0312/2025 - Offer of practices by life course and chronic diseases and other conditions in UBS in Brazil: data from the 2024 Census
Oferta de práticas por curso de vida e doenças crônicas e outros agravos nas UBS do Brasil: dados do Censo de 2024
Author:
• Elaine Tomasi - Tomasi, E - <tomasiet@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7328-6044
Co-author(s):
• Bruna Venturin - Venturin, B - <brunaventorim@hotmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7347-0925
• Elisandréa Sguario Kemper - Kemper, ES - <elisandrea.kemper@saude.gov.br>
ORCID: https://orcid.org/0009-0007-7299-2140
• Elaine Thumé - Thumé, E - <elainethume@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1169-8884
• Dirceu Ditmar Klitzke - Klitzke, DD - <dirceu.klitzke@saude.gov.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0050-5992
• Carlos Pilz - Pilz, C - <pilzcarlos@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5483-5471
• Alaneir de Fátima dos Santos - Santos, AF - <laines@uol.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7674-0449
• Sueli Zeferino Ferreira Almeida - Ferreira-Almeida, SZ - <sueli.zeferino@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0009-4887-7817
• Camila Zanutto Cardillo - Cardillo, CZ - <camila.cardillo@saude.gov>
ORCID: https://orcid.org/0009-0003-1528-4827
• Maria Aparecida Moreira Martins - Martins, MAM - <mapmm26@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5811-0366
• Ana Luiza Queiroz Vilasbôas - Vilasbôas, ALQ - <analuvilas@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5566-8337
Abstract:
Objective: To characterize the provision of practices in PHC in Brazil by region and municipality population.Methods: The 2024 National Census of UBS was applied through an electronic instrument on the e-Gestor platform. Variables on life course and chronic diseases and other conditions were selected. Outcomes were constructed with the sum of positive responses to each set of variables and the 75% percentile of the distribution was the cutoff point for analysis according to the geopolitical region and population of the municipality.
Results: A total of 44,938 UBS were included. For life course, 46.2% of UBS achieved a score above the cutoff point and for chronic diseases and other conditions, 33.6%. For both outcomes, the Northeast and Southeast regions reached the highest proportions and the North and Central-West regions, the lowest. In relation to population size, both outcomes showed a higher prevalence in municipalities with more than 900,000 inhabitants and a lower prevalence in municipalities with less than 20,000 inhabitants.
Conclusion: Considering the marked regional inequalities, it is necessary to seek universalization of the provision of actions aimed at priority groups in PHC.
Keywords:
primary health care; basic health units; health care; disparities in health care; evaluation of health care processes.Content:
Sustentada nos princípios constitucionais da universalidade, integralidade e equidade da atenção à saúde, a Estratégia Saúde da Família (ESF), modelo brasileiro de organização da atenção primária à saúde (APS) de base territorial e organização comunitária no Sistema Único de Saúde (SUS), está presente em 88,4% das Unidades Básicas de Saúde (UBS) no país(1).
Ao longo de 30 anos de implementação, a ESF aumentou significativamente o acesso da população aos serviços primários em todo o país, com mais de 85% de cobertura populacional em municípios com menos de 50.000 habitantes em 2020(2). Hoje vemos uma expansão da ESF, com mais de 50 mil equipes de Saúde Família (53.679 eSF) espalhadas em todos os municípios brasileiros, registrando cobertura populacional de 73% do país (considerando 1 eSF para cada 3 mil pessoas). O aumento da cobertura populacional também tem sido acompanhado pela expansão da oferta de ações individuais e coletivas, refletindo mudanças nas políticas de saúde, com vistas ao atendimento integral às necessidades de saúde da população em função dos desafios postos pela transição demográfica e epidemiológica do país(3).
A oferta de ações individuais e coletivas pode ser denominada de “escopo de práticas”, termo utilizado para descrever o conjunto de atividades, funções e ações que um profissional pode exercer com segurança, segundo sua formação, treinamento e competência profissional(4). A ampliação do escopo de práticas observada na APS brasileira tem a integralidade como diretriz e vem sendo viabilizada pela composição de equipes multiprofissionais da ESF (médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, agente comunitário de saúde), pela implantação de equipes de Saúde Bucal (cirurgiões dentistas, técnicos e auxiliares de saúde bucal), e pela criação das equipes multiprofissionais, atualmente, eMulti, com onze categorias profissionais mais onze especialidades médicas(4-6).
