpetua as desigualdades.
Em resposta, propostas como a implementação de unidades móveis de saúde e a ampliação de equipes da ESF têm sido sugeridas como soluções práticas. A implementação de unidades de saúde flutuantes16, que são sinalizadas na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Populações do Campo, Florestas e Águas (PNAISCFA), é potencial para diminuir essas iniquidades e superar as barreiras físicas, como longas distâncias e dependência do transporte fluvial, tendo em vista a complexidade dos fatores que se entrelaçam, sejam eles geográficos ou institucionais 2,5,6,7.
Essas intervenções buscam garantir uma presença contínua dos serviços de saúde nessas comunidades, minimizando o impacto das distâncias geográficas e das dificuldades de transporte23. Para isso, é necessário fortalecer serviços multiprofissionais, programas voltados para a formação de agentes comunitários de saúde, melhor integração das necessidades das comunidades quilombolas no sistema de saúde e intervenções que considerem as realidades específicas e fortaleçam a autonomia dos grupos historicamente excluídos.
Em contrapartida, a inserção de práticas integrativas e complementares (PICS) e as soluções, além de serem culturalmente adequadas, são possibilidades que permitem que o cuidado de saúde seja mais acessível em regiões nas quais o acesso aos serviços convencionais de saúde é limitado7. A expansão das PICS seria essencial27, posto que essas práticas têm sido bem aceitas pelas comunidades quilombolas e podem complementar o atendimento convencional em áreas de difícil acesso. Assim como o fortalecimento da ESF nas regiões remotas garantiria um acompanhamento regular e a prevenção de doenças crônicas, oferecendo mais cobertura e cuidado contínuo23,26.
Por tudo isso, é essencial olhar como formas de opressão se sobrepõem, como do racismo estrutural e institucional se apresentam5,9. A dificuldade de acessar os serviços de saúde resulta da discriminação racial, ilustrando como o isolamento geográfico, exacerbado pela dependência de transporte fluvial16, combina com diferentes manifestações do racismo. Essas sobreposições evidenciam que a interseccionalidade entre Geografia, raça e condições socioeconômicas deve ser central nas discussões sobre equidade no SUS e na formulação de políticas públicas equânimes.
Destaca-se que o espaço usado por populações marginalizadas se torna uma ferramenta de opressão quando o território é desconsiderado pelas políticas públicas¹7. No contexto das comunidades quilombolas da Amazônia, o isolamento geográfico as torna ainda mais vulneráveis, especialmente, em períodos de seca/estiagem¹8, quando a navegabilidade dos rios é reduzida¹3. Esse isolamento evidencia a necessidade urgente de políticas de saúde que levem em consideração as especificidades geográficas em diálogo com o enfrentamento das demandas sobre eventos extremos frente às mudanças climáticas.
Sendo assim, além da vulnerabilidade geográfica, a combinação com as mudanças climáticas intensifica os desafios. A falta de políticas que considerem os impactos diretos desses eventos climáticos sobre a saúde das comunidades quilombolas aumenta a desigualdade no acesso a cuidados a saúde26. As estiagens prolongadas afetam a disponibilidade de água potável, a produção agrícola e a segurança alimentar, o que, por sua vez, influencia as condições de saúde, aumentando a incidência de doenças como desidratação, infecções gastrointestinais e desnutrição. Nessa senda, a relação entre a crise climática e a saúde ainda é subexplorada24 nas políticas públicas de saúde voltadas para essas populações27.
Para além disso, é importante ressaltar que é indispensável propor intervenções que abordem as raízes históricas da exclusão15, como a capacitação de profissionais de saúde para trabalhar em contextos de alta vulnerabilidade e a criação de políticas públicas que considerem a interseccionalidade entre raça, gênero e classe. Essa abordagem pode se materializar, por exemplo, na cocriação de programas de saúde com a participação ativa das comunidades quilombolas, fortalecendo suas perspectivas e autonomia para desafiar e superar as estruturas de poder que perpetuam as desigualdades institucionais e estruturais.
Há de se rever a gestão de saúde desses territórios, porquanto as pactuações de gestores e a execução dos serviços de saúde, com frequência, não coincidem com as necessidades dessas populações26. Um modo para superar essas condições é reformular as políticas públicas por meio da territorialização, considerando as peculiaridades geográficas dessas populações. Isso incluiria a implementação de unidades móveis de saúde adaptadas às áreas remotas, garantindo serviços contínuos e mitigando a distância geográfica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo identificou que, ainda que as políticas públicas de saúde para populações negras tenham implementado medidas para reduzir as desigualdades de acesso a saúde, os resultados deste estudo desvelam que essa política falha em atingir comunidades quilombolas da Amazônia e suas peculiaridades, devido à sua desconexão com as realidades territoriais locais. A desigualdade no acesso à saúde é resultado de fatores econômicos ou sociais e de uma geografia que intensifica as distâncias entre as comunidades e os centros de atendimento, que é identificada como o espaço é organizado. No caso dessas comunidades, a ausência de investimento em infraestruturas adaptadas revela como o território é usufruído para manter essas populações à margem do sistema de saúde, perpetuando as iniquidades de saúde.
É fundamental a cocriação de políticas com a participação ativa dessas comunidades de forma a assegurar que o território seja moldado de acordo com suas necessidades. No que tange ao “território de dissidência” como um espaço no qual populações marginalizadas resistem às dinâmicas opressoras, essas propostas de melhorias elencadas pelos participantes desas comunidades surgem como forma de resistência e desafia as estruturas tradicionais de poder que perpetuam sua exclusão.
É relevante ponderar que a pesquisa é restrita a três comunidades, o que pode limitar a generalização dos achados para outras regiões quilombolas da Amazônia ou do Brasil. Para tanto, recomendam-se investigações longitudinais para avaliar os efeitos das intervenções sugeridas, como unidades móveis e práticas integrativas; no longo prazo, a interseccionalidade entre raça, gênero e território para compreender como essas múltiplas formas de opressão afetam o acesso à saúde, particularmente, em contextos de mudanças climáticas.
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