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), nas edições de 2006, 2011 e 2017, destaca que o escopo de práticas da APS inclui a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o diagnóstico, o tratamento de condições agudas e crônicas, redução de danos, cuidados paliativos, vigilância em saúde e a reabilitação(7-9). Os profissionais da APS devem atuar prestando cuidado integral e contínuo, garantindo o acompanhamento da saúde das pessoas em todas as fases da vida, o que inclui a promoção de hábitos saudáveis, a realização de cuidados preventivos, o acompanhamento de doenças crônicas, e o atendimento às necessidades de saúde mental, oferecendo cuidado para grupos vulneráveis, como crianças, gestantes, idosos, pessoas com deficiência, população em situação de rua e outros(10). A APS deve atuar de forma integrada com os demais serviços da rede de atenção à saúde do SUS, sendo a porta de entrada preferencial para o sistema de saúde(11). Entretanto, não é conhecida a extensão do quanto as ações prescritas nas políticas e protocolos são de fato realizadas nos serviços de saúde em todo o Brasil, o que se tornou oportuno investigar com dados do Censo Nacional das Unidades Básicas de Saúde (UBS) de 2024. Os resultados podem preencher esta lacuna e elencar prioridades para gestores e profissionais, redirecionando recursos e reorientando as práticas neste âmbito do sistema de saúde.
O objetivo deste artigo foi descrever a oferta de um conjunto de ações direcionadas a usuários em diferentes situações no curso de vida e a pessoas com condições crônicas de saúde nas UBS brasileiras, segundo grandes regiões e população do município, a partir dos resultados do Censo Nacional das UBS de 2024, discutindo limites e potencialidades para um cuidado integral na APS brasileira.
Métodos
Delineamento do estudo
O presente estudo possui desenho transversal e descritivo, baseado no Censo Nacional das Unidades Básicas de Saúde 2024.
O Censo Nacional das UBS, após apresentação realizada na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), foi lançado em maio de 2024 para adesão dos gestores municipais de forma eletrônica no sistema e-Gestor APS. Ao aderir ao Censo, cada município teve acesso à lista de seus estabelecimentos de saúde de APS inscritos no CNES para conferência, bem como para indicar o responsável para responder ao questionário. O período para preenchimento dos dados iniciou em 3 de junho e encerrou em 31 de agosto de 2024. O Estado do Rio Grande do Sul teve 65 dias adicionais em virtude da catástrofe climática vivenciada naquela ocasião. As diretrizes do Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) foram utilizadas para descrição do estudo(12) (Quadro S1).
Universo/Amostra
A base do Censo contou com 49.738 estabelecimentos de saúde oficialmente registradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) em abril de 2024. Desse total, 4.027 estabelecimentos foram inativados pelo gestor municipal por não estarem em funcionamento no período do Censo, totalizando 45.711 estabelecimentos de saúde.
Os dados utilizados neste estudo foram extraídos da plataforma eletrônica do Censo Nacional das UBS 2024, acessada por meio do painel e-Gestor APS, hospedada em servidor do DATASUS e gerenciada pela equipe técnica da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS/MS). A plataforma concentrou as respostas registradas durante o período de coleta em uma base relacional única, permitindo sua posterior análise técnica. Encerrado o período de coleta, os dados foram extraídos a partir de funcionalidade da própria plataforma, que possibilita exploração estruturada por meio de um script compatível com a linguagem R, gerando dois arquivos principais: um com o dicionário de variáveis e outro com os dados efetivamente utilizados na análise, com suas codificações e configurações, e outro com os dados das respostas. Esse processo assegurou a integridade das informações, a padronização da base e a rastreabilidade das variáveis, viabilizando seu posterior tratamento estatístico em ambiente seguro, conforme os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – Lei nº 13.709/2018).
O banco de dados foi analisado em sua completude e consistência, examinando-se a distribuição de frequência das variáveis de interesse, comparando as categorias das respostas com o instrumento de coleta. A análise de consistência foi realizada comparando-se valores válidos em cada variável em relação aos eventuais filtros de variáveis anteriores.
Observou-se que, mesmo após o processo de inativação realizado pelos gestores, alguns estabelecimentos que não eram de APS haviam respondido ao questionário. Assim, foram excluídos da análise os estabelecimentos que informaram: a) em uma questão aberta, que não eram de APS; b) que eram unidades móveis terrestres ou fluviais; c) que não possuíam financiamento do Ministério da Saúde (MS) para equipes de Saúde da Família (eSF), equipes de Atenção Primária (eAP), equipes de Saúde da Família Ribeirinhas (eSFR) e Agentes Comunitários de Saúde (ACS), e que declararam não possuir eSF, eAP eSFR, além de possuírem nomes claramente indicativos de estabelecimentos de outro nível de atenção (Centro Covid, Casa de Parto, Centro de Especialidade, Centro de Especialidades Odontológicas (CEO), Centro Especializado em Reabilitação (CER). Este processo levou à exclusão de 773 estabelecimentos, totalizando 44.938 UBS.
Variáveis
A seleção de variáveis considerou a relevância para a qualidade do cuidado e o poder de discriminação entre as UBS, definidas por um conjunto de especialistas em APS em sucessivas aproximações chegando a um consenso nominal. O questionário completo incluiu para cada subdimensão um conjunto de 20 a 34 ações a serem realizadas nas UBS e está disponível na íntegra na página oficial do Ministério da Saúde(13).
Neste artigo, para caracterizar o escopo de práticas nas UBS com dados do Censo de 2024, as informações selecionadas foram reunidas em dois blocos. O primeiro incluiu atenção ao pré-natal e ao puerpério, atenção à criança desde o nascimento até os dois anos de vida, saúde sexual e reprodutiva, detecção, prevenção e rastreio de câncer de colo do útero e da mama, saúde do homem e saúde do idoso. Nesse bloco foram selecionadas quatorze questões para compor o desfecho denominado curso de vida (Quadro 2). O segundo bloco incluiu atenção à pessoa com hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, sobrepeso/obesidade, tuberculose, hanseníase, saúde mental e situações de violência. Nesse bloco foram selecionadas dezesseis questões para compor o desfecho denominado doenças crônicas e outros agravos (Quadro 3).
Plano de análise
Inicialmente, todas as questões foram dicotomizadas em 0 "não” e 1 “sim"; em seguida foram somadas para formar duas variáveis numéricas sintéticas relacionadas aos desfechos: curso de vida e doenças crônicas e outros agravos. Utilizou-se o ponto de corte do percentil 75 para categorizar as UBS em dois grupos: aquelas que pontuaram nos valores do percentil 75 ou mais e as que pontuaram abaixo deste ponto de corte. Com este ponto de corte foi possível descrever as proporções de UBS posicionadas acima do percentil 75 para ambas as variáveis sintéticas. Este ponto de corte foi arbitrado com base na distribuição dos valores nas variáveis que somaram as respostas positivas a cada conjunto de variáveis, observadas no banco de dados. Acredita-se que o ideal seria que todas as variáveis tivessem respostas positivas (100%), o que atribuiria um nível de excelência às UBS; utilizar a mediana da distribuição poderia imprimir um viés na direção de um desempenho muito baixo; assim, optou-se por uma medida de posição intermediária, 75%, para atingir a maior parte da distribuição.
As variáveis dicotomizadas foram analisadas por região geopolítica e população do município de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)(14).
A opção de análise por meio de desfechos sintéticos foi tomada em virtude do grande número de variáveis selecionadas, para as quais não seria desejada uma descrição individualizada por região e população do município. Assim, pode-se trabalhar com um ponto de corte da distribuição, no caso o percentil 75%, representando uma situação em que a maioria das ações estava sendo ofertada pelas UBS.
Aspectos éticos
O protocolo de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (parecer nº 6 779 222, CAAE 78767024.2.0000.5421) emitido em 25 de abril de 2024.
Resultados
Foram incluídas nas análises 44.938 UBS, com a seguinte distribuição no território nacional: região Norte (n=4.096; 9,1%), Nordeste (n=17.737; 39,5%), Sudeste (n=13.375; 29,8%), Sul (n=6.607; 14,7%) e Centro-Oeste (n=3.123; 7,0%). A distribuição das UBS segundo a população do município foi a seguinte: até 20.000 habitantes (n=15.529; 34,6%), de 20.001 a 50.000 habitantes (n=11.412; 25,4%), de 50.001 a 100.000 habitantes (n=6.007; 13,4%), de 100.001 a 900.000 habitantes (n=9.641; 21,5%) e acima de 900.000 habitantes (n=2.349; 5,2%).
Em relação às variáveis que compuseram o desfecho curso de vida, as maiores proporções foram observadas para as ações de oferta de teste rápido para sífilis durante o pré-natal (93,9%), o recebimento dos resultados desse exame em tempo oportuno (93,5%), a checagem dos resultados do teste do pezinho pelas equipes (91,4%) e ações de detecção, prevenção e rastreio do câncer de colo do útero e da mama (85,9%). Neste mesmo bloco, as menores proporções foram registradas para inserção de DIU (19,7%), avaliação multidimensional do idoso (62,8%) e ações comunitárias de educação em saúde para vacinação (65,6%) (Tabela 1).
Sobre as variáveis que compuseram o desfecho doenças crônicas e outros agravos, as mais referidas foram verificação e registro da pressão arterial para controle da hipertensão (97,2%), solicitação de hemoglobina glicada para controle do diabetes (94,6%), visita domiciliar do ACS para busca ativa de usuários com tuberculose faltosos e de maior risco (85,7%) e notificação compulsória de casos de violência (83,5%). Neste mesmo bloco, as menores proporções foram oferta de exame de fundo de olho/ retinografia (22,9%), profilaxia pós-exposição de IST em situação de violência sexual (38,3%), cuidado compartilhado com equipe eMulti para pessoas com sobrepeso ou obesidade (54,4%) e exame dos pés para pessoas com diabetes (58,7%) (Tabela 2).
Para o desfecho curso de vida - com catorze questões - e para o desfecho doenças crônicas e outros agravos - com dezesseis questões -, os pontos de corte para o percentil 75 ou mais foram de doze e treze respostas positivas, respectivamente. Destaca-se o reduzido número de UBS que referiram a oferta de todas as ações incluídas em cada variável sintética: 2.603 para curso de vida (5,8%) e de 1.706 para doenças crônicas e outros agravos (3,8%).
De acordo com a opção analítica de utilizar o ponto de corte da distribuição acima do percentil 75 para as respostas em cada desfecho, obteve-se 46,2% para curso de vida e 33,6% para doenças crônicas e outros agravos. Isso significa que cerca de quatro e três em cada dez UBS, respectivamente, afirmaram ofertar a maioria das ações selecionadas em todo o Brasil.
Ao analisar estas proporções por região, observaram-se diferenças marcantes no desfecho curso de vida, cujo maior desempenho foi registrado no Nordeste (49,3%) e no Sudeste (46,1%) e o menor nas regiões Centro-Oeste (39,3%) e Norte (41,8%), verificando-se uma média nacional de 46,2%. Já o desfecho doenças crônicas e outros agravos obteve média nacional de 33,6%, com o menor desempenho nas regiões Norte (28,0%), Sul (29,1%) e Centro-Oeste (29,8%). Também foram identificadas diferenças importantes segundo a população do município. O desfecho curso de vida teve bom desempenho em 69% das UBS de municípios com mais de 900.000 habitantes, seguido pelos de 100.001 a 900.00 habitantes (49,8%) e baixo desempenho em UBS de municípios com menos de 20.000 habitantes (41,3%). O desfecho de doenças crônicas e outros agravos teve bom desempenho em UBS de municípios com mais de 900.000 habitantes (63,1%), mas as UBS localizadas nos demais grupos de municípios obtiveram escores abaixo de 35%. Ambas as diferenças de cada desfecho de acordo com região e porte populacional foram estatisticamente significativas (p<0,001) (Figura 1).
Discussão
Avanços importantes na oferta de práticas da APS do SUS, no que se refere ao escopo de ações e serviços das UBS, foram observados no Brasil entre 2012 e 2018(15-17). Os resultados do Censo parecem indicar um retrocesso, o que traz a necessidade de estudos que possam desvelar o que ocorreu com a oferta das ações de APS, entre 2018 e 2024, em meio à mudança do financiamento federal, com a extinção do Piso de Atenção Básica em final de 2019 e a ocorrência da pandemia da Covid-19, principalmente durante a primeira e segunda ondas, antes do advento da vacinação da população.
O conceito de escopo de prática na APS não é recente e expressa um esforço contínuo de qualificação da atenção primária à saúde. Sua formulação remonta aos primeiros esforços de organização da atenção básica como porta de entrada preferencial do sistema, e desde então, vem sendo progressivamente detalhado por normativas e políticas públicas(4-5). A PNAB, nas versões de 2006, 2011 e 2017, definiu que o escopo de práticas deve contemplar ações de promoção da saúde, prevenção de doenças, tratamento de condições agudas e crônicas e reabilitação, de forma integral, contínua e resolutiva, priorizando o modelo da Estratégia Saúde da Família(7-9). A PNAB também enfatiza a atuação intersetorial, em equipe multiprofissional, com foco em grupos vulneráveis(8-9).
O Decreto nº 7.508/2011, por sua vez, instituiu a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases), sistematizando as ações e serviços que devem ser assegurados pelo SUS, e reforçando o papel central da APS como coordenadora do cuidado(18). Entre 2011 a 2018, o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção?Básica (PMAQ?AB) funcionou, na prática, como um forte indutor da ampliação do?escopo de?práticas da Atenção?Primária à Saúde (APS) no Brasil(17,19). Mais recentemente, a Carteira de Serviços da APS (CaSAPS), lançada em 2019, procurou operacionalizar essa diretriz, organizando as ações por áreas temáticas e detalhando insumos e procedimentos mínimos(10). Embora esse instrumento traga avanços para a padronização e monitoramento da APS, ele também foi alvo de controvérsia quanto à sua ênfase em práticas clínicas individuais, podendo restringir a abordagem ampliada e comunitária que caracteriza o modelo da ESF(20).
A forma como o escopo de práticas é definido, orientado e incorporado na rotina das UBS impacta diretamente na capacidade de resposta da força de trabalho, nos custos do sistema e na equidade do acesso(21-22). O escopo de práticas limitado tende a gerar maior proporção de encaminhamentos desnecessários a outros níveis de atenção, enquanto a ampliação do escopo está associada ao aumento da resolutividade da APS(23) e da satisfação do usuário.
A complexidade para se alcançar um escopo de práticas na APS condizente com um modelo assistencial de base comunitária e com uma oferta de serviços de qualidade está expressa nos resultados principais deste estudo: somente 46,2% das UBS alcançaram mais de 75% da oferta das ações e serviços em relação aos itens registrados no Censo das UBS para curso de vida e somente 33,6% para doenças crônicas e outros agravos.
Estudos de revisão(23-26) apontaram que diversos fatores podem estar envolvidos na oferta de ações, incluindo inconsistências e barreiras sobre a legislação e regulamentação nos atuais sistemas legislativos e regulatórios que impedem os profissionais de saúde de atuar em todo o seu escopo de práticas. Além disso, modelos de gestão e formas de contratação de pessoal podem influenciar a capacidade dos profissionais de trabalhar com todas as ações preconizadas, na perspectiva da integralidade do cuidado. Outros fatores foram citados, com destaque para formação e educação permanente, políticas de financiamento, insumos, infraestrutura e disponibilidade de tecnologias de informação e comunicação.
Os desfechos deste estudo tiveram uma variação importante no que se refere ao porte populacional do município. Em municípios com menos de 20.000 habitantes a oferta de ações foi menor (41% em curso de vida e 30% em doenças crônicas e outros agravos), do que municípios com mais de 900.000 habitantes (69% e 63% respectivamente). A análise por região destacou o Nordeste com melhor desempenho em ambos os desfechos, o que pode ser reflexo da maior expressão da Estratégia de Saúde da Família em seus municípios, consolidando práticas das equipes com maior abrangência nas diferentes ações programáticas.
A literatura internacional(27,28) observa uma ampliação do escopo de práticas dos médicos da APS que atuam em áreas rurais e remotas, onde frequentemente desenvolvem uma gama mais ampla de habilidades em resposta às necessidades da população, à escassez de profissionais, serviços e oportunidades de encaminhamento. Ao contrário das áreas urbanas, os médicos generalistas e médicos de família, na maioria das vezes, são os únicos profissionais disponíveis em municípios rurais, o que parece se aplicar a diferenciais segundo a população municipal, já que há uma forte presença de áreas rurais em municípios com menos de 20.000 habitantes.
Constatou-se que na maioria das UBS, houve alta proporção de oferta dos resultados do teste do pezinho, teste rápido da sífilis e resultado do VDRL em tempo oportuno. Questões relacionadas ao recebimento do resultado do exame citopatológico de colo de útero em tempo oportuno e à detecção, prevenção e rastreio do ginecológico precisam ser universalizadas considerando o esforço de décadas na área da saúde da mulher, inclusive na oferta de consultas de revisão puerperal e inserção de DIU. Nas políticas mais recentes voltadas para a saúde do homem e dos idosos, persistem problemas incluindo a avaliação multidimensional de idosos e de atividades comunitárias no território.
A formação adequada dos profissionais é um fator fundamental na abrangência das ações e serviços de APS, sendo fator importante em sua oferta. A organização da APS no Brasil ocorre sem que o conjunto dos profissionais tenha formação adequada para sua atuação(29-30), fator importante para a abrangência do escopo de práticas executadas. Ressalta-se que aspectos vinculados à formação dos profissionais e à disponibilidade de equipamentos podem comprometer a oferta das práticas desenvolvidas(27).
Uma limitação do presente artigo foi ter selecionado um conjunto de ações e serviços voltados a diferentes etapas e aspectos do curso de vida e de doenças crônicas e outros agravos para representar a oferta de práticas na APS. O Censo reuniu informações de uma ampla gama de ações e serviços, como, por exemplo, saúde bucal, pessoas acamadas, condições pós-Covid, práticas integrativas e complementares em saúde, urgências e emergências, disponibilidade de testes diagnósticos realizados e coleta de material para exames na própria UBS, acesso a medicamentos e suplementos nutricionais, sendo que tais ações não foram incluídas nas análises deste artigo. Estima-se que se fossem incluídos dados de todo o escopo de práticas disponíveis no instrumento, os resultados projetariam pior desempenho das UBS. Também deve-se considerar a possibilidade de viés de informação, no sentido de uma superestimação nas respostas, pelo censo estar sendo realizado pelo Ministério da Saúde, nível máximo de gestão do sistema em nosso país. Não houve utilização de outras fontes de dados para validação cruzada.
Entre as fortalezas do estudo pode-se citar o uso de dados do Censo, com 100% das UBS elegíveis tendo respondido em todo o território nacional, de forma on-line em plataforma própria, resultando em um banco de dados de quase 45.000 UBS. Além da pactuação tripartite - MS, CONASS e CONASEMS -, o Censo retomou a colaboração com pesquisadores da Rede APS da ABRASCO, o que contribuiu para a qualificação de todo o processo. Os dados do Censo de 2024 permitem atualizar informações do primeiro ciclo do PMAQ, em 2012, quando 38.312 UBS foram estudadas.
Em um cenário de persistência de desigualdades regionais importantes, os resultados reforçam a importância da gestão em subsidiar equipes de saúde para que se alcance a universalização e se aumente a qualidade do cuidado na APS, por meio da oferta de ações direcionadas a pessoas em diferentes fases no curso de vida e com doenças crônicas e outros agravos.?
Referências:
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